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O mito sobrevivente
da reabilitação:
uma análise à luz dos Direitos Humanos**
I
(**) O texto é extraído
da tese de doutorado
de César Oliveira de
ntrodução Barros Leal, orienta-
da por Sergio García
Ramíres (Doutor em
Em diversos artigos temos buscado demonstrar que é a execução da pena, Direito (magna cum
convertida em metástase social1, onde a seletividade do sistema prisional se laude) pela UNAM;
ex-Catedrático da
expõe em toda sua exuberância, sem nenhum pudor, visto que - salvo casos
Faculdade de Direito
excepcionais - tão somente os que nunca foram socializados2, os deserdados, da UNAM; Inves-
ingressam e permanecem no cárcere, no qual quase nunca se recolhem os tigador aposentado
do Instituto de In-
criminosos de colarinho branco dado que a justiça é “uma fera faminta e
vestigações Jurídi-
discriminatória que morde o fraco, porém o poderoso nem sequer o arranha”, cas da UNAM; In-
consoante o testemunho de José Raúl Bedoya3, a mesma conclusão à que vestigador Nacional
Nível 3, consoante
chegou Jeffrey Reiman, em The Rich Get Richer and the Poor Get Prison4.
o Sistema Nacional de Na palestra Direitos Humanos e o Sistema Penal, ministrada no Fórum Per-
Investigadores; Juiz
(e ex-Presi-dente) da
manente dos Direitos Humanos Prof. Dr. Antônio Augusto Cançado Trindade,
Corte Interamericana em sua 8ª Sessão Anual, aos 21 de setembro de 2006, em Fortaleza, Emerson
de Direitos Humanos; Castelo Branco, defensor público e professor universitário, assinalou que os
ex-Procurador Geral do
Distrito Federal (Mé-
presos dos países periféricos (como o Brasil e o México) levam o cárcere
xico); ex-Procurador consigo (agrego eu: como uma Túnica de Nesso ou a flor de lis, gravada a
Geral da República fogo virtual em seu corpo) um estigma incorporado a suas vidas, do berço até
(México). - @ sgr@
servidor.unam.mx.) Foi
a sepultura, posto que, a raiz da exclusão à que se submeteram desde muito
escrita originalmente jovens e as dificuldades de ascender socialmente, são condenados a povoar os
em espanhol, sob o tí- centros de internação de menores e depois as prisões, aonde regressam ami-
tulo: “La Ejecución Pe-
nal en Brasil y México a
úde, em um ciclo retroalimentador que se perpetua às vezes até a morte.
la Luz de los Derechos
Humanos: Viaje por Ao longo desta via-crúcis, renovam o ódio para com a sociedade que os re-
los Senderos del Dolor
(A Execução Penal no
chaçou e à qual têm que se ajustar (como se fosse em um leito de Procusto)
Brasil e no México à para sobreviver (em geral não o logram; nunca se esqueça que os piores
Luz dos Direitos Hu- crimes se cometem quase sempre pelos que se diplomaram em prisões). E
manos: Viagem pelos
Caminhos da Dor”).
isso é, aliás, algo que soa muito raro: “quando o delinqüente, envilecido e
Local da apresentação: piorado nessas prisões, volta para a convivência coletiva, pode a sociedade
Faculdade de Direito se jactar de que, por seus órgãos competentes, o castigou exemplarmente;
da Universidade Na-
cional Autônoma do
ela, em verdade, não fez outra coisa senão se degradar, porque restituiu à
México (UNAM). sociedade uma parte deteriorada de si mesmo.”5 Estranho proceder, repito,
1 Esta postura susten- pois “Ninguém, depois de ter isolado e tornado inofensivos micróbios nocivos,
ta Elías Neuman: “O se lembraria de reintroduzi-los, com uma virulência maior, no organismo de
cárcere, por mais novo que os extraíra. Seria a lógica da insensatez.”6
e com mais elementos
tecnotrônicos à mão de
que disponha, tomou Os males da prisão
nessa última década o
caráter de metástase so-
cial: depósito e guarda Sob o olhar indiferente e cúmplice do Estado, na prisão se pratica toda sorte
de pessoas às quais há de ações que traduzem uma desatenção aos direitos humanos, na medida
que lhes quebrar a in- em que, muito mais do que a própria liberdade (já que sem esta, no dizer de
dividualidade e, se as-
sim for, cimentar-lhes Berdiaeff, nem sequer há pessoa7) e contrariamente aos princípios essenciais
a vida ou deixar que do Estado de Direito Democrático, o presidiário perde muitos outros de seus
entre elas celebrem direitos, num locus decrépito e lutuoso, no qual se amalgamam a coabitação
o necrófilo ritual dos
homicídios.” (El Esta- compulsiva, a violência intrínseca ao encerro e a estigmatização, opondo-se
do Penal y la Prisión- a qualquer fim de readaptação.
Muerte. Buenos Aires:
Ediciones Universida-
de, 2001, p. 159) Não muitos conseguiram, como o jurista Teodolindo Castiglione, fazer uma
2 Segundo Richer síntese tão precisa dos desvalores do cárcere:
G., socialização é o
“processo pelo qual a
pessoa aprende e inte-
Imaginai uma grande prisão, em que moços e velhos vivam
rioriza, no transcurso em promiscuidade: criminosos primários e reincidentes;
O mito sobrevivente da reabilitação: uma análise à luz dos Direitos Humanos
145
apresenta entre os rein- José Raúl Bedoya impacta por sua capacidade de captar, com grande potência
cidentes, entre aqueles
que nunca deveriam
expressiva, esta realidade tão crua:
sair da prisão senão
também entre aqueles Te assusta ver como se matam entre si por um cigarro
que jamais deveriam
ingressar nela.” (La
(transformado em moeda na prisão: nota do autor), um
Prisión. México: Fundo empurrão ou um olhar. Te inspira dor ver tantos seres se-
de Cultura Econômica, parados de suas famílias e te dá asco ver que um núcleo
Universidade Nacional
Autônoma do México/
de homens que antes foram normais tomaram o caminho
Instituto de Investiga- (...), da drogadição e do assassinato, convertendo-se em
ções Jurídicas, 1975, farrapos humanos e carne de presídio, vítimas de sua
p. 58)
debilidade de critério e da promiscuidade.10
9 SÁNCHEZ, José
León. La Isla de los
Hombres Solos. México: A fraude da agência terapêutica
Editora Grijalbo, 1984,
p. 83. Leia-se o que Ao fazer do cárcere, geralmente, um lixeiro de seres-pessoas, o Estado, em
descreveu um apenado
sobre seu processo de sua cegueira e inação, deixa em suas vidas marcas que o mesmo dificilmente
conversão: “Na prisão logrará apagar, como fez ver o poeta David González, em Depósito Legal:
a gente se converte no “me disse minha mãe. / A ela também disseram: / Escute-me senhora, eu, /
contrário do que de-
veria se converter. Vira o único que posso lhe garantir / é que seu filho entrou / vivo aqui; pois bem,
associal. Primeiro é / o que já não sei, / o que já não posso / garantir-lhe, / é como vai sair.”11
excluído da sociedade,
logo começa a excluir-
se por si mesmo. Es- Entretanto, em antagonismo à sua própria indolência e ao compasso de
quece a responsabili- envelhecidas e contrafáticas ideologias, segue pulsando a tecla anódina da
dade; aqui não se tem ressocialização, enquanto cresce o convencimento, compartilhado pela quase
nenhuma. Não se quer
tampouco voltar a tê-la. totalidade dos penitenciaristas, de que esta (exceto nas ilhas de excelência
A gente aprende o ódio que conhecemos em nossa viagem pelo arquipélago presidial e onde se pro-
maligno, insidioso, cura reabilitar a reabilitação) é quase sempre um mito inalcançável, visto
contra o opressor; con-
verte-se num hipócrita; que praticamente “a única verdade no interior dessas prisões é a luta pela
aprende-se a furtar, sobrevivência e o espaço vital”12 e o tratamento penitenciário, fortemente
no caso de ainda não vinculado ao conceito de periculosidade (Gefährlichkeit em alemão), incom-
sabê-lo.” (VON HEN-
TIG, Hans. La Pena, patível com a clausura, resultou uma grande mistificação.
Volume II [Las Formas
Modernas de Apa- Indefectivelmente presente na peroração oficial e nas Cartas Fundamen-
rición], trad. e notas de
José María Rodríguez
tais de um sem-número de países hispano-americanos (México, art. 18; El
Devesa. Madri: Editora Salvador, art. 27; Guatemala, art. 19; Nicarágua, art. 39; Honduras, art.
Espasa-Calpe, 1968, p. 87; Panamá, art. 28) e europeus (Itália, 1948, art. 7º: As penas não poderão
377)
consistir em tratos contrários ao sentido de humanidade e deverão se diri-
10 BEDOYA, José gir à reeducação do condenado; Espanha, 1978, art. 25, num. 2: As penas
Raúl, op. cit., p. 194.
privativas de liberdade e as medidas de segurança estarão orientadas para
11 GONZÁLEZ, Da-
vid. Los Mundos Mar-
a reeducação e reinserção social e não poderão consistir em trabalhos força-
ginados (Poemas de la dos), assim como em documentos de caráter regional e universal, como seu
O mito sobrevivente da reabilitação: uma análise à luz dos Direitos Humanos
147
fim prioritário (reza o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, art. Cárcel), Biblioteca Ba-
10 [3]: O regime penitenciário consistirá em um tratamento cujo objetivo bab (www.babab.com/
biblioteca), setembro
principal seja a reforma e reabilitação moral dos prisioneiros), a proposta de de 2000.
reabilitação - de que se servem alguns com o único propósito de legitimar o 12 BREMAUNTZ,
sistema - colide com uma práxis que a rechaça e “perdeu toda credibilidade Emma Mendoza. Delin-
e todo valor no campo criminológico”13, porque “sua base fática decorre de cuencia Global. México:
M.E.L. Editor, 2005, p.
uma inconseqüência: Como privar da liberdade para ensinar a viver nela?”14 144.
Como se pode aprender a viver em liberdade onde não há liberdade? Ao
13 NEUMAN, Elías,
fim e ao cabo, “educar para a liberdade em condições de não-liberdade é op. cit., p. 153.
não somente de difícil realização senão que constitui também uma utopia
14 Ibidem, p. 72. Al-
irrealizável.”15 Na imaginação inventiva de alguns autores, seria como guns de tal modo se
ensinar a nadar em uma piscina sem água ou a correr em um elevador ou integram na vida da
submarino, ou simplesmente deitado numa cama. prisão que, pouco antes
do término de sua pena,
chegam a cometer um
E mais: “o pior da prisão é a própria prisão, isto é, a idéia de que a liberdade crime com o propósito
humana foi anulada.”16 de permanecer intra-
muros. Em suas notas
sobre a pena, conta
De fato, nos valhacoutos da justiça em que se transformaram, em sua maio- Hans von Hentig:
ria, as prisões da América Latina e do Caribe há uma completa inversão do “Quando puseram em
liberdade o anarquista
intento de readaptação ou repersonalização, convertida, por suas aporias, Berkman, estava atur-
em uma meta fantasma, uma mentira institucional (nobre, para alguns) que dido, angustiado pelos
sobrevive de mãos dados com o embuste e a hipocrisia. ruídos da rua, assus-
tado. Rodeado de ami-
gos compassivos, tinha
Sempre são válidas as pontualizações do ex-Ministro da Justiça Miguel saudade da cela, temia
Reale Júnior: os espaços fechados, as
palavras de simpatia
e a presença de seres
Re-socializar perante o quê? Re-socializar perante que humanos. Vera Figner
conjunto normativo? Re-socalizar perante que ideologia? abandonou sua tumba
de pedra Schliselburgo
Que normas? Que conjunto de valores? O conjunto de va- cheia de ‘desespe-
lores próprios de uma comunidade? O conjunto de valores ração’ pela irreparável
defendido por um determinado pensamento político? O ‘perda’ dos amigos que
deixava atrás. Hau exi-
conjunto de valores propugnado por uma religião? Ou o giu que fosse sua mãe
conjunto de valores que se encontra encartado na legis- a reco-lhê-lo depois
lação penal? Ressocializar seria condicionar ou amoldar de estar dezoito anos
preso ou que, em outro
o homem condenado à legalidade penal? Mas qual legali- caso, lhe dessem um
dade penal? Amoldá-lo a toda legislação penal, inclusive guia para sair em liber-
à legislação extravagante? Mas submetê-lo, então, a uma dade. Não sabia o que
fazer fora, e rogou em
lavagem cerebral e fazer inserir no seu espírito tudo aquilo vão que o deixassem
que consta do Estatuto Penal e de toda a legislação penal? estar dois dias mais…
Ou apenas inserir no seu espírito a validade do valor Em Leavenworth não
era raro o caso de pre-
que ele desrespeitou pela prática delituosa? E mais uma sos que não queriam ir
embora, que pediam pergunta se faz obrigatória: por que métodos e por que
com insistência que
não os soltassem, e
meios realizar esta propalada re-socialização social? É de
quando viam que não se admitir que o delito é apenas uma oportunidade que o
adiantava, planejavam delinqüente dá para que o Estado recupere pela utilização
uma evasão para ser
condenados a uma nova de métodos das ciências comportamentais, transformando
pena… Em 19 de outu- a figura etérea, porque não existe na realidade científica,
bro de 1950 chamou à do ‘criminoso’, em outra realidade também etérea que é
porta da prisão de Kil-
by, no estado de Ala- a do ‘não criminoso’?
bama, J. D. Rhodes, de
sessenta e cinco anos, É certo e possível utilizar todo um cabedal de conheci-
pretendendo voltar à mentos científicos para impingir ao condenado em um
sua cela. Havia sido
liberado provisoria-
meio inatural, que lhe desvirtua a personalidade, padrões
mente de sua reclusão de comportamento amoldados, adequados à convivência
perpétua. Seu rogo foi social para que ele seja útil e acomodado ao mundo livre.
atendido. O diretor
opinou que provavel- Mas, ao se admitir que ele deve ser cientificamente trans-
mente por causa de sua formado, para se amoldar ao mundo livre e à sociedade,
idade não havia podido
acomodar-se à vida se está assumindo um papel muito pouco crítico e muito
em liberdade.” (VON mais totalitário do que se imagina; totalitário, na medida
HENTIG, Hans, op.
cit., pp. 236-237)
em que se vê o delinqüente como patológico, em que se vê
o delito como anormal, em que se atribui ao condenado a
15 QUEIROZ, Paulo de
Souza. Funções do Dire- posição irremediável de errado; mas o errado que filan-
ito Penal. Legitimação tropicamente o Estado recolhe e retira da liberdade para
versus Deslegitimação
do Sistema Penal. Belo
lhe devolver depois ao seio social acomodado, transfor-
Horizonte: Editora Del mado no bom moço que será útil a todos nós que vivemos
Rey, 2001, p. 63. numa sociedade homogênea, perfeita, coerente, desfeita
16 RUIZ FUNES, de males porque o mal, o mal está sendo desfeito ao se
Mariano. A Crise nas
Prisões, trad. de Hilário transformar o condenado, que é o único mal.17
Veiga de Carvalho. São
Paulo: Editora Saraiva,
1953, p. 101.
A antinomia entre as metas
17 REALE JÚNIOR,
Miguel et al. Penas e Ao uníssono se aponta a antinomia entre as metas de manutenção da ordem
Medidas de Segurança e da disciplina (sobretudo em maximum security prisons) e as de reabilita-
no Novo Código. Rio
de Janeiro: Editora Fo-
ção (Hohmeier, citado por Francisco Muñoz Conde, fala de Sicherung oder
rense, 1985, pp. 166-167. Socialisierung18, é dizer, segurança ou socialização).
18 CONDE, Francisco
Muñoz. Derecho Penal As metas formais da pena de privação de liberdade são a punição, a preven-
y Control Social. Bo- ção e a regeneração e, por sua vez, as informais (“os meios necessários para
gotá: Editora Temis,
2004, p. 85. cumprir esse programa, no recinto das prisões fechadas”) são a segurança e
19 PIMENTEL, Ma-
a disciplina; no confronto dessas metas “percebe-se que surge uma incom-
noel Pedro. O Crime e possibilidade de realização de ambas, ao mesmo tempo, pois são excludentes
a Pena na Atualidade. umas das outras.”19
O mito sobrevivente da reabilitação: uma análise à luz dos Direitos Humanos
149
Em A Questão Penitenciária, um clássico da literatura prisional, Augusto São Paulo: Editora Re-
vista dos Tribunais,
F. G. Thompson aponta que a longa experiência penitenciária, de que não 1983, p. 38.
convém fazer tábua rasa, deixou claro que “em nenhuma época e em nenhum
20 THOMPSON, Au-
lugar” a prisão punitiva logrou ser reformativa.20 gusto F. G. A Questão
Penitenciária. Petrópo-
O tratamento ressocializador mínimo lis: Editora Vozes, 1976,
p. 42.
21 HERNÁNDEZ,
Faz vinte e tantos anos, ao ser apresentado a um ex-preso supostamente Miguel. Poemas, Edi-
reabilitado - porquanto havia constituído uma família, tinha um emprego tora Plaza y Janes,
fixo e se jactava de ser um cidadão atento às leis -, fiz-lhe uma única per- Barcelona, 1978, ci-
tado por DEL PONT,
gunta: em que medida a prisão contribuiu para sua recuperação? A resposta Luis Marco. Derecho
foi imediata: em absolutamente nada; ao revés, o que, sim, lhe resultou Penitenciario. México:
fundamental foi manter-se apartado da massa, de suas práticas daninhas. E Cárdenas Velasco Edi-
tores, 2005, p. 570.
agregou peremptoriamente: - não havia outra saída.
22 Edmundo Oliveira
opina que “é apropriada
Suas palavras me fazem rememorar Miguel Hernández, o poeta espanhol que a nova concepção do
cumpriu pena em uma prisão espanhola e deixou versos contundentes: Consensualismo Peni-
tenciário, pugnando pela
tônica de uma política
“Não, não há cárcere para o homem. de socialização e de
ressocialização, nos
Não poderão me atar, não. domínios da execução
Este mundo de cadeias penal, com o reforço da
legitimidade de uma
Me é pequeno e exterior.”21 cultura saudável funda-
da na conscientização,
Deveras, a única preservação ou melhora factível é aquela que emana de um no consentimento, na
adesão e na aquisição
projeto pessoal do sentenciado, que natural e voluntariamente - com ou sem ou conservação do
ajuda alheia - se evade da infecção perniciosa da clausura. senso de responsabili-
dade do condenado, na
vida profissional par-
À prisão (ou talvez seja melhor dizer ao Estado, que se apresenta como Ben- ticipativa, em comum,
feitor ou Salvador) não corresponde constranger o apenado a se envolver em a qual, na dinâmica da
restauração pessoal,
programas de reeducação - coercive therapy (muitos nem sequer deles neces- com a busca constante
sitam posto que nunca chegaram a ser anti-sociais), tentando manipulá-lo, de soluções dos proble-
transformá-lo, reestruturar sua personalidade (como se fosse um coelhinho mas humanos do preso,
deve ser encarada
das Índias) e evitar que cometa delitos (a imagem de Alex, o protagonista como uma parcela in-
de A Clockwork Orange, não se esfumou no esquecimento). dissociável da socie-
dade, onde o condena-
do viverá, no futuro
Em lugar da coação (na Alemanha, uma decisão recente da Corte Suprema livre, sem prescindir
Constitucional define que o tratamento ressocializador se efetuará mesmo da aceitação e do apoio
contra a vontade do preso), o consentimento (daí o termo consensualismo22), da comunidade.” (O
Futuro Alternativo das
como ponto de equilíbrio entre a intervenção institucional e os direitos e Prisões. Rio de Janeiro:
garantias de seu receptor. Editora Forense, 2002,
pp. 403-404) O autor Concordo, pois, com Cezar Roberto Bittencourt, Membro da Academia
menciona também o
si�������������������
nalagma penitenciá- Brasileira de Direito Criminal e Doutor em Direito Penal pela Universidade
rio, ou seja, “o caráter de Sevilha, Espanha, quando sentencia que o esforço ressocializador só é
premial do ordenamen- concebível quando se oferece uma oportunidade ao delinqüente “de forma
to penitenciário através
da concessão de be- espontânea, ajude a si próprio a, no futuro, levar uma vida sem praticar
nefícios progressivos crimes.” Dito entendimento, que equivale ao chamado tratamento res-
estipulados em um
contrato, sem se limitar
socializador mínimo, “afasta-se definitivamente o denominado objetivo
ao reconhecimento de ressocializador máximo, que constitui uma invasão indevida na liberdade
direitos e sem descurar do indivíduo, o qual tem o direito de escolher seus próprios conceitos, suas
do aspecto disciplinar.
O modelo prisional si- ideologias, sua escala de valores.”23
nalagmático estabelece
uma escala para medir Sugerindo, incentivando, dialeticamente, sem imposições de qualquer
o índice de socializa-
ção ou ressocialização natureza (Giuseppe Bettiol já fazia esta admoestação, reiterada por Carlos
pelos valores corres- García Valdés), talvez seja possível ao Estado (do qual, certamente, é inexi-
pondentes à evolução
do comportamento do
gível uma total e quimérica neutralidade) não só impedir a dissocialização
condenado.” (Ibidem, do encarcerado senão promover sua não dissocialização, de sorte que não
p. 97). resvale costa abaixo pelas tortuosos declives da recaída.
23 BITTENCOURT,
Cezar Roberto. Novas
Penas Alternativas. Aná-
O descrédito da meta de ressocialização
lise Político-Criminal
das Alterações da Lei A falta de confiança na tarefa de ressocialização (o cárcere simplesmente
n. 9.714/98. São Paulo: afunda a cisão com o mundo externo e logra moldar bons presos, tal como
Editora Saraiva, 1999,
p. 18. afiança Concepción Arenal) e “a conseqüente perda de credibilidade da
24 A respeito deste pena privativa de liberdade, ao lado do princípio da humanidade”24 , vem
princípio: ele “nos aler- a ser, a juízo de Luiz Flavio Gomes, ex-Juiz e Doutor em Direito Penal pela
ta sobre o fato de que, Universidade Complutense de Madri, quiçá a característica dominante
se toda a sociedade
tem os criminosos que da recente Política Criminal, sobressaindo o desaparecimento ou a limi-
merece, os criminosos, tação da pena capital (no Brasil e México, dita pena é prevista somente
ao contrário, em espe-
cial os jovens, muitas
em tempo de guerra para delitos gravíssimos de natureza militar; ambos
vezes não têm a socie- firmaram o Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos
dade que merecem. Relativo à Abolição da Pena de Morte [A-53], que entrou em vigor em 28
Se a sociedade, de
variadas formas, con-
de agosto de 1991; no Brasil a última execução foi em 1855; no México,
tribui para a formação em 1937), assim como o deslocamento da posição central da pena de-
do criminoso, não deve tentiva em relação às demais sanções e sua substituição por sistemas de
trabalhar com a lógica
simplista do castigo. tratamento e outras medidas alternativas… 25
A intervenção punitiva
deve contribuir para a
realização de um proje-
Os estertores de um mito
to socialmente constru-
tivo e para proveito do De modo claro e simples Sergio García Ramírez logra sintetizar o sofisma
próprio condenado.” (ou o paradoxo) da proposta substantiva de readaptação social:
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