Você está na página 1de 26

Da vontade de ação – experimentação, interlocução, criação – ou do devir-crustáceo.

Por Clarissa Diniz

Lições de espaço

É ainda comum, ao falar-se em crítica de arte, vir à memória a ideia de um juízo periódico
acerca das obras produzidas num determinado contexto, lembrança recente da crítica que se
fazia nas colunas de jornal (ou outros meios de comunicação de grande alcance) e da qual, na
maior parte das vezes, se esperava a constituição de padrões de valoração da arte. Hoje,
quando alguém se apresenta socialmente como “crítico de arte”, não raras vezes é indagado
com um “para qual jornal você escreve?”, questão que parece em certa medida análoga ao o
“qual o significado disso?” tantas vezes proclamado pelo público diante de um trabalho de
arte. Genericamente, persiste a leitura de que parte da valoração/legitimação social de um
crítico vem em consonância com o espaço por ele ocupado na mídia (o meio), como a da arte
viria através de sua mensagem. Ambas as leituras se vinculam a concepções estruturalistas de
espaço e sentido, e passam ao largo da complexidade do espaço social e da percepção, bem
como dos esforços de construção de outras concepções de espaço e de sentido que
perpetraram alguns artistas brasileiros, a partir dos quais se concretiza um desejo por
experiências que, por sua vez, demandam uma capacidade de “flutuação” – exercício de
liberdade que pede desapego às “bases”. Nesse sentido, pensar o espaço ao prescindir do
plano é como pensar a linguagem à revelia do monopólio da significação.

Com Lygia Clark, a arte brasileira já sabia que “o plano é um conceito criado pelo homem
com um objetivo prático: satisfazer sua necessidade de equilíbrio”1. Com Hélio Oiticica,
também sabia que a obra deveria fugir “à busca da interpretação. Todas essas são coisas
velhas: a interpretação, a tentativa de buscar significados e de vivenciar estruturas
significantes, todas essas coisas são coisas superadas (...).”2 Abster-se de ancoragem – seja
plano, seja significado – é exercício de libertação e, ao mesmo tempo, de coragem, pois há
sempre algum tipo de gravidade que tende a tudo sedimentar: havendo tanto magnetismo ao
centro, o impulso para as bordas é sempre um ato de força.

1
Lygia Clark no texto A morte do plano (1960). Disponível em
http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=14.
2
Hélio Oiticica em entrevista a Ivan Cardoso, em 1979, para o filme HO. COHN, Sérgio; FILHO,
César Oiticica; VIEIRA, Ingrid (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
A constituição de outro espaço social e de percepção para a crítica de arte, distinto de suas
concepções mais tradicionais, pede força – de verbo (discurso), mas sobretudo de ação
(pensamento e prática). É que, do princípio verbal bíblico (“no princípio, era o verbo”) ao
princípio de ação proposto na literatura de Goethe (“no princípio, era o ato”), não teríamos
apenas uma questão de tradução (verbo = ação), mas uma demarcação de diferença (verbo x
ação). O agir se dá, portanto, para além da teia de sentidos da linguagem: o ato instaura um
espaço-tempo próprio – inarrável –, que o verbo anseia restaurar. Também para Lygia, “o
instante do ato não se renova. Existe por si mesmo: repeti-lo é dar-lhe um novo significado”3.
Há, na ação, uma possibilidade de existência e de contentamento: a instauração é um
horizonte da utopia. Talvez, também, a ação seja um horizonte possível para uma
(co)existência produtiva em meio à crise – de espaço e de linguagem – da crítica de arte4: “se
a arte tem mudado radicalmente, desde pelo menos a década de 1960, seja do ponto de vista
dos procedimentos, seja das expectativas de recepção, é fundamental que a crítica também se
ponha em questão, redefina seus métodos, interesses e formas de disseminação pública”5.

Tal ação da crítica, ato que se dá na e pela linguagem, precisa dobrar o plano da significação
e agir no espaço do entre (pensamento e ação, fala e escrita, crítica e criação, testemunho e
ficção etc), como desde 1954 nos chama a atenção Lygia Clark com sua Linha Orgânica ao
encaminhar a percepção do centro à borda e revelar as fissuras do encaixe, liberando-nos no
“vazio-pleno” (aberto à experiência da dissonância e do recomeço) e, mais tarde, com
Caminhando (1963), que expande a potência e o espaço da ação temporalmente, chamando à
experiência, ao processo, ao gerúndio. “O “vazio-pleno” contém todas as potencialidades. É o
ato que lhe dá sentido”6, entende a artista.

E a história da ação na recente arte brasileira, em sua experimentação do espaço-tempo e da


linguagem, tem sido das mais fecundas desde o século XX, talvez razão central pelo que a

3
Lygia Clark no texto A propósito do instante (1965). Disponível em
http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=19.
4
Crise que não é só da crítica de arte, como das políticas de subjetivação, da relação com o outro e da
criação cultural, como indica Suely Rolnik no texto Geopolítica da Cafetinagem, disponível em:
http://www4.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf.
5
OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
6
Lygia Clark no texto Do Ato (1965). Disponível em
http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=18.
2
produção artística do País interessa globalmente: “do meu ponto de vista a única postura
realmente inventiva e completamente criativa (o que significa: inteligente, não colonizado) é
experimental”7.

Se, já com o crítico de então, Mário Pedrosa, a arte era “o exercício experimental da
liberdade”8, experimentemos, pois, a liberdade da crítica, numa crítica de arte experimental,
hoje.

Situação

É notório o processo de institucionalização que tem vivido o campo da arte do Brasil nas
últimas décadas, por sua vez acelerado com os anos 1990. Se Hélio Oiticica e Lygia Clark
vivenciaram um Brasil – mais ampliadamente, um mundo – e um meio da arte mais
espacializado, com muitos “vazios-plenos” – atualmente negativamente lidos como “vácuos”
(institucionais, de mercado etc) –, a situação recente é enfaticamente diversa. Com o
adensamento e profissionalização de um campo para a arte, seu espaço social se estratifica, e
o hipotético vazio é continuamente atravessado – e, portanto, com tal preenchimento,
paradoxalmente esvaziado – por planos, linhas e forças várias. Fatiado, esse espaço se
compartimenta e, com seus planos, amplia a dificuldade de propagação de ecos e outras
reverberações – sensação de impotência face ao “todo” à qual cultura ocidental respondeu,
em parte, através da ideia de “especialização”. Desse modo, a potencialização do vazio
através do ato, de que fala Lygia, se torna rarefeita: “a profissionalização e consequente
atomização cada vez maiores da atuação do crítico, e também a ascendência crescente das
grandes instituições e do mercado no agenciamento do espaço público da arte certamente
terão reduzido (ou no mínimo deslocado) o campo de intervenção da crítica”9.

Nesse cenário, a crítica de arte se desloca na direção do estabelecimento de relações bastante


peculiares com esse campo e, em especial, com o mercado e as instituições de arte, as quais

7
OITICICA, Hélio. Entrevista para Journal. COHN, Sérgio; FILHO, César Oiticica; VIEIRA, Ingrid
(org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
8
Mário Pedrosa em conversa com Antonio Manuel em maio de 1970. In: Antonio Manuel. Antonio
Manuel. Rio de Janeiro, FUNARTE, 1984, p. 16.
9
SALZSTEIN, Sônia. Transformações na esfera da crítica. In: FERREIRA, Glória (org). Crítica de
Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.
3
passam a “estruturar” (de forma consultiva e deliberativa) a partir do argumento de
especialização, que funde o papel do crítico com o do gestor, muitas vezes sintetizado na
função do curador: “(...) é na perfeita assimilação do trabalho desse curador à dinâmica das
instituições que a atuação da crítica se cumpriria de modo absolutamente imanente à
instituição”.10

Tal acoplamento – crítica e campo –, cuja interdependência de outrora se converte numa


espécie de “cumplicidade sistêmica”, pode ser compreendido de várias maneiras. Como
argumenta Sônia Salzstein, pode-se entender que nesse processo “a figura do curador teria
finalmente realizado a totalidade projetada pela Razão moderna, consumado uma
racionalidade imanente, uma vez que sua prática se alojaria agora no interior da própria
produção artística, desenvolvendo-se no mesmo tempo e espaço que ela, e doravante
avocando a si a tarefa total do teórico, do historiador, do crítico, do “animador cultural” e do
artista”11. O discurso que legitima tal acoplamento – valendo-se, por exemplo, de supostas
acepções pós-modernas de fluidez e multiplicidade – e que, muitas vezes de modo perverso
(pois a serviço de um poder instituído e normativo), diz espelhar, no campo da crítica, o
equivalente à ideia de “artista-etc”12 do âmbito da produção de arte, obscurece o violento
condicionamento da atividade crítica (pensamento e criação) que pode se dar com as
institucionalização, como testemunha Guy Amado acerca do contexto da “jovem crítica”
brasileira, surgida após os anos 2000:

“Configurou-se, assim, a emergência de uma cena em que "jovens críticos"


têm sua atividade primordialmente associada a instituições de arte. E não se
pode desconsiderar que este fator guarda certa singularidade: é bastante
peculiar que indivíduos que passam a ser designados como novos
representantes da escrita de arte contemporânea – e eu próprio me vejo
incluído nesta condição – sejam assim identificados a partir de uma prática
que pressupõe um vínculo [ou um "serviço"] para com uma instituição, e
consequentemente uma dinâmica de abordagem predeterminada. Afinal, os
textos confeccionados para mostras nesses locais deverão constituir-se como

10
Ibid.
11
Ibid.
12
BASBAUM, Ricardo. O artista como curador. In: FERREIRA, Glória (org). Crítica de Arte no
Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.
4
pouco mais que breves apresentações das obras e artistas ali expostos; e se
pode haver algum teor de fato "crítico" possível neste formato, será
inevitavelmente de natureza laudatória. Essa prática se mostra portanto
comprometida com uma lógica previamente estabelecida; e embora
gratificante, prazerosa e mesmo essencial para a iniciação e aprimoramento no
exercício da escrita de arte, sustento que não será ali que uma crítica isenta de
comprometimentos poderá se desenvolver livremente”13.

Por outro lado, o que no começo dos anos 2000 poderia parecer prioritariamente – para os
“jovens críticos” de então – um problema da ordem de uma “crítica isenta de
comprometimentos” (o que, por sua vez, faz ver uma concepção crítica calcada numa espécie
de imparcialidade, ou objetividade), com a passagem da década se revela como uma questão
dramaticamente mais micropolítica, atuando numa instância ainda mais subjetiva. É que a
institucionalização quase absoluta da recente geração de artistas, críticos, curadores etc, além
de ter, através da instituição e do mercado, demandas/motivações de trabalho, tem, ademais,
na mediação institucional, o modo privilegiado de aproximação entre o pensamento sobre
arte e sua produção, indicando um movimento de distanciamento entre artista e crítico que
acarreta sérias conseqüências e que, em última instância, leva a uma institucionalização
(entendida como normatização) do próprio processo criativo, à internalização dessa lógica no
centro da própria produção de subjetividade.

Se o campo da arte se desenvolveu de forma a racionalizar a produção artística, exigindo dos


artistas, sobretudo por meio de seus mecanismos de seleção (como portfolios, editais e
projetos diversos), uma clareza cada vez maior acerca de seus procedimentos, soluções e
problemas – quando não implicitamente demandando lógica e coerência em sua produção –, é
preciso agir na direção contrária, diferindo do “confortável” caminho da mediação
institucional. É urgente que a crítica se posicione ética e politicamente no seio do aparato
institucional que tende a transformá-la numa massa intelectual interpretante que, regada a
poltronas, ar condicionado e cafezinhos, recebe em mãos portfolios com a reprodução de
obras quase que totalmente “decodificadas” em textos por seus próprios autores, restando-lhe,
portanto, um cada vez mais tendente ao zero espaço para a experiência estética, dúvida,
incerteza, surpresa, entropia, e assim por diante. Se concordamos que, como sintetizou

13
AMADO, Guy. Notas sobre a jovem crítica de arte. Disponível em:
http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.rede/numero/rev-numero5/cincotextoguy.
5
Nelson Goodman14, devemos deixar de nos perguntar “o que é arte” para nos indagar
“quando é arte” – partindo, portanto, para uma concepção mais contingente da mesma –
como esperamos fazê-lo estando restritos às instituições, enquanto o “quando arte” só é
possível de ser percebido no espaço-tempo da vida, em plena deriva existencial, pela
experiência?

Cognitariado

Evidentemente, a transformação do espaço e das intencionalidades da crítica de arte (aqui


compreendida também em suas formas curatoriais, ou voltadas à gestão – pública ou privada)
integra o processo generalizado de transformação do trabalho no estágio recente do
capitalismo, apontado como “cultural” ou “cognitivo” por autores diversos. Dentre os
desdobramentos dessas concepções de capitalismo está a ideia de um “cognitariado”, termo
cunhado pelo teórico e ativista Franco Berardi (Bifo) em 2003, e que aponta para a
necessidade de falar também em termos corpóreos e sociais (ou seja, corporeidade social) da
“classe virtual” cujo “trabalho mentalizado” produz semiocapital (capital semiótico)15.

Para Bifo, a fusão da ideia de trabalho cognitivo à ideia de proletariado (o cognitariado) traz à
luz a “carnalidade eliminada e a sociabilidade iludida do trabalho mentalizado que atua na
produção de semiocapital”16, ampliando a existência social do trabalho cognitivo e pensando-
o em termos mais concretos – porque sociais –, na intenção de concentrar (conscientizar) seu
caráter aparentemente difuso e abstrato e, assim, potencializá-lo enquanto força de
transformação social. É que, para Bifo,

“o cognitariado é a área produtiva dos que elaboram, criam e fazem circular as


interfaces tecnolinguísticas, tecnofinanceiras, tecnosociais, tecnomédicas etc,
que enervam cada mais profundamente a sociedade contemporânea. (...) A
sociedade está feita de corpos, de pessoas que atuam, comunicam, sofrem e se
rebelam. Mas a rede de vínculos, restrições e automatismos produzidos pelo

14
GOODMAN apud OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
15
“Semiocapital é o capital-fluxo que se coagula em artefatos semióticos sem materializar-se”.
BERARDI, Franco. Schizo-economy. SubStance #112, Vol. 36, no. 1, 2007. Disponível em: http://
korotonomedya2.googlepages.com/FrancoBerardi-Schizo-Economy-SubStan.pdf.
16
BERARDI, Franco. La fabrica de La infelicidad. Madri: Traficantes de Sueños, 2003.
6
desenvolvimento do capital faz com que esses corpos sejam cada vez mais
dependentes (...) do funcionamento da rede global. Como fazer para atuar em
uma situação como essa, na qual os automatismos tecnolingüísticos se
enervam em todos os nexos da relação social, fazendo impossível ou
ineficiente qualquer desvio do procedimento? Somente os que desenvolvem o
trabalho de construção dos automatismos podem desconstruí-los e reorientá-
los.”17

Ao passo que, por exemplo, a produção tecnocientífica parece não oferecer saídas para
mecanização da subjetividade nas sociedades contemporâneas, é “no terreno cultural que se
está criando as condições para a formação de uma consciência social do cognitariado. Este
poderá ser o fenômeno mais importante dos próximos tempo e a única alternativa ao
desastre”18.

Nesse sentido, à crítica de arte (e à arte), como participante do cognitariado, cabe uma
urgente conscientização de sua própria condição de “corporalidade eliminada”, uma
conscientização de seu papel fundamental na criação de pensamentos e ações que são, em si
mesmas, fortes responsáveis pela constituição de terrenos férteis à libertária produção de
subjetividade. Em sua atuação expandida – textos, curadorias, políticas públicas, palestras,
cursos, “orientações” etc –, ao crítico de arte cabe o engajamento não com o “mapa das
representações vigentes”19 (no caso, por exemplo, de uma concepção de crítica como
imanente à instituição), mas, inversamente, como tem apontado Suely Rolnik, com os
processos de reterritorialização, de invenção de novas cartografias, pelo que passa,
necessariamente, um potencial de desorientação, força que se dá num campo micropolítico,
no âmbito do sensível, na experiência. Ou, como radicaliza Hélio Oiticica:

“(...) toda essa gente implicada em “programas culturais” nada significam para
o que tem mesmo algum significado grande e duradouro: tudo o que faço e
virei a fazer nada tem a ver com qualquer tipo de programa cultural: nada!:
pelo contrário é a tentativa mais concreta de demolir e tornar impossível
qualquer significação real a tudo o que seja demagogia cultural ou programa

17
Ibid. [Tradução livre]
18
Ibid.
19
ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. Disponível em:
http://www4.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf.
7
para tal demagogia: todo esse corta barato que quer dizer o que “tem que fazer
o artista” ou de como “deva proceder” ou que “caminho tomar”: não há
“caminho” ou “direção” para a criação: não há “obrigações” para o artista:
quem pensa poder fazer o que quer ao mesmo tempo que assume
compromissos que nada têm a ver com a atividade que têm cometem um erro
fatal: e como consequência deste erro tornam-se demagogos e um poço de
equívocos: tornam-se maus: maus artistas: mau caráter: e acaba com que o
compromisso assumido passe a ser o único interesse afogando a criatividade e
a capacidade de invenção que são na verdade as únicas que deveriam
prevalecer acima de qualquer eventual compromisso”.20

Experiência e afecção

A invenção moderna da crítica, conceituada e vivenciada por Baudelaire, se dá na


experiência. Através dos escritos do crítico e poeta, a subjetividade se torna legítima no
processo de criação (seja da arte, seja da crítica). Ao transformar a ideia de tempo e história,
Baudelaire torna a crítica um ato de presença, que se dá num agora que lhe é sempre eterno.
Nesse sentido, a experiência assume papel central na existência, na forma de estar no mundo,
e toda a existência – como, daí, toda a criação – se torna necessariamente parcial (pontual),
imbricada em seu espaço-tempo, em sua posição e suas especificidades perceptivas.

É com Baudelaire que a criação se vincula – em todos os âmbitos: estético, ético, cultural,
político etc – à sua contemporaneidade, a ela respondendo e questionando. Nessa experiência
do presente, inaugura-se uma leitura positiva da incompletude, da ausência, que se tornam
forças motrizes do movimento por sua capacidade de imaginação e desejo de metamorfose, o
que lança, sobre a crítica, uma condição processual que a libera dos modelos platônicos de
pensamento ideal para lançá-la diante das possibilidades da diferença e da invenção. A
concepção de uma crítica parcial, “faite a un point de vue exclusif, mais qui ouvre le plus
d‟horizons”21, é o passo fundante para a crítica entendida como criação, construção que se

20
Hélio Oiticica em entrevista, publicada em HOLLANDA, Heloísa Buarque; PEREIRA, Carlos
Alberto M (org). Patrulhas ideológicas. São Paulo: Brasiliense, 1980.
21
BAUDELAIRE, Charles. Critique d’art suivi de critique musicale. Paris: Gallimard, 1976.
8
complexifica ao longo do século XX em diálogo com a ciência, a filosofia, a arte, que
repensam radicalmente a relação sujeito-objeto.

Dentre as muitas contribuições para a constituição de um espaço legítimo para a experiência


(na cultura, na economia, na política etc), a da fenomenologia é decerto fundamental. A partir
de Husserl e da gestalt, a percepção demonstra seu protagonismo nos processos de construção
do conhecimento e, opondo-se ao empirismo e ao intelectualismo, faz ver a inextrincável
relação de interdependência e retroatividade entre “sujeitos” e “objetos”, que se dá no
contexto (espaço-tempo) em que a relação é constituída. Com a fenomenologia, percepção (e,
portanto, experiência) e conhecimento se reconhecem em suas parcialidades recíprocas, e a
consciência do “lugar” a partir do qual se vive – se sente, se vê, se pensa, se age, etc (donde
vêm as diferentes “perspectivas”) – reposiciona o lugar do ser no mundo, e vice-versa. É
nesse sentido que, segundo Merleau-Ponty, “a verdadeira filosofia” seria, então, “reaprender
a ver o mundo”22, como, para Gilles Deleuze, ela seria “a criação de conceitos”23 – ideias que
demandam, na crítica, a criação.

Em seu livro inacabado, O visível e o invisível (1964), Merleau-Ponty afirma que “o Ser é o
que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência”, e que “filosofia e arte, juntas,
não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas contato com o Ser justamente
enquanto criações”. Nesse sentido, a criação é a experiência de ser, de existência. Por sua
vez, a crítica, para dar conta da experiência da criação, precisa ser também criativa – precisa
ser, ela própria, uma experiência de existência. Assim, numa perspectiva fenomenológica,
não se pode restringir a crítica de arte ao campo das significações (interpretando sentidos ou
tecendo simbolismos das obras, por exemplo), mas deve-se considerá-la em relação ao
“mundo vivido” que se dá à revelia do significado, numa concepção de sentido que não
pressupõe o senso (necessariamente, comum), mas a sensação.

Já no século XVII, Spinoza percebia que a ideia está conectada não ao que está fora do ser
(como o queria Descartes, que acreditava poder, então, captá-la em si), mas corporalmente
relacionada ao indivíduo, ao longo da variação de suas afecções. Descumprindo o
cartesianismo, Spinoza religa alma e corpo interna e sistemicamente, afirmando “que nós não
podemos conhecer a nós mesmos e aos corpos exteriores senão pelas afecções que os corpos
22
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1984.
23
DELEUZE, Gilles. O que é filosofia? (Trad.: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz) Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1992.
9
exteriores produzem sobre o nosso. (...) Eu só conheço as misturas de corpos, e só a conheço
a mim mesmo pela ação dos outros corpos sobre mim, pelas misturas.”24 Desse modo, dá ao
outro um lugar privilegiado no eu, tal qual o esclareceria, mais tarde, em termos
fenomenológicos, Merleau-Ponty: o ser é “o sentido que transparece na interseção de minhas
experiências com as do outro, pela engrenagem de umas sobre as outras; ele é, pois,
inseparável da subjetividade e da intersubjetividade, que faz sua unidade pela retomada de
minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na
minha."25

A crítica precisa, para dar conta da criação, ser afeccionável. O flâneur de Baudelaire saía às
ruas para afeccionar-se, tal qual o fazia Spinoza. O caminho por eles percorrido não poderia
ser previamente cartografável, mas se fazia no gerúndio – na experiência – tal qual o
Caminhando de Lygia Clark, fugindo aos planos pré-estabelecidos na intenção de abrir-se ao
“vazio-pleno”, onde os atos podem adquirir outros sentidos: “é à experiência que nos
dirigimos para que nos abra ao que não é nós”26.

A questão premente para alguns, diante de tal genealogia, é: “a crítica que fazemos hoje ainda
é portadora de algum teor de experiência (ao menos no sentido de não ser meramente
mimética em face do sistema da arte, de revelar alguma possibilidade cognitiva)?.”27. Não
estaria a crítica, por sua condição cada vez maior – e mediada – de distanciamento em relação
à criação, ao privar-se da experiência de ser ao estar (da contingência), cultivando uma
espécie de invulnerabilidade28 que se revela também na constituição das cada vez mais
evidentes hierarquias do campo da arte?

24
DELEUZE, Gilles. Spinoza. (Tradução Francisco Traverso Fuchs) Cours Vincennes, 24 de janeiro
de 1978. Disponível em
http://www.webdeleuze.com/php/texte.php?cle=194&groupe=Spinoza&langue=5.
25
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1984.
26
Ibid.
27
SALZSTEIN, Sônia. Transformações na esfera da crítica. In: FERREIRA, Glória (org). Crítica de
Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006
28
“É que a vulnerabilidade é condição para que o outro deixe de ser simples objeto de projeção de
imagens pré-estabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos
territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade.” ROLNIK, Suely.
10
Vulnerabilização

Se o que está em questão é a relação entre a crítica e a criação, parece fundamental


compreendermos a situação de interdependência que se coloca, diante da qual pretensões de
autonomia (como invulnerabilidade) soam cínicas. Todavia, o contexto de interdependência
entre arte e crítica de arte amedronta a muitos pelas mais variadas razões, dentre as quais o já
tão apontado temor de uma crítica que não goze de “autonomia ideológica” – medo
recorrente naqueles que enxergam a proximidade entre o crítico e o artista de forma
apocalíptica, como espécie de desvirtuação da função da crítica. Há outros horizontes
possíveis, entretanto. É possível atuar criticamente no seio da interdependência – a autonomia
não demanda invulnerabilidade29.

Edgar Morin, numa reflexão sobre ética30, enuncia enfaticamente que “é preciso ser
dependente para ser autônomo”. Complexificando a ideia de autonomia, faz ver que, se a
dependência tem a ver com a instauração de relações, a autonomia também o tem. A
independência, completaria o artista e crítico Mark Hutchinson31, tem a ver, portanto, com
um projeto colaborativo. Se, como é amplamente difundido no campo da arte, não é possível
nela atuar senão de dentro de seu sistema social – ou seja, se não é possível ser artista, por
exemplo, estando fora do sistema da arte – parece ser imprescindível que, para atuar de forma
“independente” (mantendo “autonomia ideológica” e crítica), seja preciso agir de maneira
colaborativa, numa ação que configure, no seio do sistema da arte, um subsistema próprio,

Geopolítica da cafetinagem. Disponível em:


http://www4.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf.
29
“Não há independência possível. Mas há graus variados de dependência e interdependência. E há a
autonomia: a dependência que, espalhada por entre múltiplos centros, pode abdicar de alguns deles
quando necessário e desejável. A autonomia é a dependência que conhece a vida do lado de lá da
borda. É a dependência que sabe dizer não. Que constrói espaços e estratégias para a recusa das
responsabilidades sistêmicas: ética da convicção (...). A autonomia é a dependência que sabe
chantagear a parte do sistema que lhe cabe. A autonomia é a dependência que sabe argumentar consigo
mesma”. DINIZ, Clarissa. Escrevendo como nós, mas falando por mim. Revista Tatuí 00. Recife,
2010. Disponível em: http://revistatatui.com/secao/revista/tatui-00/.
30
Morin, Edgar. O método 6: ética. 2ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.
31
BEECH, Dave; HUTCHINSON, Mark. Inconsequential bayonets? A correspondence on curation,
independence and collaboration. In: O‟NEIL, Paul (org). Curating Subjects. Amsterdã e Londres: De
Appel Foundation e Open Editions, 2007.
11
pautado em práticas e pressupostos de relativa independência. E não seria essa colaboração
um possível encontro existencial entre a criação e a crítica, a experiência vivida entre o
crítico e o artista na interlocução?

Não se trata de atribuir à crítica o caráter autoral que é tradicionalmente entendido como
próprio da arte. Não interessa assumir, para a crítica, uma ideia de autoria já “sepultada” pela
filosofia e pela própria arte. A colaboração não tem a ver, portanto, com a ideia de um crítico
coautor da obra, mas com a de um crítico que prescinde, entretanto, de uma posição social de
distinção – posição esta que comumente se apóia na ideia de “especialista”. Tal colaboração
(interlocução) supõe um crítico que se permite vulnerabilizar, que se dispõe à experiência da
arte, da criação, do artista.

Tomemos de empréstimo a reflexão sobre especialização e experts elaborada pelo


psicanalista Adam Phillips, e que foi por sua vez problematizada, para o campo da curadoria,
por Mark Hutchinson32. Em seu livro Terrors and Experts (1996), o psicanalista relativiza a
necessidade humana de especialização ao analisar os danos que a função social do expert
(perito) pode trazer. Para evidenciar também a camada inconsciente do expert e, portanto, sua
incapacidade de deter pleno conhecimento sobre sua especialidade, o autor se baseia na figura
do psicanalista e chama atenção para dois momentos das teorias freudianas.

Num primeiro momento, teríamos o Freud iluminista, aquele que se esforçava por tornar a
psicanálise cientificamente reconhecida, vestindo-a em corpetes objetivantes que
vislumbravam corroborá-la como o conhecimento especializado acerca dos processos da
mente e, em especial, do inconsciente. Tal concepção previa o psicanalista como aquele que,
detendo o conhecimento, deteria também as soluções para os problemas psíquicos postos em
questão – tratava-se, portanto, de uma ideia empoderada do especialista, tratado como
autoridade. Num segundo momento, continua Phillips, Freud ironizaria seu projeto iluminista
da psicanálise, assumindo os limites do conhecimento e do autoconhecimento, e fazendo ver
a impossibilidade da especialização plena, a utopia da constituição do expert. Para esse
segundo Freud, o psicanalista não mais curaria o paciente com seu conhecimento, mas,
sabendo de sua incapacidade de saber, bem como da impossibilidade do paciente saber
(dominar plenamente os meandros de suas circunstâncias psíquicas), esforçar-se-ia por
constituir um momento de diálogo, uma conversa sobre aquilo que não pode ser solucionado
32
HUTCHINSON, Mark. On expertise, curation & the possibility of the public. Disponível em:
http://www.slashseconds.org/issues/001/003/articles/mhutchinsondbeech/index.php.
12
por meio do conhecimento enquanto experiência de observação e normatização dos
fenômenos.

Substituindo, no pensamento de Phillips, o termo “psicanalista” por “crítico de arte”,


chegaríamos à interessante situação em que o crítico seria aquele que, cônscio de sua
impossibilidade de conhecer em totalidade (ou seja, de ser um expert da arte), teria
consciência também da incapacidade do artista de saber plenamente sobre o que faz.
Problematizando a ideia de especialização no contexto da arte, esse crítico seria não mais
aquele que se definiria como sendo portador de grande conhecimento sobre arte, mas aquele
que instauraria, com o artista, uma conversa acerca daquilo que nenhum dos dois domina e
conhece em inteireza, arte. Dessa forma, destituiria a – inclusive pública – função social do
crítico como uma autoridade para tornar a crítica um estado, um espaço-tempo analítico e
investigativo que, em projeto colaborativo com os artistas (e com o público), se empenharia
na função de pôr-se a conhecer aquilo que lhes escapa ao entendimento. Interlocução.

Esse raciocínio levaria, em última instância, a um curioso projeto de, digamos, indistinção
social entre a crítica de arte e a produção artística. Se a crítica, por ser uma instância a
posteriori da arte (condição indicada em sua própria denominação através da preposição de),
de várias formas precisou constituir um campo que a legitimasse por meio da configuração de
circunstâncias de trabalho que a demandassem e, a partir daí, buscou tornar-se autônoma
diante da produção artística através de estratégias de “afirmação existencial” mediante
“distinção social”, pensar num movimento de indistinção social significaria, em certo
sentido, repensar tal autonomia em seu modo de operação e, sobretudo, em suas motivações
existenciais.33

33
Algo similar pode ser dito em relação ao processo de distinção social na história da curadoria, cujas
estratégias de legitimação muito recentes no Brasil, por exemplo, têm se articulado de tal modo a
reconfigurar o sistema social da arte em nível nacional, reformulando-o com base numa lógica
licitatória em que grande parte das decisões finais passam a caber a curadores que, assim,
retroativamente alimentam o sistema com necessidades que acabam por tornar tais profissionais ainda
mais demandados com base em argumentos de especialização (sejam técnicos ou conceituais). Mas,
afinal, quais seriam as especialidades de um crítico e, sobretudo, de um curador, que os tornariam
experts da arte a ponto de justificar sua plena distinção social dos artistas e, consequentemente, a
ocupação/construção de “posições” de poder mediante a paulatina “retirada” dos artistas de tais
“posições”, que outrora, ainda que diferentemente, ocuparam? O discurso da especialização seria de
13
É que a crítica, em sua acepção moderna tal qual fundada por Baudelaire, define-se não por
uma lógica de autonomia, mas de relação. Assim como é difícil conceber uma crítica de arte
sem arte ou um autor sem obra, a lógica da afecção nos mostra que não é preciso temer a
contaminação do “sujeito” pelo “objeto”, pois tais categorias são constructos ideais que, em
termos sensíveis, inexistem. A contaminação é criação. Desse modo, a crítica de arte, para
potencializar-se, deve gozar da experiência da relação – da interlocução –, uma vez que é na
criação – e não antes dela – que a crítica se constituirá existencialmente tal qual, em relação
ao texto e ao autor, aponta Roland Barthes:

“o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto; não está de modo
algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de
modo algum o sujeito de que seu livro seria o predicado; não existe outro
tempo para além do da enunciação, e todo o texto é escrito eternamente aqui e
agora. É que (...) escrever já não pode designer uma operação de registro, de
verificação, de “pintura” (como diziam os Clássicos), mas sim aquilo a que os
lingüistas (...) chamam um performativo (...)”34.

Experimentar a crítica

Em texto panorâmico sobre crítica de arte no Brasil, Glória Ferreira assim inicia seu percurso
analítico
“Começo por um trabalho crítico que acompanhei recentemente na Semana
[de Artes Visuais do] Recife, chamado Crítica de Imersão. Trata-se de um
grupo de jovens ainda indecisos entre exercer uma atividade artística ou crítica
(...). Eles desenvolvem um tipo de crítica que, dizem, faz apelo ao corpo, para
ver se, “esgotando-o, chegaríamos perto de esgotar também nossas prévias
formatações de pensamento, abrindo espaço para um discurso mais verdadeiro
e autêntico”. Como metáfora do próprio trabalho, o título do fanzine por eles

fato pertinente? Em que exatamente, senão um especialista das redes de relações do próprio sistema
social da arte, um crítico ou curador é expert de modo que o artista não possa sê-lo? Será que, para
uma crítica ao campo social da arte por meio de uma crítica à crítica de arte (e à curadoria), não
caberiam as reflexões acerca da idéia do expert tal como anteriormente referidas?
34
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
14
lançado no encerramento do SPA é Tatuí ─ pequeno crustáceo que sobrevive à
custa de bolhas de ar que faz ao remover a terra. Fazem parte de um grupo
chamado Branco do Olho, com cerca de 15 participantes desenvolvendo
atividades variadas. Na ocasião, fiquei imaginando o significado desse
“branco do olho”, que é a designação popular da esclerótica... Segundo eles,
remete a única coisa que têm em comum. Isso, aliás, é um provérbio (um
amigo meu, o artista Ronald Duarte, contou-me que sua avó sempre dizia: “ah,
meu filho, a única coisa que temos em comum é a esclerótica”). Ressalto que o
fato de se chamar “branco do olho” indica uma das condições da arte atual e,
talvez, também do debate crítico”,
encerrando-o ao sugerir a hipótese de que a
“(...) crítica mais genuína – e não aquela de apresentação, a serviço do sistema
e condicionada – poderia ser pensada como um dos conceitos estourados da
própria obra e se conjuga, nesse campo ampliado, ao saber cada vez maior
detido pelo artista. Talvez possamos pensar, enfim, que o debate crítico se
desloca e reconhece a impossibilidade dos grandes sistemas, de modo que
restam tentativas de aproximação, nas quais a relação com a teoria da arte
parece estar muito mais presente, enfatizada. Define-se até mesmo em relação
ao corpo – voltando aos jovens críticos do Branco do Olho ─, sem perder,
contudo, a pretensão à universalidade – universalidade, no entanto, que se dá
em um contexto de fragmentação do sujeito, de surgimento de novos mapas
simbólicos da arte... e da inerente multiplicidade de acessos oferecidos pela
obra de arte, como lembrou Valéry.” 35

O esforço perpetrado por Glória Ferreira em pensar os desdobramentos da crítica de arte no


Brasil ao levar em consideração suas mais recentes incursões, fez com que esta se dispusesse
a comentar um acontecimento que acabara de experienciar – o então recente surgimento da
revista Tatuí36 –, alusão a qual, em seu texto, se dá como testemunho e “pretexto” para,
35
FERREIRA, Glória. Debate crítico?!. Conferência proferida no dia 15 de dezembro de 2006,
durante o seminário Pensar a arte hoje: perspectivas críticas, realizado no Centro Universitário
Mariantônia (São Paulo).
36
A Tatuí é uma revista independente de crítica de arte – editada por Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz
–, com versões online (www.revistatatui.com) e impressa, e que atualmente tem 10 números
15
partindo da experiência do presente, pensar em termos históricos. Ao fazê-lo, Glória
explorava uma dimensão perceptiva – vinculada à presencialidade de um determinado
espaço-tempo – da crítica de arte para sua própria “metacrítica”, inclinação vizinha àquela
que motivou a criação da Tatuí que, para além de ser um meio de veiculação do pensamento
de seus integrantes, intencionava ser sobretudo um experimento de crítica de arte.

Dispostos a constituir um pensamento crítico num vínculo enfaticamente mais estreito com a
arte e com os artistas – evitando buscar na mediação institucional um pretexto de
aproximação – alguns dos “jovens críticos”37 do Recife criam, em 2006, a Tatuí como espaço
de experimentação coletiva do que foi chamado de crítica de imersão, título cujo objetivo,
mais do que identificar um conceito ou modalidade específica de crítica de arte, foi o de
sublinhar as condições peculiares nas quais os textos que viriam a escrever surgiriam. É que,
naquele ano, no contexto da Semana de Artes Visuais do Recife – SPA38, propuseram-se a
acompanhar os trabalhos desenvolvidos ao longo do evento, sobre eles pensando e
escrevendo para, no último dia, lançar um fanzine com os textos produzidos. Assim, em seis
dias de SPA, assistiram/participaram – experimentaram – vários trabalhos apresentados por
todo o Recife, sobre eles debateram e escreveram, desenvolveram a identidade visual da
revista, imprimiram e fizeram seu lançamento. O SPA foi especialmente escolhido por sua
profusão de atividades e seu caráter informal e entusiástico, constituindo-se num momento
propício à realização do experimento que então as animava: tomar contato direto, presencial e
íntimo com a produção artística, forçar o corpo à exaustão e, nessas condições físicas e
mentais específicas, produzir uma crítica de arte que, esperavam, carregasse características
estreitamente relacionadas àquele contexto, cumprindo, assim, função “arejadora” em sua
formação de críticas de arte, como informava o editorial daquela primeira Tatuí, intitulado
glub, glub, glub:

“(...) Almejando dar uma sacudida em nossa afoita e ainda imatura


pulsão crítica é que fazemos este fanzine, apelando para o nosso

publicados, com tiragem média de 1500 exemplares. Todo o conteúdo produzido pela revista encontra-
se disponível em seu website.
37
Ana Luisa Lima, Clarissa Diniz, Renata Nóbrega e Silvia Paes Barreto.
38
Evento organizado pela Prefeitura Municipal da Cidade do Recife, congregador dos artistas da
cidade e de outras localidades, quando ocorrem dezenas de exposições, performances, intervenções
urbanas, oficinas, debates, festas, etc. em intensidade frenética e considerável dispersão geográfica.
16
corpo para ver se, esgotando-o, esgotamos também nossas prévias
formatações de pensamento, abrindo espaço para um discurso mais
verdadeiro e autêntico. Para concretizar esse esforço (físico, mental e
espiritual), nada melhor do que o SPA.

(...) Os textos que aqui estão são, portanto, textos cujo distanciamento
crítico em relação ao suposto “objeto de análise” tende ao zero,
palavras escritas no correr da Semana – algumas ainda durante a
realização dos trabalhos. Enfim, uma pretensa crítica de imersão.

(...) Perdoem-nos a esquisitice do nosso nome – Tatuí – apelido


daquele bichinho que vive imerso no solo, escavacando o que
encontra pela frente e sobrevivendo às custas das bolhas de ar
derivadas de sua ação de revolver a terra.

É na ânsia de revolver a nós mesmos que aqui nos colocamos.


Esperamos conseguir, sinceramente, produzir as tais bolhas de ar...”39

A crítica de imersão – experimento e estratégia de construção crítica que seria a repetido no


ano seguinte, também no contexto do SPA – estava animada, ademais, pelas idiossincrasias
da posição de suas fundadoras diante do campo artístico do Recife: em especial, a graduação
em arte, a relação informal e consideravelmente íntima com os artistas de sua geração e de
gerações próximas e, em particular, no caso de algumas delas, uma “prática artística” voltada
a performances de longa duração, baseadas na concepção de exaustão física e simbólica. O
protagonismo do corpo e a busca pelo contato íntimo entre entes diferentes nortearam, então,
aqueles instintos críticos, dispondo-se a perseguir as ações dos artistas participantes do SPA,
vivenciando suas propostas e a pulsação da cidade, buscando incorporar no pensamento
crítico as experiências (sensoriais, subjetivas) das relações estabelecidas, dando vazão a
considerações surgidas a partir da “cumplicidade” travada na vivência da obra que, de outra
maneira – como através de uma mediação institucional – parecia a elas impossível de ocorrer
em maior plenitude. Correr atrás dos artistas – simbólica e literalmente – tinha, para a Tatuí,
caráter ético e político:

39
Editorial da primeira edição da revista Tatuí. Recife, 2006. Disponível em:
http://revistatatui.com/secao/revista/tatui-1/.
17
“ao nos desfazermos da obrigatoriedade do distanciamento crítico que, apesar
de nos ter sido ensinado como eficaz metodologia para a crítica de arte,
parecia impossível diante de nossa inexperiência e falta de repertório e, mais,
bastante deslocada diante do campo da arte de Recife – profundamente
informal, marcado por relações pessoais e por um instinto de cooperação que
tem congregado artistas sobretudo ao longo das últimas seis décadas –,
optamos por ousar desenvolver um pensamento crítico que não se apoiasse no
distanciamento, mas na imersão e na aproximação à produção que
analisávamos, colocando em jogo, inclusive, nosso próprio corpo.”40

O exercício proposto com a crítica de imersão de algum modo potencializa a experiência


estética nos termos de Kant que, como elucida Luiz Camillo Osório, compreende-a como
“abertura singular do sujeito ao mundo e aos outros (...), como se os fenômenos surgissem
diante de nós sem que fossem determinados, em sua maneira de ser, por uma expectativa do
entendimento, ou seja, eles nos surpreendem e nos fazem falar” 41. Camillo continua:

“A vontade de falar ou de escrever depois do impacto de uma obra é uma


forma natural de responder à experiência estética e, uma vez que o
entendimento não é aí determinante, nossa imaginação vai atuar de modo mais
livre e produtivo. Essa vontade originária de falar, de querer que o outro sinta
como nós e compartilhe o nosso sentimento, que é tão própria à existência, vai
qualificá-la como solo de nossa comunicabilidade”.42

Na crítica de imersão, o tipo de linguagem implicada no desejo de “comunicabilidade” está,


por sua vez, amplamente vinculada à experiência estética e, diferentemente da distinção
kantiana entre o conhecer (próprio aos fenômenos) e o pensar (próprio às “coisas em si”), se
faz a um só tempo como meio de percepção, pensamento e conhecimento. A linguagem é
experiência e, como tal, deve flexibilizar-se (pela sua própria (re)invenção) no sentido de
distanciar-se o mínimo possível da percepção, da experiência sensível que antecede as
representações. Vale ressaltar que, antes de ser vinculada à arte (e, portanto, instaurar-se

40
DINIZ, Clarissa. Ordem do Dia. In: Tatuí 6. Recife, 2009. Disponível em:
http://revistatatui.com/secao/revista/tatui-6/.
41
OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
42
Ibid.
18
numa trama de convenções sociais), a estética é um “discurso do corpo” 43 – como no grego
aisthisis, “experiência sensorial da percepção” – e, como tal, não deve perdê-lo de vista, pelo
que se tornaria estritamente uma “filosofia da arte”.

Por sua vez, parte da história da lingüística – como com Wittgenstein e Garfinkel – nos
mostra o quanto “a língua é inseparável do controle da variedade de contextos em que é
utilizada”44, e o quanto a linguagem está retroativamente relacionada ao conjunto de recursos
metodológicos que a constroem e reconstroem na vida social. Desse modo, tal qual concebida
por Wittgenstein, a linguagem não é uma estrutura que genericamente dá sentido e normatiza
a existência, mas um jogo, um agenciamento em que os agentes – os indivíduos em seus
contextos – possuem função central. A linguagem é menos uma questão de passividade e
mais possibilidade de ação: também ela se dá – sempre retroativamente – nas dinâmicas das
afecções de que fala Spinoza. A experiência estética é capaz, portanto, de afeccionar o
pensamento e a linguagem da crítica por meio do corpo do crítico de arte. Tal experiência
pode se dar na relação obra-indivíduo como, também, indivíduo-indivíduo, instância que, em
sua nona45 e décima46 edições, a revista Tatuí desejou explorar mais intensamente.

Experimentar a experiência

Um estado espaço-temporal de interlocução; uma experiência-de-si-do-outro-do-contexto;


uma situação de colaboração; um exercício de criação coletiva; um experimento de
linguagem; um experimento de crítica de arte: essas são algumas das definições possíveis
para as “residências editoriais” que, ao longo de 2010, foram realizadas pela Tatuí.

43
EAGLETON, Terry. Ideology of the aesthetic. Oxford: Blackwell Publishers, 1990.
44
GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, pós-estruturalismo e produção da cultura. In: GIDDENS,
Anthony; TURNER, Jonathan (org). Teoria social hoje. São Paulo: Unesp, 1999.
45
Intitulada Tatuí 00, a nona edição da revista foi elaborada em processo de residência editorial
ocorrida em Recife entre 18 e 23 fevereiro de 2010, da qual participaram, além das editoras Ana Luisa
Lima e Clarissa Diniz, também os editores convidados Gustavo Motta (SP), Jonathas de Andrade
(AL/PE), Maicyra Leão (SE/DF), Newton Goto (PR) e Yuri Firmeza (CE/SP).
46
A Tatuí 10 foi elaborada em processo de residência editorial ocorrida em Olinda entre 25 de julho e
16 de agosto de 2010, da qual participaram, além das editoras Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz,
também os editores convidados Cristhiano Aguiar (PB/PE), Daniela Castro (SP), Deyson Gilbert
(PE/SP), Kamilla Nunes (SC), Pablo Lobato (MG) e Vitor Cesar (CE/SP).
19
Constituindo-se no convite a um grupo de indivíduos atuantes no campo da arte em âmbitos
variados (artistas, críticos, curadores, ativistas, gestores, editores, designers, cineastas,
dramaturgos, escritores) para um processo de convivência – residência – donde deveria surgir
uma nova edição da Tatuí (integralmente concebida, coletivamente, ao longo do período de
residência), as chamadas “experimentações editoriais em estado de imersão coletiva”
realizam, na experiência proposta, várias das ideias que nortearam o projeto editorial da
revista até o momento (como elucidadas ao longo deste texto), como também trazem à tona
outros elementos, dando continuidade ao caráter processual e experimental que marca a
história da Tatuí.

De modo geral, os estados de residência visam à constituição de um espaço-tempo cujas


políticas de convivência possam ser negociadas/inventadas de modo mais livre, visto que
podem se dar como um “subespaço” de relativa autonomia diante do espaço social geral. No
contexto do campo da arte, as residências coletivas podem se tornar momento privilegiado de
produção de subjetividade ao, habitualmente, se darem para além das formas institucionais de
mediação. Nas residências editoriais da Tatuí, as metodologias e políticas de convivência e
trabalho são criadas pelos integrantes do processo de modo ativo, não havendo orientações
pré-estabelecidas senão a intenção – genericamente colocada – de produzir uma revista: é na
experiência, no presente vivenciado na coletividade, que são tecidas as estratégias de criação
que, portanto, respondem aos desejos e intencionalidades daquele grupo específico de
editores, naquele momento em particular.

Em ambas as residências promovidas, o corpo esteve


diretamente imbricado com a constituição do pensamento
crítico. Além da convivência – que, por sua vez, já é
distinta daquela a que estamos cotidianamente acostumados
–, outras práticas corporais se deram na intenção de colocar
o corpo mais claramente no cerne do jogo da linguagem.
Tais práticas – que se vinculam diretamente às experiências
perpetradas por Lygia Clark e Hélio Oiticica – ocorreram
entre indivíduos como também em relação direta com o
espaço-tempo. Essas afecções – efeito de um corpo sobre
outro pelo toque e além dele – reverberam, como teoriza Kamilla Nunes e Pablo Lobato em
dinâmica corporal na segunda residência
Spinoza, sobre as ideias. Compreendendo que, nas promovida pela Tatuí. Foto: Revista
Tatuí.

20
residências da Tatuí, se afeccionam corpos que, de várias maneiras, presentificam distintas
experiências de arte e de crítica – ainda que minimamente comuns –, podemos vislumbrar
que, no seio dessa vivência coletiva, podem constituir-se relevantes percepções – por seu
potencial de ruptura com os métodos instituídos do cognitariado – da arte e da crítica de
nosso espaço-tempo.

Tais percepções se colocam na linguagem de


formas diversas – notadamente, através da
conversa e do texto. Num primeiro momento,
conversa-se infinitamente47: “a conversa, que
ocorre em contextos cotidianos de atividade, é o
“veículo” fundamental da significação porque
opera em contextos comportamentais e
conceituais saturados. (...) A constituição da
Jonathas de Andrade, Maicyra Leão, Gustavo Motta, significação, nessa conversa, condiciona além
Newton Goto e Clarissa Diniz em dinâmica corporal na
primeira residência promovida pela Tatuí. Foto: Revista
disso as propriedades significativas da escrita e
Tatuí.
dos textos”48. Os textos, por sua vez, constituem
mais do que as representações das significações construídas pela conversa: “se atentarmos
para a linguagem como linguagem e não meramente como um meio de representação, e
procurarmos seguir o jogo complexo de traços significantes que tecem, através da linguagem,
as pressuposições filosóficas e políticas da instituição, então podemos vir a entender como
uma identidade é produzida por nós e como participamos ativamente na moldagem de nossas
identidades institucionais”49. As Tatuí que derivam de residências são, por sua estrutura de
linguagem, fazendo uso do pensamento de Derrida, mais performativas do que assertivas.
Visando cumprir sua função de problematizadora da linguagem, a crítica de arte precisa

47
O processo de residência é permeado por uma contínua conversação, que ocorre ora com todos os
participantes, ora em subgrupos. Através da conversa, o trabalho desenvolvido individualmente por
cada um dos residentes é apresentado, são realizados debates diversos e, ao longo do processo de
edição da Tatuí, é discutido o projeto editorial – o que inclui um debate acerca da metodologia
adotada, dos textos produzidos e do projeto gráfico da revista.
48
GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, pós-estruturalismo e produção da cultura. In: GIDDENS,
Anthony; TURNER, Jonathan (org). Teoria social hoje. São Paulo: Unesp, 1999.
49
WOLFREYS, Julian. Compreende Derrida. (Tradução de Caesar Souza) Petrópolis: Vozes,
2009.
21
encarar a linguagem como ato em si: a “(...) „boa‟ crítica literária, o único tipo de vale a pena,
implica um ato, uma assinatura ou contra-assinatura literária, uma experiência inventiva da
linguagem, na linguagem, uma inscrição do ato de ler no campo do texto que é lido” 50. E,
nessa intenção, cada um dos projetos editoriais instaurou estratégias específicas.

00

Com Foucault, entendemos que saber e poder não se separam – analisando os vínculos entre
escrita, oralidade e poder, o filósofo conclui que registros escritos são elementos
imprescindíveis das sociedades disciplinares, das formas de organização do poder. Nesse
sentido, ainda que o processo de criação coletiva de uma revista pressuponha, por meio de
uma residência editorial, um jogo de forças que se dá de forma não exclusivamente
hierárquica, sua personificação num produto (revista) inevitavelmente constitui um espaço de
poder que se impõe de diversas maneiras, inclusive no constructo social da “crítica de arte”.

Como parte das estratégias críticas de nosso tempo, a autocrítica – a partir da autoanálise – se
torna estratégia possível para trazer à luz as implicações – de poder, dentre outras –
envolvidas na atividade criadora. Todavia, como evidenciam Deyson Gilbert e Gustavo
Motta em texto publicado em edição anterior da Tatuí51,

“o que se observa é a gritante capacidade de um sistema econômico, político e


cultural se afirmar mediante a crítica (distorcida, cínica, irônica, deslocada,
parcial – não importa) de seus postulados anteriores. Cabe aqui a lembrança
do diagnóstico de Adorno a respeito da redefinição da idéia de ideologia no
mundo do pós-guerra, ou seja, no mundo onde reina a indústria cultural. Para o
filósofo, as relações de poder se caracterizariam então menos pelo recalque
típico – necessário ao funcionamento da ideologia enquanto “falsa
consciência”, ou seja, enquanto instância de ocultamento das contradições
existentes em um processo de legitimação da efetividade por um discurso
dominante – do que, ao contrário, pela exposição e afirmação nua e crua dessa

50
DERRIDA, Jacques. This strange institution called literature: an interview with Jacques
Derrida. In: ATTRIDGE, D. (org). Acts of literature. Londres: Routledge, 1992.
51
GILBERT, Deyson; MOTTA, Gustavo. Arte, política e a crítica como fetiche. Revista Tatuí
6. Recife, 2009. Disponível em: http://revistatatui.com/secao/revista/tatui-6/.
22
relação enquanto tal, ou seja, da ideologia enquanto movimento insuficiente de
legitimação da realidade. “A ideologia”, escreve Adorno, “em sentido estrito
se dá lá onde o que rege são as relações de poder não transparentes em si
mesmas, mediadas e, nesse sentido, até atenuadas. Hoje, a sociedade,
injustamente censurada por sua complexidade, transformou-se em algo
demasiadamente transparente”52,

tal esforço autocrítico surge, em certo sentido, natimorto. Assim, não basta afirmar – por
exemplo, no texto – os problemas do pensamento crítico. Para “efetivamente” potencializar
criticamente o pensamento, é preciso torná-lo um problema em si. Agir sobre o espaço da
escritura e, a um só tempo, na leitura, é uma dessas possibilidades: “eviscerá-las e remontá-
las na diferença, interrompe[ndo] os programas de percepção, interpretação e experiência
recebidos – e no processo de alterar esse passado (...) manter aberto o espaço para a chegada
do evento sem precedente de um “futuro” virtual ou alternativo para aqueles [que são]
programaticamente previsíveis”53.

Nesse sentido, a Tatuí 00 (ver anexo 1) abriu seu projeto editorial para uma força alheia ao
processo de residência que a elaborou: ao convidar o artista Wolder Wallace para ler a Tatuí
de forma que sua leitura fosse, efetivamente, mais um texto da revista – um sobre-contra-
texto – (método de leitura já habitual ao artista, mas sempre restrito ao âmbito privado54), a
revista submete-se a um jogo de forças que se evidencia – enunciando-se gráfica e
verbalmente – ao longo de suas páginas, tornando a leitura e, portanto, o pensamento, um
campo de batalha. A contra-leitura que se instaura ativa um potencial dialógico que não
almeja uma síntese, mas que se constitui no contínuo processo da construção e desconstrução
dos sentidos, dos argumentos. Como observa um dos editores da Tatuí 00, Gustavo Motta,

52
ADORNO, Theodor. Sociologische Schriften I, Frankfurt, Suhrkamp, 1980. In: SAFATLE,
Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. p.93.
53
COHEN, T. Introduction: Derrida and the future of.... In: COHEN, T. (org). Jacques Derrida and
the humanities: a critical reader. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
54
“(...) Cabia a mim fazer o que sempre fiz quando leio um livro: sublinhar, comentar, destacar,
desenhar, rabiscar, correlacionar, anotar pensamentos meus e de outrens, não somente à margem
como dentro do corpo textual. Não recebi nenhuma orientação específica do que fazer. Aliás, coube a
mim ser como sou intimamente, ou, conforme as palavras de Clarissa Diniz, “nem mais nem
menos”.” Trecho do texto inédito Infiltração Dimensional IV, de Wolder Wallace.
23
“o ponto é que a estratégia gráfica (...) é a enunciação, não de um conteúdo (os
diversos comentários que cada um poderia fazer em cima de um texto), mas
sim, de um método: uma camada de discurso só se dará contra a outra (o que é
mais do que o agrupamento de nossos textos sob um mesmo teto identitário)
(...). Se eu tivesse que dar um título ao projeto gráfico do nosso número, seria
como o título do filme do Straub: Não reconciliados, ou, só a violência ajuda
onde reina a violência.”55

A décima

Ao longo de mais de vinte dias de convivência e conversas, as questões da linguagem da


crítica se tornaram preocupação central da experiência de criação da décima edição da Tatuí
(ver anexo 2). Se, na edição 00, anterior, o problema da linguagem surgia mais como questão
de método (forma) do que propriamente de conteúdo, na Tatuí 10 ele surge em todas as
instâncias, como, por exemplo, nos vários textos que pensam sobre o lugar da fala, do
silêncio e do pensamento nas relações sociais e na arte (como na imagem, na crítica de arte e
na história). Permeando questões como essas, esteve, como horizonte metodológico de parte
da Tatuí 10, a liberdade em apropriar-se (das mais variadas formas) de pensamentos de outros
indivíduos, coletivizando a autoria tanto internamente – entre o grupo de residentes-editores –
como socialmente, a partir do empréstimo e da releitura da obra de autores como Hélio
Oiticica, Haroldo de Campos ou Ulises Carrión, processo compositivo indicado no sumário
da revista.

Também graficamente a Tatuí 10 incorporou as discussões que permeiam seus


textos/poemas/ficções etc, constituindo-se a partir de apropriações/traduções de identidades
visuais genéricas (como livros de romance ou cartas datilografadas) e de imagens,
colecionadas ao longo do período da residência editorial e identificadas aos conteúdos
abordados na revista.

55
Trecho de e-mail de Gustavo Motta, datado de 30 de junho de 2010.
24
Tal como menciona Kátia Muricy56, a Tatuí 10 parece situar-se no território daquilo que
Foucault entendia, na década de 1960, como a experiência filosófica eminentemente
contemporânea: o diálogo entre a pergunta nietzscheana sobre “quem fala” e a resposta de
Mallarmé de que “a palavra fala”, não importando unicamente o que se diz – como
argumenta Wittgenstein –, mas o uso que se faz do que é dito. Se, segundo Derrida, “a
escritura sem citação é impossível”, devemos expandir os holofotes da criação do autor para
lançá-los também à criação: “o texto gera seu próprio livre jogo de significantes,
constantemente acessíveis à apropriação e reapropriação por sucessivas gerações de
leitores”57. A linguagem – o texto, a criação etc – é também subjetividade mas, antes de sê-lo,
é agência: na “produção de subjetividade”, primeiro temos a produção, a ação. Por sua vez,
vale lembrar, a ação nunca estaciona: qualquer identidade ou ontologia é sempre um vir-a-
ser.

Crítica sendo: o gerúndio da experiência, criação, experimento

Com indignação, Hélio Oiticica escreve a Lygia Clark, em carta de 11 de julho de 1974, que

“quem relata e quem critica ou é artista ou nada é; é inadmissível essa merda


de crítico numa posição de espectador: volta tudo ao antigo e não há quem
possa; principalmente quando se refere a experiências que têm que ver com o
comportamento e a ação deste; esse pessoal todo ainda dava certo até o Bicho,
mas agora quando você chega a essa dilatação aguda e impressionante de
todos os começos (corpo, sensorialidade, etc.) e já está muito além do que se
poderia pensar, essa gente falha; essa relação de cada participador com a força
da baba é algo grande demais; não pode ser descrito factualmente...”.

Sua revolta contra uma crítica de arte que não se entrega à experiência parece ampliar-se
quando, mais de quarenta anos depois, diagnosticamos o mesmo tipo de prática por parte da
crítica. Talvez possamos perceber uma invulnerabilidade ainda maior, determinada pelo

56
MURICY, Kátia. O poeta da vida moderna. Alea: Estudos Neolatinos, volume 9, número 1.
Janeiro-junho. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. Disponível em:
http://redalyc.uaemex.mx/pdf/330/33090104.pdf.
57
GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, pós-estruturalismo e produção da cultura. In: GIDDENS,
Anthony; TURNER, Jonathan (org). Teoria social hoje. São Paulo: Unesp, 1999.
25
processo de institucionalização do campo da arte, enquanto as práticas artísticas, por sua vez,
continuam a explorar o âmbito da experiência, como aponta a proliferação de teorias como a
“estética relacional” (Nicolas Bourriaud) e afins, em que a participação é fundante.

No Brasil, são ainda poucos e tímidos os esforços de reinvenção da crítica. Ironicamente,


parece que esta não deu ouvidos aos clamores da arte de seu próprio País, que há tanto tempo
esperneia diante do distanciamento da crítica em relação à criação, diante de sua cegueira
perante as pistas que, inerentes à prática artística, estão o tempo todo sendo dadas no sentido
da experimentação da crítica de arte.

Que a crítica encoraje-se com as investigações da arte e se lance num espaço de interlocução
que prescinda de ancoragens e que, portanto, esteja aberto ao “vazio-pleno” de possibilidades
é o que se demanda. Urge repensar sua “identidade”, lançando-se à produção de outras
políticas de subjetivação na relação com o mundo, com o outro, com o espaço-tempo, com a
linguagem, com a arte. Repensar, sobretudo, o tradicional protagonismo do verbo face à ação.
É que, como deixou implícito Wittgenstein, “o que não pode ser dito” pode ser, contudo,
feito. No princípio, era o ato.

26

Você também pode gostar