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Crimes de gestão fraudulenta e gestão

temerária em Instituição Financeira

Leonardo Henrique Mundim Moraes


Oliveira

Sumário
1. Introdução. 2. Precedente legislativo. 3.
Da importância da intenção do agente no mo-
mento da prática da conduta típica. 4. Gestão
fraudulenta: aspectos conceituais e distintivos.
5. Gestão temerária: aspectos conceituais e dis-
tintivos. 6. Conclusão.

1. Introdução
Busca este trabalho situar uma dúvida ju-
rídica que tem atormentado estudiosos do
Direito Econômico, qual seja, a diferenciação
entre os crimes de gestão fraudulenta (art. 4º,
caput, da Lei nº 7.492/86) e gestão temerária
(art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86)
em Instituição Financeira, sendo certo que a
quaestio, lamentavelmente, decorre do exces-
so de simplicidade – que acabou por trans-
mudar-se em incompletitude – do art. 4º da
Lei nº 7.492/86, também conhecida como Lei
dos Crimes do Colarinho Branco, in verbis:
“Art. 4º Gerir fraudulentamente
Instituição Financeira:
Pena – Reclusão, de 3 (três) a 12
(doze) anos, e multa.
Parágrafo único – Se a gestão é te-
merária:
Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 8
(oito) anos, e multa.”
Leonardo Henrique Mundim Moraes Oli- A Lei, como se observa, foi omissa na ca-
veira é Advogado e Professor de Curso Prepa-
ratório para Concursos em Brasília; Ex-
racterização de cada conduta, apesar de sig-
Procurador da Área Administrativa e Criminal nificativa a diferença entre as penas abstra-
do Banco Central do Brasil. tamente cominadas.
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2. Precedente legislativo a doutrina um trabalho árduo e quase im-
possível, podendo-se contar nos dedos da
Os termos “gestão fraudulenta” e “ges-
mão o número de obras específicas existen-
tão temerária” foram primeiramente utiliza-
tes. Tal opção legislativa, provavelmente,
dos pelo legislador pátrio no art. 3º, inciso
surgiu da anormal pressa com que se elabo-
IX, da Lei nº 1.521/51 (Crimes contra a Eco-
rou e se editou aquela Lei, o que foi dura-
nomia Popular), in verbis:
mente criticado por Manoel Pedro Pimentel
“Art. 3º São também crimes desta
(1987, p.11).
natureza:
(...)
IX – gerir fraudulenta ou temeraria- 3. Da importância da intenção do
mente bancos ou estabelecimentos agente no momento da prática da
bancários, ou de capitalização; socie- conduta típica
dades de seguros, pecúlios, ou pen- Sabido que, entre as maiores conquistas
sões vitalícias; sociedades para em- do direito penal brasileiro, está o princípio
préstimos ou financiamento de cons- da subjetividade da conduta, do qual de-
truções e de vendas de imóveis a pres- correm duas assertivas: a) ninguém pode ser
tações, com ou sem sorteio ou prefe- condenado sem o prévio cometimento cons-
rência por meio de pontos ou quotas; ciente de ato comissivo ou omissivo penal-
caixas econômicas; caixas Raiffeisen; mente reprovável; e b) a responsabilidade
caixas mútuas, de beneficência, socor- deve ser individualizada e depurada para
ros ou empréstimos; caixas de pecúlio, fins de comparação com o tipo penal.
pensão e aposentadoria; caixas cons- Muito se discute acerca da natureza da
trutoras; cooperativas; sociedades de responsabilidade penal adotada na Lei dos
economia coletiva, levando-as à falên- Crimes do Colarinho Branco – se subjetiva
cia ou à insolvência, ou não cumprindo ou objetiva, ou seja, se dependente da apu-
qualquer das cláusulas contratuais com ração de dolo ou culpa, ou se satisfeita com
prejuízo dos interessados” (grifo nosso). a apuração do simples nexo de causalidade.
Naquela oportunidade, note-se, foram Entretanto, é opinião comum que o le-
definidas as situações em que se caracteri- gislador penal pátrio, no tocante à aprecia-
zaria a conduta típica, quais sejam, sempre ção da prática criminosa, acata e louva, por
que não se cumprissem cláusulas contra- tradição, a teoria finalista sobre a conduta.
tuais com prejuízo dos interessados, ou Assevera Júlio Fabrini Mirabete:
sempre que a gestão anormal implicasse a “... como todo comportamento do ho-
falência ou insolvência da sociedade. O cri- mem tem uma finalidade, a conduta é
me, pois, era tipicamente de dano concreto, uma atividade final humana e não um
não bastando para caracterizá-lo a mera comportamento simplesmente causal.
conduta, se não geradora de efetivo prejuízo Como ela é um fazer (ou não fazer)
ou de efeitos palpáveis no mundo material. voluntário, implica necessariamente
Mas já então não houvera preocupação uma finalidade. Não se concebe von-
em distinguir conceitualmente as condutas: tade de nada ou para nada, e sim diri-
fosse a gestão fraudulenta ou temerária, a gida a um fim. A conduta realiza-se
pena cominada era idêntica. E é essa a ori- mediante a manifestação da vontade
gem remota da atual vexata quaestio, na me- dirigida a um fim” (1998, pp. 98/99).
dida em que o legislador de 1986, malgrado Ora, relativamente aos crimes previstos
intencionando a separação das hipóteses tí- no art. 4º da Lei do Colarinho Branco, não
picas – tanto que fixara penas diferidas –, poderia ser diferente: também naqueles ca-
preferiu não entrar na seara específica dos sos far-se-á mister, para a imputação de res-
dois tipos de gestão virulenta, deixando para ponsabilidade e mesmo para a caracteriza-
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ção do tipo, que a intenção do acusado seja do o já referido antecedente legislativo do
devidamente verificada, dentro dos estrei- art. 4º da Lei nº 7.492/86, qual seja, o inciso
tos limites componentes do dolo direto ou IX do art. 3º da Lei nº 1.521/51, afirma que a
do dolo eventual, sendo ainda certo que, in- gestão fraudulenta
trinsecamente no Direito Penal brasileiro, “caracteriza-se pela ilicitude dos atos
vige o princípio geral de que a modalidade praticados pelos responsáveis pela
culposa só é punível em havendo expressa gestão empresarial, exteriorizada por
previsão legal. manobras ardilosas e pela prática
Saliente-se que, quando o art. 25 da Lei consciente de fraudes” (1985, p. 41).
nº 7.492/86 aponta responsabilidade penal Observe-se, assim, que a gestão fraudu-
sobre os administradores, controladores e lenta traz mais que um excesso de risco. O
gerentes da Instituição Financeira, natural- tipo exige um dolo específico, ou seja, uma
mente o faz sob mera intenção indicativa, vontade consciente do agente de praticar ato
sem o condão de afastar a necessária per- que dará aparência de legalidade a negócio
quirição dos poderes estatutários do acusa- ou situação jurídica que, em sua natureza, é
do para o conhecimento e a perpetração do ilegal. Aqui o conceito de fraude, pois, é mais
ato criminoso - e ainda assim, frise-se, será abrangente que o do Código Civil brasileiro,
condição imprescindível para o decreto con- uma vez que ocorre na própria dissimula-
denatório a comprovação da efetiva autoria ção de objetivos, no tangenciamento de nor-
do crime financeiro. mas e na deliberada ludibriação de outrem.
Aliás, no tocante à responsabilidade pe- Por isso que a gestão fraudulenta é sem-
nal objetiva, emitiu interessante opinião o pre um crime que serve para ocultar outro
respeitado doutrinador Damásio E. de Jesus, crime, ou um ilícito administrativo. Ressal-
in verbis: te-se que não se trata de crime-meio, não in-
“Hoje, com a introdução do prin- tegra e nem é absorvido pelo crime final,
cípio do estado de inocência em nos- como o seria, por exemplo, a lesão corporal
sa Const. Federal, segundo o qual ‘nin- causada à vítima de homicídio.
guém será considerado culpado até o De fato, em várias ocasiões, o crime de
trânsito em julgado da sentença pe- gestão fraudulenta serve à ocultação de um
nal condenatória’ (art. 5º, LVII), essas empréstimo vedado (art. 17 da Lei nº
disposições, na parte em que admiti- 7.492/86). Exemplo disso ocorre quando a
am a responsabilidade penal objeti- Instituição Financeira, mediante operações
va, podem ser consideradas derroga- triangulares, e utilizando-se de interpostas
das, uma vez que ele é incompatível pessoas físicas ou jurídicas (“laranjas”),
com a presunção de dolo ou culpa” culmina em transferir dinheiro para um
(1995, p. 399). administrador ou para uma outra empresa
integrante do mesmo grupo econômico. Nes-
4. Gestão fraudulenta: aspectos se caso, incide, quanto ao empréstimo ilegal
conceituais e distintivos em si, o referido art. 17, mas, quanto ao con-
A gestão fraudulenta em Instituição Fi- junto dos atos dissimulatórios – ou seja, as
nanceira pode ser tida como o recurso a qual- operações triangulares e os artifícios contá-
quer tipo de ardil, sutileza ou astúcia hábil beis de orquestração nos empréstimos aos
a dissimular o real objetivo de um ato ou “laranjas” –, incide o caput do art. 4º da Lei
negócio, com o que se busca ludibriar as nº 7.492/86 – crime de gestão fraudulenta.
autoridades monetárias ou mesmo aqueles Vale ressaltar que, nos moldes atuais, o
que mantêm relação jurídica com o agente crime de gestão fraudulenta é de mera
criminoso (correntistas, poupadores, inves- conduta, em que “a lei não exige qual-
tidores, etc.). Paschoal Mantecca, comentan- quer resultado naturalístico, contentan-
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do-se com a ação ou omissão do agen- perspicácia, como numa aposta em que se
te” (Mirabete, 1998, p. 130). pode, legitimamente, ganhar ou perder. O
Efetivamente, ao contrário do que dispu- que deve ser observado, todavia, é que as
nha o art. 3º, IX, da Lei nº 1.521/51, exige-se Instituições Financeiras, em sua maioria,
aqui apenas a prática consciente da gestão não trabalham com dinheiro próprio, mas
ilícita, para o pronto enquadramento. O ob- com o dinheiro dos correntistas e investido-
jetivo escuso que ensejaria os atos fraudu- res, entregues em fidúcia.
lentos, repita-se, pode ou não vir a ser al- Daí a pertinência e a justificação do tipo
cançado, sendo bastante o recurso ao man- penal em tela. A Instituição Financeira, uma
to de atos aparentemente normais, mas que intermediária, necessita estar submetida a
na verdade encobrem, ardilosamente, a bus- certos limites de atuação na gestão do patri-
ca de um fim legalmente vedado. mônio alheio. O risco, assim, é válido e ple-
namente aceitável enquanto subscrito à nor-
5. Gestão temerária: aspectos malidade de um investimento ou de um pro-
conceituais e distintivos duto mercadológico, devendo-se considerar
a exigência do nível de cautela não sob a
A gestão temerária, segundo Rodolfo Ti- ótica do homem comum (hominus medius), e
gre Maia, parte de um conceito “normativo- sim sob a ótica do próprio mercado
cultural”, presente em outras disposições financeiro.
penais, como, por exemplo, o art. 219 do Có- Essa a razão das Resoluções do Conse-
digo Penal (“Raptar mulher honesta...”) lho Monetário Nacional (CMN) e Circula-
(1996, pp. 59/60). Encerra-se no tipo, pois, res do Banco Central do Brasil que estabele-
o que se pode chamar conceito subjetivo, que cem princípios e limites ao empenho de pe-
muito aproveita dos costumes e do senso
cúnia, como a seletividade de investimen-
comum da sociedade. Apesar da certa dose
tos, a diversificação dos riscos, a multiplici-
de subjetividade, o tipo previsto no parágrafo
dade de clientes e a obrigatoriedade de res-
único do art. 4º da Lei nº 7.492/86 não fere o
peito a garantias e requisitos básicos nas
princípio da legalidade, conforme já decidiu
operações de abertura de crédito pré-apro-
a 2ª Turma do Eg. TRF 5ª Região, quando do
vado e nos financiamentos. Referidos pos-
julgamento do HC nº 500.038-CE (Rel. Juiz
tulados zelam por um fator de cautela im-
José Delgado, DOE 3-2-90).
Comentando o dispositivo análogo con- posto após estudos abstratos acerca do ní-
tido na Lei dos Crimes contra a Economia vel mínimo de segurança, necessário, em
Popular (art. 3º, inc. IX), assenta Paschoal tese, à perenidade e à credibilidade das Ins-
Mantecca que tituições Financeiras nacionais e, conse-
“a gestão temerária traduz-se pela qüentemente, de todo o Sistema Financeiro
impetuosidade com que são conduzi- Nacional.
dos os negócios, o que aumenta o ris- Isso significa que não se pode punir por
co de que as atividades empresariais gestão temerária, por exemplo, os adminis-
terminem por causar prejuízos a ter- tradores de um banco que sofrera perdas ir-
ceiros, ou por malversar o dinheiro reversíveis por causa de um investimento
empregado na sociedade infratora” de alto risco, desde que a intenção fosse ape-
(1985, p. 41). nas angariar lucros na operação, e não tri-
A princípio, consigne-se que o risco é pudiar com o dinheiro alheio. A situação se
algo absolutamente normal, e até necessá- inverte, todavia, caso fique comprovada a
rio dentro de uma gestão ativa de Institui- inobservância aos requisitos básicos supra-
ção Financeira. O jogo de mercado e a natu- referidos, hipótese na qual se aceitara, im-
reza dos produtos exige desenvoltura e plícita e temerariamente, que o fracasso da
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empreitada levasse à dangerosa situação de 6. Conclusão
insolvência.
Os crimes de gestão fraudulenta e gestão
Finalmente, o crime de gestão temerária
temerária em Instituição Financeira encerram
também é de mera conduta, podendo ou não conceitos efetivamente distintos, fulcrados
vir a se concretizar o efetivo prejuízo, principalmente no animus do agente – a
bastando, para o enquadramento penal, a busca de encobrir ou alcançar negócio ilícito,
efetiva manutenção da Instituição Finan- para o primeiro tipo penal, e a situação de
ceira em “corda circense”, o que sobrema- aventurança com o dinheiro dos correntistas
neira repugna à relevantíssima solidez e investidores, para o segundo.
sistêmica. Importante destacar que, na Latu sensu, a questão da reprovabilidade
gestão temerária, o agente não tenciona da gestão virulenta em Instituições Finan-
ocultar ou alcançar tangencialmente um ceiras é sustentada na contrariedade direta
negócio ilícito – apenas atua com notável às proibições ou limitações fixadas em Leis,
exagero e inaceitável impetuosidade em Resoluções do Conselho Monetário Nacio-
situações que seriam inicialmente corriquei- nal e Circulares do Banco Central, especial-
ras (aplicações, abatimento de dívidas, mente em face da credibilidade de que o
resgate de investimentos, etc.). mercado financeiro necessita para cumprir
Como exemplos práticos comuns de o seu papel no incremento e aprimoramento
gestão temerária, tem-se a realização de da sociedade de produção e consumo, o que,
empréstimos sem as garantias de praxe do em última análise, é essencial para a
mercado, o perdão extremoso e inusitado de concretização do sonho de desenvolvimento
encargos de empréstimos, o financiamento industrial e tecnológico de um país.
de campanha política com recursos da
Instituição Financeira e, até mesmo, o trato
contumaz com empresas sem qualquer Bibliografia
confiança no mercado, o que reafirma a
diferenciação básica entre a gestão fraudu- JESUS, Damásio E. de. Direito Penal - Parte Geral.
19. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 1995.
lenta e a gestão temerária: naquela se pratica MAIA, Rodolfo Tigre. Dos crimes contra o Sistema
atos ardilosos e bem orquestrados para a Financeiro Nacional. São Paulo: Malheiros, 1996.
efetivação oculta de negócio naturalmente MANTECCA, Paschoal. Crimes contra a economia
ilegal, enquanto nesta se submete a riscos popular e sua repressão. São Paulo: Saraiva, 1985.
MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal –
excessivos e irresponsáveis o patrimônio Parte Geral. 13. ed. São Paulo: Atlas, 1998.
dos correntistas e investidores, que outrora PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o Sistema
confiaram nos freios de ousadia da Insti- Financeiro Nacional. São Paulo: Revista dos Tri-
tuição Financeira. bunais, 1987.

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