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Lições de espaço
É ainda comum, ao falar-se em crítica de arte, vir à memória a ideia de um juízo periódico
acerca das obras produzidas num determinado contexto, lembrança recente da crítica que se
fazia nas colunas de jornal (ou outros meios de comunicação de grande alcance) e da qual, na
maior parte das vezes, se esperava a constituição de padrões de valoração da arte. Hoje,
quando alguém se apresenta socialmente como “crítico de arte”, não raras vezes é indagado
com um “para qual jornal você escreve?”, questão que parece em certa medida análoga ao o
“qual o significado disso?” tantas vezes proclamado pelo público diante de um trabalho de
arte. Genericamente, persiste a leitura de que parte da valoração/legitimação social de um
crítico vem em consonância com o espaço por ele ocupado na mídia (o meio), como a da arte
viria através de sua mensagem. Ambas as leituras se vinculam a concepções estruturalistas de
espaço e sentido, e passam ao largo da complexidade do espaço social e da percepção, bem
como dos esforços de construção de outras concepções de espaço e de sentido que
perpetraram alguns artistas brasileiros, a partir dos quais se concretiza um desejo por
experiências que, por sua vez, demandam uma capacidade de “flutuação” – exercício de
liberdade que pede desapego às “bases”. Nesse sentido, pensar o espaço ao prescindir do
plano é como pensar a linguagem à revelia do monopólio da significação.
Com Lygia Clark, a arte brasileira já sabia que “o plano é um conceito criado pelo homem
com um objetivo prático: satisfazer sua necessidade de equilíbrio”1. Com Hélio Oiticica,
também sabia que a obra deveria fugir “à busca da interpretação. Todas essas são coisas
velhas: a interpretação, a tentativa de buscar significados e de vivenciar estruturas
significantes, todas essas coisas são coisas superadas (...).”2 Abster-se de ancoragem – seja
plano, seja significado – é exercício de libertação e, ao mesmo tempo, de coragem, pois há
sempre algum tipo de gravidade que tende a tudo sedimentar: havendo tanto magnetismo ao
centro, o impulso para as bordas é sempre um ato de força.
1
Lygia Clark no texto A morte do plano (1960). Disponível em
http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=14.
2
Hélio Oiticica em entrevista a Ivan Cardoso, em 1979, para o filme HO. COHN, Sérgio; FILHO,
César Oiticica; VIEIRA, Ingrid (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
A constituição de outro espaço social e de percepção para a crítica de arte, distinto de suas
concepções mais tradicionais, pede força – de verbo (discurso), mas sobretudo de ação
(pensamento e prática). É que, do princípio verbal bíblico (“no princípio, era o verbo”) ao
princípio de ação proposto na literatura de Goethe (“no princípio, era o ato”), não teríamos
apenas uma questão de tradução (verbo = ação), mas uma demarcação de diferença (verbo x
ação). O agir se dá, portanto, para além da teia de sentidos da linguagem: o ato instaura um
espaço-tempo próprio – inarrável –, que o verbo anseia restaurar. Também para Lygia, “o
instante do ato não se renova. Existe por si mesmo: repeti-lo é dar-lhe um novo significado”3.
Há, na ação, uma possibilidade de existência e de contentamento: a instauração é um
horizonte da utopia. Talvez, também, a ação seja um horizonte possível para uma
(co)existência produtiva em meio à crise – de espaço e de linguagem – da crítica de arte4: “se
a arte tem mudado radicalmente, desde pelo menos a década de 1960, seja do ponto de vista
dos procedimentos, seja das expectativas de recepção, é fundamental que a crítica também se
ponha em questão, redefina seus métodos, interesses e formas de disseminação pública”5.
Tal ação da crítica, ato que se dá na e pela linguagem, precisa dobrar o plano da significação
e agir no espaço do entre (pensamento e ação, fala e escrita, crítica e criação, testemunho e
ficção etc), como desde 1954 nos chama a atenção Lygia Clark com sua Linha Orgânica ao
encaminhar a percepção do centro à borda e revelar as fissuras do encaixe, liberando-nos no
“vazio-pleno” (aberto à experiência da dissonância e do recomeço) e, mais tarde, com
Caminhando (1963), que expande a potência e o espaço da ação temporalmente, chamando à
experiência, ao processo, ao gerúndio. “O “vazio-pleno” contém todas as potencialidades. É o
ato que lhe dá sentido”6, entende a artista.
3
Lygia Clark no texto A propósito do instante (1965). Disponível em
http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=19.
4
Crise que não é só da crítica de arte, como das políticas de subjetivação, da relação com o outro e da
criação cultural, como indica Suely Rolnik no texto Geopolítica da Cafetinagem, disponível em:
http://www4.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf.
5
OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
6
Lygia Clark no texto Do Ato (1965). Disponível em
http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=18.
2
produção artística do País interessa globalmente: “do meu ponto de vista a única postura
realmente inventiva e completamente criativa (o que significa: inteligente, não colonizado) é
experimental”7.
Se, já com o crítico de então, Mário Pedrosa, a arte era “o exercício experimental da
liberdade”8, experimentemos, pois, a liberdade da crítica, numa crítica de arte experimental,
hoje.
Situação
É notório o processo de institucionalização que tem vivido o campo da arte do Brasil nas
últimas décadas, por sua vez acelerado com os anos 1990. Se Hélio Oiticica e Lygia Clark
vivenciaram um Brasil – mais ampliadamente, um mundo – e um meio da arte mais
espacializado, com muitos “vazios-plenos” – atualmente negativamente lidos como “vácuos”
(institucionais, de mercado etc) –, a situação recente é enfaticamente diversa. Com o
adensamento e profissionalização de um campo para a arte, seu espaço social se estratifica, e
o hipotético vazio é continuamente atravessado – e, portanto, com tal preenchimento,
paradoxalmente esvaziado – por planos, linhas e forças várias. Fatiado, esse espaço se
compartimenta e, com seus planos, amplia a dificuldade de propagação de ecos e outras
reverberações – sensação de impotência face ao “todo” à qual cultura ocidental respondeu,
em parte, através da ideia de “especialização”. Desse modo, a potencialização do vazio
através do ato, de que fala Lygia, se torna rarefeita: “a profissionalização e consequente
atomização cada vez maiores da atuação do crítico, e também a ascendência crescente das
grandes instituições e do mercado no agenciamento do espaço público da arte certamente
terão reduzido (ou no mínimo deslocado) o campo de intervenção da crítica”9.
7
OITICICA, Hélio. Entrevista para Journal. COHN, Sérgio; FILHO, César Oiticica; VIEIRA, Ingrid
(org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
8
Mário Pedrosa em conversa com Antonio Manuel em maio de 1970. In: Antonio Manuel. Antonio
Manuel. Rio de Janeiro, FUNARTE, 1984, p. 16.
9
SALZSTEIN, Sônia. Transformações na esfera da crítica. In: FERREIRA, Glória (org). Crítica de
Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.
3
passam a “estruturar” (de forma consultiva e deliberativa) a partir do argumento de
especialização, que funde o papel do crítico com o do gestor, muitas vezes sintetizado na
função do curador: “(...) é na perfeita assimilação do trabalho desse curador à dinâmica das
instituições que a atuação da crítica se cumpriria de modo absolutamente imanente à
instituição”.10
10
Ibid.
11
Ibid.
12
BASBAUM, Ricardo. O artista como curador. In: FERREIRA, Glória (org). Crítica de Arte no
Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.
4
pouco mais que breves apresentações das obras e artistas ali expostos; e se
pode haver algum teor de fato "crítico" possível neste formato, será
inevitavelmente de natureza laudatória. Essa prática se mostra portanto
comprometida com uma lógica previamente estabelecida; e embora
gratificante, prazerosa e mesmo essencial para a iniciação e aprimoramento no
exercício da escrita de arte, sustento que não será ali que uma crítica isenta de
comprometimentos poderá se desenvolver livremente”13.
Por outro lado, o que no começo dos anos 2000 poderia parecer prioritariamente – para os
“jovens críticos” de então – um problema da ordem de uma “crítica isenta de
comprometimentos” (o que, por sua vez, faz ver uma concepção crítica calcada numa espécie
de imparcialidade, ou objetividade), com a passagem da década se revela como uma questão
dramaticamente mais micropolítica, atuando numa instância ainda mais subjetiva. É que a
institucionalização quase absoluta da recente geração de artistas, críticos, curadores etc, além
de ter, através da instituição e do mercado, demandas/motivações de trabalho, tem, ademais,
na mediação institucional, o modo privilegiado de aproximação entre o pensamento sobre
arte e sua produção, indicando um movimento de distanciamento entre artista e crítico que
acarreta sérias conseqüências e que, em última instância, leva a uma institucionalização
(entendida como normatização) do próprio processo criativo, à internalização dessa lógica no
centro da própria produção de subjetividade.
13
AMADO, Guy. Notas sobre a jovem crítica de arte. Disponível em:
http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.rede/numero/rev-numero5/cincotextoguy.
5
Nelson Goodman14, devemos deixar de nos perguntar “o que é arte” para nos indagar
“quando é arte” – partindo, portanto, para uma concepção mais contingente da mesma –
como esperamos fazê-lo estando restritos às instituições, enquanto o “quando arte” só é
possível de ser percebido no espaço-tempo da vida, em plena deriva existencial, pela
experiência?
Cognitariado
Para Bifo, a fusão da ideia de trabalho cognitivo à ideia de proletariado (o cognitariado) traz à
luz a “carnalidade eliminada e a sociabilidade iludida do trabalho mentalizado que atua na
produção de semiocapital”16, ampliando a existência social do trabalho cognitivo e pensando-
o em termos mais concretos – porque sociais –, na intenção de concentrar (conscientizar) seu
caráter aparentemente difuso e abstrato e, assim, potencializá-lo enquanto força de
transformação social. É que, para Bifo,
14
GOODMAN apud OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
15
“Semiocapital é o capital-fluxo que se coagula em artefatos semióticos sem materializar-se”.
BERARDI, Franco. Schizo-economy. SubStance #112, Vol. 36, no. 1, 2007. Disponível em: http://
korotonomedya2.googlepages.com/FrancoBerardi-Schizo-Economy-SubStan.pdf.
16
BERARDI, Franco. La fabrica de La infelicidad. Madri: Traficantes de Sueños, 2003.
6
desenvolvimento do capital faz com que esses corpos sejam cada vez mais
dependentes (...) do funcionamento da rede global. Como fazer para atuar em
uma situação como essa, na qual os automatismos tecnolingüísticos se
enervam em todos os nexos da relação social, fazendo impossível ou
ineficiente qualquer desvio do procedimento? Somente os que desenvolvem o
trabalho de construção dos automatismos podem desconstruí-los e reorientá-
los.”17
Ao passo que, por exemplo, a produção tecnocientífica parece não oferecer saídas para
mecanização da subjetividade nas sociedades contemporâneas, é “no terreno cultural que se
está criando as condições para a formação de uma consciência social do cognitariado. Este
poderá ser o fenômeno mais importante dos próximos tempo e a única alternativa ao
desastre”18.
Nesse sentido, à crítica de arte (e à arte), como participante do cognitariado, cabe uma
urgente conscientização de sua própria condição de “corporalidade eliminada”, uma
conscientização de seu papel fundamental na criação de pensamentos e ações que são, em si
mesmas, fortes responsáveis pela constituição de terrenos férteis à libertária produção de
subjetividade. Em sua atuação expandida – textos, curadorias, políticas públicas, palestras,
cursos, “orientações” etc –, ao crítico de arte cabe o engajamento não com o “mapa das
representações vigentes”19 (no caso, por exemplo, de uma concepção de crítica como
imanente à instituição), mas, inversamente, como tem apontado Suely Rolnik, com os
processos de reterritorialização, de invenção de novas cartografias, pelo que passa,
necessariamente, um potencial de desorientação, força que se dá num campo micropolítico,
no âmbito do sensível, na experiência. Ou, como radicaliza Hélio Oiticica:
“(...) toda essa gente implicada em “programas culturais” nada significam para
o que tem mesmo algum significado grande e duradouro: tudo o que faço e
virei a fazer nada tem a ver com qualquer tipo de programa cultural: nada!:
pelo contrário é a tentativa mais concreta de demolir e tornar impossível
qualquer significação real a tudo o que seja demagogia cultural ou programa
17
Ibid. [Tradução livre]
18
Ibid.
19
ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. Disponível em:
http://www4.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf.
7
para tal demagogia: todo esse corta barato que quer dizer o que “tem que fazer
o artista” ou de como “deva proceder” ou que “caminho tomar”: não há
“caminho” ou “direção” para a criação: não há “obrigações” para o artista:
quem pensa poder fazer o que quer ao mesmo tempo que assume
compromissos que nada têm a ver com a atividade que têm cometem um erro
fatal: e como consequência deste erro tornam-se demagogos e um poço de
equívocos: tornam-se maus: maus artistas: mau caráter: e acaba com que o
compromisso assumido passe a ser o único interesse afogando a criatividade e
a capacidade de invenção que são na verdade as únicas que deveriam
prevalecer acima de qualquer eventual compromisso”.20
Experiência e afecção
É com Baudelaire que a criação se vincula – em todos os âmbitos: estético, ético, cultural,
político etc – à sua contemporaneidade, a ela respondendo e questionando. Nessa experiência
do presente, inaugura-se uma leitura positiva da incompletude, da ausência, que se tornam
forças motrizes do movimento por sua capacidade de imaginação e desejo de metamorfose, o
que lança, sobre a crítica, uma condição processual que a libera dos modelos platônicos de
pensamento ideal para lançá-la diante das possibilidades da diferença e da invenção. A
concepção de uma crítica parcial, “faite a un point de vue exclusif, mais qui ouvre le plus
d‟horizons”21, é o passo fundante para a crítica entendida como criação, construção que se
20
Hélio Oiticica em entrevista, publicada em HOLLANDA, Heloísa Buarque; PEREIRA, Carlos
Alberto M (org). Patrulhas ideológicas. São Paulo: Brasiliense, 1980.
21
BAUDELAIRE, Charles. Critique d’art suivi de critique musicale. Paris: Gallimard, 1976.
8
complexifica ao longo do século XX em diálogo com a ciência, a filosofia, a arte, que
repensam radicalmente a relação sujeito-objeto.
Em seu livro inacabado, O visível e o invisível (1964), Merleau-Ponty afirma que “o Ser é o
que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência”, e que “filosofia e arte, juntas,
não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas contato com o Ser justamente
enquanto criações”. Nesse sentido, a criação é a experiência de ser, de existência. Por sua
vez, a crítica, para dar conta da experiência da criação, precisa ser também criativa – precisa
ser, ela própria, uma experiência de existência. Assim, numa perspectiva fenomenológica,
não se pode restringir a crítica de arte ao campo das significações (interpretando sentidos ou
tecendo simbolismos das obras, por exemplo), mas deve-se considerá-la em relação ao
“mundo vivido” que se dá à revelia do significado, numa concepção de sentido que não
pressupõe o senso (necessariamente, comum), mas a sensação.
Já no século XVII, Spinoza percebia que a ideia está conectada não ao que está fora do ser
(como o queria Descartes, que acreditava poder, então, captá-la em si), mas corporalmente
relacionada ao indivíduo, ao longo da variação de suas afecções. Descumprindo o
cartesianismo, Spinoza religa alma e corpo interna e sistemicamente, afirmando “que nós não
podemos conhecer a nós mesmos e aos corpos exteriores senão pelas afecções que os corpos
22
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1984.
23
DELEUZE, Gilles. O que é filosofia? (Trad.: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz) Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1992.
9
exteriores produzem sobre o nosso. (...) Eu só conheço as misturas de corpos, e só a conheço
a mim mesmo pela ação dos outros corpos sobre mim, pelas misturas.”24 Desse modo, dá ao
outro um lugar privilegiado no eu, tal qual o esclareceria, mais tarde, em termos
fenomenológicos, Merleau-Ponty: o ser é “o sentido que transparece na interseção de minhas
experiências com as do outro, pela engrenagem de umas sobre as outras; ele é, pois,
inseparável da subjetividade e da intersubjetividade, que faz sua unidade pela retomada de
minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na
minha."25
A crítica precisa, para dar conta da criação, ser afeccionável. O flâneur de Baudelaire saía às
ruas para afeccionar-se, tal qual o fazia Spinoza. O caminho por eles percorrido não poderia
ser previamente cartografável, mas se fazia no gerúndio – na experiência – tal qual o
Caminhando de Lygia Clark, fugindo aos planos pré-estabelecidos na intenção de abrir-se ao
“vazio-pleno”, onde os atos podem adquirir outros sentidos: “é à experiência que nos
dirigimos para que nos abra ao que não é nós”26.
A questão premente para alguns, diante de tal genealogia, é: “a crítica que fazemos hoje ainda
é portadora de algum teor de experiência (ao menos no sentido de não ser meramente
mimética em face do sistema da arte, de revelar alguma possibilidade cognitiva)?.”27. Não
estaria a crítica, por sua condição cada vez maior – e mediada – de distanciamento em relação
à criação, ao privar-se da experiência de ser ao estar (da contingência), cultivando uma
espécie de invulnerabilidade28 que se revela também na constituição das cada vez mais
evidentes hierarquias do campo da arte?
24
DELEUZE, Gilles. Spinoza. (Tradução Francisco Traverso Fuchs) Cours Vincennes, 24 de janeiro
de 1978. Disponível em
http://www.webdeleuze.com/php/texte.php?cle=194&groupe=Spinoza&langue=5.
25
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1984.
26
Ibid.
27
SALZSTEIN, Sônia. Transformações na esfera da crítica. In: FERREIRA, Glória (org). Crítica de
Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006
28
“É que a vulnerabilidade é condição para que o outro deixe de ser simples objeto de projeção de
imagens pré-estabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos
territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade.” ROLNIK, Suely.
10
Vulnerabilização
Edgar Morin, numa reflexão sobre ética30, enuncia enfaticamente que “é preciso ser
dependente para ser autônomo”. Complexificando a ideia de autonomia, faz ver que, se a
dependência tem a ver com a instauração de relações, a autonomia também o tem. A
independência, completaria o artista e crítico Mark Hutchinson31, tem a ver, portanto, com
um projeto colaborativo. Se, como é amplamente difundido no campo da arte, não é possível
nela atuar senão de dentro de seu sistema social – ou seja, se não é possível ser artista, por
exemplo, estando fora do sistema da arte – parece ser imprescindível que, para atuar de forma
“independente” (mantendo “autonomia ideológica” e crítica), seja preciso agir de maneira
colaborativa, numa ação que configure, no seio do sistema da arte, um subsistema próprio,
Não se trata de atribuir à crítica o caráter autoral que é tradicionalmente entendido como
próprio da arte. Não interessa assumir, para a crítica, uma ideia de autoria já “sepultada” pela
filosofia e pela própria arte. A colaboração não tem a ver, portanto, com a ideia de um crítico
coautor da obra, mas com a de um crítico que prescinde, entretanto, de uma posição social de
distinção – posição esta que comumente se apóia na ideia de “especialista”. Tal colaboração
(interlocução) supõe um crítico que se permite vulnerabilizar, que se dispõe à experiência da
arte, da criação, do artista.
Num primeiro momento, teríamos o Freud iluminista, aquele que se esforçava por tornar a
psicanálise cientificamente reconhecida, vestindo-a em corpetes objetivantes que
vislumbravam corroborá-la como o conhecimento especializado acerca dos processos da
mente e, em especial, do inconsciente. Tal concepção previa o psicanalista como aquele que,
detendo o conhecimento, deteria também as soluções para os problemas psíquicos postos em
questão – tratava-se, portanto, de uma ideia empoderada do especialista, tratado como
autoridade. Num segundo momento, continua Phillips, Freud ironizaria seu projeto iluminista
da psicanálise, assumindo os limites do conhecimento e do autoconhecimento, e fazendo ver
a impossibilidade da especialização plena, a utopia da constituição do expert. Para esse
segundo Freud, o psicanalista não mais curaria o paciente com seu conhecimento, mas,
sabendo de sua incapacidade de saber, bem como da impossibilidade do paciente saber
(dominar plenamente os meandros de suas circunstâncias psíquicas), esforçar-se-ia por
constituir um momento de diálogo, uma conversa sobre aquilo que não pode ser solucionado
32
HUTCHINSON, Mark. On expertise, curation & the possibility of the public. Disponível em:
http://www.slashseconds.org/issues/001/003/articles/mhutchinsondbeech/index.php.
12
por meio do conhecimento enquanto experiência de observação e normatização dos
fenômenos.
Esse raciocínio levaria, em última instância, a um curioso projeto de, digamos, indistinção
social entre a crítica de arte e a produção artística. Se a crítica, por ser uma instância a
posteriori da arte (condição indicada em sua própria denominação através da preposição de),
de várias formas precisou constituir um campo que a legitimasse por meio da configuração de
circunstâncias de trabalho que a demandassem e, a partir daí, buscou tornar-se autônoma
diante da produção artística através de estratégias de “afirmação existencial” mediante
“distinção social”, pensar num movimento de indistinção social significaria, em certo
sentido, repensar tal autonomia em seu modo de operação e, sobretudo, em suas motivações
existenciais.33
33
Algo similar pode ser dito em relação ao processo de distinção social na história da curadoria, cujas
estratégias de legitimação muito recentes no Brasil, por exemplo, têm se articulado de tal modo a
reconfigurar o sistema social da arte em nível nacional, reformulando-o com base numa lógica
licitatória em que grande parte das decisões finais passam a caber a curadores que, assim,
retroativamente alimentam o sistema com necessidades que acabam por tornar tais profissionais ainda
mais demandados com base em argumentos de especialização (sejam técnicos ou conceituais). Mas,
afinal, quais seriam as especialidades de um crítico e, sobretudo, de um curador, que os tornariam
experts da arte a ponto de justificar sua plena distinção social dos artistas e, consequentemente, a
ocupação/construção de “posições” de poder mediante a paulatina “retirada” dos artistas de tais
“posições”, que outrora, ainda que diferentemente, ocuparam? O discurso da especialização seria de
13
É que a crítica, em sua acepção moderna tal qual fundada por Baudelaire, define-se não por
uma lógica de autonomia, mas de relação. Assim como é difícil conceber uma crítica de arte
sem arte ou um autor sem obra, a lógica da afecção nos mostra que não é preciso temer a
contaminação do “sujeito” pelo “objeto”, pois tais categorias são constructos ideais que, em
termos sensíveis, inexistem. A contaminação é criação. Desse modo, a crítica de arte, para
potencializar-se, deve gozar da experiência da relação – da interlocução –, uma vez que é na
criação – e não antes dela – que a crítica se constituirá existencialmente tal qual, em relação
ao texto e ao autor, aponta Roland Barthes:
“o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto; não está de modo
algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de
modo algum o sujeito de que seu livro seria o predicado; não existe outro
tempo para além do da enunciação, e todo o texto é escrito eternamente aqui e
agora. É que (...) escrever já não pode designer uma operação de registro, de
verificação, de “pintura” (como diziam os Clássicos), mas sim aquilo a que os
lingüistas (...) chamam um performativo (...)”34.
Experimentar a crítica
Em texto panorâmico sobre crítica de arte no Brasil, Glória Ferreira assim inicia seu percurso
analítico
“Começo por um trabalho crítico que acompanhei recentemente na Semana
[de Artes Visuais do] Recife, chamado Crítica de Imersão. Trata-se de um
grupo de jovens ainda indecisos entre exercer uma atividade artística ou crítica
(...). Eles desenvolvem um tipo de crítica que, dizem, faz apelo ao corpo, para
ver se, “esgotando-o, chegaríamos perto de esgotar também nossas prévias
formatações de pensamento, abrindo espaço para um discurso mais verdadeiro
e autêntico”. Como metáfora do próprio trabalho, o título do fanzine por eles
fato pertinente? Em que exatamente, senão um especialista das redes de relações do próprio sistema
social da arte, um crítico ou curador é expert de modo que o artista não possa sê-lo? Será que, para
uma crítica ao campo social da arte por meio de uma crítica à crítica de arte (e à curadoria), não
caberiam as reflexões acerca da idéia do expert tal como anteriormente referidas?
34
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
14
lançado no encerramento do SPA é Tatuí ─ pequeno crustáceo que sobrevive à
custa de bolhas de ar que faz ao remover a terra. Fazem parte de um grupo
chamado Branco do Olho, com cerca de 15 participantes desenvolvendo
atividades variadas. Na ocasião, fiquei imaginando o significado desse
“branco do olho”, que é a designação popular da esclerótica... Segundo eles,
remete a única coisa que têm em comum. Isso, aliás, é um provérbio (um
amigo meu, o artista Ronald Duarte, contou-me que sua avó sempre dizia: “ah,
meu filho, a única coisa que temos em comum é a esclerótica”). Ressalto que o
fato de se chamar “branco do olho” indica uma das condições da arte atual e,
talvez, também do debate crítico”,
encerrando-o ao sugerir a hipótese de que a
“(...) crítica mais genuína – e não aquela de apresentação, a serviço do sistema
e condicionada – poderia ser pensada como um dos conceitos estourados da
própria obra e se conjuga, nesse campo ampliado, ao saber cada vez maior
detido pelo artista. Talvez possamos pensar, enfim, que o debate crítico se
desloca e reconhece a impossibilidade dos grandes sistemas, de modo que
restam tentativas de aproximação, nas quais a relação com a teoria da arte
parece estar muito mais presente, enfatizada. Define-se até mesmo em relação
ao corpo – voltando aos jovens críticos do Branco do Olho ─, sem perder,
contudo, a pretensão à universalidade – universalidade, no entanto, que se dá
em um contexto de fragmentação do sujeito, de surgimento de novos mapas
simbólicos da arte... e da inerente multiplicidade de acessos oferecidos pela
obra de arte, como lembrou Valéry.” 35
Dispostos a constituir um pensamento crítico num vínculo enfaticamente mais estreito com a
arte e com os artistas – evitando buscar na mediação institucional um pretexto de
aproximação – alguns dos “jovens críticos”37 do Recife criam, em 2006, a Tatuí como espaço
de experimentação coletiva do que foi chamado de crítica de imersão, título cujo objetivo,
mais do que identificar um conceito ou modalidade específica de crítica de arte, foi o de
sublinhar as condições peculiares nas quais os textos que viriam a escrever surgiriam. É que,
naquele ano, no contexto da Semana de Artes Visuais do Recife – SPA38, propuseram-se a
acompanhar os trabalhos desenvolvidos ao longo do evento, sobre eles pensando e
escrevendo para, no último dia, lançar um fanzine com os textos produzidos. Assim, em seis
dias de SPA, assistiram/participaram – experimentaram – vários trabalhos apresentados por
todo o Recife, sobre eles debateram e escreveram, desenvolveram a identidade visual da
revista, imprimiram e fizeram seu lançamento. O SPA foi especialmente escolhido por sua
profusão de atividades e seu caráter informal e entusiástico, constituindo-se num momento
propício à realização do experimento que então as animava: tomar contato direto, presencial e
íntimo com a produção artística, forçar o corpo à exaustão e, nessas condições físicas e
mentais específicas, produzir uma crítica de arte que, esperavam, carregasse características
estreitamente relacionadas àquele contexto, cumprindo, assim, função “arejadora” em sua
formação de críticas de arte, como informava o editorial daquela primeira Tatuí, intitulado
glub, glub, glub:
publicados, com tiragem média de 1500 exemplares. Todo o conteúdo produzido pela revista encontra-
se disponível em seu website.
37
Ana Luisa Lima, Clarissa Diniz, Renata Nóbrega e Silvia Paes Barreto.
38
Evento organizado pela Prefeitura Municipal da Cidade do Recife, congregador dos artistas da
cidade e de outras localidades, quando ocorrem dezenas de exposições, performances, intervenções
urbanas, oficinas, debates, festas, etc. em intensidade frenética e considerável dispersão geográfica.
16
corpo para ver se, esgotando-o, esgotamos também nossas prévias
formatações de pensamento, abrindo espaço para um discurso mais
verdadeiro e autêntico. Para concretizar esse esforço (físico, mental e
espiritual), nada melhor do que o SPA.
(...) Os textos que aqui estão são, portanto, textos cujo distanciamento
crítico em relação ao suposto “objeto de análise” tende ao zero,
palavras escritas no correr da Semana – algumas ainda durante a
realização dos trabalhos. Enfim, uma pretensa crítica de imersão.
39
Editorial da primeira edição da revista Tatuí. Recife, 2006. Disponível em:
http://revistatatui.com/secao/revista/tatui-1/.
17
“ao nos desfazermos da obrigatoriedade do distanciamento crítico que, apesar
de nos ter sido ensinado como eficaz metodologia para a crítica de arte,
parecia impossível diante de nossa inexperiência e falta de repertório e, mais,
bastante deslocada diante do campo da arte de Recife – profundamente
informal, marcado por relações pessoais e por um instinto de cooperação que
tem congregado artistas sobretudo ao longo das últimas seis décadas –,
optamos por ousar desenvolver um pensamento crítico que não se apoiasse no
distanciamento, mas na imersão e na aproximação à produção que
analisávamos, colocando em jogo, inclusive, nosso próprio corpo.”40
40
DINIZ, Clarissa. Ordem do Dia. In: Tatuí 6. Recife, 2009. Disponível em:
http://revistatatui.com/secao/revista/tatui-6/.
41
OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
42
Ibid.
18
numa trama de convenções sociais), a estética é um “discurso do corpo” 43 – como no grego
aisthisis, “experiência sensorial da percepção” – e, como tal, não deve perdê-lo de vista, pelo
que se tornaria estritamente uma “filosofia da arte”.
Por sua vez, parte da história da lingüística – como com Wittgenstein e Garfinkel – nos
mostra o quanto “a língua é inseparável do controle da variedade de contextos em que é
utilizada”44, e o quanto a linguagem está retroativamente relacionada ao conjunto de recursos
metodológicos que a constroem e reconstroem na vida social. Desse modo, tal qual concebida
por Wittgenstein, a linguagem não é uma estrutura que genericamente dá sentido e normatiza
a existência, mas um jogo, um agenciamento em que os agentes – os indivíduos em seus
contextos – possuem função central. A linguagem é menos uma questão de passividade e
mais possibilidade de ação: também ela se dá – sempre retroativamente – nas dinâmicas das
afecções de que fala Spinoza. A experiência estética é capaz, portanto, de afeccionar o
pensamento e a linguagem da crítica por meio do corpo do crítico de arte. Tal experiência
pode se dar na relação obra-indivíduo como, também, indivíduo-indivíduo, instância que, em
sua nona45 e décima46 edições, a revista Tatuí desejou explorar mais intensamente.
Experimentar a experiência
43
EAGLETON, Terry. Ideology of the aesthetic. Oxford: Blackwell Publishers, 1990.
44
GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, pós-estruturalismo e produção da cultura. In: GIDDENS,
Anthony; TURNER, Jonathan (org). Teoria social hoje. São Paulo: Unesp, 1999.
45
Intitulada Tatuí 00, a nona edição da revista foi elaborada em processo de residência editorial
ocorrida em Recife entre 18 e 23 fevereiro de 2010, da qual participaram, além das editoras Ana Luisa
Lima e Clarissa Diniz, também os editores convidados Gustavo Motta (SP), Jonathas de Andrade
(AL/PE), Maicyra Leão (SE/DF), Newton Goto (PR) e Yuri Firmeza (CE/SP).
46
A Tatuí 10 foi elaborada em processo de residência editorial ocorrida em Olinda entre 25 de julho e
16 de agosto de 2010, da qual participaram, além das editoras Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz,
também os editores convidados Cristhiano Aguiar (PB/PE), Daniela Castro (SP), Deyson Gilbert
(PE/SP), Kamilla Nunes (SC), Pablo Lobato (MG) e Vitor Cesar (CE/SP).
19
Constituindo-se no convite a um grupo de indivíduos atuantes no campo da arte em âmbitos
variados (artistas, críticos, curadores, ativistas, gestores, editores, designers, cineastas,
dramaturgos, escritores) para um processo de convivência – residência – donde deveria surgir
uma nova edição da Tatuí (integralmente concebida, coletivamente, ao longo do período de
residência), as chamadas “experimentações editoriais em estado de imersão coletiva”
realizam, na experiência proposta, várias das ideias que nortearam o projeto editorial da
revista até o momento (como elucidadas ao longo deste texto), como também trazem à tona
outros elementos, dando continuidade ao caráter processual e experimental que marca a
história da Tatuí.
20
residências da Tatuí, se afeccionam corpos que, de várias maneiras, presentificam distintas
experiências de arte e de crítica – ainda que minimamente comuns –, podemos vislumbrar
que, no seio dessa vivência coletiva, podem constituir-se relevantes percepções – por seu
potencial de ruptura com os métodos instituídos do cognitariado – da arte e da crítica de
nosso espaço-tempo.
47
O processo de residência é permeado por uma contínua conversação, que ocorre ora com todos os
participantes, ora em subgrupos. Através da conversa, o trabalho desenvolvido individualmente por
cada um dos residentes é apresentado, são realizados debates diversos e, ao longo do processo de
edição da Tatuí, é discutido o projeto editorial – o que inclui um debate acerca da metodologia
adotada, dos textos produzidos e do projeto gráfico da revista.
48
GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, pós-estruturalismo e produção da cultura. In: GIDDENS,
Anthony; TURNER, Jonathan (org). Teoria social hoje. São Paulo: Unesp, 1999.
49
WOLFREYS, Julian. Compreende Derrida. (Tradução de Caesar Souza) Petrópolis: Vozes,
2009.
21
encarar a linguagem como ato em si: a “(...) „boa‟ crítica literária, o único tipo de vale a pena,
implica um ato, uma assinatura ou contra-assinatura literária, uma experiência inventiva da
linguagem, na linguagem, uma inscrição do ato de ler no campo do texto que é lido” 50. E,
nessa intenção, cada um dos projetos editoriais instaurou estratégias específicas.
00
Com Foucault, entendemos que saber e poder não se separam – analisando os vínculos entre
escrita, oralidade e poder, o filósofo conclui que registros escritos são elementos
imprescindíveis das sociedades disciplinares, das formas de organização do poder. Nesse
sentido, ainda que o processo de criação coletiva de uma revista pressuponha, por meio de
uma residência editorial, um jogo de forças que se dá de forma não exclusivamente
hierárquica, sua personificação num produto (revista) inevitavelmente constitui um espaço de
poder que se impõe de diversas maneiras, inclusive no constructo social da “crítica de arte”.
Como parte das estratégias críticas de nosso tempo, a autocrítica – a partir da autoanálise – se
torna estratégia possível para trazer à luz as implicações – de poder, dentre outras –
envolvidas na atividade criadora. Todavia, como evidenciam Deyson Gilbert e Gustavo
Motta em texto publicado em edição anterior da Tatuí51,
50
DERRIDA, Jacques. This strange institution called literature: an interview with Jacques
Derrida. In: ATTRIDGE, D. (org). Acts of literature. Londres: Routledge, 1992.
51
GILBERT, Deyson; MOTTA, Gustavo. Arte, política e a crítica como fetiche. Revista Tatuí
6. Recife, 2009. Disponível em: http://revistatatui.com/secao/revista/tatui-6/.
22
relação enquanto tal, ou seja, da ideologia enquanto movimento insuficiente de
legitimação da realidade. “A ideologia”, escreve Adorno, “em sentido estrito
se dá lá onde o que rege são as relações de poder não transparentes em si
mesmas, mediadas e, nesse sentido, até atenuadas. Hoje, a sociedade,
injustamente censurada por sua complexidade, transformou-se em algo
demasiadamente transparente”52,
tal esforço autocrítico surge, em certo sentido, natimorto. Assim, não basta afirmar – por
exemplo, no texto – os problemas do pensamento crítico. Para “efetivamente” potencializar
criticamente o pensamento, é preciso torná-lo um problema em si. Agir sobre o espaço da
escritura e, a um só tempo, na leitura, é uma dessas possibilidades: “eviscerá-las e remontá-
las na diferença, interrompe[ndo] os programas de percepção, interpretação e experiência
recebidos – e no processo de alterar esse passado (...) manter aberto o espaço para a chegada
do evento sem precedente de um “futuro” virtual ou alternativo para aqueles [que são]
programaticamente previsíveis”53.
Nesse sentido, a Tatuí 00 (ver anexo 1) abriu seu projeto editorial para uma força alheia ao
processo de residência que a elaborou: ao convidar o artista Wolder Wallace para ler a Tatuí
de forma que sua leitura fosse, efetivamente, mais um texto da revista – um sobre-contra-
texto – (método de leitura já habitual ao artista, mas sempre restrito ao âmbito privado54), a
revista submete-se a um jogo de forças que se evidencia – enunciando-se gráfica e
verbalmente – ao longo de suas páginas, tornando a leitura e, portanto, o pensamento, um
campo de batalha. A contra-leitura que se instaura ativa um potencial dialógico que não
almeja uma síntese, mas que se constitui no contínuo processo da construção e desconstrução
dos sentidos, dos argumentos. Como observa um dos editores da Tatuí 00, Gustavo Motta,
52
ADORNO, Theodor. Sociologische Schriften I, Frankfurt, Suhrkamp, 1980. In: SAFATLE,
Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. p.93.
53
COHEN, T. Introduction: Derrida and the future of.... In: COHEN, T. (org). Jacques Derrida and
the humanities: a critical reader. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
54
“(...) Cabia a mim fazer o que sempre fiz quando leio um livro: sublinhar, comentar, destacar,
desenhar, rabiscar, correlacionar, anotar pensamentos meus e de outrens, não somente à margem
como dentro do corpo textual. Não recebi nenhuma orientação específica do que fazer. Aliás, coube a
mim ser como sou intimamente, ou, conforme as palavras de Clarissa Diniz, “nem mais nem
menos”.” Trecho do texto inédito Infiltração Dimensional IV, de Wolder Wallace.
23
“o ponto é que a estratégia gráfica (...) é a enunciação, não de um conteúdo (os
diversos comentários que cada um poderia fazer em cima de um texto), mas
sim, de um método: uma camada de discurso só se dará contra a outra (o que é
mais do que o agrupamento de nossos textos sob um mesmo teto identitário)
(...). Se eu tivesse que dar um título ao projeto gráfico do nosso número, seria
como o título do filme do Straub: Não reconciliados, ou, só a violência ajuda
onde reina a violência.”55
A décima
55
Trecho de e-mail de Gustavo Motta, datado de 30 de junho de 2010.
24
Tal como menciona Kátia Muricy56, a Tatuí 10 parece situar-se no território daquilo que
Foucault entendia, na década de 1960, como a experiência filosófica eminentemente
contemporânea: o diálogo entre a pergunta nietzscheana sobre “quem fala” e a resposta de
Mallarmé de que “a palavra fala”, não importando unicamente o que se diz – como
argumenta Wittgenstein –, mas o uso que se faz do que é dito. Se, segundo Derrida, “a
escritura sem citação é impossível”, devemos expandir os holofotes da criação do autor para
lançá-los também à criação: “o texto gera seu próprio livre jogo de significantes,
constantemente acessíveis à apropriação e reapropriação por sucessivas gerações de
leitores”57. A linguagem – o texto, a criação etc – é também subjetividade mas, antes de sê-lo,
é agência: na “produção de subjetividade”, primeiro temos a produção, a ação. Por sua vez,
vale lembrar, a ação nunca estaciona: qualquer identidade ou ontologia é sempre um vir-a-
ser.
Com indignação, Hélio Oiticica escreve a Lygia Clark, em carta de 11 de julho de 1974, que
Sua revolta contra uma crítica de arte que não se entrega à experiência parece ampliar-se
quando, mais de quarenta anos depois, diagnosticamos o mesmo tipo de prática por parte da
crítica. Talvez possamos perceber uma invulnerabilidade ainda maior, determinada pelo
56
MURICY, Kátia. O poeta da vida moderna. Alea: Estudos Neolatinos, volume 9, número 1.
Janeiro-junho. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. Disponível em:
http://redalyc.uaemex.mx/pdf/330/33090104.pdf.
57
GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, pós-estruturalismo e produção da cultura. In: GIDDENS,
Anthony; TURNER, Jonathan (org). Teoria social hoje. São Paulo: Unesp, 1999.
25
processo de institucionalização do campo da arte, enquanto as práticas artísticas, por sua vez,
continuam a explorar o âmbito da experiência, como aponta a proliferação de teorias como a
“estética relacional” (Nicolas Bourriaud) e afins, em que a participação é fundante.
Que a crítica encoraje-se com as investigações da arte e se lance num espaço de interlocução
que prescinda de ancoragens e que, portanto, esteja aberto ao “vazio-pleno” de possibilidades
é o que se demanda. Urge repensar sua “identidade”, lançando-se à produção de outras
políticas de subjetivação na relação com o mundo, com o outro, com o espaço-tempo, com a
linguagem, com a arte. Repensar, sobretudo, o tradicional protagonismo do verbo face à ação.
É que, como deixou implícito Wittgenstein, “o que não pode ser dito” pode ser, contudo,
feito. No princípio, era o ato.
26