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Ecus

Cadernos de Pesquisa

PULSAÇÕES
AUDIOVISUAIS
n. 2
Universidade Federal da Bahia

Reitor
Dora Leal Rosa

Vice-Reitor
Luiz Rogério Bastos Leal

Conselho Editorial da Série ECUS - Cadernos de Pesquisa


Biagio D’Angelo - Pontífica Universidade Católica de São Paulo
Cleise Mendes - Universidade Federal da Bahia
Irene Machado - Universidade de São Paulo, Escola de Comunicação e Artes
Edilene Dias Matos - Universidade Federal da Bahia
Ferruccio Marotti - Università degli Studi di Roma La Sapienza
Joel Barbosa - Universidade Federal da Bahia
Immacolata Amodeo - Jacobs University Bremen
Leonardo V. Boccia - CNPq, Universidade Federal da Bahia
Luisa Tinti - Università degli Studi di Roma La Sapienza
Luo Qing - Communication University China
Mauricio Alves Loureiro - Universidade Federal de Minas Gerais
Idelete Muzart-Fonseca dos Santos - Universitède Paris Ouest - Nanterre La Défense
Paulo César Borges Alves - Universidade Federal da Bahia
Peter Ludes - Jacobs University Bremen
Renato José Amorim da Silveira - Universidade Federal da Bahia
Olga de Sá - Faculdades Integradas Teresa D’Ávila
Leonardo Vincenzo Boccia
Natalia Coimbra de Sá
Organizadores

Ecus
Cadernos de Pesquisa

PULSAÇÕES
AUDIOVISUAIS
n. 2

Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade-UFBA


Salvador, 2010
© 2010 by Autores

Projeto gráfico e capa


Heloisa O. S. e Castro

Editoração
Caio Sá Telles

Revisão
Andréa Hack

Sistema de Bibliotecas - UFBA

Pulsações audiovisuais / Leonardo Vincenzo Boccia e Natalia Coimbra de Sá,


orga­nizadores. - Salvador : UFBA. Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação
em Cultura e Sociedade, 2010.
274 p. - (ECUS. Cadernos de pesquisa ; n.2)

ISBN 978-85-60667-60-4
ISSN 2176-8641

1. Audiovisual. 2. Mídia digital. 3. Multimídia (Arte). 4. Cultura. I. Boccia,


Leonardo Vincenzo. II. Sá, Natalia Coimbra de. III. Série.

CDD - 302.23

Espetáculos Culturais e Sociedade


www.ecus.ihac.ufba.br
Sumário
APRESENTaÇÃO
Leonardo Boccia e Natalia Coimbra de Sá 07

RESUMOS/ ABSTRaCTS 12

PULSAÇÕES AUDIOVISUAIS
Escuta Ubíqua 34
Anahid Kassabian
Compassos chave e experiência sensorial plena 56
Peter Ludes
Chaves audíveis 76
Leonardo Boccia
iPods e Anti-flânerie: estetizando a cidade no século XXI 112
Michael Bull
A sala audível: introdução a uma antropologia histórica
do som na arquitetura 122
Holger Schulze
A nova forma de comunidade online: o exemplo das
comunidades de fãs de música independente sueca 132
Nancy K. Baym

PULSAÇÕES MULTIMÍDIA E CULTURA


A cibercultura, a locatividade e o compartilhamento da
memória social 154
José Cláudio Alves de Oliveira
Mecanismos e perspectivas para a disseminação
da produção científica em meio digital 170
Flávia Rosa
Cultura participatória e festivais internacionais de música e
arte: os exemplos de Glastonbury (Reino Unido), Coachella
(Estados Unidos) e Starts With You (Brasil) 188
Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos
As facetas do rap no brasil: releituras da cultura popular
de um fenômeno global 218
Valfrido Moraes Neto
Pelos acordes da viola: as performances da cantoria
de improviso 234
Andréa Betânia da Silva
É bom e agora tem: a retórica musical como elemento
do espetáculo televisivo da propaganda do Governo da
Bahia em 2010 244
José Raimundo Rios
Estratégias audiovisuais e hegemonia nas maiores emissoras
de tv: CBS (EUA) e ARD (Alemanha) 258
Janos Ian Abreu Schettini
• 7 •

APRESENTaÇÃO
Leonardo Boccia e Natalia Coimbra de Sá

Na década em curso, as interações entre imagens em movimen-


to, som, música e a dimensão sonora das criações audiovisuais têm
despertado grande interesse no âmbito da pesquisa acadêmica nas
áreas das humanidades, artes, ciências e das tecnologias. Questões
inerentes ao contexto cultural das inovações e convergências entre
velhas e novas mídias, com ênfase na comunicação sonora, provo-
cam pulsações paradigmáticas que revelam a interação coletiva das
inteligências. Este compartilhamento articula redes e plataformas
de reprodução e distribuição virtuais e eclode em fricções intercul-
turais; pontos de fusão essenciais à revisão e produção de conheci-
mento científico selecionado e divulgado em diversos formatos de
mídia. A audiosfera virtual e sua afluência entre os múltiplos dispo-
sitivos tecnológicos — sejam eles de produção/emissão, reprodução
ou distribuição — que envolve a gigantesca audiência mundial dia-
riamente e cada vez mais intensamente, é um dos argumentos deste
segundo volume dos Cadernos ECUS de pesquisa.
Entretanto, seria uma temeridade isolar a dimensão áudio —
embora ela seja em muitos casos preponderante — da trama visu-
al das imagens em movimento, que, fortemente moldadas com a
densidade e a diversidade dos timbres sonoros, assume frequente-
mente significados imprevisíveis. Considerando a difícil interação
entre os contextos sociocultural, tecnológico, epistêmico e estético,
e propondo fomentar ações convergentes de pesquisas em franca
cooperação intercultural com a difusão de inovações científicas en-
tre intelectuais de países distintos, o volume Pulsações Audiovisuais
tem como finalidade promover a cooperação internacional com as

• Pulsações Audiovisuais •
• 8 •

contribuições de reconhecidos estudiosos de países com forte tra-


dição em pesquisa.
Disposto os textos em dois eixos temáticos centrais: Pulsações Au-
diovisuais: Som e Imagens em Movimento, e Pulsações Multimídia e
Cultura. A presente publicação pretende acolher a discussão de te-
mas essenciais ao entendimento das intensas mudanças tecnológicas
em curso nesta década. Os impactos dessas produções audiovisuais
transnacionais sobre a gigantesca audiência mundial, no contexto do
moderno mundo tecnologicamente globalizado que, ao mesmo tem-
po, encontra-se extremamente desglobalizado no campo das huma-
nidades, das artes e da cultura são imprevisíveis e inspiram reflexões.
Ações transculturais de pesquisa são necessárias e compatíveis com
os altos níveis da comunicação virtual que neutraliza as fronteiras
nacionais. Contudo, essas ações carecem de realizações públicas e de
intercâmbio estratégico e dialético constante entre estudiosos envol-
vidos com a inovação científica e tecnológica em nível global.
Se analisarmos fatos e mudanças ocorridas nas duas últimas déca-
das, veremos que a globalização não é fenômeno exclusivo da moder-
nidade, pois variados processos de intercâmbio comercial e cultural
marcaram todas as épocas da história da humanidade. Contudo, a
globalização tecnológica é, de fato, uma condição própria da atua-
lidade; fluxo e convergência entre as diversas plataformas de mídia
são parte da realidade constante e presente na vida cotidiana de bi-
lhões de pessoas no mundo. A sociedade em rede permite operações
e transferências de saberes, mercadorias e capitais numa velocidade
nunca experimentada anteriormente e, em muitos casos, os que atu-
am exclusivamente em dimensões virtuais precisam da relação pre-
sencial como base para maiores avanços nos diversos setores.
Existe um certo consenso em atuar ativamente nas plataformas
de mídia que permitem convergência e grande fluxo de informa-
ções-operações e em menor escala promovem averiguação e revisão
presencial entre os que produzem novos conhecimentos. A fluência

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• 9 •

de conteúdo nas diversas plataformas de mídia se situa distante dos


conflitos dialéticos do fazer presencial nos diversos setores acadê-
micos. Em escala transnacional, as dificuldades se multiplicam pela
comunicação multilíngüe, essencial ao reconhecimento epistêmico
das diferenças entre culturas, que se reduz atualmente ao uso unâni-
me da língua inglesa como forma de driblar a falta de comunicação
mas provoca, por outro lado, dificuldades no ecossistema linguís-
tico da humanidade, ao criar simplificações de assuntos-chave im-
postas pela velocidade da ação comunicativa. Desde os primórdios,
os humanos se utilizaram do universo simbólico para se comunicar
expressivamente e abolir o reducionismo intelectual nos diferentes
níveis da comunicação, a fim de suprimir essas carências com a tro-
ca efetiva entre saberes.
A relevância de ações interdisciplinares em atuação intercultural
por meio das teorias de mídia transcultural e a partir da contribui-
ção de intelectuais de diversos países, vai ao encontro das tendências
moderníssimas de revisão e atualização de idéias e conceitos rele-
gados ao mundo virtual das diversas plataformas de mídia, provo-
cando homogeneização e retração dialética entre diversos campos e
contextos da cultura.
A hegemonia audiovisual das maiores companhias de mídia trans-
nacionais se confirma na produção e na distribuição em massa de
mercadorias de uma pseudocultura universal em detrimento do fo-
mento a preciosas culturas linguísticas, artísticas e culturais relegadas
ao abandono, com risco de extinção futura. Ações interdisciplinares
de cultura sugerem mudanças necessárias e urgentes na revisão das
tendências de convergências redutivas de mídia que podem levar à
exclusão de riquíssimas formas de pensamento e ações criativas. A
adoção de uma cultura de massa sustentada essencialmente pelos
recentes avanços tecnológicos unifica e globaliza as sociedades em
rede, ao mesmo tempo que provoca crescimento da demanda por
novos conhecimentos científicos em contextos socioculturais e em

• Pulsações Audiovisuais •
• 10 •

instituições ou grupos étnicos com dificuldades para competir com


os sofisticados sistemas transnacionais de produção e distribuição
em massa.
O presente trabalho, pautado em propostas de cooperação inter-
cultural e internacional, constitui-se de mais um passo dado pelo
grupo ECUS na busca de fomentar ações prático-teóricas entre es-
tudiosos de instituições congêneres em países com forte tradição
em pesquisa, com vistas a produzir novo conhecimento científico
mediante a revisão de teorias e de conceitos-chave da comunicação
audiovisual e sua convergência nas múltiplas plataformas de mídia.
Conceitos como modernidade e globalização ocupam a pauta de dis-
cussões nos diversos setores da cultura e nas universidades do mun-
do, contudo, a convergência interdisciplinar, quando bem sucedida
e ao longo do tempo, imprime a necessidade de novas metodologias
de análise que resultam, por sua vez, na inovação do conhecimento
estabelecido e no fomento de ideias criativas.

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Resumos
• 14 •

Pulsações audiovisUAis:
som e imagens em movimento

Anahid Kassabian1
Escuta Ubíqua

Resumo
O objeto deste ensaio é analisar as mudanças na escuta que foram e
estão sendo condicionadas pelas evoluções tecnológicas de todos os
tipos, desde a internet aos projetos de “casa do futuro”. Eu sugiro que
essas mudanças são parte de uma mudança generalizada no lugar da
música e, em particular, na escuta, na vida cotidiana da maioria das
pessoas que vivem em países industrializados. Em particular, quero
propor que estas mudanças devem ocasionar evoluções paralelas e
substanciais na maneira em que pensamos sobre a música como aca-
dêmicos, através das disciplinas.
Palavras-chave: Escuta, música ubíqua, novas mídias, gênero.

Abstract
The object of this essay is to consider the changes to listening that
have been and are being conditioned by technological developments
of all kinds, from the Internet to designs of the ‘home of the future’.
I suggest that these changes are part of a widespread shift in the place
of music, and in particular, listening, in the routine everyday lives of
most people living in industrialised countries. In particular, I want
to suggest that these changes should occasion parallel and substantial

1 Dra. Anahid Kassabian é professora de graduação em Música e Cultura e de pós-graduação


em Estudos de Música Popular. Ela é Diretora de Pesquisa da Pós-graduação em Edição, Música,
Som e Imagem em Movimento da Escola de Música da Universidade de Liverpool (Reino Unido).
E-mail: a.kassabian@liv.ac.uk

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changes in the way we think about music as scholars across the dis-
ciplines.
Keywords: Listening, Ubiquitous Music, New Media, Genre.

Peter Ludes2
Compassos Chave e experiência sensorial plena

Resumo
Imagens Chave emolduram e ordenam narrativas e os Compassos
Chave lhes emprestam a melodia: “grandes narrativas audiovisuais”
no Brasil, Alemanha e Estados Unidos durante a primeira década do
século XXI. O significado especial do YouTube para a (auto) apre-
sentação audiovisual está aqui, entre outras coisas, em uma nova
redução e consolidação, internacionalização e desprofissionalização.
Habermas concentrou-se em atividades expressas em palavras, que são
feitas com palavras. Em sua teoria, experiências completas de ações
dramáticas são as mais próximas. Elas são expressivas e solicitam ver-
dades existenciais ou autenticidade nas relações pessoais. Mas cada
discurso exige o reconhecimento do Outro aceitar ele/ela para ouvi-
lo (a), para ele ou ela possa ser considerado (a) confiável. Verdades
existenciais oferecem uma oportunidade para fazer contato com os
discursos de experiências, a ação comunicativa com os testes intra-
subjetivos. A integração dos diferentes chips de comunicação é cada
vez mais importante, porque os custos do terrorismo e os ambientais,
ou ecológicos, bem como a exclusão de grandes grupos de pessoas se
torna impagável, porque os direitos humanos e as obrigações em ge-
ral devem ser apoiados.

2
Professor Doutor da Escola de Humanidades e Ciências Sociais da Jacobs University Bremen; coor-
denador do projeto de pesquisa Key-visuals. E-mail: p.ludes@jacobs-university.de

• Resumos / Abstracts •
• 16 •

Palavras-chave: Compassos Chave, experiência sensorial plena, Mi-


chael Tomasello, hinos nacionais, YouTube, Juergen Habermas, Ver-
dades existenciais, Pátria global.

Abstract
Key-visuals frame and order narratives and Key-measures lend them
the tune: “great audiovisual narratives” in Brazil, Germany and the
United States during the first decade of the 21st century. The spe-
cial significance of YouTube for the (auto) audiovisual presentation
is here among other things in a further reduction and consolidation,
internationalization and de-professionalization. Habermas focused
on activities expressed in words, which are made with words. In his
theory, complete experiences of dramatic actions are the closest. They
are expressive and seek existential truths or authenticity in personal
relationships. But every speech requires the recognition of the Other
to accept him / her to hear it, for he or she to be considered relia-
ble. Existential truths offer an opportunity to make contact with the
speeches of experience, the communicative action with the intra-
subjective tests. The integration of different communications chips
is becoming increasingly important, because the costs of terrorism,
environmental or ecological costs, the exclusion of large groups of
people is priceless because human rights and obligations in general
must be supported.
Keywords: Key-measures, full sensory experience, Michael Tomasello,
national anthems, YouTube, Juergen Habermas, existential truths,
global homeland.

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• 17 •

Leonardo Boccia3
Chaves Audíveis

Resumo
Programas, noticiários e vídeos transmitidos pela mídia de tela são
compostos por sequências de cortes — fragmentos de imagens, mú-
sica e sons — finalizados em processo de pós-produção. Na produ-
ção dinâmica dessa programação, a filmagem de uma ação contínua
tornar-se-ia muito extensa. O exíguo espaço-tempo disponível para
transmitir fatos e notícias do mundo através das múltiplas plataformas
de mídia volta-se para o que é considerado proeminente; solução para
uma comunicação ágil e sintética dos acontecimentos, mas também
resultado de interesses particulares. Com isso, os fragmentos de mú-
sicas e imagens utilizados para esses tipos de composição audiovisual
são aqui definidos como Compassos e Imagens Chave. No presente
ensaio, respondendo às questões que emergem dessa fragmentação
estético-semântica musical da composição audiovisual, descrevo os
principais tipos de Compassos Chave.
Palavras-chave: Compassos Chave, enredos audiovisuais, comunica-
ção chave, mídias de tela.

Abstract
Programs, news and video transmitted by the screen media consist
of sequences of cuts —fragments of images, music and sounds —
completed in post-production processes. In this dynamic production
scheduling, the full recording of a continuous action would become
too extensive. The short space-time available to transmit facts and
news from the world through multiple media platforms turns to
what is considered prominent: solution for an agile communication
3
Professor Associado do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC) e Professor Pesquisador
do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da
Bahia (UFBA). E-mail: lvboccia@ufba.br

• Resumos / Abstracts •
• 18 •

and quick summary of events, but also the result of private interests.
Thus, fragments of music and visuals used for these kinds of audio-
visual composition are defined herein as Key Measures Visuals. In
this essay, answering to the questions that emerge from this musical
aesthetic-semantic fragmentation of the audiovisual composition, I
describe the main types and genres of Key Measures.
Keywords: Key Measures; audiovisual plots; key-communication,
screen media.

Michael Bull4
iPods e Anti-Flânerie: Estetizando a cidade no século
XXI

Resumo
Este capítulo discute o potencial de estetização do uso do iPod na
cidade. Ao fazer isso, argumenta que os usuários vivem em uma
esfera tecnológica totalmente mediada enquanto usam seus iPods.
Epistemologias urbanas têm dado primazia ao papel do flâneur na
cidade, enfocando em uma estética visual. Defendo que a estética
do iPod – uma estética audiovisual – é exatamente o contrário do
flaneurism – incorporando práticas que fazem com que a cidade
mimetize o desejo estético do usuário em relação ao flâneur, que
imagina-se como o “outro”. Ao descrever as práticas estéticas dos
usuários de iPod, também questiono a tese do “fim da estética ur-
bana” personificada nos trabalhos de teóricos que pressupõem a
cidade como um lugar de trânsito rápido e “não-lugares”, argu-
mentando que as práticas de estetização são centrais para a com-
preensão do uso de iPod e que, de fato, seus usuários são capazes

4
Dr. Michael Bull é professor de Mídia na Universidade de Sussex (Reino Unido). E-mail: M.Bull@
sussex.ac.uk

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• 19 •

de dotar qualquer espaço urbano com significados individuais.


Palavras-chave: iPod, flâneur, estética, mediação, urbano.

Abstract
This chapter discusses the aestheticizing potential of iPod use in the city.
In doing so it argues that users live in a totally mediated technological
sphere whilst using their iPods. Urban epistemologies have given pri-
macy to the role of the flaneur in the city focussing upon a visual aes-
thetics. I argue that iPod aesthetics – an audio-visual aesthetics – is the
exact reverse of flaneurism – embodying practices, which make the city
mimic the aesthetic desire of the user as against the flaneur who ima-
gines themselves as the ‘other’. In describing the aesthetic practices of
iPod users I also dispute the ‘end of urban aesthetics’ thesis embodied
in the work of theorists who forefront the city as a place of swift transit
and ‘non-places’ arguing that aestheticizing practices are central to an
understanding of iPod use and that indeed iPod users are able to endow
any urban space with their own individual meaning.
Keywords: iPod, flaneur, aesthetics, mediation, urban.

Holger Schulze5
A sala audível: Introdução a uma Antropologia
Histórica do Som na Arquitetura

Resumo
Este artigo oferece uma introdução ao campo da Arquitetura Aural
(Blesser), sob a perspectiva de uma Antropologia Histórica do Som
(Schulze). As duas primeiras partes: O que é o som de uma construção?

5
Dr. Holger Schulze trabalha como professor adjunto de Antropologia Histórica do Som na Univer-
sidade das Artes de Berlim. Ele é diretor da rede internacional de pesquisa Som na Cultura de Mídia:
Aspectos da História Cultural do Som (2010-2013), financiado pela Fundação de Pesquisa da Alema-
nha (DFG). É editor e autor de diversas publicações. E-mail: schulze@udk-berlin.de

• Resumos / Abstracts •
• 20 •

e A perspectiva auditiva antropológica introduzem a necessidade de


uma abordagem diferente de falar de experiências auditivas no plane-
jamento urbano e na arquitetura funcional. Especialmente os concei-
tos convencionalizados da percepção sensorial em sentidos separados
e compartilhados são criticados, e uma abordagem mais aberta, cor-
poral e situacional é proposta; o conceito de uma verdadeira, e ainda
em desenvolvimento, perspectiva auditiva (Auinger/Odland) pode
ajudar aqui. A terceira parte, Arquitetura Aural, dá uma introdução
às questões de investigação e primeiras publicações deste campo; a
última parte do artigo, A Sala Audível, propõe o conceito de salas au-
díveis (seguindo o conceito de técnicas audíveis de Sterne) na crítica
à regulação estatal contemporânea para redução de ruído, em vez de
design auditivo.
Palavras-chave: Arquitetura, estudos de som, sound design, arquite-
tura aural.
Abstract
This article offers an introduction into the field of aural architecture
(Blesser) under the perspective of a historical anthropology of sound
(Schulze). The first two parts: What is the Sound of A Building? and
The Anthropological Hearing Perspective, introduce the necessity for
a different approach of speaking about auditory experiences in urban
planning and functional architecture. Especially the conventionali-
zed concepts of sensory perception in separated and work-sharing
senses is criticized and a more open, corporeal and situative approa-
ch is proposed; the concept of a genuine and yet to develop hearing
perspective (Auinger/Odland) can be of help here. The third part,
Aural Architecture, gives an introduction to the research questions
and first publications of this field; the last part of the article, The
Audile Room, proposes the concept of audile rooms (after Sterne’s
concept of audile techniques) in critique of contemporary state-re-
gulations for noise reduction instead of auditory design.

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• 21 •

Keywords: architecture, sound studies, sound design, aural archi-


tecture.

Nancy K. Baym6
A nova forma de comunidade online: O exemplo das
comunidades de fãs de música independente sueca

Resumo
Grupos online estão tomando novas formas à medida em que os
participantes se espalham entre múltiplas plataformas, na internet e
off-line. A comunidade online multinacional de fãs de música inde-
pendente sueca exemplifica esta tendência. A presente análise, feita
através da observação participante deste tipo de fandom mostra como
os sites são interligados em diversos níveis, e identifica várias impli-
cações para os teóricos, pesquisadores, desenvolvedores, profissionais
independentes e ligados à indústria e os participantes.
Palavras-chave: comunidade online, música independente, blogs de
mp3, fandom.
Abstract
Online groups are taking new forms as participants spread themselves
amongst multiple Internet and offline platforms. The multinational
online community of Swedish independent music fans exemplifies
this trend. This participant–observation analysis of this fandom sho-
ws how sites are interlinked at multiple levels, and identifies several

6
Dra. Nancy Baym é professora de Comunicação na University of Kansas (Estados Unidos) onde
ensina comunicação na internet, comunicação interpessoal, comunicação não-verbal e métodos qua-
litativos. Sua pesquisa etnográfica sobre comunidades online e fãs de televisão foi publicada no livro
de sua autoria, Tune in, log on: Soaps, fandom, and online community, assim como em diversos ar-
tigos, periódicos e coletâneas. Foi fundadora e presidente da Association of Internet Researchers e é
membro dos conselhos editoriais do Journal of Communication, New Media & Society, Information
Society, Critical Studies in Media Communication e Research on Language and Social Interaction. E-
mail: nbaym@ku.edu

• Resumos / Abstracts •
• 22 •

implications for theorists, researchers, developers, industry and in-


dependent professionals, and participants.
Keywords: online community, indie music, mp3 blogs, fandom.

Pulsações Multimídia e Cultura

José Cláudio Alves de Oliveira7


A Cibercultura, a locatividade e o compartilhamento
da Memória Social

Resumo
O artigo fala da memória social compartilhada no ciberespaço, a par-
tir da media clássica: o museu, que de presencial, passou também para
a sua versão digital, à qual todos têm acesso. Reflete sobre a memória
histórica, seja ela individual, coletiva ou de representações de lugares,
casas, praças, enfim do patrimônio cultural. O acesso a essa memória
é hoje facilitado informacionalmente pelas mídias locativas que me-
diatizam dados de lugares, objetos e monumentos com informações
do passado e do presente, constituindo-se em fontes comunicacionais
que refletem a identidade local ou simplesmente curiosidades sobre
as histórias e estórias do patrimônio cultural.
Palavras-chave: Memória social, cibercultura, ciberespaço, tecnolo-
gias, informação.
Abstract
The article speaks of social memory shared in cyberspace, from the

7
Professor permanente do PPG - Cultura e Sociedade da UFBA. Pesquisador do CNPq. E-mail: clau-
dius@pesquisador.cnpq.br

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• 23 •

classical media, the museum, that of presence, now also for its di-
gital version, where everyone has access. Reflects on the historical
memory, whether individual or collective representations of places,
houses, squares, and finally the cultural heritage today facilitated in-
formationally with locative media to mediate data places, objects and
monuments with information from past and present sources com-
munication that reflects the local identity or just curious about the
histories and stories of cultural heritage.
Keywords: Social memory, cyberculture, cyberspace, technologies,
information.

Flávia Rosa8
Mecanismos e perspectivas para a disseminação da
produção científica em meio digital

Resumo
As transformações tecnológicas ocorridas no século XX foram mar-
cantes e decisivas para a denominada Sociedade da Informação (SI)
alterando, inclusive as relações sociais. O mundo interligado numa
grande rede, graças à internet, possibilitou que a disseminação da
produção científica alterasse os fluxos de informação e a forma de
acesso, ampliando o espiral do conhecimento. O objetivo deste tex-
to é, a partir de uma revisão de literatura, refletir sobre as mudanças
ocorridas no âmbito acadêmico e as perspectivas da disseminação da
produção científica, tendo como lastro as tecnologias da informação
e comunicação (TIC) e o Movimento de Acesso Livre.

8
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da Facom/
UFBA, professora da UFBA e diretora da Editora da UFBA. E-mail: flaviagr@ufba.br

• Resumos / Abstracts •
• 24 •

Palavras-chave: comunicação científica, acesso livre à informação,


disseminação, arquivos digitais.
Abstract
Technological developments in the XX Century marked decisive-
ly the so-called Information Society. They changed even social rela-
tionships. In a world interconnected in a large web, the Internet, the
diffusion of the scientific production had its information flows alte-
red and enlarged the knowledge spiral. This paper is aimed at reflec-
ting on changes in the academic environment, in terms of scientific
production diffusion, considering information and communication
technologies and the Open Access Movement.
Keywords: scientific communication, open access to information,
Information diffusion, digital files.

Natalia Coimbra de Sá9 e


Marianne Mattos10
Cultura participatória e festivais internacionais de
música e arte: os exemplos de Glastonbury (Reino Uni-
do), Coachella (Estados Unidos) e Starts With You
(Brasil)

Resumo: O presente artigo busca discutir a relação atual dos festivais


de arte e música popular internacional com os meios de comuni-
cação de massa através das redes sociais e culturais de participa-
ção na era da convergência midiática. A proposta metodológica

9
Doutoranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universi-
dade Federal da Bahia – UFBA. Membro do Grupo de Pesquisa ECUS/CNPq e bolsista da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB. E-mail: natalia.coimbra@gmail.com
10
Graduanda no Curso Tecnologia de Eventos da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo.
Produtora de Eventos. E-mail: mariscd@hotmail.com

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• 25 •

é a apresentação de três estudos de caso: Glastonbury Festival of


Contemporary Performing Arts, realizado no Reino Unido desde
1970; Coachella Valley Music and Arts Festival, que teve início
nos Estados Unidos em 1993 e o Starts With You Music and Arts
Festival, que acontecerá no Brasil pela primeira vez em 2010. A
opção pelos objetos de estudo deu-se a partir do reconhecimento,
por parte dos organizadores do festival brasileiro – que se propõe
a ser um movimento de conscientização em prol da sustentabilida-
de com o intuito de mobilizar o maior número possível de pessoas
em torno da causa – de que os referidos eventos internacionais se-
riam sua fonte direta de inspiração. Inicialmente, será apresentada
uma breve contextualização dos festivais, assim como as relações
históricas entre festivais e ativismo. Em seguida, serão discutidas
suas estratégias de promoção dentro do referencial sobre cultura
participatória, convergente e colaborativa.
Palavras-chave: festivais, espetáculos, cultura, música, participação.
Abstract
The present article discusses the current relationship between arts
and popular music international festivals with mass media through
social networks and cultural participation in the media convergence
era. The proposed methodology is the presentation of three case stu-
dies: Glastonbury Festival of Contemporary Performing Arts, which
takes place in the UK since 1970; Coachella Valley Music and Arts
Festival, which began in the United States in 1993; and Starts With
You Music and Arts Festival, to be held in Brazil for the first time
in 2010. The choice for these objects originated from the recogni-
tion by festival organizers in Brazil - that intends to be a movement
for sustainability awareness, in order to mobilize as many people as
possible around the issue - that such international events would be
their direct source of inspiration. Initially, it will be presented a brief
background contextualization of the festivals, as well as the historical

• Resumos / Abstracts •
• 26 •

links between festivals and activism. Furthermore, it will be discus-


sed their strategies for promotion within the theoretical frame of
participatory, convergence and collaborative culture.
Keywords: festivals, spectacles, culture, music, participation.

Valfrido Moraes Neto11


As facetas do rap no Brasil: releituras da cultura
popular de um fenômeno global

Resumo
Os integrantes da cultura hip hop nacional fazem com frequên-
cia o uso do termo tradição, mas ao mesmo tempo, as mudanças e
inovações não são condenadas, pelo contrário, são estímulos rele-
vantes para seus produtores culturais. As visibilidades decorrentes
desses amálgamas entre tradição e inovação por artistas da cultura
hip hop são mecanismos de (re) construção de formas de identifica-
ção processual, a partir dos processos de recepção e transformação
de fenômenos musicais e juvenis. No caso aqui estudado, na apro-
priação do elemento rap em contextos diferentes, na relação esta-
belecida entre expressões artísticas, cultura, identidade e o acesso a
informações possibilitado em grande medida pelos novos aparatos
tecnológicos. A contemporaneidade, considerada como caracterís-
tica de uma ‘elasticidade cultural’ (MARTÍN-BARBERO, 2002),
tem propiciado no campo das artes, marcadamente na produção
musical, possibilidades de fusões - a diversidade de sonoridades,
fricções, arranhões, ‘cacos’ de músicas – ao primar pela diversidade
de referenciais culturais múltiplos no trânsito pertinente ao univer-
so afro-americano através da mídia e da indústria cultural.

11
Valfrido Moraes Neto atualmente é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Cultura e So-
ciedade pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: valfrido33@yahoo.com.br.

ECUS • Cadernos de Pesquisa


• 27 •

Palavras-chave: Cultura Hip Hop, movimentos socioculturais urba-


nos, música popular, identidades.
Abstract
The members of the national Hip Hop culture are frequently using
the term tradition, but at the same time, changes and innovations are
not condemned; by contrast, they are relevant stimuli to their cultural
producers. The visibility resulting from these amalgamations between
tradition and innovation by artists of Hip Hop culture are mechanis-
ms of (re) construction of forms of identification, based on receiving
and transforming musical and juvenile phenomenon. In the present
case study, the appropriation of rap element in different contexts and
the relationship between artistic expression, culture, identity and ac-
cess to information are made possible largely by new technological
gadgets. The contemporanity regarded as characteristic of a ‘cultural
elasticity’ (MARTÍN-BARBERO, 2002), has provided on the field of
the arts, and notably in music production, the possibility of fusions -
the diversity of sounds, rubs, scrapes, ‘pieces’ of music - to strive for
the diversity of multiple cultural references on the African American
universe flowing through the media and the cultural industry.
Keywords: Hip Hop culture, urban social movements, popular mu-
sic, identities.

Andréa Betânia da Silva12


Pelos acordes da viola: as performances da cantoria de
improviso
Resumo
A utilização do conceito de performance, fomentado por Paul Zu-
mthor, aplica-se com perfeição ao processo de produção dos violeiros,
12
Doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto
de Humanidades, Artes e Ciências Milton Santos (IHAC/UFBA) e Professora da Universidade do Es-
tado da Bahia. E-mail: andrea.betania@uol.com.br.

• Resumos / Abstracts •
• 28 •

seja nos festivais ou nos “pés-de-parede”. Podendo ser entendido


como um espetáculo contemporâneo pela configuração que apre-
senta e pelo modo como se insere na movimentação das produções
artísticas, o festival de violeiros contribui para o estabelecimento
de uma relação entre o repentista e o público, criando uma atmos-
fera musical capaz de romper os limites espaciais, invadindo olhos,
bocas, ouvidos e coração em uma pulsação que foge aos ditames
convencionais, reverberando pelo corpo dos presentes e atingindo
seu ápice ao ser visível a coreografia dos corpos que se deixam em-
balar ao som das violas. Desse modo, o presente trabalho propõe
uma discussão acerca dos elementos constituintes das performances
apresentadas pelos cantadores em duas modalidades de apresenta-
ção: pés-de-parede e festivais. Para tanto, serão utilizados conceitos
e abordagens propostos por Duarte (2008), Finnegan (2008), Mes-
chonnic (2006), Zumthor (2007, 2005), dentre outros.
Palavras-chave: Performances, festivais, musicalidades violeiros.
Abstract
The use of the concept of performance fostered by Paul Zumthor
applies perfectly to the production process of viola players, whether
in festivals or pés-de-parede. May be understood as a contempora-
ry spectacle by the setting that presents and how it is placed among
the movement of artistic productions, the festival of violeiros contri-
butes to the establishment of a relationship between the improviser
and the public, creating a musical atmosphere able to break the spa-
tial limits, invading eyes, mouths, ears and heart in a heartbeat that
escapes the conventional dictates reverberating through the body of
the people and reaching its height when the choreography of bodies
becomes visible moving along with the sound of the violas. Thus, the
present study proposes a discussion on the constituent elements of
performances presented by cantadores in two modes of presentation:
pés-de-parede and festivals. To this end, we will use the concepts and

ECUS • Cadernos de Pesquisa


• 29 •

approaches proposed by Duarte (2008), Finnegan (2008), Meschon-


nic (2006), Zumthor (2007, 2005, 1997), among others.
Keywords: performances, festivals, musicalities, viola players.

José Raimundo Rios13


É bom e agora tem: a retórica musical como
elemento do espetáculo televisivo da propaganda
do Governo da Bahia em 2010

Resumo
Esse artigo tem o objetivo de elucidar algumas questões em relação
à música criada para a propaganda do governo da Bahia intitulada
“É bom e agora tem” e, ao mesmo tempo, abrir novas discussões
acerca da temática no que concerne à criação para dar sentido a um
espetáculo de imagens com a finalidade do convencimento das ações
políticas. Em nenhum momento será discutido questões estéticas dos
vídeos, porém estarão em constantes questionamentos os elementos
musicais tramados para despertar emoções nos telespectadores atra-
vés da música e imagem. Outro ponto de grande relevância e que
terá abordagem cuidadosa nesse trabalho se concentra no poder da
música, como é criada, quais os elementos culturais desta e quem
são os agentes responsáveis pelo processo criativo.
Palavras-chave: Música, retórica, política, publicidade.
Abstract
This article aims to clarify some points regarding the music crea-
ted for the government of Bahia’s propaganda, which is entitled “É

13
Publicitário, músico e arranjador formado em Comunicação Social; mestrando do Programa Multi-
disciplinar em Cultura e Sociedade (UFBA) e membro do grupo de pesquisa ECUS (Espetáculos Cul-
turais e Sociedade). E-mail: joseraimundorios@msn.com

• Resumos / Abstracts •
• 30 •

bom e agora tem”. The paper also opens new discussions on how
this musical creation gives sense to an imagery spectacle that has
the purpose of convincing the audiences about political actions.
The videos’ aesthetic aspects will not be discussed at this moment.
Nevertheless, the musical elements plotted to create emotions in
the viewers through the mix of music and image will be constantly
questioned. Another relevant question that will be approached in
this work is the power of music, the way it is created, which are its
cultural elements, and who are the agents responsible for the cre-
ative process.
Keywords: music, rhetoric, politics, advertising.

Janos Ian Abreu Schettini14


Estratégias Audiovisuais e Hegemonia nas maiores
emissoras de TV: CBS (EUA) e ARD (Alemanha)

Resumo
Segundo o dicionário Aurélio: “música é a arte de combinar sons,
expressão através do som”. O presente artigo busca, através da análi-
se desses “sons”, tentar entender quais são as estratégias usadas pelas
maiores redes de televisão do mundo. Esta tentativa de compreensão
é feita através da escolha dos fatos jornalísticos exibidos durante os
programas de telejornal; como objeto de estudo foram selecionados
os programas de retrospectivas de fim de ano de duas das principais
redes de TV dos EUA e da Alemanha. O objetivo é entender de que
forma essa arte pode ser uma arma poderosa quando usada como fer-
ramenta de manipulação.

14
Janos Ian Abreu Schettini (Yann Schettini) é compositor, instrumentista e arranjador. Atua na área
de concertos e trilha sonoras. Estudante do Bacharelado em Instrumentos de Cordas da Universidade
Federal da Bahia. E-mail: yann_schettini@hotmail.com

ECUS • Cadernos de Pesquisa


• 31 •

Palavras-chave: Trilha sonora, retrospectivas de TV, compassos-cha-


ve, análise de trilha.
Abstract
According to the dictionary: music is the art of combining sounds,
expression through sound. This article aims, through analysis of these
“sounds”, trying to understand what are the strategies used by major
television networks in the world. This attempt at understanding is
made through the choice of journalistic facts shown during television
news programs, and as objects of study were chosen programs of an-
nual year-end retrospectives of two of the major TV networks in the
U.S. and Germany. The goal is to understand how this art can be a
powerful weapon when used as a tool of manipulation.

Keywords: scores and soundtracks, television retrospectives, key-me-
asures, soundtrack analysis.

• Resumos / Abstracts •
PULSAÇÕES
AUDIOVISUAIS
Anahid Kassabian

ESCUTA UBÍQUA1

Música não escolhida


Eu sempre me senti compelida a estudar as relações entre música e
subjetividades. Acredito que esta interseção de texto, relações psíqui-
cas e sociais particularmente intrigantes quando os textos em questão
são sequências de música que não foram escolhidas por seus ouvintes,
nem ativamente escutadas em nenhum sentido reconhecido. Esse tipo
de música inclui, obviamente, música para cinema e televisão, mas
também música nos telefones, em lojas, em videogames, em audio-
books, nos estacionamentos, entre outros. Uma citação de Jonathan
Sterne em seu livro Sounds like the mall of America confirma minha
suspeita: nós ouvimos mais deste tipo de música per capita do que
de qualquer outro.
Na edição de 21 de outubro de 2000 do jornal The Economist, um
gráfico demonstrava a produção mundial anual de dados, expressa
em terabytes. De acordo com os pesquisadores da Escola de Sistemas
de Informação e Gerenciamento da Universidade da Califórnia em
Berkeley, cerca de 2.5 bilhões de CDs foram despachados em 1999.
A produção de CDs musicais ultrapassa jornais, periódicos, livros e
cinema. E a maioria da música está sendo ouvida, geralmente, como
atividade secundária.

1
Versões anteriores desse ensaio foram apresentadas no Departamento de Música da Universidade da
Califórnia em Los Angeles em março de 2001 e no Centro para Análise Cultural do Carnegie Mellon,
em abril de 2001. No texto original, a autora agradece profundamente aos seus estudantes de pós-
graduação e aos seus colegas professores que a convidaram e envolveram em discussões maravilhosas e
provocativas sobre esse material, e à Fundação Ames da Universidade Fordham, por apoiar a pesquisa.
Este artigo foi cedido pela autora para publicação no Brasil no ECUS – Cadernos de Pesquisa. A versão
original em inglês foi publicada originalmente no livro Popular Music Studies, organizado por David
Hesmondhalgh e Keith Negus e publicado pela editora Arnold em 2002. Traduzido para o português
por Natalia Coimbra de Sá com a contribuição de José Raimundo Rios.
• 35 •

Música para seguir de uma sala a outra


Pela maioria dos cálculos, essa é uma tendência que vai continuar a
crescer por algum tempo. Uma marca disto pode ser as idéias de Bill
Gates para a “casa do futuro”. Todos os residentes teriam balizas mi-
croeletrônicas que identificariam seus usuários para a casa. Baseado
no seu perfil armazenado, então,
Luzes automaticamente acenderiam quando você entrasse na
casa... Dispositivos portáteis sensíveis ao toque controlariam
tudo, dos aparelhos de TV à temperatura e às luzes, que iriam
clarear ou escurecer de acordo com a ocasião ou para combinar
com a luz externa... Alto-falantes estariam escondidos atrás do
papel de parede para permitir que a música o acompanhasse de
uma sala a outra. (CNN.COM, 2000).

O Centro Cisco Internet Home Briefing imagina um ambiente mu-


sical semelhante:
Música também parece não ter fronteiras com acesso a qual-
quer coleção, disponível virtualmente em qualquer ambiente
da casa através de um fluxo de áudio (streaming). Aparelhos de
som automáticos e digitais do tipo Jukebox ou rádios de Inter-
net eliminam a limitação das rádios locais e podem transmitir
música, esportes e notícias de todo o mundo. (CISCO INTER-
NET HOME BRIEFING CENTER, 2010).

Essas idéias são as mais básicas e menos radicais no campo co-


nhecido como computação ubíqua, ou ubicomp. Pela primeira vez
articulada no final dos anos 1980 por Mark Weiser, da Xerox PARC
(WEISER, 1991; GIBBS, 2000), ubicomp se tornou um campo de
pesquisa bastante ativo. Está interessado em ambientes inteligentes
e roupas inteligentes, e com a integração contínua entre informa-
ção e computação de entretenimento em ambientes cotidianos. Isso
seria semelhante à penetração de palavras, ou leituras, na vida diá-
ria. Os textos estavam inicialmente centralizados em, por exemplo,
monastérios e bibliotecas; em seguida, livros e periódicos foram dis-
tribuídos para proprietários individuais; agora, palavras estão quase

• Escuta Ubíqua •
• 36 •

sempre em nosso campo de visão, em rótulos, prateleiras, arquivos,


etc. A linguagem escrita é ubíqua, integrada de forma contínua em
nossos ambientes.
Da perspectiva, por exemplo, do Laboratório Residencial de Banda
Larga construído pela Geórgia Tech ano passado, essas “casas inteli-
gentes, com suas tubulações e truques estéreos... são apenas o ponto
inicial” (apud GIBBS, 2000). Sua “Casa Consciente” tem vários dis-
positivos com entradas e saídas de áudio e vídeo em cada sala e várias
tomadas e conectores em cada parede. O Laboratório de Mídia do
Massachusetts Institute of Technology (MIT), como Sandy Pentland
disse, tomou uma direção diferente. Eles “transferiram de um foco
em ambientes inteligentes para uma ênfase em roupas inteligentes”
(PENTLAND, 2000, p. 821), porque estas oferecem possibilidades
que as primeiras não, como mobilidade e individualidade. Por exem-
plo, o Grupo de Pesquisa em Computação Afetiva “construiu um DJ
vestuário que tenta selecionar músicas baseado no humor do usuá-
rio”, como indicado pelos dados de condutividade da pele coletados
através da própria roupa que capta as sensações e funciona como um
computador (PICARD, 2000, p. 716).

O que sabemos sobre a maioria das músicas que ouvimos?


A produção acadêmica sobre música nas diversas disciplinas está com-
pletamente despreparada para pensar sobre estas práticas. Atualmente,
há poucos estudos sobre a música que nos segue de uma sala a ou-
tra, diversificadamente denominada de música programada, música
de fundo, música ambiente, música de negócios, música funcional,
etc. (GIFFORD, 1995; BOTTUM, 2000). Um estudo pioneiro é o
livro de Joseph Lanza, Elevator Music2 (1995) que é, primeiramen-
te, uma história da música em espaços públicos e, em segundo lugar,

2
Música de Elevador (Nota do Tradutor).

Anahid Kassabian
• 37 •

uma defesa das características intramusicais que foram parte da mú-


sica de elevador em seu apogeu: cordas exuberantes, ausência de me-
tais e percussão, linguagem harmônica consoante, etc. O livro é um
recurso de valor inestimável e oferece alguns argumentos fascinantes:
por exemplo, Lanza sugere que a música de elevador tornou-se, por
excelência, a música do século XX porque focou, assim como muitas
das tecnologias desse período, no controle ambiental.
Sterne aposta em outra tática. A música como mercadoria, ele ar-
gumenta, se tornou “uma forma de arquitetura – uma maneira de
organizar o espaço em locais comerciais” (STERNE, 1997, p. 23).
Não apenas o ambiente sonoro dos shoppings centers prediz e depen-
de da quase inaudível e anônima música de fundo do tipo Muzak,
mas ele também molda o próprio espaço. As fronteiras entre a loja e
o corredor são acusticamente definidas pelas diferentes músicas to-
cadas em cada espaço:
Para chegar em qualquer lugar no shopping center da América, as
pessoas devem passar através de músicas e através das mudanças
de som musical. À medida que territorializa, a música dá ao es-
paço acústico subdividido um contorno, oferecendo uma opor-
tunidade aos seus ouvintes para vivenciá-lo de maneira particular
(STERNE, 1997, p. 31).

Para Sterne, a questão é de reificação – a música tornou-se uma


relação de mercadorias que suplanta as relações entre as pessoas e que
pressupõe respostas dos ouvintes.
Em Adequate Modes of Listening3, Ola Stockfelt (1997) argumenta
que modos de escuta desenvolvem-se em relação a gêneros particu-
lares – ele os chama de “modos de gênero-normativo da escuta” – e
o próprio estilo desenvolve-se em relação a essa situação de escuta.
Ele diz:

3
Modos Adequados de Ouvir (N. T.)

• Escuta Ubíqua •
• 38 •

Cada estilo de música... é formado em estreita relação com al-


guns ambientes. Em cada gênero, alguns ambientes, algumas
situações de escuta, compõem os elementos constitutivos do
gênero... A Ópera ou a sala de concertos enquanto ambientes
são tão integrantes e fundamentais partes da ópera e da sinfo-
nia enquanto gêneros musicais como o são as formas de estilo
puramente intramusicais (STERNE, 1997, p. 136).

No argumento de Stockfelt (1997), modos de escuta, situações de


escuta e estilo musical co-produzem uns aos outros. Em termos da
música de fundo, isso ajuda a explicar os parâmetros musicais que
todos conhecemos. O que Stockfelt denomina dishearkening4 pro-
duziu um conjunto particular de práticas para organizar música de
fundo. Há um foco em momentos de agradável “escuta instantânea”,
em vez de desenvolvimento ao longo do tempo, de timbres recon-
fortantes (cordas em legato) sobre outros mais vivos (metais ou ins-
trumentos de sopro).
Contudo, nenhum destes estudos pode lidar com o mundo ubi-
comp proposto pela Xerox PARC e o Laboratório de Mídia do MIT,
nem mesmo com alguns ambientes sonoros já existentes. As noções
acadêmicas que prevalecem, de subjetividade de escuta e agência, até
nos trabalhos mais inovadores, não levam em consideração a música
com a qual acordamos.

De onde veio essa música?


Eu levo uma vida feliz. Todo dia eu acordo no melhor humor
possível e danço pelo quarto enquanto me visto. Então, en-
quanto preparo um delicioso café da manhã na minha pequena
cozinha, vários pássaros azuis pousam na minha janela e can-
tam alegremente. Do lado de fora, um homem alto de casaco
tira seu chapéu e deseja um bom dia. Meia dúzia de crianças

4
Palavra que combina os significados de hear (ouvir) e away (distante). Dishearkening foi o termo
criado por Kassabian e escolhido por Stockfelt a partir do seu texto original em sueco e que significa o
polo oposto de uma escuta completamente autônoma e continuamente concentrada. Significa: “escu-
tar de forma distanciada, desconcentrada” (N. T.). (STOCKFELT, 1997).

Anahid Kassabian
• 39 •

desarrumadas perseguem algo gritando alegremente. Uma delas


grita “Bom dia, senhor!”.

Ah sim, a vida é linda quando você vive em um musical dos


anos 1950. Agora, talvez você esteja se perguntando: “Como
isso pode ser verdade?” Bem, eu tenho a felicidade indescritível
de viver exatamente atrás do supermercado local e a cada ma-
nhã eu acordo com a cuidadosa seleção de melodias alegres que
facilmente penetram em minhas finas paredes para despertar-
me do meu sono (SCHAFER, 2010).

É assim que Own Schafer, residente em Tókio, começa sua elo-


qüente, refletiva e elegante peça sobre Muzak. Sedimentado aqui está
um traço de um dos irmãos da música funcional, ou seja, música de
cinema e teatro musical. Para contar a história da música funcional
poderíamos começar com Music Hall, ou mesmo antes. Outro traço
poderia ser seguido até o rádio, e daí para a música dos salões e gaze-
bos. Ou da música em ambientes de trabalho para as canções e músi-
cas para o trabalho. Estranhamente, estas continuam sendo histórias
não contadas da onipresença da música na vida contemporânea em
configurações espaciais industrializadas.
Duas histórias são contadas – uma industrial e outra crítica. A
primeira começa com o General George Owen Squier, chefe do US
Army Signal Corp,5 do Exército dos Estados Unidos e criador do
Wired Radio, a empresa atualmente chamada Muzak. Essa história
– melhor representada pelo livro de Joseph Lanza (1995) e o texto
They’re Playing Our Songs6 de Bill Gifford na FEED – segue através
das mudanças tecnológicas e de mercados até as patentes “progres-
sões de estímulos” da Muzak, até 1988, quando houve a fusão com
o pequeno provedor de música de fundo Yesco (GIFFORD, 1995,
p. 2-3) e a ascensão dos competidores AEI e 3M.
A outra história documentada é uma contrahistória, a história de
como uma música se tornou aquilo que pode ser confundido com

5
Corpo de Comunicações (N.T.)
6
Eles estão tocando nossas músicas (N.T.)

• Escuta Ubíqua •
• 40 •

música funcional, mas obviamente não é nada disso – música am-


biente. Esta história começa com os experimentos, na adolescência
e juventude, de Erik Satie com a musique d’ameublement (música
mobiliária), passa pela ênfase de John Cage no som ambiente e no
processo e leva inevitavelmente a Brian Eno, aquele cuja mente fez
brotar toda a música ambiente contemporânea posterior (para ver-
sões dessa história, ver qualquer website sobre música ambiente).
Essa história faz grande esforço para diferenciar música ambiente
de música pano de fundo em razão de seus modos disponíveis de es-
cuta. Como músico e fã, Malcolm Humes coloca em um artigo on-
line de 1995:
Eno... tentou criar música que poderia ser ativamente ou pas-
sivamente escutada. Algo que poderia alternar imperceptivel-
mente entre uma textura de fundo para algo que provocaria
um súbito zoom na música para refletir sobre a repetição, uma
variação sutil, talvez uma ligeira mudança de cor ou de humor
(HUMES7, 1995).

O que é importante para os defensores da música ambiente é a sua


disponibilidade, tanto para escuta de primeiro plano como de pano
de fundo. Mas desde meados e finais dos anos 1980, a música de
fundo se tornou primeiro plano. Na linguagem da indústria, música
de fundo é aquilo que chamamos “música de elevador”, e música de
primeiro plano é o trabalho de artistas originais. Enquanto a música
de fundo quase desapareceu, agora você pode ouvir todo mundo: de
Miriam Makeba a Moody Blues, de Madonna a Moby em qualquer
estabelecimento público, e possivelmente todos eles em alguma loja
da rede Starbucks.
Música de primeiro plano parece tornar a discussão sobre música
em espaços públicos impossível – e talvez devesse ser assim. Certa-
mente há um debate histórico de várias décadas sobre a dissolução do
espaço público e da esfera pública. Como a crítica cultural japonesa

7
Disponível em <http://music.hyperreal.org/epsilon/info/humes_notes.html>

Anahid Kassabian
• 41 •

Mihoko Tamaoki argumentou em seu trabalho sobre cafeterias, a


rede Starbucks transforma seus consumidores não em público, mas
em platéias. Além disso, ela afirma:
A Starbucks agora constitui uma operação de “meta-mídia”. Ela
situa-se de uma só vez no papel da mídia tradicional, como uma
saída tanto para conteúdo quanto publicidade. Ao mesmo tem-
po, está vendendo os produtos ali anunciados. E estes, por sua
vez, são produtos de mídia: música para os ouvintes da Starbu-
cks (TAMAOKI, manuscrito não publicado).

Essa é a genialidade da Starbucks como gravadora de música: é


uma operação de meta-mídia que produz o próprio mercado para os
seus produtos de uma só vez, naquilo que já foi considerado um espa-
ço público. Mas se focarmos bem de perto na distribuição das grava-
ções, não vamos resolver completamente os problemas que a música
de primeiro plano representa para a escuta contemporânea.

Como escutamos música de primeiro plano?


Se alguém assiste ao discurso sobre música em ambientes empresa-
riais, ele mal registra a mudança de plano de fundo para primeiro
plano. Em geral, a maioria das pessoas fala sobre música em ambien-
tes empresariais como algo irritante, e é raro ouvir alguém falar so-
bre música nesses locais como algo que ouviria intencionalmente em
algum outro lugar, apesar desta ser uma óbvia conexão a ser feita. A
razão, eu quero argumentar, é que eles não estão discutindo música,
mas sim um modo de escutar sobre o qual a maioria de nós somos,
no mínimo, ambivalentes, graças, em grande parte, à disciplinarida-
de da música na academia ocidental.
Na esteira de Foucault, críticas sobre as práticas disciplinares da
música têm sido bem fundamentadas. Temos discutido formações de
cânones, arquitetura e treinamento; temos discutido sobre análises e
conversado sobre transcrição. Falamos longamente sobre a escuta dos

• Escuta Ubíqua •
• 42 •

peritos levada em tanta consideração por Adorno e cuidadosamente


cultivada pelas instituições de arte e música ocidentais, como as uni-
versidades e orquestras sinfônicas. Talvez isso seja primário entre as
forças que produzem e reproduzem o repertório canônico europeu
e norte-americano. Mas em todas essas discussões nós não tomamos
nossas próprias percepções coletivas suficientemente a sério. Pela ló-
gica, se a escuta perita, concentrada e estrutural produz o cânone,
isso quer dizer que os outros tipos de escuta não produzem, mas re-
produzem outros repertórios?
Esse é, eu acredito, o ponto mais importante em Stockfelt. Através
de mudanças no arranjo da Sinfonia nº 40 em sol menor de Mozart,
conforme argumenta, configurações distintas, diferentes conjuntos de
características musicais e modos de escuta são co-produzidos. Texto,
contexto e recepção criam uns aos outros em processos fundamenta-
dos de forma mútua, simultânea e histórica. Mas à medida em que
a programação da música de primeiro plano aumentou, essa combi-
nação ou dependência mútua parece cada vez menos consistente ou
previsível. Quando qualquer coisa pode ser música de primeiro pla-
no, ainda faz sentido falar sobre formas de escuta? Em caso afirmati-
vo, qual a sua relação com questões do gênero?

Nós ouvimos ou escutamos?


Uma possibilidade é pensar nesta atividade mais desprezada como
ouvir em vez de escutar. Essa idéia aparece repetidamente, inclusi-
ve na literatura vendida por empresas de música programada. Mas a
distinção levanta alguns problemas interessantes. No dicionário We-
bster8, cada termo é definido pelo outro:

8
Versão online disponível em <http://www.websters-online-dictionary.org> (N.T.)

Anahid Kassabian
• 43 •

ouvir vt

perceber (sons) pelo ouvido; receber uma impressão através dos


nervos auditivos do ouvido; como, ouvir uma voz; ouvir pala-
vras.

Ó amigos! Ouço o pisar de pés ágeis. – Milton.

escutar a algo e considerar; especificamente (a) tomar conheci-


mento de; prestar atenção a; como, ouvir essa notícia; (b) es-
cutar a algo oficialmente; dar uma audição formal a; como, ele
irá ouvir suas lições agora; (c) proceder a um exame ou audiên-
cia de (jurisprudência, etc.); tentar; (d) dar autorização a; con-
sentir; como, ele ouviu a minha súplica; (e) ser um membro da
platéia de (uma ópera, transmissão de rádio, palestra, etc.); (f )
dar autorização para falar; como, eu não consigo ouvi-lo agora.
Ser informado de; ser contado, aprender (WEBSTER, 1983, p.
836, grifos da autora).

ouvir vi

ser capaz de perceber um som; como, ele é surdo, ele não pode ouvir.
escutar; atender; como, ele ouve com solicitude. ser dito; rece-
ber por relatório; como, assim eu ouço. (WEBSTER, 1983, p.
836).

escutar vt

fazer um esforço consciente para ouvir; assistir de perto, a fim de ouvir.


dar atenção; receber conselho; como, escutar a advertência. (WE-
BSTER, 1983, p. 1055).

Um problema óbvio relacionado à distinção entre o “ouvir” e “es-


cutar” é a proximidade das definições, mas isto está, como sabemos,
na circularidade da linguagem. Não obstante, poderíamos provavel-
mente admitir que ouvir é, de alguma maneira, mais passivo que es-
cutar, e que consumir música de fundo é passivo. Certamente todos
– de Adorno a Muzak – parecem concordar.
A conotação de passividade do termo “ouvir” é precisamente por-
que eu prefiro “escutar”. Na medida em que “ouvir” é entendido como
passivo, isso implica que a conversão de ondas sonoras em estímulos
eletroquímicos (isto é, transmissão dos nervos para o cérebro) por um

• Escuta Ubíqua •
• 44 •

sujeito encarnado e unificado discretamente (isto é, um indivíduo


humano). Apesar disso, nossa relação com música programada cer-
tamente vai além do mero senso de percepção e, como sugiro abaixo,
nos marca como participantes de uma nova forma de subjetividade.
Existe, então, um modo de escuta de música programada? Aqui
eu quero oferecer uma anedota como um começo de resposta. Re-
centemente, pedi aos meus estudantes de música popular para escre-
ver um ensaio sobre uma transmissão de rádio de meia hora. Ryan
Kelly, membro do corpo de baile do Ballet da Cidade de Nova York,
começou seu ensaio identificando-se como um não ouvinte de rádio.
Ele relatou sentar-se para ouvir a gravação para escrever seu ensaio e
dez minutos depois viu-se na pia da cozinha, lavando pratos. Claro
que essa é apenas uma história, mas muito reconhecível.
Jay Larkin, da Viacom, descreveu para mim um tipo embrioná-
rio de sistema ubicomp que ele havia criado – ele tinha auto-falantes
debaixo do seu travesseiro; assim, podia adormecer escutando músi-
ca sem incomodar sua esposa e sem a intromissão dos fones de ouvi-
do. (Ele também ouve constantemente música no trabalho). Larkin
é muito articulado sobre esse assunto – ele pensa a música como uma
“âncora”, evitando que sua mente se disperse em várias direções. Pais
de crianças com Distúrbio de Déficit de Atenção (DDA) normalmen-
te são aconselhados a colocar música enquanto os filhos estão traba-
lhando com esse propósito. Desde o princípio, diz Gifford, Muzak
era para focar a atenção nesse sentido. A mente dos trabalhadores “era
propensa a vaguear. Muzak absorveu esses pensamentos não produti-
vos e manteve os trabalhadores focados na labuta diária” (GIFFORD,
1995, p. 2). Minha babá Anett e muitos dos meus alunos deixam o
rádio ou a MTV ligados em vários cômodos, assim eles nunca ficam
sem música. Eles dizem que isso enche a casa, deixa o vazio menos
assustador. A própria literatura de Muzak diz “Muzak preenche o si-
lêncio mortal”.

Anahid Kassabian
• 45 •

Essas sempre foram as funções da música de fundo. Nós as apren-


demos com Muzak e agora elas são parte de nossas vidas cotidianas.
Como gerente de programação de Muzak, Steve Ward diz: “É espera-
do que encha o ar com uma espécie de familiaridade agradável, acre-
dito... Se você está empurrando um carrinho numa mercearia e tudo
que você ouve são rangidos de rodas e bebês chorando – seria como
um mausoléu (apud GIFFORD, 1995, p. 2-3).”
Todos esses ouvintes, programadores musicais e escritores com-
partilham uma noção de escuta como uma constante e fundamental
atividade secundária independente das características musicais espe-
cíficas.

Um modo de escutar ubíquo?


Nós que vivemos em regiões industrializadas (pelo menos) desen-
volvemos, pela onipresença da música em nossas vidas diárias, um
modo de escuta dissociado de características genéricas e específicas
dela. Dessa forma, escutamos enquanto realizamos simultaneamen-
te outras atividades. Esse é um exemplo vigoroso da não linearidade
da vida contemporânea. Essa escuta é um fenômeno novo e notável,
que tem potencial para demandar uma radical reformulação dos nos-
sos diversos campos.
Quero propor que chamemos essa forma de escutar de “escuta
ubíqua” por duas razões. Primeiro, é a ubiquidade da escuta que nos
ensinou essa modalidade. É precisamente porque a música está por
toda parte que Ryan esqueceu que estava fazendo sua tarefa e levan-
tou para lavar os pratos.
Em segundo lugar, porque se baseia em uma espécie de “falta de
fonte”, de referência. Enquanto estamos acostumados a pensar sobre
a maioria das músicas, assim como nos produtos culturais, em ter-
mos de autoria e localização, esse outro tipo de música sai das plan-
tas, das paredes e, potencialmente, das nossas roupas. Vem de toda

• Escuta Ubíqua •
• 46 •

parte e de lugar nenhum. Sua projeção parece apagar sua produção


ao máximo colocando-se, em vez disso, como uma qualidade inata
do ambiente.
Por essas razões, o termo “escuta ubíqua” é o que melhor descre-
ve o fenômeno que estou discutindo. Como tem sido amplamente
observado, o desenvolvimento das tecnologias de gravação no sécu-
lo XX desarticularam os espaços de performance e escuta. Você pode
escutar ópera na banheira e rock ao vivo enquanto está no ônibus.
E é precisamente essa desarticulação que fez a escuta ubíqua possí-
vel. Assim como a computação ubíqua, a escuta ubíqua se mistura
ao ambiente, ocupando o espaço, sem se apresentar conscientemen-
te como uma atividade em si. É, ao contrário, ubíqua e condicional,
seguindo-nos de uma sala a outra, de uma construção a outra, de
uma atividade a outra.
Entretanto a idéia da escuta ubíqua como, talvez, o modo dominante
de escuta na vida contemporânea levanta outro problema: esse tipo de
escuta produz e adere-se a um conjunto de normas de gênero?

Um gênero ubíquo?
Gênero vem de Aristóteles e é um termo da teoria literária para clas-
sificação de tipos de textos. “Membros de um gênero têm caracterís-
ticas de estilo e organização comuns e são encontrados em contextos
culturais semelhantes” (BOTHAMLEY, 1993, p. 228). Por estas ca-
racterísticas comuns, então, membros de um gênero podem ser re-
conhecidos. Através da mídia, gênero se tornou um princípio geral
organizador tanto da produção quanto do consumo; como John Har-
tley coloca: “gêneros são agentes de encerramento ideológico – eles
limitam o significado potencial de um dado texto, e eles limitam o
risco comercial das produtoras corporativas” (HARTLEY, 1994, p.
128). Nesse sentido, gênero pode ser entendido como um mecanis-
mo para disciplinar a recepção.

Anahid Kassabian
• 47 •

Franco Fabbri em seu ensaio A Theory of Musical Genres9 de 1982,


cita amplamente uma definição de gênero para estudos da música
popular. Ele vê isso como um complexo de estilos ou recursos musi-
cais, espaços de execução, e comportamento dos fãs/ouvintes – seria
menos uma disciplina do que um campo de atividade. A discussão
de Rob Walser em Running with the Devil10 avança nesse sentido,
combinando a discussão do texto de Jameson com o “horizonte de
expectativas” de Bakhtin: “Gêneros nunca são sui generis; eles são de-
senvolvidos, sustentados e re-formados pelas pessoas, que incorporam
uma variedade de histórias e interesses para seus encontros com tex-
tos genéricos” (WALSER, 1993, p. 27). Dessa forma, um gênero de
música popular é compreendido por incluir tanto as características
musicais compartilhadas quanto as práticas e expectativas do públi-
co. Nas palavras de Stockfelt, estilo, escuta e situação são todos parte
dos processos de construção de gênero.
Em todas as discussões sobre gênero, as características musicais são
concebidas de forma expansiva, indo além do tom, melodia, harmonia
e ritmo para incluir timbre, inflexões vocais e técnicas de gravação.
Tomados em conjunto, um modo de escuta ubíqua e uma cuidado-
sa compreensão de gênero, socialmente fundamentada, podem criar
um gênero denominado “música ubíqua”, que tem, como argumen-
tei, um modo de escuta específico. Ele compartilha certas caracterís-
ticas de espaços de execução – simultaneidade com outras atividades
e falta de fontes. Enquanto inclui uma gama extraordinária de fun-
cionalidades musicais, geralmente é definido por mono reprodução,
ausência de frequências muito altas e muito baixas, ausência de vo-
cais, e uma atenção especial ao volume como condição para as outras
atividades simultâneas.
Obviamente, o problema é que a música ubíqua não depende
apenas de textos que pertencem ao seu próprio gênero, mas sim,
9
Uma Teoria dos Gêneros Musicais (N. T.)
10
Correndo com o Diabo (N. T.)

• Escuta Ubíqua •
• 48 •

congratula-se com todos os textos em um nivelamento pluralista de


diferença e especificidade (o que pode explicar sua parcialidade em
adotar formas de world music11). Talvez este seja um novo tipo de gê-
nero que poderíamos, com ironia, chamar de um “pastiche pós-mo-
derno para-gênero”. Mas acredito que, provavelmente, ele assina a
sentença de morte do gênero como eixo principal para a organização
das atividades de música popular.

Uma subjetividade ubíqua?


Assumidamente polêmica, essa discussão é precursora para repensar
a forma como nos aproximamos do estudo da música e da idéia de
subjetividade. Como cada vez mais tipos de música são tocados em
mais contextos, acompanhando mais atividades, se torna crucial de-
senvolver meios de nos aproximarmos desse fenômeno. Como Gi-
fford coloca:
Muzak antecipou a forma em que vivemos atualmente, acom-
panhados por uma constante trilha sonora de rádio, televisão,
vídeos e filmes[...] O significado real de Muzak é que abriu o
caminho para uma nova cultura ambiente, uma cultura que
nos envolve com música digital e imagens em pixels, protetores
de tela rotativos e pontos de venda com expositores interati-
vos, ocupando todas as áreas de nossas mentes multitarefa (GI-
FFORD, 1995, p. 3-6).

Mas muitos analistas insistem em continuar vendo a indústria


musical em termos muito tradicionais. De acordo com a previsão de
peritos em entretenimento digital12, em um suplemento especial do
jornal The Economist, por exemplo:
Se a indústria da música conseguir resolver o problema da pi-
rataria, a internet se tornará uma importante e gigantesca fonte
de receitas. As gravadoras venderam suas músicas mais uma vez

11
Músicas do Mundo (N. T)
12
Do termo, em inglês, E-entertainment (N. T.)

Anahid Kassabian
• 49 •

quando o CD foi lançado, e agora elas podem vendê-las nova-


mente pela internet. E mais, elas podem vender em pacotes mais
flexíveis para torná-las mais atraentes para diferentes tipos de
consumidores (THE ECONOMIST, 2000a, p. 32).

O que os escritores do The Economist não dizem, e sobre o que


aparentemente nem pensam, são as vastas mudanças sociais ligadas
a essas novas tecnologias. A mesma música será vendida pela terceira
vez em pacotes mais flexíveis, precisamente porque se torna mais fá-
cil usar a música como uma tecnologia ambiental, condicionando e
sendo condicionada por uma nova forma de subjetividade.
Essa terceira venda é um desenvolvimento do mundo ubicomp que
está a caminho. Essa subjetividade não é individual, não é definida por
Édipo ou por qualquer agência ou unidade discreta. O ouvinte dessa
terceira venda não é um mero sujeito, mas sim parte de uma sempre
presente e mutante rede virtual. Ele/Ela não é ouvinte, em primeiro
lugar, de um gênero, mas sim um ouvinte, sem mais. Música ubíqua
é como um cabo que nos conecta a todos, não em uma distopia pro-
dutora de energia “à la Matrix”, mas em uma implantação irregular
de densos nós de conhecimento/poder figurados, por exemplo, pelo
projeto SETI@home. Este projeto utiliza computadores domésticos
quando estão ociosos como uma ferramenta para alavancar o poder
de processamento do projeto de busca por inteligência extraterrestre.
Nesse modelo extremo de computação distribuída, cada computador
doméstico é um pequeno nódulo ou nó em um enorme conjunto de
atividade de computação. Da mesma forma, as pessoas são nós em
um enorme conjunto de escuta.
Há inúmeras tentativas de descrever o que estou fazendo aqui a
partir de diferentes direções – da Xerox PARC a Donna Haraway, e
até Gilles e Deleuze. Em Autoaffections: Unconscious Thought in the
Age of Teletechnology13, Patricia Clough propõe, como ela mesma diz,
“uma nova perspectiva ontológica e um outro inconsciente, ao invés

13
Auto-Afetos: O Pensamento Inconsciente na Era da Tele-Tecnologia (N. T.)

• Escuta Ubíqua •
• 50 •

daquele organizado por uma narrativa edipiana” (CLOUGH, 2000, p.


20). Ao longo do texto, o trabalho funciona em dois gêneros – prosa
acadêmica e poesia em prosa. Não apenas os capítulos, mas também
as próprias alterações de gênero são performances no trabalho desen-
volvido no livro.
Ele abre com um poema em prosa “Television: A Sacred Ma-
chine14”. É um trabalho com um poder admirável, mais boni-
to e mais limpo do que aquilo que costumamos chamar de teoria.
Clough diz: “Minha máquina tem mais peças, mas tem mais ação,
Como a ação das pontas dos dedos anexados às teclas de marfim,
Brincando entre as batidas de uma padronização do metrônomo.”
(CLOUGH, 2000, p. 22)
O nó que normalmente chamamos “eu” está anexado através das
teclas, que fazem martelos acertarem fios, que fazem sons que se ane-
xam a outro nó, o som disciplinado pelo metrônomo para anexar os
nós de modos particulares: “Ainda assim, eu estava destinada por esse
piano. Destinada a encontrar-me anexada a máquinas” (CLOUGH,
2000, p. 25).
Esse anexo é, como sugeri, elemento da ficção científica contem-
porânea. Cyborg, matrix, web, net – todas essas distopias nos ameaçam
com a dissolução das fronteiras de nós mesmos. Mas eles falham em
ver o que Clough ouve: a dissolução já está bem a caminho.
O que estou propondo é uma teoria da subjetividade baseada na
música ubíqua. Acho que devemos chamá-la de subjetividade ubí-
qua. Como na música onipresente, a participação se inicia ou ter-
mina gradualmente na subjetividade ubíqua em certos momentos,
mas ela nunca nos deixa - e nunca a deixamos. Se isso parece sinistro,
não é a intenção. É simplesmente um hábito mental de uma noção
anterior sobre nossa discrição, e já chegou o momento de perceber
que música ubíqua e escuta ubíqua têm forjado uma subjetividade

14
Televisão: Uma Máquina Sagrada (N. T.)

Anahid Kassabian
• 51 •

diferente há algum tempo. Como os Borgs de Star Trek, nós ficamos


desconfortáveis estando desenganchados do som de fundo da sub-
jetividade ubíqua, então ligamos rádios em salas vazias e colocamos
autofalantes debaixo dos travesseiros. Nós desligamos quando uma
conexão telefônica não se mostra disponível pelo som. Preferimos es-
tar conectados, precisamos escutar nossas conexões, não respiramos
sem elas. Já vivemos em uma rede, a qual insistimos em pensar como
um futuro distópico.
Essa subjetividade enredada através da música pode parecer simi-
lar a idéias sobre música e coletividade. Como Eisler e Adorno argu-
mentam em Composing for the Films15 (1947), muitos antropólogos e
escritores, quando tratam de música, sugerem que esta opera de ma-
neira diferente do individualismo oculocêntrico da cultura ocidental.
Eles dizem que a escuta musical:
Preserva comparativamente mais características passadas, de co-
letividades pré-individualistas... Essa relação direta com uma
coletividade, intrínseca ao fenômeno em si, está provavelmente
conectada com sensações de profundidade espacial, inclusão, e
absorção de individualidade, que são comuns a todas as músicas
(EISLER; ADORNO, 1947, p. 21).

Outros escritores não atribuem essa qualidade coletiva à música


por si, mas – de forma correta – observam que música é uma parte
de muitas formações e práticas sociais e diferentes contextos históri-
cos e culturais.
Não estou sugerindo que a música ubíqua tenha reintroduzido
tal identidade coletiva através da música nas sociedades modernas
ou pós-modernas. Longe disso. O que estou discutindo é que a mú-
sica ubíqua se tornou uma forma de comunicação fática para o ca-
pitalismo tardio – seu propósito é manter os canais de comunicação
abertos para aquela implantação irregular de densos nós de conhe-

15
Compondo para os Filmes (N. T.)

• Escuta Ubíqua •
• 52 •

cimento/poder que nos denominamos. Nós somos “Borgs” porque


consciência isolada – silêncio – é extremamente desagradável.
À medida que continuamos através do segundo século de desarti-
culação de performance e escuta, novas relações estão se desenvolven-
do e exigem novos modelos e abordagens. É fácil ver que a indústria
está mudando. Talvez seja mais difícil ouvir as mudanças na música,
na escuta e na subjetividade que tudo isso prenuncia. Ainda assim,
músicas, tecnologias, ficção científica, relações sociais e subjetivida-
des têm fermentado essas mudanças no decorrer do século XX. Ao
menos no mundo industrializado, escutar música é ubíquo, e forma
a espinha dorsal da rede de uma nova, e ubíqua, subjetividade.

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Anahid Kassabian
Peter Ludes

COMPASSOS CHAVE E EXPERIÊNCIA


SENSORIAL PLENA1

O mecanismo industrial no mundo inteiro trabalha para fazer uma


coisa mais superficial a fim de que seja descartada e substituída rapi-
damente... Essa mediocrização geral da música e da cultura popular
é uma coisa universal, não só do Brasil. (MEDAGLIA, 2010).
No desenvolvimento humano, assim como na sociogenese das so-
ciedades humanas e também na psicogênese de embriões individu-
ais até a morte, interpretações e significados (TOMASELLO, 2008,
2009) têm papel formador, e em todas as culturas os movimentos
dançantes, cantos e música se completam com instrumentos.
O desenvolvimento técnico das mídias desde o século XX permi-
te e promove a combinação sempre maior de imagens estáticas e em
movimento com música. Nas históricas, inovadoras e repletas corren-
tes de imagens de mídia, tecnicamente produzidas e amplamente dis-
tribuídas, “Pessoas Âncora” e “Imagens Chave” tornam-se essenciais
como marcas de reconhecimento – assim como “Compassos Chave”
ou parte de “Melodias Chave” facilmente reconhecíveis.
Modos e limites Antropológicos de ganho da atenção e formação
da memória pré-formam esses processos. As técnicas socioeconômi-
cas de mídia respectivamente à disposição (câmeras, microfones, sis-
temas de gravação e armazenagem, tamanho das telas, qualidade dos
alto-falantes, entre outros) emolduram o modelo de desenvolvimento
de Imagens-Chave, Compassos Chave e Imagens Compassos Chave
1
O autor agradece a Kurt H. Wolff, mestre e amigo, de 1974 até 2002; a Norbert Elias, mestre de
1980 até 1990 e a Leonardo Boccia, que desde 2004 o introduziu nos componentes musicais das Au-
dio Visões. Uma versão inglesa deste artigo estará disponível em Ludes a partir de 2011; o texto é parte
de um capitulo chave do manuscrito para o livro de introdução à midiologia internacional. Agradeci-
mentos especiais também à DFG, que apoia o projeto SchlüsselBildMusik 2009 und 2010. Tradução
de Leonardo Boccia.
• 57 •

(LUDES, 2001, 2005, 2010; BOCCIA; LUDES 2009; BOCCIA


2010).
Convenções culturais diferenciam como naturalmente aceitáveis
“Evidencias” e “permanentes não visíveis”, ou encerradas, assim como
audíveis leve e superficialmente “não audíveis”. Estratégias profissio-
nais de mídia são planejadas neste contexto para empurrar Imagens e
peças musicais para o primeiro plano e tentam, por motivos comer-
ciais, políticos, religiosos ou culturais, excitar ou impor atenção.
A website www.keyvisuals.org, patrocinada pela Deutsche Forschun-
gsgemeinschaft, e a Jacobs University Bremen, desde 2004 oferecem
seleções sistemáticas de apresentações das ciências humanas, sociais
e computacionais para Imagens Chave – e em uma categoria própria
para Imagens e Compassos Chave, em relação com Imagens Chave:
Imagens Compassos Chave ou SchlüsselBildMusik. Mais abrangentes
que os Compassos Chave são os Tons Chave ou ainda a Áudio Chave
(como parte de estratégias sonoras e convenções). Publicações nes-
ta website discutem o audiovisual e devem ser compreendidas como
complemento para este texto.
Em tal conjunto demonstrativo podem ser reconhecidas as se-
guintes continuidades e mudanças das Tele-Weltanschauungen como
“grandes narrativas audiovisuais” no Brasil, Alemanha e Estados Uni-
dos durante a primeira década do século XXI:
O Brasil se apresenta como uma sociedade rápida e modernizante
no consumo e na industrialização. O presidente da república, Lula,
aparece como um líder mundial no mesmo nível de outros lideres
mundiais, como os presidentes dos Estados Unidos, George W. Bush
e Barack Obama.
O chanceler alemão Gerhard Schröder (até 2005) e Angela Merkel
(desde 2005) são mostrados frequentemente junto a outros políticos
alemães e internacionais, mas também junto a cidadãs, cidadãos e
jornalistas. Isso aponta para seu controle democrático e para o cres-
cente poder de auto-representação do jornalismo. Retrospectivas dos

• Compassos chave e experiência sensorial plena •


• 58 •

60 anos de República Federal e dos 20 anos de reunificação destacam


essa tendência.
Os Estados Unidos são reconhecidos pelos ataques terroristas de 11
de setembro de 2001, pelas reações bélicas no Afeganistão e no Iraque,
além da extensão da crise nas finanças e na economia – 2008/2009 –
e por uma re-regulamentação do mercado financeiro através do pri-
meiro presidente afro-americano.
Especialmente por meio de programas televisivos de informação (LU-
DES, 2001) podem ser reconhecidas observações culturais, de mídia
específica e padrões de negligência, como auto-observações universais
das modernas sociedades “massas mediadas”. Essas são formatadas em
narrativas audiovisuais relativamente pequenas, curtas, claras e super-
ficiais, com poucos atores, acontecimentos, locais, Imagens ou Com-
passos Chave. Práticas culturais e de mídia específica, de mostrar e ver,
estabelecem e fortalecem hábitos de ver e ouvir que ‘obviamente’ e ‘au-
divelmente conhecidos’, ‘mais importantes do dia ou dos anos’, ‘de toda
parte’, apesar das perspectivas nacionais, especialmente no Brasil e nos
Estados Unidos, não abrirem quase janela alguma para o mundo.
Além disso, os interesses de lucro imprimem a utilização constante de
novos formatos de mídia, principalmente no noticiário para o espetácu-
lo (LUDES, 1993). ‘Imagens e Compassos Chave’ servem não apenas
como marca de orientação, mas também como meio de sedução, para
os quais Chaves Invisíveis e não-audíveis complementares trazem sem-
pre maior desorientação. Notável é, por exemplo, o aumento de adições
de música em programas de informação da ARD, ABC, CBS e NBC,
em contraste com os anos sessenta e oitenta do século XX. Na época, a
música de fundo era expressamente proibida (LUDES, 2001), e agora
é normal, embora muito mais na Rede Globo do Brasil. Elas estão, em
geral, adicionadas como estímulos emocionais audíveis e classificações
que na narração verbal são (ainda?) malvistas.
Desta maneira, Imagens Chave emolduram e ordenam narrativas,
e os Compassos Chave lhes emprestam a melodia. Isto significa uma

Peter Ludes
• 59 •

massiva transmissão de sensações, o mundo se torna leve, transpa-


rente e ainda divertido. Assim, complexas relações são veladas. Essas
precisam da atenção das mídias alternativas, como os relatórios para
o desenvolvimento humano da UNESCO ou a exposição de siste-
máticas negligências através de www.projectcensored.org (à procura
de parceiro brasileiro de universidades e do jornalismo investigativo).
Também comparações históricas e interculturais podem demonstrar
o que se ganha ou se perde em “esclarecimento”.
O inovador registro de Compassos Chave, ou (mais abrangente)
Sons Chave, ou ainda Áudio Chave é resultado de alguns anos ape-
nas (BOCCIA; LUDES, 2009) - ao contrário das Imagens Chave,
que desde o final dos anos oitenta do século XX são sistematicamente
estudadas (LUDES 1993, 2001, 2010; KRAMER; LUDES, 2010).
A descoberta de modelos da representação audiovisual, até agora re-
lativamente oculta, por exemplo, de chefes de estado frente a pessoas
comuns na televisão permite que “essas relações petrificadas obrigam
por isso a dançar, que se pode cantar-lhe sua melodia!” (Karl Marx,
‘Crítica da filosofia do Direito de Hegel’ 1844, MEW 1, p. 381). Isto
ampliou dois dos sentidos humanos (ao mesmo tempo que reduziu
os outros): ver e ouvir, que destacam-se e ajudam no avanço dos de-
mais sentidos.
Como Trabant explica (p. 24-27), a expressão dos que falam, o
apelo aos ouvintes e a representação do mundo são consideradas di-
mensões básicas do falar. À dimensão semântica está acoplada uma
dupla organização,
(...) porque por um lado o mundo é organizado por unidades
de pensamento e porque essas, por outro lado, são ligadas à or-
ganização da fala material e dos dizeres. O ser humano cria na
fala certos conceitos, conteúdos, ideias, significados, isto é: cria
certa grandeza sonora, que está ligada aos conceitos (!) ‘conte-
údo’ do mundo. Esta, assim chamada primeira organização, a
organização do mundo em unidades de pensamento é sempre
ligada a certos sons. [...] Este enorme mundo é feito de ‘con-
teúdos’ – e por isso trata-se de uma organização dupla – ligada

• Compassos chave e experiência sensorial plena •


• 60 •

a sons organizados que o falante produz e que remete para ou-


tras pessoas, que o escutam e tem que ‘entender’. (TRABANT,
2009, p 26-27).

A comunicação não verbal forma “ao mesmo tempo as bases vi-


suais da cooperação auditiva” (TRABANT, 2009, p. 34). Aqui não
é preciso decidir se “formas de expressão, que não sejam duplamen-
te organizadas... simplesmente não são linguagens”, e se a discussão
acerca das estandardizações mediadas massivamente continua digna,
se vale; Imagens, por exemplo, não são duplamente estruturadas: O
material e o conteúdo são estruturalmente idênticos. Música não é
duplamente estruturada, ela é certamente (frequentemente) estru-
turada, mas não possui semântica no sentido da linguagem (TRA-
BANT, 2009, p. 57).
A abertura da fala e do cantar para novas interpretações constitui
um elemento das inovadoras competências para entender o mundo,
que por meio de convenções é cada vez mais próximo individualmente.
Esse tipo de memórias coletivas audiovisuais continua dependente de
uma previsível quantidade de elementos-chave, cujo grau de interna-
cionalização, por exemplo, pode ser entendido da seguinte maneira: 1)
Imagens Chave e Compassos Chave como parte de cultura específicas
nas mídias de massa audiovisuais distribuídas em comparação com as
transculturais; 2) diferenciação segundo grupo de atores, campos te-
máticos ou principais acontecimentos; 3) novos tipos emergentes de
composição visual como “Imagem Música Chave”.
Para isto, os hinos nacionais oferecem indicações (www.nationa-
lanthems.org). Seus símbolos auditivos mostram sensações bem di-
ferentes de destino e esforços (que são frequentemente ligados com
a bandeira nacional e acontecimentos especiais).
O Brasil, por exemplo, com seu povo heróico, que para a amada,
endeusada pátria, é um sonho vivaz, um raio de vida, de amor e es-
perança, gigante por sua própria natureza, a amada mãe do sol des-
se país.

Peter Ludes
• 61 •

Por outro lado, a China declara: “Levante! Nós não queremos


ser escravos. A nova grande muralha é feita de carne e sangue. Pois
o povo chinês levita sobre grande perigo. E o grito reprimido clama:
Levante! Levante! Levante! Com mil ventres, mas em um só coração,
apesar dos canhões inimigos: Em frente: Apesar dos canhões inimi-
gos: Em frente! Em frente! Avance!“
Alemanha: “Unidade e Direito e Liberdade... são o penhor da fe-
licidade”.
Índia: “... Himalaya, Vindhya, as santas nascentes de Jamna e Gan-
ga, as ondas do oceano... implorando misericórdia que desejo”.
Estados Unidos: Perigo de luta... e os raios da batalha... sobre nos-
so livre país, onde está o valente lar”.
Nesses rituais auditivos comunitários, a força comunicativa da
música vem para dar suporte: “A expressividade da música começa
onde a das palavras termina. Isto sustenta a ampla suposição de que
a música é em sua essência não referencial e, portanto, não tem sig-
nificado no sentido semântico comum” (Kramer 2006: ix). Como
Kramer continua afirmando, a música tem significações discursivas
que são parecidas com as do texto literal, ou que as praticas culturais
podem ser interpretadas e não se encontram fora da música, contu-
do, são processos formais ligados entre si a não resolvidos e formas
de expressão estilísticas (Do sentido político da “Música de massa” nas
mídias de massa e países diversos, GAROFALO, 1992).
Imagens Chave transmediais mostram claras situações, geralmente
com um, dois ou, na maioria dos casos, poucos atores principais. O
tipo de resultado é espacialmente limitado e frequentemente adornado
por símbolos. Perspectivas extraordinárias se referem a esses enquadra-
mentos. Neste sentido, há décadas a propagação de Imagens Chave
e tipificações aparecem tanto como indicadores de desenvolvimento
cultural quanto como uma componente intergeracional, “o óbvio”,
que exatamente por isso são tão raramente examinados. Portanto,
trata-se de certas rupturas de informação, sobretudo em situações de

• Compassos chave e experiência sensorial plena •


• 62 •

comunicação, padrões e formatos de apresentação e modelos de nar-


rativa no contexto de atuação a longo prazo sobre as convenções e
cada vez mais especiais culturas de mídia. Eles são constituídos por
línguas faladas e escritas e experiências imediatas. A “igualdade” ou a
”semelhança” das imagens de mídia sugere, neste caso, muitas vezes
identidades a serem questionadas em contexto multimodal.
Portanto, nas primeiras décadas do século XXI temos que nos
preparar para novos equívocos que estão sendo sugeridos pelas “se-
melhanças óbvias” de imagens. Dependendo da geração de meio es-
pecífica e ambientes específicos e da participação em várias mídias
de massa e contextos visuais para grupos-alvo específicos, bem como
de suas habilidades específicas e degradadas.
A comunicação, portanto, pressupõe um ambiente simbólico
compartilhado, uma relação social entre os que participam...
Ela envolve a interação de palavras e gestos, o calor da proxi-
midade humana e na verdade todos os cinco sentidos... É uma
comunicação total que leva para dentro de sua bússola palavras,
movimentos corporais, características físicas, odores corporais e
até mesmo roupa (KUMAR, 2005, p. 7-9).

“A comunicação de massa” em sociedades como a China ou a Ín-


dia raramente alcança grande parte da população por longo tempo.
Filmes, televisão (cor e satélite) e, certamente, a Internet, continu-
am disponíveis apenas para minorias. Por isso, uma transferência de
teorias ocidentais de comunicação para sociedades não-ocidentais é
problemática: elas costumam estar ligadas ao contexto específico de
urbanização, industrialização e democratização. Como Kumar (2005,
p. 37), para a Índia, explica:
(...) ainda a cultura de ‘massa’ em nosso país é, em geral o que
prevalece nas nossas aldeias, onde mais de 77% da nossa popu-
lação vive, e onde a cultura indiana é pouco tocada pela mídia
de massa... Folk media continuam a fornecer a fonte principal
de entretenimento, e assim de instrução e educação em matéria
religiosa, social, econômica e política.” (2005, p. 40)

Peter Ludes
• 63 •

Como exemplo instrutivo, Kumar sugere elaborar uma lista de dez


palavras que mais despertam sentimentos, com suas conotações e as-
sociações. O mesmo deve ser feito para Imagens e Compassos Cha-
ve. Pois o problema universal de orientação e comunicação humana
em sociedades que se comunicam em grande parte através das línguas
faladas e escritas, são as palavras acerca da experiência e ideias, me-
dos, ansiedades e esperanças de encontrar algo. Estes desafios incluem
sempre mais urgentes processos de globalização nas comunidades lin-
guísticas. A formação da opinião pública é condição e expressão de
uma tomada de decisão que não é marcada apenas pela comunidade
linguística, mas por mídias bem diferentes: mídias pessoais e eletrô-
nicas, impressa, rádio e mídias web. Elas funcionam não apenas como
meios de orientação e coordenação para todas as ações contemporâ-
neas, mas também ao longo de gerações.
Com as modernas condições que a humanidade possui de destruir
a si mesma e o planeta com armas nucleares de destruição em massa
ou ‘repositórios’ nucleares, o desenvolvimento da orientação a longo
prazo se torna sempre mais importante. Pois até mesmo o desenvol-
vimento do ‘tempo’ como meio de coordenação partilhada precisou
da convergência de séculos de processos tecnológicos, econômicos,
políticos e culturais, que levaram nos anos recentes para fusos horá-
rios quase universalmente reconhecidos e respeitados e a uma corres-
pondente ligação de tempo universal. ‘Tempo’ como uma ferramenta
de orientação e comunicação a durar mais que línguas faladas e es-
critas e, finalmente, ele é sempre novamente otimizado, usado fle-
xível e diferentemente. A identificação, classificação e interpretação
de imagens e música, portanto, pode também fornecer, a longo pra-
zo, evidências para a multimodalidade e ambiguidades no processo
de comunicação.
O significado especial do YouTube para a (auto) apresentação au-
diovisual está aqui, entre outras coisas, em uma nova redução e con-
solidação, internacionalização e de profissionalização de

• Compassos chave e experiência sensorial plena •


• 64 •

até que ponto o clip desafia a estética tradicional, por exem-


plo, a textualidade, episódica e narrativa de série documental,
e, portanto, o pré-requisito básico de ensino e pesquisa? E sobre
as relações entre “vídeo-livre-para-baixar” e dispositivos móveis,
entre mashup software e hardware patenteado? Como as promes-
sas de fortalecer a “televisão do futuro” (YouTube) correspon-
dem à realidade das carreiras de radiodifusão e de filmes para as
estratégias de participação e de gestão de fãs? E finalmente: se o
YouTube deve ser considerado como o maior arquivo do mun-
do, com os textos e como as práticas associadas com trabalho a
favor e contra o uso da memória cultural? (SNICKARS; VON-
DERAU, 2009, p. 17).

Também já podem ser reconhecidas mudanças de formatos:


Em 15 de janeiro de 2009, a companhia de blog do YouTube
anunciou uma versão beta do YouTube para televisão: ‘um pro-
cesso dinâmico, de ‘retorno enxuto’ (lean-back), de experiência
de visualização com televisão de 10 pés através de uma interface
simplificada que lhe permite descobrir, assistir e compartilhar
vídeos no YouTube em qualquer tela de TV com apenas alguns
cliques do seu controle remoto. [...] Opcional a capacidade de
auto-play, que permite aos usuários viabilizar vídeos relacionados
em sequências, imitando uma experiência da televisão tradicional.
O site de TV está disponível internacionalmente em 22 regiões e
em mais de 12 idiomas. Foi lançada a versão beta do Sony PS3 e
dos jogos eletrônicos Nintendo Wii, mas o YouTube já lançou o
desafio e anunciou que planeja ampliar suas interfaces de plata-
forma. Emulação como uma estratégia que pode ainda se tornar
um circulo completo (URICCHIO, 2009, p. 37).

Geralmente pode-se dizer que a World Wide Web tem expandido


e fragmentado as redes de comunicação.
Isto é porque a Internet pode ter um efeito subversivo na vida
intelectual em regimes autoritários. Mas, ao mesmo tempo, o
menos formal, horizontal cross-linking de canais de comunica-
ção enfraquece as conquistas da mídia tradicional. Isso focaliza
a atenção de um público anônimo e disperso sobre os tópicos
selecionados e as informações, permitindo aos cidadãos se con-
centrar criticamente nas mesmas questões filtradas e em peças
jornalísticas, num em um dado momento. O preço que paga-
mos para o crescimento do igualitarismo oferecido pela internet
é o acesso descentralizado às histórias inéditas. Neste meio, as

Peter Ludes
• 65 •

contribuições de intelectuais perdem o seu poder de criar um


foco (SØRENSSEN, 2009, p. 142).

No entanto, existem continuidades na narrativa audiovisual:


Como um local para explorar espaços roteiros, o YouTube ainda
está entre algumas das principais tradições de narrativa (novela,
cinema). Próximo do cinema na sua utilização de segmentos visu-
ais extraídos de diferentes mídias (narrativa, performativa), o You-
Tube, enfim dá a ilusão – como o romance realista, mas também
como donos do YouTube, Google – de uma espécie de totalidade,
um universo inteiro. Com a diferença de que um romance sugere
uma palavra (entre muitas), enquanto o Google sugere o mundo:
se você não consegue encontrá-lo no Google ou no YouTube, mui-
tas pessoas parecem acreditar que não existe, ou não vale a pena
conhecer ou ter” (ELSAESSER, 2009, p. 168).

Assim, a autoria múltipla dos contos YouTube, ao se juntar com


a seletividade e serenidade do usuário, torna o YouTube um expe-
riência muito ‘marcante’. Mas o modo do discurso que eu estou
tentando focar também é diferente do ‘marcante’, na medida em
que cria um espaço vazio da enunciação, a ser preenchido pelos
anônimos, mas também por um plural ‘eu’. Por outro lado, um
site como o YouTube vicia inerentemente como um vídeo que
se arrasta ao longo de um para outro e outro e outro. No en-
tanto, após uma hora ou algo assim, percebe-se como cada um
está em um balanço precário e delicadamente equilibrado, entre
a alegria de descobrir o inesperado, o maravilhoso e, ocasional-
mente, até mesmo as milagrosas e rápidas descidas em uma an-
siedade tão palpável, olhando para o vazio de uma quantidade
inimaginável de vídeos, com sua proliferação de imagens, sua
banalidade ou obscenidade em sons e comentários” (ELSAES-
SER, 2009, p. 183).

Google colocou no mercado os hits do YouTube:


Quando apresentou propaganda para começar a cada quinze se-
gundos após cada vídeo e começou a cobrir um quinto de cada
tela, onde alinharam primeiro o anunciante? News Corporation,
20th Century Fox, New Line Cinema e Warner Music. Durante
as Olimpíadas de 2008, o YouTube / Google reivindicou a res-
ponsabilidade corporativa social beneficente em fazer destaques
disponíveis on-line, mas escondeu as mesmas imagens e sons de
telespectadores nos EUA. Por quê? A principal preocupação da

• Compassos chave e experiência sensorial plena •


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empresa foi se dar bem com a General Electric (o massivo for-


necedor de armas e poluidor que possui a NBC-Universal), que
detinha os direitos exclusivos para os eventos nacionais de TV.
Há um espaço do vídeo patrocinado, de forma eficaz, um siste-
ma de licitação no local para a colocação de produtos em que os
anunciantes buscam os materiais que eles gostam, onde o You-
Tube abriga seus comerciais” (MILLER, 2009, p. 428).

Em setembro de 2010, o YouTube manteve as seguintes 14 cate-


gorias, indicando-as como sinais de trânsito: Automóveis & Veículos,
Educação, Comédia, Cinema & Animação, Filantropia, Gente & Blo-
gs, Notícias & Política, Turismo & Eventos, Jogos, Esportes, Animais,
Dicas & Truques, Ciência, Entretenimento & Tecnologia. Idiomas,
também buscas YouTube e representações implicam em dissonâncias
e desorientação, excomunhão e mal-entendidos. A multiplicação dos
sistemas comuns de técnicas de sinais nas áreas da língua nacional são
transtornos mais propensos a aumentar. Isto dá origem a novos mal-
entendidos e, para superá-los, devem ser estabelecidas novas lingua-
gens e estudos de mídia, para os quais se demandam investimentos,
em detrimento das estabelecidas ciências naturais e das engenharias e
com patrocínio especialmente para a ciência militar.
Assumindo com Habermas que o Telos do entendimento está en-
volvido no discurso da linguagem humana, ainda continua a ser evi-
dente que expressões da cultura e contextos específicos, bem como as
associações não-verbais e julgamentos são condições para o discurso.
Só com eles pode se começar, terminar e se ter implicações práticas.
As referências às memórias partilhadas, os argumentos, fatos, afirma-
ções dúbias e sem crenças compartilhadas contextualizam cada ele-
mento do discurso.
A intenção de se engajar no discurso verbal e continuá-lo, de
concordar com o Telos do entendimento mútuo baseia-se na íntegra
de experiências sensoriais. O que é reconhecido como tão comum
quanto convincente ou experiente, dificilmente é reconstruído como
cadeias de referência não mais compreensíveis em palavras. Estas

Peter Ludes
• 67 •

formas de comunicação como formas de vida (conhecidas como o


primeiro vencedor no colégio de graduação) estão ganhando im-
portância, logo que a língua materna, ou outras línguas de fala co-
mum “controlada” falam ao espírito, que desiste da construção da
comunidade.
Apenas experiências sensoriais completas, integradas e integrais
estabelecem certezas entre linguagens. Isso não requer que se lance
mão de forças transcendentais da humanidade para se refugiar (como
fazem alguns filósofos do século XX). Recentes estudos de antro-
pologia cultural e psicologia do desenvolvimento (TOMASELLO,
2008, 2009) ilustram um pouco o terreno comum da percepção hu-
mana do falar-sentidos humanos e significados. O que aqui se baseia
em formar pontes sobre provavelmente eternas lacunas semânticas,
onde a dúvida, de outro modo, permaneceu insuperável, contami-
nada e inaceitável.
O conceito de Kurt H. Wolff, “Devoção e Conceito” ou “Rendi-
ção e Captura” (WOLFF, 1976, 1981; LUDES, 2003b) é baseado nas
experiências de captura total das pessoas com todos os seus sentidos,
que assumem novos significados, conceitos ou “captura”. O (raro)
devir da consciência de certos valores ou vínculos, passa para além
dos grupos tradicionais e das áreas de linguagem. A explicação para
isso e porque foi obtida a completa teoria do discurso, pois: apenas
o que é dado sem dúvidas motiva e, nesse sentido, justifica o início e
o fim, bem como as consequências práticas.
Em 2004, Habermas especificou bastidores biográficos de sua te-
oria da ação comunicativa. Isto foi provavelmente motivado por seu
defeito pessoal na fala. No todo, o mais importante é que sua teoria
da ação comunicativa é mais concentrada do que as experiências co-
municativas. Assim, ele concentrou-se mais na tradição de Max We-
ber em um processo de racionalização dominante do que em Georg
Simmel, que enfatizou as ambiguidades das experiências e dos pro-
cessos de modernização.

• Compassos chave e experiência sensorial plena •


• 68 •

Habermas (1981, 439-446, v. 1) concentrou-se em atividades ex-


pressas em palavras, que são feitas com palavras. Em sua teoria, ex-
periências plenas de ações dramáticas são as mais próximas. Elas são
expressivas e solicitam verdades existenciais ou autenticidade nas re-
lações pessoais. Mas cada discurso exige o reconhecimento do Outro,
aceitar ele/ela para ouvi-lo (a), para ele ou ela ser considerado (a) con-
fiável. (MÜNCH, 2004). Imagens históricas (sagradas), restrições de
tradições que “evaporam” em fases seculares de modernização (que se-
guramente não aumentam facilmente). Portanto, permanecem como
existenciais e absolutas (no tempo) e experimentam certas condições,
especialmente para a globalização de novos discursos.
Em um artigo sobre Karl Jaspers, Habermas argumenta sobre o
problema da comunicação em face de um ‘choque de civilizações’
em potencial:
(...) eu entendo o reconhecimento de que a compreensão cultu-
ral só pode ter sucesso em condições de simétricas e estendidas
liberdades e prévias recíprocas tomadas de perspectivas. Só en-
tão pode se desenvolver uma cultura política que se torna sen-
sível também para os direitos fundamentais das pessoas ou para
a institucionalização da condição de uma comunicação adequa-
da”. (HABERMAS, 1997, p. 58)

Desde a real ameaça à sobrevivência da humanidade, através de


novos meios de destruição em massa, novos meios de comunicação
de massa também tiveram de ser desenvolvidos ao longo de gerações.
A televisão via satélite global e a World Wide Web levaram à procura
por “Imagens-Chave” de riscos militares, terroristas, catástrofes am-
bientais ou econômicas, para as quais já existem vários exemplos atu-
alizados (KRAMER; LUDES, 2010). Bilhões de pessoas podem nesse
ínterim partilhar transmissões audiovisuais de catástrofes da mídia de
massa, obviamente em diferentes graus de preocupação.
Por meios dessas, são transformadas experiências existenciais sen-
soriais plenas: a paixão é transformada em compaixão leve. Mesmo
assim, criou-se também novas redes de solidariedade e consciência

Peter Ludes
• 69 •

de dependências comuns. Até que ponto essas experiências pessoais


podem ser deixadas para trás ou precisam estar conectadas novamen-
te, é uma outra questão.
As mudanças de equilíbrio e fenômenos de tombamento de expe-
riência e observação formais (incluindo voyeurismo) exigem inves-
tigações em ciências sociais e culturais. Pois apenas o foco sobre os
tipos de ligações anteriores de uma experiência audiovisual sensorial
plena permitirá introvisões sem cortar arbitrariamente os contex-
tos. E somente aqueles que conscientemente experimentam e en-
tendem as conscientes bi- e multi sensorialidade poderão esclarecer
a cegueira tradicional. As chaves do entendimento dos processos de
comunicação multimodal estão além das gerações vivas. Isso também
requer novas justificações de certeza: essas não podem ser baseadas
apenas na experiência individual ou contemporânea, mas exigem o
diálogo entre as gerações distantes das atualmente vivas. Testes de
certeza e dúvida Intercultural e intergeracional exigem suas próprias
instituições para além do discurso já problemático da linguagem.
Além deles, o Telos de um entendimento comum da comunicação
não está montado.
Verdades existenciais oferecem uma oportunidade para fazer con-
tato com os discursos de experiências, a ação comunicativa, com os
testes intra-subjetivos. Quando as pessoas se concentram mais no
que eles compartilham, os direitos e as obrigações dos seres huma-
nos, a liberdade da violência e da fome, a discriminação e a fraude,
eles realmente desenvolvem orientações equitativas e de comunica-
ção onde estes princípios se tornam mais adequados do que na atual
mídia dominante.
Na teoria do discurso de Habermas já existem métodos para isso,
especialmente na sua teoria da Ação Comunicativa. Habermas (1981,
p. 585, v. 2) postulou três setores sociais: a ciência, a ética e as artes,
que transcendem aos sistemas funcionais de política ou economia.
Em 1999 ele enfatizou a participação do outro. Foi reconhecida a

• Compassos chave e experiência sensorial plena •


• 70 •

importância da religião como fonte de transcendência e específicos


talentos da fala para pessoas sofridas (HABERMAS, 2001ª; LALON-
DE, 1999). Semelhante ao diagnóstico de Wolff, de uma mudança
radical da ameaça de bombas atômicas sobre a humanidade, ver Ha-
bermas (2001b, p. 125), novos tipos de desafios históricos são oriun-
dos da engenharia genética:
Mudamos as práticas do mundo da vida e da comunidade polí-
tica em pressupostos da moralidade racional e direitos humanos,
porque eles têm uma base comum para oferecer uma existência
digna acerca das diferenças ideológicas. Talvez se possa, por mo-
tivos semelhantes, explicar e justificar hoje a efetiva resistência
contra as temidas mudanças nas identidades das espécies. (HA-
BERMAS, 2001b, p. 125)

Maiores evoluções nos estudos de mídia internacional requerem,


portanto, a reconexão a discursos globalizantes, que se sobrepõe a
gerações e procuram sensatas razões existenciais. Eles exigem a supe-
ração do ego e dos culturacentrismos, assim como o foco exclusivo
sobre as expectativas individuais de vida.
Por que é que a “pre-visão” para se pensar mundialmente, em di-
versas formas e padrões de desenvolvimento, as experiências sensoriais
plenas se tornam importantes – e não mais “amputações” (McLuhan)
- percepções e significados mediados?
Por um lado, a maioria da população mundial, provavelmente até
ao final do século XXI, especialmente nas zonas rurais, continuará a
tentar evitar ou satisfazer com cada fibra de seu corpo e com os sen-
tidos da força da natureza o controle físico direto por outras pessoas.
Só a contínua superação da fome, sede, falta de moradia, ferimentos
e misericórdia permite reduções sensoriais estéticas e técnicas de atos
comunicativos como coordenadores naturais.
Neste sentido, co-existem em todas as sociedades humanas ime-
diatas limitações físicas e incentivos mesmo em um futuro distante,
inevitável na educação infantil, na prevenção da saúde ou no aten-
dimento de emergência Esta emoção real por pele de criança, boca,

Peter Ludes
• 71 •

nariz, orelhas e olhos procede cada compreensão própria e a adicio-


na como experiência.
Mais amplamente, para cumprir as funções elementares de sobre-
vivência física através de alimentos e habitação, os grupos humanos
dependem uns dos outros, do controle da natureza e de outras pes-
soas, bem como de assegurar a compreensão de emissão de orienta-
ção e de ferramentas de comunicação, quanto mais forem distantes e
sensorialmente reduzidos; assim acontece também com a percepção
extra-sensorial. Todos os sentidos têm espaços perceptivos próximos,
que até agora foram globalizados por tons, ruídos, música, assim
como imagens e sequências de imagens por meio de telemassivos au-
diovisuais e mídia em rede. Mas, por outro lado, “o óbvio” não são
apenas as construções visíveis, mas, de tempo em tempo, e sempre
por muito importantes desafios, referem-se às experiências sensoriais
plenas, ponto onde se pode ter certeza de que algo está de fato assim
e não só efetivamente na aparência.
A integração dos diferentes chips de comunicação é cada vez
mais importante, porque os custos do terrorismo e os ambientais,
ou custos ecológicos, bem como a exclusão de grandes grupos de
pessoas se tornam impagáveis, e porque os direitos humanos e as
obrigações em geral devem ser apoiados. Ou seja, devem ser de-
senvolvidas novas “mídias ponte“, que incluam a áudio-visão do
significado e propósito, várias perguntas para esclarecer o signifi-
cado em diferentes contextos. Somente através da co-evolução de
mídias multimodais será complementada a divulgação de mídia em
rede, de maneira que não mais se produzam absurdos. E só quando
essas relações se tornarem evidentes em estudos internacionais de
mídia, esses estudos, que têm menos para a continuação do proces-
so de nacionalização e viés sensorial, contribuirão para tanto. Para
este efeito, surgem, além dos sites da Web, fóruns e redes móveis,
e a formação de ilhas multimodais e sensorialmente completas,
que conectam o espaço da infância com espaços do inconsciente

• Compassos chave e experiência sensorial plena •


• 72 •

coletivo, para as quais o poema conclusivo pode transmitir um


pressentimento.

Pátria global
Sentir por dentro, e dentro de um período de nove filhos se
alegrar
Arrastar medos, sentir a natureza da água, chupar brotos
Morder caminhos e deixá-los ativos secretamente
E pode cheirá-los - smell it out
Assim chega-se ao sabor
Compreendes depois e vês antes, ouves em breve além da es-
quina
Dê um sentido aos sentidos em conjunto
Compreender partes vagamente
(este é o primeiro dia...)

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Boston studies in the philosophy of science. Dordrecht and Boston: D.
Reidel. 1976. v. LI. Leonardo Boccia

Peter Ludes
Leonardo Boccia

CHAVES AUDÍVEIS

Para uma definição de compassos chave e audiosfera virtual na tv


Por audiosfera virtual entende-se aqui toda a dimensão audível pro-
duzida tecnicamente para os diversos equipamentos eletro-eletrônicos
em que produções audiovisuais são reproduzidas ou transmitidas por
meio de telas e sistema de som acoplado, assim como TV, computa-
dores, telefones móveis, cinema, mp4 e outros.
Discutimos a seguir o uso da música na produção e na pós-produ-
ção de programas-espetáculo televisivos, em que Imagens Chave de
acontecimentos mundiais, considerados proeminentes por influentes
companhias de mídia, são acompanhadas por Compassos Chave de
músicas ou gêneros musicais bem conhecidos com o intuito de atrair
a atenção e de entreter a gigantesca audiência mundial.1
Em geral, a música usada para tal fim é composta por partes de
canções da música pop amplamente divulgadas ao longo dos últi-
mos 60 anos: melodias tradicionais, hinos nacionais, motivos popu-
larmente conhecidos da música clássica e outros motivos de sucesso,
de caráter geralmente leve e divertido, na hegemônica indústria fo-
nográfica transnacional.
Assim, enquanto as Imagens-Chave, em alguns casos, mostram
acontecimentos trágicos, infortúnios, catástrofes naturais, acidentes,
mortes e cenas de guerra, a música escolhida para acompanhar esses
acontecimentos tem a função de aplacar e velar a dimensão visual.
Portanto, emerge um novo conceito necessário ao entendimento da
audiosfera virtual televisiva que chamamos aqui de “des-dramatização
da narrativa visual”, ou seja: a ação planejada em fase de pós-produ-
ção, de mascarar a expressão dramática das Imagens-Chave.
1
Ver Ludes 1993, 2001, 2010; Boccia; Ludes 2009; Kramer; Ludes 2010.
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Os conceitos acima servem para cercar o ambiente multimídia,


especificamente da televisão, na tentativa de descrever os fossos se-
mânticos que emergem dessas composições de Tele-Weltanchauung,
por meio das quais são descritos e mostrados massiva e diariamente
os acontecimentos mundiais considerados proeminentes.
Aqui, pretende-se detalhar o conceito de Compassos Chave pen-
sado e utilizado desde 2005, quando se iniciou a intensa cooperação
internacional com o Professor Dr. Peter Ludes, da Escola de Huma-
nidade e Ciências Sociais da Jacobs University, dentro do projeto
Key Visuals, pesquisa desenvolvida pelo Dr. Ludes desde o final dos
anos de 1980.
A produtiva cooperação transdisciplinar entre um cientista social,
especialista em comunicação de massa com foco na produção de nar-
rativas visuais nas mídias de tela e um músico com experiência em
performance instrumental, composição musical e doutorado em artes
cênicas resultou na adoção de nova metodologia inter e transdiscipli-
nar de análise que pretendemos detalhar ao longo deste livro.

Introdução
Na Biosfera, a relação Imagem-som e as sensações de ver-ouvir são
uma constante que não conhece longas interrupções, pois o silên-
cio não existe e raras vezes é possível provocar a escuridão absoluta.
Contudo, para as mídias de tela, as produções audiovisuais são com-
postas por imagens em movimento e “Imagens-Chave”, (em alguns
casos imagens estáticas), recortadas para descrever acontecimentos
mundiais, e por sonidos que as acompanham em intensidade de vo-
lume diversa, recuando e avançando nos planos da audiosfera virtual
segundo as conveniências dos que decidem quais os arquivos finais a
serem divulgados (editores-chefes e/ou diretores).
Cada experiência acústica na Biosfera depende do espaço no qual um
ouvinte esteja situado. Em geral, a audiosfera na Natureza é composta

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por ruídos de diversa intensidade de volume, mas raramente ensur-


decedores. Enquanto isso, em alguns espaços urbanos é possível en-
contrar ruídos acima do suportado e que causam danos irreversíveis à
audição como, por exemplo, o ruído de um avião a jato decolando e
outros ainda mais intensos, que sem proteção auditiva perfuram ins-
tantaneamente a membrana do tímpano.2 Entretanto, a audiosfe-
ra virtual das mídias de tela é um composto relativamente complexo
formado por sons diversos: melodias, ritmos, ruídos, efeitos especiais
e falas, produzidos de maneiras distintas e editados na fase de pós-
produção, quando os níveis da relação imagem-som são finamente
escolhidos, elaborados e ajustados para arquivos áudio ou audiovi-
suais finais a serem divulgados. Neste contexto, a intensidade do vo-
lume depende dos aparelhos usados para reprodução e do ajuste de
cada espectador-ouvinte.
A música destaca-se como componente áudio sempre mais utili-
zado para a audiosfera virtual das mídias de tela e especialmente no
acompanhamento da narrativa visual em programas de notícia-espe-
táculo televisivos. Contudo, na maioria dos casos, para esses progra-
mas de TV a música escolhida tem caráter leve e divertido que, em
diversos momentos, se contrapõem à narrativa visual e a contradiz.
A des-dramatização das Imagens Chave é uma prática sempre mais
comum das mais influentes emissoras de TV em países como: Ale-
manha, Brasil, China e Estados Unidos. “Notável é, por exemplo, o
aumento de adições de música em programas de informação da ARD,
ABC, CBS e NBC, em contraste com os anos sessenta e oitenta do
século XX. Na época, a música de fundo era expressamente proibi-
da” (LUDES, 2001).
Contudo, como afirma Chion (2001, p. 142), apesar das inovações
tecnológicas que permitiram ao sonoro gerar efeitos diretos e indi-
retos sobre as imagens nas mídias de tela: “O progresso quantitativo

2
Para uma lista dos ruídos mais intensos ver: <http://listverse.com/2007/11/30/top-10-loudest-noi-
ses/> Acesso em: set. 2010.

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do som – em quantidade de potência, quantidade de informações e


números de faixas sonoras simultâneas – não por isso retirou a ima-
gem de seu pedestal. O som permanece sempre aquilo que nos deixa
ver na tela aquilo que quer que vejamos.”
Portanto, para o entendimento da densa malha audiofônica que
atua direta e indiretamente sobre as Imagens Chave mostradas dia-
riamente por influentes emissoras de TV, serão indispensáveis o de-
talhamento coerente dos conceitos acima citados e a definição dos
termos específicos que emergem da análise detalhada dessas produ-
ções televisivas.
A des-dramatização musical do corpus visual televisivo, por exem-
plo, permite que as notícias mais sangrentas transmitidas para os lares
de bilhões de pessoas no mundo sejam consumidas diariamente no
horário do almoço ou do jantar sem causar estranhamento ou indig-
nação e menos ainda dor de estômago, apesar da crueldade exposta
em diversos momentos. Contudo, des-dramatizar as duras imagens
de reais acontecimentos mundiais requer o uso de tipos e gêneros
musicais específicos, dos quais falaremos a seguir.
A música possui extensa gama de recursos retórico-sonoros para
dramatizar e até embrutecer as imagens marcadas pela violência, to-
davia, este recurso é pouco usado na composição audiovisual de pro-
gramas e noticiários televisivos que visam o entretenimento. Neste
sentido, motivos musicais dramáticos e todo o repertório musical mais
sofisticado da música erudita não são usados para sonorizar produ-
ções televisivas voltadas para a grande audiência.
O conceito Compassos Chave se refere diretamente à música –
melodias, ritmos, harmonias – selecionados para acompanhar e, com
isso, modificar as imagens de programas televisivos e outras produções
audiovisuais para os diversos equipamentos das mídias de tela. Mas,
nesse contexto, a audiosfera virtual não é composta exclusivamente
de música e, por isso, antes de detalharmos o conceito de Compassos
Chave, reportamos a seguir os componentes que formam, em níveis

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e movimentos distintos ou simultâneos, a audiosfera virtual das mí-


dias de tela.
A trama audiovisual é composta pela interação dos diversos ele-
mentos visuais e sonoros e, assim como explica Cook (2004, p. 24):
“Para analisar algo como multimídia precisa estar acometido pela ideia
de que há algum tipo de interação perceptiva entre seus vários com-
ponentes, como a música, fala, imagens em movimento e assim por
diante; pois sem essa interação não haveria nada para analisar.” Con-
tudo, analisar unicamente a interação dos elementos musicais com
outros elementos de áudio e visuais resultaria unicamente na descri-
ção quantitativa de tais elementos e na comparação dos mesmos. Por
isso, o desafio deste trabalho é revelar se a interação desses elemen-
tos virtuais das mídias de tela em compostos multimídia resulta em
correspondentes sensoriais e culturais que transformam, ao longo do
tempo, a Tele-Weltanschauung em leves e divertidas versões dos reais
acontecimentos mundiais, muitas vezes casos trágicos, que marcam e
marcaram profundamente a história e as culturas contemporâneas.

A dança dos sonidos na audiosfera virtual


Os acontecimentos mundiais mostrados em programas televisivos
são geralmente descritos por textos falados. Para garantir sua inteligi-
bilidade, o som da fala – sua sonoridade e inflexões retóricas da voz –
estão, em geral, em primeiro plano. Contudo, assim como para outros
componentes sonoros, a fala pode ser parte do som original das ima-
gens (diegése) e estar em plano intermediário ou plano de fundo, em
interação com os outros componentes sonoros e visuais da composi-
ção multimídia. Na maioria dos casos, a fala domina o primeiro pla-
no e, enquanto o (a) jornalista narra ou comenta os acontecimentos,
os planos sonoros intermediários e de fundo recebem, em momentos
específicos, o acompanhamento de músicas previamente selecionadas.
A música é absorvida pelas imagens e não é ouvida como tal, sendo

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considerada parte integrante das próprias imagens ou produzida por


elas. Esta modulação do sentido visual dominado pela fala que descre-
ve sequencialmente os acontecimentos, modifica o corpus visual que
passa a ser re-ordenado por sonidos impostos pela audiosfera virtual.
Em um contraponto que parece lógico, a transformação expressiva
daquelas que deveriam ser imagens de acontecimentos reais traz simu-
lações e caricaturas marcadas por máscaras sonoras. Os personagens
dos acontecimentos mostrados ‘dançam’ ao som de leves melodias,
apesar de, em alguns casos, a violência visual estar em curso.
As novas tecnologias de áudio permitem a “higienização” dos soni-
dos, isto é: a retirada completa de frequências consideradas ruidosas,
inconvenientes e que comprometem a transmissão e a inteligibilida-
de da fala. A filtragem desses ruídos remete à diferença entre a tec-
nologia digital do CD e os procedimentos mecânicos e analógicos do
seu predecessor, o LP. Entretanto, de acordo com as conveniências
dos editores, os ruídos ou partes deles podem também ser mantidos
e, em alguns casos, adicionados ao áudio do programa, quando, por
exemplo, em fase de pós-produção, os editores definem o semblante
da audiosfera de reportagens como as de guerras, protestos de mul-
tidões, catástrofes naturais, explosões, acidentes, entre outros acon-
tecimentos dramáticos.
O som original (Original Ton) da gravação em espaço abertos é
geralmente problemático e repleto de ruídos. Somente o som original
gravado em estúdios pode estar livre de ruídos indesejados. Contu-
do, sons, ruídos e falas do ambiente ao ar livre que está sendo filma-
do podem ser retirados completamente e substituídos por uma nova
faixa áudio. Em alguns casos, os ruídos indesejados podem também
ser filtrados, editados e utilizados em níveis de volume variáveis ou
no plano de fundo. A dimensão do som original da gravação daria,
em tese, a verdadeira identidade das imagens filmadas ao ar livre.
Ouvir-se-ia, por exemplo, o som das pessoas em movimento, o ruído
produzido pelo vento nas membranas dos microfones, as sequências

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sonoras dos acontecimentos, sendo que seus afetos tornar-se-iam as-


sim mais intensos. Tipos dessa audiosfera virtual podem ser ouvidos
em documentários nos quais o som original é preservado em sua ín-
tegra, ou em cenas gravadas em direta ao vivo, em ambientes sem
proteção acústica. Contudo, para os programas-espetáculo televisi-
vos, esses sons são considerados, na maioria dos casos, inconvenien-
tes e substituídos por novas faixas sonoras, produzidas em estúdio.
Do som diegético quase nada se aproveita, e com isso outra audios-
fera virtual, com novas dimensões de áudio recobre as nuas imagens
relegadas a bi-dimensionalidade. As imagens parecem recuar e parte
dos acontecimentos, em sua essência, torna-se invisível.
Os editores das faixas sonoras a serem adicionadas às imagens em
fase de pós-produção podem criar e gravar efeitos sonoros especiais.
Esses timbres e sonidos podem ser produzidos eletronicamente ou
recortados de gravações existentes e sintetizados por meio de softwa-
res de síntese sonora. Em fase de pós-produção, os editores podem
substituir sons e ruídos originais por sons criados em laboratório.
Isto resulta, por exemplo, em substituir o som da explosão de uma
bomba pelo som do golpe de um tambor ou sons extremamente gra-
ves, como os de um contrabaixo. Esta é uma prática de sonificação
comum para as faixas de áudio das retrospectivas de fim de ano da
Rede Globo do Brasil, e tem o propósito de des-dramatizar cenas de
conflitos e acontecimentos trágicos, como os do início da guerra no
Iraque, em março de 2003.
Efeitos especiais de som são largamente usados em filmes de fic-
ção científica para marcar a audiosfera virtual com sons não comuns
e nunca ouvidos na natureza. Isto aumenta a tensão e atrai intensa-
mente a atenção do espectador-ouvinte, que é circundado por sen-
sações auditivas desconhecidas e, por isso, imponderáveis, repletas
de surpresas. O mesmo recurso pode ser usado para filmes de terror,
em que sons sintetizados marcam as imagens por meio de uma au-
diosfera virtual repleta de suspense. Este recurso é pouco ouvido em

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programas-espetáculo televisivo que visam o leve entretenimento e a


des-dramatização das cenas transmitidas, contudo é comum em pro-
gramas regionais da TV brasileira, em que cenas diárias de assassina-
tos são mostradas com inacreditável sensacionalismo.
Nesta introdução aos elementos sonoros que compõem a audios-
fera virtual das mídias de tela, falta descrever o componente musical
– tipos e gêneros de música usados para acompanhar as imagens em
movimento transmitidas ou reproduzidas. Os sonidos são adicionados
às imagens em ritmo de corte distintos e, às vezes, complementares,
ou para descrever as ações visuais com um recurso conhecido como
Mickey-Mousing3. Contudo, enquanto o Mickey-Mousing resulta
em efeitos dinâmicos e divertidos para uma animação, o mesmo re-
curso aplicado às imagens das retrospectivas de fim de ano – sequ-
ências visuais que foram extraídas de noticiários ao longo do ano – o
recurso de pontuar as imagens com a música ou efeitos sonoros se
transforma em um composto multimídia grotesco e caricatural.
O conceito de Compassos Chave, entretanto, se refere a moti-
vos e partes musicais selecionados e adicionados em fase de pós-pro-
dução no intuito de suavizar e des-dramatizar a narrativa visual do
programas-espetáculos, como as retrospectivas de fim de ano televi-
sivas, entre outros programas de apelo massivo. E ainda, no sentido
de estender o conceito para mais elementos sonoros que compõem a
audiosfera virtual televisiva, utilizaremos igualmente os termos Sons
Chave, Áudio Chave e Áudio Bastidores. Em um sentido mais abran-
gente, esses termos se remetem a planos sonoros distintos, tanto na
intensidade de volume como em sua expressividade manipuladora
em combinação com as Imagens-Chave, além dos sons que não são
exclusivamente compostos por músicas, mas por timbres sonoros de
origens diversas.
3
Scoring a segment such that the music punctuates the physical motions occurring. This is a tech-
nical term coined in the early days of animation, though the practice of synchronizing actions to the
rhythm of the music goes back much earlier. See also: <http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Main/
MickeyMousing> Accessed, Sept. 2010.

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A audiosfera virtual multimídia é uma trama complexa em diver-


sos sentidos. Para analisar os componentes dessa interação cultural,
sonora e visual, passamos a definir um dos conceitos chave, aquele
que se refere à música de acompanhamento do multimídia. Definir
os tipos, gêneros de músicas e formatos que compõem os Compassos
Chave é o que faremos a seguir.

Compassos chave: o que é isto?


Adotamos o termo Compassos Chave para definir partes, motivos e/
ou fragmentos de músicas gravadas, utilizadas para acompanhar as
Imagens Chave de programas-entretenimento, telejornais e vídeos
que reportam fatos e acontecimentos para diversas regiões do mundo.
Distribuídos maciçamente por influentes companhias transnacionais
visando elicitar a atenção da gigantesca audiência mundial, os pro-
dutos audiovisuais são transmitidos por meio de múltiplas platafor-
mas de mídia de tela.
Notam-se, a priori, dois diferentes tipos de Compassos Chave. O
primeiro se refere a compassos — partes de uma música ou curtos
motivos musicais — extraídos de composições que podem ser de gêne-
ros e épocas diversas, mas em geral, de músicas gravadas, amplamen-
te distribuídas e reconhecidas pela audiência mundial. Esses trechos
musicais serão recortados e mesclados tecnicamente às Imagens Chave
gravadas e também editadas em processo de pós-produção.
O segundo tipo — mais usado por emissoras de TV para reduzir
gastos excessivos com conjuntos musicais, instrumentistas e/ou pa-
gamentos exorbitantes de direitos autorais para a indústria fonográ-
fica transnacional — é feito de sequências e motivos musicais, em
sua maioria timbres de sintetizadores e de simuladores eletrônicos de
sonidos programados e editados por compositores-arranjadores con-
tratados pela emissora. A música ao vivo ou gravada por ensambles e

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orquestras para programas televisivos parece não ter mais o valor de


outros tempos (KLÜPPELHOLZ, 2005; SCHÄTZLEIN, 2005).
Contudo, a discrepância entre os dois tipos se dá estritamente
porque: os do primeiro tipo são extraídos do reservatório de músi-
cas gravadas por companhias transnacionais — distribuídas maciça-
mente pelo mundo e ouvidas por milhões de pessoas por meio de
equipamentos e dispositivos de mídias diversas — e reportam a um
experiência musical anterior e lembranças associadas a sensações de
outro momento. Enquanto o segundo tipo de Compassos Chave,
por ser fruto de um trabalho inédito de composição comissionado
pela emissora, não é amplamente reconhecido; trata-se de passagens
musicais compostas por timbres, acordes, melodias e ritmos pouco
ouvidos em um contexto mais amplo e não remetem o espectador/
ouvinte para experiências musicais anteriores. Esses Compassos Cha-
ve resultam indefinidos em relação aos do primeiro tipo, pois não são
partes de canções renomadas, mas a versão instrumental de motivos
e gêneros musicais ou músicas tradicionais e do folclore, ou hinos
nacionais, entre outros. Portanto, esse segundo tipo de Compassos
Chave, na maioria das vezes, se caracteriza por clichês musicais que
retocam as Imagens Chave. Em certa medida, esses fragmentos sono-
ros recuam para o plano de fundo, mesmo em altos níveis de volume,
isto é, não são facilmente reconhecíveis e, por isso, pouco seguidos;
formam assim um panorama sonoro difuso, apesar de serem com-
postos por elementos que imitam gêneros musicais comuns aos ou-
vidos pela maioria.
Outra categoria importante de Compassos Chave que pertence ao
primeiro e/ou ao segundo tipo é o das vinhetas ou tema musical título
de um programa. As vinhetas podem ser partes musicais extraídas de
composições renomadas dos diversos gêneros de música gravada ou
composta originalmente para um programa específico. Em ambos os
casos, por sua repetição periódica, como vinhetas de telejornais, retros-
pectivas de fim de ano, seriados televisivos, publicidade e propaganda

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ou outro programa de entretenimento tornam-se familiares. Mais do


que isto, as vinhetas são avisos musicais que advertem os espectadores/
ouvintes do início, retorno ou fim de um programa e, como categoria
específica, pertencem ao repertorio musical de uma emissora.
Ambos os tipos de Compassos Chave podem ser de gêneros mu-
sicais diversos: rock, pop, blues, clássico, reggae, entre muitos outros.
Entretanto, no intuito de sintetizar a relação entre tipos e gêneros, os
Compassos Chave aqui descritos são agrupados basicamente em qua-
tro grupos de gêneros: 1) Popular music (nesta categoria agrupamos
gêneros de música rock, pop e country: cerca de 70% das vendas de
toda música gravada); 2) Música erudita ocidental (responsável por
5% da venda no mercado mundial) (PARSON, 1992, p. 138); 3)
Música étnica e/ou tradicional de um grupo ou país: neste terceiro
grupo estão os Compassos Chave como hinos nacionais e músicas
pouco divulgadas pela mídia transnacional; 4) World music: música
étnica e/ou tradicional de países diversos. Os gêneros de Compas-
sos Chave deste último grupo são muito usados para marcar as Ima-
gens Chave de uma cultura distante ou exótica: trata-se de melodias
da música árabe, chinesa, indiana, africana, entre outras. Com isso,
na análise do conteúdo musical dos Compassos Chave, estes quatro
grandes grupos serão usados para ordenar a maioria das passagens
musicais recorrentes no acompanhamento das Imagens Chave e, caso
necessário, uma distinção mais refinada entre os gêneros musicais de
cada grupo será exigida.
Todos os Compassos Chave são editados em fase de pós-produção:
após todas as partes (imagens, áudio e elementos gráficos) terem si-
das carregadas em um sistema digital de edição, o editor faz uma pri-
meira edição (rough cut). Por exemplo, “Para um vídeo de música,
o editor primeiro baixa a música e em seguida corta as imagens em
movimento a serem sincronizadas com o tempo da música [...] Ao
longo da edição, o editor trabalha também com os canais de áudio:
separando-os e balançando os níveis” (KELLISON, 2006, p. 152).

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Assim, após ter selecionado todos os elementos do áudio é criado um


mix de faixas sonoras “Music and Effects (M&E)”. 4
Contudo, nem toda música de acompanhamento das imagens em
movimento é considerada aqui como Compassos Chave. É o caso de
música para documentários e filmes, ou música diegética de vídeos
gravados; músicas produzidas por pessoas que estão sendo filmadas;
hinos nacionais em competições esportivas e comemorações cívicas;
bandas e desfiles; concertos e espetáculos gravados ou representações
musicais ao vivo em locais diversos. Aqui, definimos os Compassos
Chave como fragmentos musicais, curtos ou relativamente curtos, de
uma seleção planejada de motivos editados e mixados para suprir ao
déficit das imagens em movimento, pois recortadas dentro do tem-
po previsto e limitado, as imagens apresentam fossos semânticos que
precisam ser transpostos.
Os Compassos Chave são especialmente, mas não unicamente,
aqueles trechos musicais extraídos de temas amplamente divulgados
pela mídia transnacional. Temas de filmes e canções em videoclipes
de sucesso, obras clássicas reconhecidas como ‘universais’ ou temas
populares distribuídos mundialmente ao longo de muitos anos, facil-
mente reconhecíveis pela audiência mundial, além dos Top 40 mais
divulgados pelas redes globais. Além disso, esses fragmentos sonoros
podem também ser constituídos por compassos de hinos nacionais,
canções folclóricas, gravações de concertos ao vivo, hinos militares,
entre outros motivos. 5 Neste sentido, os Compassos Chave são fre-
quentemente usados como clichês para dar ênfase às imagens em
movimento, retocando o que é visto e insinuando o não-visto das
4
O mix M&E consiste de todas as faixas de música e efeitos, assim como de faixas de efeitos vocais,
como gritos, assovios, e faixas de reação da multidão – de fato, o som que não pode ser identificado
como específico em um país em particular. O balanço do mix deve ser tão fiel a uma versão de recria-
ção da linguagem original quanto seja possível economicamente. Para ajudar a fazer uma faixa de mú-
sica e efeitos, o mix final usado, esse mesmo, é dividido em três partes separadas de diálogo, música e
efeitos (WYATT; AMYES, 2005, p. 245).
5
Esta categoria de Compassos Chave se caracteriza por trechos de músicas produzidas nas imagens,
portanto, diegética e provenientes do som original da gravação das Imagens Chave nesses casos, trata-
se de Compassos Chave selecionados e não produzidos pelo editor.

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Imagens Chave. Este tipo de recurso sonoro é também muito utili-


zado pela indústria transnacional de cinema e por influentes redes de
televisão como partes de música incidental, para adicionar atmosfera
à ação das imagens em movimento.
Com isso, a abordagem deste tema revela três questões básicas:

1) Os fragmentos de músicas (Compassos Chave) usados na com-


posição audiovisual não ostentam as características estético-semân-
ticas das composições originais e por se misturarem com motivos
musicais diversos e com as imagens em movimento se transformam
em elementos sonoros difusos, sem sentido próprio ou sem sentido
estritamente musical? Neste caso não se pode falar de música em si,
nem mesmo de estética musical no sentido estrito do termo, mas de
procedimentos técnicos para compensação semântica dos novos for-
matos audiovisuais;
2) Os Compassos Chave usados na composição audiovisual preser-
vam características estético-semânticas essenciais que, apesar de mis-
turados com motivos musicais diversos e contraditórios modificam
intensamente o sentido das imagens tornando-se chave do entendi-
mento completo desses produtos? Neste caso pode-se argumentar que
a música, apesar de fragmentada e repleta de discrepâncias, assume —
além da compensação semântica para imagens em movimento e falas
— um papel estético extremamente poderoso e manipulador.
3)Os Compassos Chave são produzidos e mixados na mesma ou
em mais composições audiovisuais sem um planejamento estratégi-
co consciente direcionado às audiências ou com pretensões estético-
ideológicas planejadas?

Preâmbulo
Adorno e Eisler, em seu famoso livro sobre a composição para o fil-
me publicado pela primeira vez em 1947, consideram o clichê como

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largamente usado para a música dos filmes comerciais e que “mais


cedo ou mais tarde as pessoas serão capazes de gostar dos clichês”.
A este respeito, no primeiro capitulo do livro os autores escreve-
ram:
A produção em massa de filmes levou à elaboração de situações
típicas, das sempre recorrentes crises emocionais e dos métodos
estandardizados do crescente suspense. Esses correspondem a
efeitos clichês em música. Mas, a música é frequentemente leva-
da a tocar no ponto específico, em que particularmente os efei-
tos característicos são pensados para sacudir a ‘atmosfera’ ou o
suspense. O efeito poderoso entendido aqui não se apaga, por
ter o ouvinte se tornado familiar com os estímulos de inúmeras
passagens análogas6 (ADORNO; EISLER, 2007, p. 9-10).

Essa função de clichê ou estereótipo da música é parte do que cha-


mamos aqui de Compassos Chave. Frequentemente os Compassos
Chave funcionam dessa maneira: como um fenômeno sonoro ambí-
guo que, ao mesmo tempo em que intensifica o ambiente de acon-
tecimentos das imagens em movimento, anula este efeito por revelar
a priori o significado da narrativa visual. Apesar disso, os efeitos dos
Compassos Chave são diversos e podem retocar o ambiente visual
dublando os acontecimentos mostrados ou caricaturando Imagens
Chave de líderes políticos, multidões protestando, catástrofes natu-
rais, acidentes ou imagens de guerras e conflitos, eventos esportivos
nacionais e internacionais. Nesta função, os Compassos Chave não
revelam o porvir dos acontecimentos visuais, mas manipulam o cará-
ter original das imagens gravadas, e este é um recurso muito utilizado
por influentes emissoras de TV no Brasil e, em grau menos audível
— às vezes em nível bem sutil de volume e no plano de fundo — por
outras emissoras da Alemanha, China e Estados Unidos.

6
“Mass production of motion pictures has led to the elaboration of typical situations, ever-recurring
emotional crises, and standardized methods of arousing suspense. They correspond to cliché effects in
music. But music is often brought into play at the very point where particularly characteristic effects are
sought for sake of ‘atmosphere’ or suspense. The powerful effect intended does not come off, because
the listener has been made familiar with the stimulus by innumerable analogous passages”.

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Em outros casos, os Compassos Chave funcionam como símbo-


los de uma cultura. Trata-se de fragmentos de músicas da tradição de
um país que são usados para retocar o evidente e ao mesmo tempo
reforçar a ideia de uma cultura exótica e distante. E ainda, os Com-
passos Chave funcionam como símbolos sonoros em geral, isto é,
como elementos sonoros impressos na memória coletiva da audiên-
cia, reforçando a intuição sensível e a imaginação para transpor fos-
sos semânticos e compreender os eventos mostrados. Esses símbolos
sonoros podem ser os timbres de instrumentos específicos: trompe-
te, tambor, trompa, pratos, guitarra, entre outros, que remetem para
lembranças veladas, sem um significado racional, mas de extrema efe-
tividade sobre a imaginação e a sensibilidade coletiva.

Procedimentos científicos e avanços tecnológicos


Observando procedimentos científicos adotados na composição au-
diovisual, nota-se que os avanços tecnológicos revolucionaram por
completo os sistemas analógicos utilizados ao longo do século XX. Por
exemplo, a digitalização dos timbres sonoros e das imagens permitiu
edições precisas até os mínimos detalhes. O problema da sincroni-
zação imagens-sonidos, por exemplo, foi resolvido pelo codificador
de tempo SMPTE7, que possibilita a perfeita mixagem das faixas so-
noras com os parâmetros estruturais das imagens permitindo efeitos
improváveis em fase de pós-produção, sem os cálculos precisos des-
se time code.

7
O SMPTE time code é um método para marcar a fita de gravação com contínuos impulsos de tem-
po (...) Agora que estão disponíveis sistemas digitais de alta qualidade, esses se tornaram formatos de-
cisivos para lidar com o áudio para vídeo. A edição com base em computadores é particularmente útil
para a árdua tarefa de definição do áudio em pós-produção. Entretanto, a maioria dos sistemas digitais
tem suas próprias restrições quanto ao tempo e não funciona bem como servidores de equipamentos
de vídeo. Aparelhos DAT que podem ser acoplados ao SMPTE estão disponíveis, contudo, são extre-
mamente caros. Ver:
<http://artsites.ucsc.edu/EMS/music/equipment/video/smpte/smpte.html>. Acesso em: 10 de março
de 2010.

Leonardo Boccia
• 91 •

Além disso, a ciência da computação tornou possível criar arquivos


sonoros extremamente maleáveis, subdivididos em cálculos infinite-
simais e de algoritmos complexos que permitem saltos qualitativos e
a conseguinte alta definição tecnológica das gravações. Deve-se tam-
bém a esses avanços tecnológicos a criação de múltiplas plataformas
de mídia com a respectiva convergência de formatos diversos de uma
mesma produção audiovisual.
Seguindo este raciocínio, pode-se analisar a composição audiovi-
sual estritamente em termos científicos e tecnológicos, aceitando pos-
tulados científicos, avanços e resultados das novas tecnologias, tanto
pelo conhecimento abstrato computacional, quanto pelos procedi-
mentos práticos no uso de hardwares e softwares na produção e na
pós-produção desses produtos audiovisuais. Para tanto, o estudo re-
quer a revisão de bibliografia específica na área de ciência e tecnologia
(POYNTON, 2003; SHI; SUN 2000; WYATT; AMYES, 2005).
Em matemática, um nicho específico de pesquisa volta-se para
a recuperação de informações musicais extraídas das mídias de tela
(MÜLLER, 2007); o Music information retrieval (MIR) é uma ciên-
cia interdisciplinar que extrai informações das músicas digitalizadas
e estuda a interação humana com o computador, interfaces multi-
modais, análise e percepção musical, sociologia e economia da músi-
ca, entre outros tópicos, desenvolvem ferramentas para a recuperação
tecnológica dessas informações. Algumas referências e artigos estão
disponíveis na website do Max-Planck-Institut für Informatik.8
Outro campo de estudos científicos que precisa ser levado em
conta é o das pesquisas em síntese e sempleamento de parâmetros
de som e da composição musical ao computador (computer music),
assim como as diferentes sínteses e os softwares que possibilitam a
criação e o processamento de sinais sonoros. Muitos dos timbres usa-
dos hoje pelas mídias de tela em geral e pelo cinema em particular

8
Ver: <http://www.mpi-inf.mpg.de/~mmueller/index_publications.html> Acesso em: 10 de março
de 2010.

• Chaves Audíveis •
• 92 •

são compostos de frequências elaboradas por dispositivos e procedi-


mentos (hardware e software) deste tipo. A literatura específica neste
campo de estudo (MATHEWS, 1969; MATHEWS, PIERCE, 1991;
ROADS, 1996; COPE, 2000; BOULANGER, 2000; PUCKETTE,
2007; DEAN, 2009; HEWITT, 2009; RUSS, 2009) volta-se para a
programação em linguagem computacional de parâmetros e cálculos
matemáticos que resultam em ondas sonoras e timbres de alta resolu-
ção com elevada taxa de amostragem, que lhe proporcionam altíssima
definição. A qualidade de áudio resulta da taxa de resolução de seus
parâmetros elaborados com ajuda de softwares de síntese sonora, a
exemplo do Csound. De acordo com Richard Boulanger: “Csound9 é
um poderoso e versátil software para síntese. Programando a partir de
um conjunto de ferramentas de mais de 450 módulos, pode-se usar
o Csound para modelar virtualmente qualquer sintetizador comer-
cial ou processadores de múltiplos efeitos”10 (BOULANGER, 2000,
p. 5). A alta definição do som digital depende desse nivelamento dos
parâmetros sonoros para atingir qualidade compatível com a alta de-
finição das gravações digitais das imagens em movimento.

Observação sensível e imaginação-audição


Para uma compreensão abrangente dos Compassos Chave mesclados
com as Imagens Chave e os diversos formatos dessa ‘citações musi-
cais’, nós estamos observando e codificando uma série de arquivos ao
longo da década passada; trata-se das retrospectivas de fim de ano das
mais influentes emissoras de televisão em quatro países. Neste senti-
do, as análises precisam levar em conta também a segunda questão
deste ensaio, a saber: os fragmentos musicais usados na composição

9
É um pacote de softwares que permite diversas operações de síntese sonora e composição musical.
10
“Csound é um poderoso e versátil software de síntese. Composto por um conjunto de ferramentas
de mais de 450 módulos processadores de sinais, o Csound pode ser usado para reproduzir virtualmen-
te qualquer sintetizador comercial ou processador multiefeito.”

Leonardo Boccia
• 93 •

audiovisual modificam o sentido das imagens em movimento tornan-


do-se uma chave para o entendimento dessas mensagens em forma-
to audiovisual. Isto é: a música, ainda que reduzida a curtas citações,
diluídas em outras tantas citações musicais fragmentadas e diversas,
preserva suas qualidades semânticas comunicativas que superam as
limitações impostas por línguas diferentes, sendo usada como me-
diadora de sentidos.
Com isto, se a segunda questão for resolvida, a análise detalhada
de produções audiovisuais e de produtos tecnologicamente sofistica-
dos se completa exclusivamente após o levantamento de dados em-
píricos e procedimentos técnico-tecnológicos, em comparação com
os resultados de uma compatível e detalhada análise interdisciplinar
imaginativo-auditiva desses produtos por parte do pesquisador.
Em épocas anteriores, um renomado filósofo havia intuído que,
para a música, as operações cognitivas humanas eram frutos do exer-
cício oculto da aritmética. A famosa afirmação de Leibniz (1646-
1716) de que a música seria um exercitium arithmeticae occultum
nescientis se numerare animi11, foi citada e criticada por Arthur Scho-
penhauer (1788-1860) no terceiro livro de Die Welt als Wille und
Vorstellung, nos seguintes termos: “na qualificação acertada de Lei-
bniz, apesar de ter considerado só a sua significação imediata e exte-
rior, a sua casca; pois se a música não fosse algo mais, a satisfação por
ela proporcionada teria de ser semelhante à que sentimos na correta
resolução de uma soma aritmética e não poderia ser a alegria interior
com a qual o íntimo mais fundo de nosso ser é trazido à linguagem”
(§ 52, 1302-1303).12

11 Exercício oculto da aritmética no qual a alma não sabe que conta.


12 “Which Leibniz called it. Yet he was perfectly right, as he considered only its immediate external
significance, its form. But if it were nothing more, the satisfaction which it affords would be like that
which we feel when a sum in arithmetic comes out right, and could not be that intense pleasure with
which we see the deepest recesses of our nature find utterance”.“Wofür sie Leibnitz ansprach und den-
noch ganz Recht hatte, sofern er nur ihre unmittelbare una äuere Bedeutung, ihre Schaale, betrachtete.
Wäre sie jedoch nichts weiter, so müte die Befriedigung, welche sie gewährt, der ähnlich seyn, die wir
beim richtigen Aufgehn eines Rechnungsexempels empfinden, und könnte nicht jene innige Freude
seyn, mit der wir das tiefste innere unsers Wesens zur Sprache gebracht sehn” (§ 52).

• Chaves Audíveis •
• 94 •

Seguindo essas ideias, torna-se essencial analisar exemplos audio-


visuais gravados, em que a música serve não apenas como pano de
fundo. Quando os Compassos Chave e seus efeitos/afetos se deslocam
para o primeiro e para o plano intermediário, modificando intensa-
mente o sentido das imagens em movimento, torna-se óbvio que a
comunicação assume uma dimensão ampliada. Isto é: por meio da
circulação dos sonidos no ambiente provoca-se no espectador/ouvin-
te deslocamentos sensitivos que parecem pertencer às imagens em si,
mas que resultam de um sincretismo audiovisual.
De acordo com Chion (1994), trata-se de uma ilusão audiovisu-
al que se encontra no coração da mais importante entre as relações
som-imagem, que o autor chamou de added value.13
Com a expressão valor adjunto [added value] entendo o valor
expressivo e informativo com o qual um som enriquece uma
imagem dada, até criar a impressão definida da experiência ime-
diata ou relembrada que se tem dela, de que essa informação
ou expressão vem “naturalmente” do que se vê, e que já estão
contidas na simples imagem. Valor adjunto é o que dá a impres-
são (eminentemente incorreta) de que o som é desnecessário;
que este reproduza um sentido que no intento introduz e cria,
seja de bem novo, seja mediante a diferença com o que é visto
(CHION, 1994, p. 5).

Desta maneira, música e efeitos sonoros que acompanham as ima-


gens em movimento passam despercebidos ou são considerados parte
integrante das próprias imagens. Muitas vezes não são sequer ouvidos
conscientemente, pois se misturam intensamente e a audição humana

13
Este estudo é parte de uma pesquisa de longo prazo que reúne estudiosos da Escola de Humanidades
e Ciências Sociais da Jacobs University Bremen e do grupo ECUS de pesquisa da Universidade Fede-
ral da Bahia. Desde 2005, analisam-se arquivos gravados de programas e noticiários transmitidos por
influentes redes de televisão na Alemanha, Brasil, China e nos Estados Unidos codificando arquivos
que apresentam maior incidência do uso da música e de efeitos sonoros. Notou-se, por exemplo, que
na década passada, a emissora CBS intensificou o uso de partes musicais na composição audiovisual
de noticiários e em retrospectivas de fim de ano, enquanto no mesmo período (1999-2009), a NBC
reduziu o uso de acompanhamento musical em noticiários e retrospectivas. Contudo, para influentes
emissoras de TV, como Rede Globo e Rede Record do Brasil, o uso da música em noticiários e retros-
pectivas de fim de ano continua sendo prioritário, sendo que, em alguns casos, música e efeitos sonoros
são usados ao longo de toda a retrospectiva.

Leonardo Boccia
• 95 •

capta a audível e invisível parte da experiência audiovisual. Por ser


um sentido esférico — que recebe vibrações sonoras provenientes de
todos os lados — a audição humana capta frequências sonoras den-
tro da extensão de dez oitavas, enquanto a visão consegue focar por
vez uma décima parte dessa extensão.
A audiovisão, em sua complexidade, se torna alvo das novas com-
posições audiovisuais, em que a dimensão auditiva é supervalorizada
na produção e pós-produção, mas pouco notada ou mesmo descon-
siderada na recepção. Nesse ambiente sonoro subjacente é possível
desenvolver um cenário aparentemente insignificante e pouco con-
siderado pelos espectadores/ouvintes. Assim, a cultura de ver/ouvir
e formar opiniões por meio das produções audiovisuais — transmi-
tidas diariamente em grande parte do mundo — passa por intensas
transformações que, por sua vez, modificam os hábitos da popula-
ção mundial.
Ao mesmo tempo, as mídias de tela foram adaptadas a pequenos
equipamentos portáteis de alta definição de imagens e som ou a gran-
des aparelhos de LCD acoplados a sofisticados sistemas de áudio. Pe-
los recentes avanços tecnológicos, notam-se também tendências de
reestruturação de formatos para as mídias de tela com a produção de
novo conteúdo de mídia.
Essas midiamorfoses pertencem a uma nova realidade, ou melhor,
a uma nova audiovisão do mundo por meios virtuais das mídias de
tela; essas mutações não têm precedente na história:

Parece apropriado explicar as características particulares dessa


mutação global, que não conhece paralelos ao longo das muta-
ções históricas conhecidas até hoje. A proeminente característica
dessas metamorfoses (contudo não é seu único aspecto) é o pa-
pel dominante da mídia eletrônica. Para visualizar esse aspecto
específico, eu chamei as atuais mutações de midiamorfoses da
música (BLAUKOPF, 1992, p. 247-248).

• Chaves Audíveis •
• 96 •

Os avanços tecnológicos e a portabilidade de aparelhos modifica-


ram ainda mais os hábitos de pessoas em diversas regiões do mundo.
A representação do mundo contemporâneo é recheada por arquivos
audiovisuais largamente consumidos, em uma relação muito próxi-
ma e muitas vezes íntima com os aparelhos transmissores. Por exem-
plo, o uso massivo de dispositivos portáteis, como telefones celulares,
e a experiência auditiva individualizada por meio de fones de ouvi-
do são fruto da convergência entre múltiplas plataformas de mídia e
de uma atração explícita para as extensões de mídia e suas conexões.
Contudo, a experiência íntima de cada pessoa, o usuário de fones de
ouvidos, por exemplo, que se volta para uma audiotopia individuali-
zada sonorizando o ambiente externo, pertence à dimensão sensível
da audição no deslocamento entre lugares. Esta nova conectividade
vem transformando o jeito de ver-ouvir o mundo, bem como os há-
bitos de consumo de muita gente. A audiovisão de um mundo sono-
rizado por cada indivíduo, seguindo sua própria escolha de gênero e
tipos musicais, interfere na representação externa e atenua as impo-
sições acústicas da vida urbana. A sonorização do ambiente em que
o indivíduo transita corresponde a um disfarce da vida real e ao afas-
tamento psicofísico das condições impostas por fatores naturais e/ou
sociais. Mas, se por um lado a sonorização personalizada do mundo
alivia os incômodos acústicos externos e permite se deliciar com as
qualidades da música gravada, por outro, cada pessoa, ao usar esse
tipo de dispositivo, provoca no ambiente que a circunda uma dimen-
são audiovisiva que resulta em profundo isolamento.

O ‘jogo livre’ das audiências no mundo tecnologicamente


globalizado
De acordo com Longhurst (2007), os principais mercados para os
produtos da pop music são os Estados Unidos, a Europa e o Japão.
Os Estados Unidos e a Grã Bretanha, por sua volta, têm dominado

Leonardo Boccia
• 97 •

a produção da popular music para venda no mercado mundial (NE-


GUS, 1992; BURNETT, 1996). Isto incide diretamente sobre a pro-
dução e a distribuição musical em cada país. Em termos de dominação
cultural, por exemplo, formas de cultura são impostas por poderosas
companhias de gravação e distribuição associadas às redes de mídia.
Isto é: as produções da pop music, bem como de outros gêneros, des-
de a música erudita ao rock, predominam na maioria das vezes sobre
a cultura musical local, uma vez que a maioria dos países não possui
amplo poder de distribuição dos próprios bens culturais. Além disso,
Wallis e Malm (1990, p. 173-178) concluíram que, no atual contexto
de globalização, modelos de transmissão cultural podem ser classifi-
cados em quatro tipos: ‘intercâmbio cultural’, ‘dominação cultural’,
‘imperialismo cultural’ e ‘transculturação’.
Todavia, segundo Garofalo (1992):
Que os negócios do entretenimento internacional são motiva-
dos por práticas imperialistas não está em questão. Os resulta-
dos referentes à música, entretanto, estão mais próximos do que
Wallis e Malm chamam de ‘transculturação’ — um processo de
mão dupla pela qual elementos da pop/rock internacional são
incorporados pelas culturas musicais locais e nacionais, e influ-
ências nativas contribuem para o desenvolvimento de um novo
estilo transnacional (GAROFALO, 1992, p. 7).

Nesse sentido, apesar das diferenças entre Compassos Chave nas


mais influentes emissoras de TV em quatro países, nota-se também o
efeito de transculturação no uso de Compassos Chave inspirados nos
gêneros de música dos mercados hegemônicos de mídia. Por exemplo,
a maior parte dos Compassos Chave na retrospectiva de fim de ano
2006 da emissora ARD da Alemanha, é composta por passagens de
obras de domínio público14 da música erudita ocidental ou de clássi-
cos da pop music, amplamente distribuídos pelo mundo ao longo de
décadas. Trata-se de trechos de obras de Wolfgang Amadeus Mozart,

14
Obras que são isentas de pagamentos de direitos autorais.

• Chaves Audíveis •
• 98 •

Ludwig van Beethoven, Antonio Vivaldi, e outros cujas obras, devido


à qualidade das produções e da distribuição massiva, são amplamente
ouvidas e reconhecidas em muitos países. Enquanto isso, a retrospec-
tiva de fim de ano 2008 da Rede Globo de televisão apresenta uma
colagem musical eclética e constante ao longo de todo o programa.
Trata-se de trechos de canções da cultura nacional ou de canções na-
cionais em estilo transnacional, bem como de diversos trechos da pop
music, dancing, blues, além de canções de Amy Winehouse e Ma-
donna, entre outros astros.
Em geral, os Compassos Chave se diferem das Imagens Chave
por sua duração. Enquanto as Imagens Chave têm duração de 6 a
14 segundos em média (Ludes & Müller 2010), para os Compassos
Chave nota-se uma duração média que vai de 4 segundos até mais
de 1 minuto. Na retrospectiva 2006 da ARD, por exemplo, os Com-
passos Chave encadeiam as Imagens Chave por mais de um minuto.
Esse tipo de acompanhamento musical é também próprio do bloco
do obituário em que, por vezes, uma única peça musical acompa-
nha todas as imagens dos que morreram durante o ano, o que parece
se tornar mais frequente também ao longo do programa. Nota-se a
mesma tendência na retrospectiva 2008 da Rede Globo; neste caso,
as sequências de Imagens Chave são atravessadas por longas citações
musicais de quase dois minutos. Além disso, nas retrospectivas da
Rede Globo, para recalcar as imagens com timbres e ritmos inciden-
tais ou para caricaturar os acontecimentos mostrados, muitos efeitos
sonoros são ainda adicionados às imagens em movimento.
Em resposta à terceira questão deste ensaio, torna-se essencial fo-
car o conceito de Compassos Chave em sua diversidade de tipos e
modalidades de uso. Além das vinhetas que introduzem, intercalam
e encerram as retrospectivas e os noticiários, os Compassos Chave são
formados por trechos ou fragmentos musicais de diversos gêneros de
curta (poucos segundos), média (pouco mais de 10 segundos) e longa
duração (até 2 minutos). Todavia, pode-se considerar a trilha musical

Leonardo Boccia
• 99 •

formada por Compassos Chave como parte de uma nova composição


musical. Embora limitados em sua duração temporal e mesclados a
outros motivos musicais diversos, por vezes contrastantes no sentido
de estilo, gênero, andamento, tonalidade, ritmo, etc., esses trechos
ou fragmentos musicais adicionam às imagens em movimento a ação
da música em uma forma inusitada, isto é, uma forma composta de
partes e formas diversas. Qual então o sentido estético ou a função
semântica dessas citações musicais?
O inicio da retrospectiva da ARD 2006 traz um exemplo de co-
lagem musical que chama atenção e pode responder em parte a esta
pergunta. O programa inicia com pouco mais de 30 segundos de
música extraídos da abertura do Idomeneo re di Creta de Mozart
e, logo em seguida, ouve-se a vinheta (tema-título) da retrospectiva
provocando uma ruptura abrupta causadora de estranhamento e, ao
mesmo tempo, anunciadora do início formal do programa. Desta
maneira, a vinheta recupera o fosso semântico provocado pelas ima-
gens e, ao mesmo tempo, interrompe uma série de sensações evoca-
das pela abertura do Idomeneo.
Neste caso, não é simples falar de estética musical no sentido es-
trito do termo. No sentido de contemplação desinteressada (Kant)
ou de apreciação sensível de uma composição musical seja qual for,
estaria faltando o interesse que a obra poderia causar com o tempo
de escuta. Além disso, o interesse por uma fragmentação musical
deveria ser suscitado projetando-se o conjunto dos trechos musicais
dentro de critérios propriamente musicais, o que, na maioria dos
casos, não se configura como tal. O acompanhamento musical por
Compassos Chave nas retrospectivas de fim de ano em diferentes
emissoras de TV se caracteriza como a soma de trechos díspares de
música selecionados a partir de interesses comerciais e culturais ou
para reafirmar o sentido das imagens e mesmo caricaturar os acon-
tecimentos mostrados. Além disso, os Compassos Chave disputam
o espaço sonoro com a fala que, na maioria das vezes, se encontra

• Chaves Audíveis •
• 100 •

no plano de frente, comentando os acontecimentos mostrados pe-


las Imagens Chave.
Contudo, devido aos recentes avanços tecnológicos, além da for-
matação visual dos programas, por sua maleabilidade dos formatos
digitais, mudaram também o acompanhamento musical e o sound-
design desses programas. Nota-se, por exemplo, um aumento crescen-
te da duração dos Compassos Chave que passam a ser representados
por trechos musicais com duração de mais de um minuto. Em alguns
casos aparecem livres da fala ou de interrupções, como no bloco do
obituário, e como parte da coerência estética própria da obra origi-
nal da qual foram extraídos.
Seguindo gênero, coloração de timbres, ritmos e demais parâme-
tros sonoros, os Compassos Chave marcam as Imagens Chave pelos
estímulos das vibrações sonoras reorganizadoras dos sentidos da nar-
rativa audiovisual. Essas citações musicais podem estimular a audi-
ção e a curiosidade das pessoas mesmo quando elas não olham para a
tela: a vinheta de um telejornal, o ícone sonoro de arquivos baixados
pela internet, o ring-tone de um telefone celular, entre outros. Esses
curtos motivos ou ícones sonoros, temas-título e vinhetas marcam os
Compassos Chave com funções definidas e projetadas para anunciar
ou alertar sobre algo que está ou irá acontecer por meio dos aparelhos
transmissores da mídia de tela.
Contudo, o enfoque estético que se volta para o encadeamento pla-
nejado de curtas citações musicais com mais partes musicais, mesclado
às imagens em movimento, oferece um campo maior de investigação.
Tratei desse tipo de encadeamento musical ou sound-design em for-
ma de mosaico em dois ensaios anteriores, a saber: “Os Compassos
Chave da retrospectiva de fim de ano em 2003 da Rede Globo de Te-
levisão”, especialmente o bloco que trata da guerra do Iraque intitu-
lado “Ano de guerra” (BOCCIA, 2005), e “A análise da trilha sonora
do filme Kill Bill Vol. 1 de Quentin Tarantino” - (BOCCIA, 2006).
Em ambos os casos, a trilha sonora é formada por trechos musicais

Leonardo Boccia
• 101 •

extraídos de contextos diferentes ou de trilhas sonoras de outros fil-


mes. O efeito dessas colagens audiovisuais resulta em novas trilhas
sonoras que se desprendem do contexto anterior para animar novas
estruturas semânticas modeladas a uma narrativa visual. Em ambos os
casos, os Compassos Chave reavivam nos espectadores/ouvintes expe-
riências musicais anteriores. Entretanto, os objetivos de cada colagem
musical têm origens diferentes e, por várias razões, provocam efeitos
contrastantes. A coerência da trilha de Tarantino, por exemplo, se dá
por uma espécie de homenagem a renomados compositores de mú-
sica para o cinema como Ennio Morricone e Bernhard Herrmann,
entre outros; trata-se de um flashback musical estilisticamente pla-
nejado. Este não é o caso da trilha sonora da retrospectiva de fim de
ano 2003 da Rede Globo; neste bloco da retrospectiva:
o entrelace ocorre entre imagens reais e citações melódicas que
vão desde Mozart a canções populares de motivos árabes e india-
nos. Uma narração coerente concebida na edição e montagem
preestabelecida onde não há improviso, mas a ágil sequência de
‘quadros’ frutos de decisões tomadas em convenções estandar-
dizadas (BOCCIA, 2005, p. 71).

O planejamento técnico e as decisões estéticas para a nova compo-


sição audiovisual por meio de Compassos Chave dependem da quali-
dade dessas gravações e do apelo que essas citações musicais exercem
sobre as audiências. Contudo, cada tipo de audiência que assiste as
retrospectivas pode apreciar ou não a validade dessas colagens audio-
visuais que, em alguns casos, despertam bastante interesse. Retros-
pectivas de fim de ano que mostram cantores famosos da pop music
ou que adotam partes de suas músicas para acompanhar os eventos
narrados chamam a atenção dos mais jovens. Esse tipo de audiência
é composto por fãs que não cultivam meramente canções e músicas,
mas qualquer coisa que lembre seus ídolos. Pois, o grande sucesso dos
videoclipes de renomadas cantoras e cantores da música pop mundial,
por exemplo, é sustentado por consumidores que, além das gravações

• Chaves Audíveis •
• 102 •

em CD e/ou DVD, adquirem produtos de propaganda de seus ídolos


como camisetas, bottons, cartazes, copos, entre outros. Para o grupo
de rock New Kids on the Block (1984), por exemplo: “a maioria do
dinheiro, cerca de 80%, não veio da venda de discos ou da turnê de
shows, mas das licenças do grupo para esses produtos” (PARSONS,
1992, p. 137).
Abercrombie e Longhurst (1998) destacam três tipos básicos de
audiência: a) audiência simples – a de teatro ou de eventos esporti-
vos, entre outros eventos que requerem estar presente; b) audiência
de massa – a que assiste televisão e outras mídias de massa; c) audiên-
cia difusa – a que faz uso de diversas mídias ao mesmo tempo, “por
exemplo, alguém que assiste as notícias na TV e ao mesmo tempo
envia uma mensagem de texto pelo celular e ouve música via trans-
missores de MP3 está mostrando sua capacidade de ser um difuso
consumidor multitarefa” (apud LAUGHEY, 2007, p. 183).
Em geral, os Compassos Chave do primeiro tipo (ver p. 1), sele-
cionados para serem encadeados entre si, provêm do reservatório de
gravações renomadas, isto é: remetem a ídolos da pop music, trilhas
sonoras de filmes de sucesso, temas consagrados de compositores
da música erudita ocidental, grande sucessos de venda, entre outros
triunfos da indústria fonográfica. Este tipo de seleção musical segue
interesses culturais e comerciais de arrecadação de direitos autorais
ou de sua isenção pelo uso de obras de domínio público, ao mesmo
tempo em que reafirmam o poder que esses temas musicais exercem
sobre a audiência mundial, o que ocorre, por exemplo, com uma
canção de Michael Jackson. Além disso, torna-se mais simples atrair
o interesse dos espectadores/ouvintes de todas as classes sociais se as
músicas que acompanham as imagens ostentam uma reivindicada
‘universalidade’, uma espécie de unanimidade estética conquistada
por campanhas maciças de divulgação dos ídolos com a distribuição
transnacional de produtos ligados a eles.

Leonardo Boccia
• 103 •

Assim como as Imagens Chave realçam personalidades proemi-


nentes da política mundial, os Compassos Chave reforçam o valor
de ídolos da pop music e os gêneros musicais amplamente distribu-
ídos no mercado mundial, mesmo que as imagens em movimento,
na maioria das vezes, mostrem acontecimentos sem relação aparente
com as músicas que os acompanham.
As produções audiovisuais de massa e a constante disputa das in-
fluentes companhias de mídia por uma hegemonia cultural e de mer-
cado levantam questionamentos éticos acerca dos efeitos que essas
representações da mídia de tela provocam ao longo do tempo sobre a
população mundial. As contrastantes teorias acerca do comportamento
das audiências e os conseguintes efeitos das mídias, especialmente das
mídias sonoras ou de tela, vão desde a preocupação com a ‘sedução
do inocente’ (WERTHAM, 1955) e seus efeitos desastrosos sobre a
educação das crianças, transitam na paranóia de um perigo imanente
— um pânico das massas (CANTRIL et al, 1947); contrastam com
as ideias da inteligência coletiva (LÉVI, 1994) e sua convergência na
‘cultura participativa’ (JENKINS, 2008), em que jovens consumido-
res se transformam em ativos produtores de conteúdo de mídia e em
consumidores vorazes, em uma palavra: ‘prosumers’.
Outras múltiplas abordagens teóricas discutem os efeitos da In-
ternet, da telefonia móvel, sexo e violência na mídia, bem como do
consumo e percepção da realidade social (BRYANT; OLIVER, 1994,
2009). Neste cenário de ideias contrastantes e, em certo sentido, ra-
dicais, o pensamento de Pierre Bourdieu ganha destaque; suas afir-
mações suscitaram críticas severas à época da publicação do livro A
Distinção. Inspirado em Kant, entre outros pensadores, o sociólogo
francês discute a faculdade de julgar, o valor da arte, o gosto, a edu-
cação e retoma o conceito de habitus também elaborado por Nor-
bert Elias (2000) em O processo civilizador. Para Bourdieu, o gosto
se manifesta no habitus de alguém por um conjunto de predisposi-
ções que cada indivíduo aprende a adotar, desde os primeiros anos de

• Chaves Audíveis •
• 104 •

vida, em relação aos seus níveis de capital econômico e cultural. De


acordo com Landini (2007): “A partir do conceito de habitus, Bour-
dieu procurou dissolver a antinomia teórica entre indivíduo e socie-
dade ao estabelecer que o individual, o pessoal e o subjetivo também
é social, coletivo, ou, noutros termos, o habitus nada mais é que uma
subjetividade socializada”. Seguindo este raciocínio, nas palavras do
próprio Bourdieu:
Seria inútil, neste domínio como alhures procurar o princípio
explicativo das respostas em um fator ou em uma pura edição
de fatores: de fato, na unidade originariamente sintética de um
princípio gerador, o habitus integra o conjunto dos efeitos das
determinações impostas pelas condições materiais de existência
(cuja eficácia se encontra cada vez mais subordinada ao efeito da
ação de formação e de informação previamente suportada à me-
dida que se avança no tempo) (BOURDIEU, 2007, p. 410).

Ao longo deste ensaio apresentamos algumas reflexões acerca da


diversidade e complexidade dos compassos e das Imagens Chave da
produção audiovisual em seus múltiplos formatos. Entretanto, o foco
de nossa observação concentrou-se nos tipos de Compassos Chave
que acompanham as imagens em movimento e a narrativa falada dos
enredos audiovisuais. Constatou-se que as produções distribuídas por
influentes companhias transnacionais visam elicitar o interesse das au-
diências por meio de imagens e Compassos Chave selecionadas como
proeminentes pelo mercado hegemônico de produção e distribuição
de mídia. Entretanto, a distribuição maciça de produtos audiovisuais
e de música gravada ao longo de décadas causou o surgimento de gê-
neros musicais nacionais inspirados nas produções hegemônicas dos
principais mercados de mídia. Da mesma maneira, formas e técnicas
de produção audiovisual apresentam grandes semelhanças e se re-
portam aos formatos dos programas das mais influentes redes de TV.
Alguma diferença, entretanto, nota-se no uso da música para sonori-
zar programas-espetáculos, noticiários e outros produtos do mercado
audiovisual de entretenimento. Os Compassos Chave inter/nacionais

Leonardo Boccia
• 105 •

revelam características próprias e, em diversos casos, são adicionados


ao conteúdo das produções por interesses comerciais e culturais prio-
rizando passagens musicais amplamente conhecidas.
Apesar da larga incidência de citações musicais extraídas do reserva-
tório de músicas gravadas e distribuídas maciçamente pelos principais
mercados de mídia e Compassos Chave de gêneros transnacionais em
língua nativa, os Compassos Chave nacionais são ainda muito utiliza-
dos para reforçar as imagens em movimento que retratam fatos e as-
pectos cultural-nacionais. Em todo caso, sonorizar as Imagens Chave
significa não apenas transpor os fossos semânticos deixados por falhas
visuais e da fala, mas manipular e modificar o conteúdo das próprias
imagens e da narrativa. O sincretismo audiovisual provoca a ilusão
de que os planos sonoros e as músicas que acompanham as imagens
em movimento pertencem à própria experiência do ver e isto permi-
te que as inserções musicais se tornem pouco ouvidas ou mesmo não
ouvidas, criando um campo propício para manipulação subjacente.
Por isso, ao longo de décadas, o estudo dos Compassos Chave não
foi considerado relevante ou esteticamente interessante para atrair a
atenção dos pesquisadores da música e dos ouvintes em geral, fato
este que se reverte atualmente pelas mudanças qualitativas da tecno-
logia de reprodução audiovisual.

Considerações finais
Em busca de respostas para decifrar o sempre maior e mais com-
plexo sistema de mídia, seus dispositivos, equipamentos e múltiplas
plataformas convergentes, várias teorias propõem ideias contraditó-
rias que partem de observações, em muitos dos casos de inspiração
disciplinar. A própria expansão do sistema surge da convergência de
disciplinas diversas e do número de ciências envolvidas nas intensas
midiamorfoses ocorridas em tempos recentes. A permanência neste
eclético mercado, que vai desde os conhecimentos abstratos e exatos

• Chaves Audíveis •
• 106 •

da ciência da computação até a contemplação desinteressada da di-


mensão estética, depende de um ‘jogo livre’ de entendimento e imagi-
nação, mas também de um jogo acirrado de participação competitiva.
Neste sentido, os produtores das companhias de mídia permanecem
atentos às tendências dos consumidores, apóiam e adotam ideias de-
fendidas pela maioria e criam novos produtos para as diversas clas-
ses sociais. Com isso, a diversidade e a dinamicidade desse mercado
produtor e consumidor das composições audiovisuais não pode ser
analisado por pontos isolados de observação. A constante revisão dos
dados empíricos e o estudo interdisciplinar dos níveis de produção e
consumo são indispensáveis ao entendimento dos dinâmicos temas
envolvidos.
Compassos e Imagens Chave inter/nacionais das produções audio-
visuais atraem o estudo e as análises no campo da ciência e tecnologia
em constante comparação com os resultados oriundos da dimensão
estética e das funções semânticas, bem como de seus impactos sobre
a audiência mundial. Para os Compassos Chave, após a caracteriza-
ção de tipos e modalidades de uso, tentou-se responder às três ques-
tões que motivaram este ensaio. Seguindo a ideia de que a música não
pode ser explicada unicamente por operações matemáticas, apesar de
estas serem fundamentais na produção de algoritmos complexos na
programação de parâmetros e valores das amostras de som e suas sín-
teses, outro ponto forte de observação resulta da observação sensível
entre imaginação-audição-entendimento. Desta maneira, enquanto
reúne-se o maior número de dados empíricos acerca dos arquivos em
análise com a respectiva codificação de forma e conteúdo, adota-se
o método comparativo interdisciplinar como contraponto metodo-
lógico para o entendimento dos resultados obtidos pela análise dos
arquivos gravados.
Por sua natureza efêmera, feita de ondas sonoras, os Compassos
Chave são invisíveis. Em um sentido metafórico mais abrangente,
eles são também não-audíveis, isto é: são tomados como símbolos

Leonardo Boccia
• 107 •

de uma pseudocultura universal e parecem ser parte integrante das


próprias imagens. Nessas mensagens imanentes e, por vezes, autori-
tárias do poder de produção e de distribuição desse capital simbó-
lico, aparentemente reconhecido e consumido pela maioria, outras
expressões musicais são silenciadas. O não-audível desse encadea-
mento de compassos que denominamos de Compassos Chave se dá
por uma pretensa universalidade dos motivos populares, sustentados
especialmente por companhias transnacionais de mídia. Notou-se,
por exemplo, que nas retrospectivas de fim de ano das mais influen-
tes emissoras de TV em quatro países, são também comuns os casos
em que as imagens em movimento em geral e as Imagens Chave em
particular são acompanhadas por passagens de composições da mú-
sica erudita ocidental. O bloco dedicado ao obituário, em que são
lembrados os nomes de personalidades falecidas durante o ano, é fre-
quentemente retocado por temas da música erudita, em sequências
musicais de duração maior que 1 minuto.
Contudo, nota-se a incidência preponderante de trechos da popu-
lar music, especialmente das canções dos ídolos mais badalados pela
indústria fonográfica e pelo mercado transnacional de mídia. Isto re-
porta ao caráter populista das mídias de tela e da arte de massa em
geral, com sua direta e fácil absorção pela maioria dos consumidores.
Esta tendência de popularizar e desdramatizar a comunicação pode
ser revertida nos próximos anos ou permanecer como uma caracte-
rística redutora das mídias de tela. Talvez em um futuro próximo seja
possível produzir conteúdo audiovisual sem a necessidade de recorrer
a simplificações restritivas. Todavia, se por um lado os momentos de
contemplação desinteressada e a conseguinte sensação de prazer esté-
tico produzido pelas mídias de tela são, se não raros, ainda precários,
por outro a música e os Compassos Chave oferecem uma compen-
sação invisível e efetiva para transpor os fossos semânticos deixados
pelas Imagens Chave e pela narrativa falada da mídia de tela.

• Chaves Audíveis •
• 108 •

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• Chaves Audíveis •
Michael Bull

IPODS E ANTI-FLÂNERIE: ESTETIZANDO A


CIDADE NO SÉCULO XXI1

O uso de tecnologias de comunicação móvel tornou-se parte inte-


grante de nosso universo cultural e urbano – esse universo é me-
diado pela tecnologia e nele uma quantidade crescente de nossas
experiências é canalizada através de uma ampla gama de tecnologias
de consumo que saturam tanto espaços públicos quanto privados
(MCCARTHY, 2001). O impacto que estas tecnologias têm sobre
o tecido da vida urbana cotidiana é complexo e multifacetado, tan-
to estruturalmente quanto individualmente. Este capítulo concen-
tra-se principalmente sobre a natureza estética dessa influência – e
o faz, focando-se no uso do primeiro ícone cultural de consumo do
século XXI – o iPod da Apple.
A construção estética da experiência urbana tem sido frequente-
mente vista através de uma epistemologia baseada no visual, em que
a figura do flâneur se agiganta. O flâneur é pensado para recriar a
natureza cinematográfica da experiência transposta para as ruas. O
consumo habitual de cinema e televisão é imaginado para alimentar
as formas com que os moradores da cidade podem recriar suas experi-
ências diária nas ruas da cidade. Em contraste com este entendimento
principalmente visual da experiência urbana, investigo a natureza de
uma estetização audiovisual da cidade realizada por usuários do iPod
e, ao fazê-lo, coloco o som no centro da estética cotidiana. É através
da complementação do som com a visão que a natureza de uma es-
tética urbana é, ao mesmo tempo, investigada e questionada.

1
Este artigo foi cedido pelo autor para publicação no Brasil no ECUS – Cadernos de Pesquisa. Tra-
dução por Natalia Coimbra de Sá.
• 113 •

O uso de tecnologias MP3 tornaram-se lugar-comum no am-


biente urbano, sendo que mais de 50% dos cidadãos do Ocidente
industrializado possuem habilidades para criar suas próprias bo-
lhas auditivas privadas enquanto se deslocam pela cidade2. A análi-
se a seguir baseia-se em dados primários coletados com mais de mil
usuários de iPod em todo o mundo3. A análise questiona tanto a
relevância do entendimento contemporâneo de flâneur como uma
ferramenta explicativa para as práticas estéticas dos usuários de iPod
quanto, simultaneamente, descarta críticas alternativas do poder da
estetização nas cidades baseada em uma série de premissas, que con-
sideram a modernidade das cidades, sua arquitetura e a forma como
nos movemos através dela como algo que simboliza o fim de práti-
cas estéticas urbanas (YOUNG, 2006).

Flânerie e o uso do iPod


A tecnologia veio para o auxílio dos sentidos, aumentando-os e di-
minuindo-os, reconfigurando-os e potencializando-os. Foi Walter
Benjamin quem primeiro nos alertou para o poder transformador
do filme sobre a cognição humana como, aliás, foi sua obra que re-
introduziu o conceito do flâneur no mainstream dos estudos culturais
e urbanos (BENJAMIN, 1973). A colocação de fones de ouvido, um
elemento intrínseco do uso de iPod, transforma o adágio histórico
de que as orelhas são o mais democrático dos sentidos; democrático,
precisamente, por causa de sua passividade em face do auditivo.
Tradicionalmente, o flâneur é entendido como um sujeito sem
raízes, deslocado, que se coloca no lugar do “outro” – imaginando
como o mundo seria a partir da posição do outro. (JENKS, 1995;

2
A maioria desses usuários possuem telefones celulares com capacidade de MP3. Baudrillard esta-
va à frente do seu tempo, afirmando que “cada um em sua própria bolha; esta é a lei hoje.” (BAU-
DRILLARD, 1988, p.39). In: The Ecstasy of Communication. Trans. Bernard and Caroline Schutze.
Ed. Sylvère Lotringer. New York: Semiotext(e), 1988.
3
Para mais detalhes ver Bull, 2007.

• iPods e anti-flânerie: Estetizando a cidade no século XXI •


• 114 •

TONKISS, 2005). Benjamin também entendeu o flâneur como


representando a imagem de outsider, porém, na retórica contem-
porânea, flânerie tornou-se universalizado – todos nos tornamos “flâ-
neurs” em uma imagem higienizada das relações urbanas, em que a
flânerie se torna uma parte integrante do olhar do “turista” (URRY,
2000). Integral para a compreensão da flânerie contemporânea é
que a cidade seja entendida, em certo sentido, como “cinematográ-
fica”; que a nossa experiência de mídia em casa seja reproduzida em
nossa apreensão da rua urbana:
Como uma construção social e textual da visualidade móvel,
flânerie pode ser historicamente situada como um fenômeno
urbano, ligado de forma gradual à nova estética da recepção
encontrada em “ir ao cinema”... uma maior centralidade do
olhar móvel [é] uma característica fundamental da vida coti-
diana. (FRIEDBERG, 1993, p. 3)

A estética visual personificada no olhar contemporâneo é afirma-


da em termos de sua veracidade empírica e como uma ferramen-
ta conceitual através da qual podemos compreender a natureza da
nossa apropriação da cidade: “O flâneur, embora baseado na vida
cotidiana, é uma forma analítica, um dispositivo de narrativa, uma
atitude em relação ao conhecimento e seu contexto social. É uma
imagem de movimento através do espaço social da modernidade.”
(JENKS, 1995, p. 146).
Nesta apropriação estética do espaço urbano, a cidade se torna
uma força estimulante, atraente e rica; um lugar de diferença, no
qual o envolvimento cognitivo e emocional dos sujeitos com ela é
caracterizado pela sua intensidade. O flâneur torna-se representan-
te da pessoa para quem movimento e estética se fundem. O usuário
do iPod, ao criar uma bolha de som móvel hermeticamente fecha-
da, cujas características podem ser representadas em termos de uma
saturação do mundo sonoro dos usuários – tanto imediata quanto
intensa, aparece dessa forma como um candidato útil ao flaneurismo

Michael Bull
• 115 •

contemporâneo, na medida em que o potencial estetizador desta tec-


nologia “totalizante” permite que os usuários recriem esteticamen-
te o ambiente, à vontade. De fato, as abordagens iniciais do uso de
Walkman muitas vezes recorreram às noções de flânerie para expli-
car o potencial de estetização da tecnologia (HOSOKAWA, 1994).
Formas móveis de experiência audiovisual foram incorporadas às
narrativas anteriores da cidade como experiência visual reduzindo,
assim, o audiovisual ao visual. No entanto, a recriação audiovisu-
al privatizada da experiência urbana é diametralmente oposta à flâ-
nerie. A dimensão audiovisual da experiência exige uma explicação
diferente do meramente visual.

A cidade fílmica
Os usuários de iPod muitas vezes descrevem a cidade em termos fíl-
micos4 – apesar de que esta estética visual não é uma forma de flâ-
nerie. O mundo vivenciado como um roteiro de cinema, do qual o
usuário assume o comando, é uma descrição comum dos usuários
de iPod. O mundo, e a experiência do usuário dentro deste, ganha
significado através do seu envolvente e privatizado espaço sonoro.
Usuários de iPod invariavelmente preferem ouvir sua música em vo-
lume alto, o que lhes proporciona uma enorme sensação de presen-
ça, ao mesmo tempo que bloqueia qualquer som do ambiente que
possa prejudicar o intensificado e poderoso prazer de utilização.
O mundo parece mais amigável, mais feliz e ensolarado quando
eu ando na rua com meu iPod ligado. Sinto como se eu esti-
vesse em um filme, às vezes. Como se minha vida tivesse uma
trilha sonora agora. Ele também tira um pouco do barulho das
ruas então, de alguma forma, tudo ao meu redor se torna mais
calmo. Ele me separa do meu ambiente, como se eu fosse uma
observadora invisível, flutuando. (Berkley)

4
No decorrer do texto o autor apresenta diversos depoimentos de usuários de iPod.

• iPods e anti-flânerie: Estetizando a cidade no século XXI •


• 116 •

Acho que quando estou escutando algumas opções de músi-


ca, sinto como se eu realmente não estivesse lá. Como se eu
estivesse vendo tudo à minha volta acontecendo em um fil-
me. Começo a sentir o ambiente através do humor da música
e percebo que posso começar a amar uma rua que eu costumo
odiar, ou sentir medo sem nenhum motivo. (Susan)

Enquanto o condicionamento do fílmico na criação de uma es-


tética audiovisual personalizada é proeminente nas narrativas de
uso do iPod acima, na maioria dos casos, os usuários afirmam que
o princípio estético tende a ser dependente do uso de seus iPods. Os
usuários vão escolher playlists ou avançar para uma faixa de música
que se adapta tanto ao seu humor quanto ao seu entorno. Usuários
de iPod têm como objetivo criar um mundo sonoro privado, que
esteja em harmonia com seu humor, orientação e entorno, permi-
tindo-lhes re-capitalizar a experiência urbana por meio de um pro-
cesso muito semelhante à estetização solipsista. Os usuários do iPod,
em vez de tentar entender ou ver a “alteridade” da cidade como tal,
buscam normalmente criar para si um mundo urbano esteticamente
agradável à sua própria imagem. Eles colocam o mundo de acordo
com as suas predisposições cognitivas – o que, na verdade, é um ato
de mimetismo. Esta apropriação estética do espaço urbano é uma
estratégia cognitiva operacionalizada de como eles tentam criar uma
rede sem costuras de experiências mediadas e privatizadas em seu
movimento cotidiano pela cidade, potencializando à vontade prati-
camente qualquer experiência, em qualquer localização geográfica.
Valorização estética é uma estratégia central dos usuários de iPod ao
trazerem a cidade para si como uma presença habitável.

Cosmopolitismo no iPod
O flâneur foi interpretado como parte integrante da cidade cosmo-
polita. A imagem cosmopolita da vida na cidade é, pelo menos par-
cialmente, uma função da vida na rua (SIMMEL, 1997). Através da

Michael Bull
• 117 •

interação com – e estando aberto à – experiência, o cidadão urbano


contribui para o rico tecido da vida da cidade. No entanto, enquanto
muitos usuários do iPod relatam desfrutar da vida citadina, a deles,
particular, é uma experiência mediada dos prazeres da cidade. A ci-
dade é frequentemente vista através dos produtos da indústria cul-
tural na forma de música, audiobooks e, claro, o iPod em si:
Refiro-me ao meu iPod como meu marca-passo, ele me ajuda
a encontrar o ritmo. Eu viajo quase que exclusivamente para
a cidade de Nova York quando não estou em Londres. Eu te-
nho uma lista musical dedicada a ela, que se chama “NY Sta-
te of Mind5“ e inclui uma grande quantidade de música rap
e jazz de Nova York e da Costa Leste. Algo que tenha NY na
letra, mas também a sofisticação, a modernidade e a energia
do lugar. (Sami)

Faz com que a cidade de Nova York pareça um lugar feliz – um


lugar onde os táxis não buzinam... também, ele sempre ajuda
a ajustar o meu humor – se eu estou escutando John Denver,
estou feliz e despreocupada – Se é AC/DC, estou me sentindo
como uma nova-iorquina... (Susie)

Nos exemplos acima, o significado dos espaços da cidade em si


deriva das playlists dos usuários. O cosmopolitismo se torna uma re-
alidade ficcional existente na mistura frequentemente eclética de mú-
sicas contidas no iPod, na própria coleção de músicas dos usuários.
Para muitos usuários de iPod, o prazer da cidade vem de não interagir
com os outros que “perturbam” e “distraem” a sua energia, mas sim,
de escutar música, o que pode lembrá-los do que é viver em uma ci-
dade. Um cosmopolitismo mediado, encapsulado em seu iPod.

Não-lugares e o uso do iPod


Críticas alternativas da flânerie contemporânea apontam para o pa-
pel que os automóveis desempenham na cidade; em que a cidade
5
Estado de Espírito de Nova York (N. T.)

• iPods e anti-flânerie: Estetizando a cidade no século XXI •


• 118 •

não é mais um lugar para andar a pé, mas um lugar para dirigir ou
de trânsito. Grandes áreas da cidade estão entregues a sistemas de
transporte relegando o pedestre a uma pequena parte da vida da ci-
dade. A própria natureza do dirigir é facilitada em relação à flânerie,
pois o motorista foca apenas na pista à sua frente qualitativamente,
desvalorizando o trajeto para a atingir a meta fundamental, que é
chegar ao seu destino (YOUNG, 2006).
A velocidade das cidades modernas é também pensada como
destruidora das condições para caminhar sem rumo, um elemento-
chave da flânerie. Na melhor das hipóteses, tudo o que resta são os
flâneurs turistas em seus “itinerários de três dias” (WHITE, 2001).
Adicionada a estas condições urbanas adversas está a própria natu-
reza da arquitetura da cidade moderna. Essencial para o flâneur, ar-
gumenta-se, é a estranheza e a singularidade da cidade. As cidades
modernas, em contraste a isso, são definidas pela sua essencial seme-
lhança – uma arquitetura insossa e internacionalmente homogênea
– que, acoplada à suburbanização da cidade, resulta na proliferação
de não-lugares que trabalham contra a estetização (AUGE, 1995).
Augé, em sua análise do espaço urbano, usou o termo “não-lugar”
para descrever uma cultura urbana de espaços semiologicamente
desnudos: shopping centers, aeroportos, auto-estradas e similares.
Ele pensou nesses espaços como se tivessem sido soltos sobre a pai-
sagem urbana de forma aleatória, formas arquitetônicas invariavel-
mente insossas; quem sabe diferenciar um shopping center de outro,
por exemplo? Espaços urbanos, a partir dessa perspectiva, cada vez
mais funcionam como zonas de trânsito intermináveis da cultura
urbana – emblemas de sua natureza cada vez mais móvel
Contudo, com o uso do iPod, qualquer espaço urbano pode tor-
nar-se um não-lugar que pode ser estetizado. A característica que
define a nossa relação com o espaço urbano não é, necessariamen-
te, a maneira como ele é culturalmente situado. Para os usuários de
iPod, qualquer espaço urbano pode se tornar um “não-espaço”. Isso

Michael Bull
• 119 •

não depende da natureza “antropológica” do espaço em si, mas, cada


vez mais, da resposta subjetiva e tecnologicamente empoderada a
esse espaço, ou mesmo, de sua negação prévia através das predileções
cognitivas do sujeito. Assim como a colocação de fones de ouvido dá
o poder às orelhas, da mesma forma o sujeito urbano é livre para re-
criar a cidade à sua própria imagem, através do poder do som, como
o seguinte usuário de iPod tão apropriadamente descreve: “Quando
eu conecto e ligo meu iPod, dá um “ctrl+alt+delete” no meu entorno
que me permite ‘estar’ em algum outro lugar (Wes).”
Os usuários de iPod assemelham-se ao imaginativo morador da
cidade que recria esteticamente qualquer espaço escolhido à von-
tade. Além disso, o uso do iPod permite aos usuários controlarem
e gerenciarem suas experiências urbanas, aproveitando o tempo do
trajeto, tanto se ele estiver viajando a pé, em transporte público ou
de automóvel. Ao fazê-lo, o tempo se torna subjetivado e a veloci-
dade é trazida ao ritmo do usuário.
Eu vejo as pessoas mais como escolhas, quando estou usando
meu iPod. Em vez de ser forçada a interagir com elas, eu pos-
so decidir. É quase libertador perceber que você não tem que
ser educado ou sorrir ou fazer qualquer coisa. Eu consigo me
mover através do tempo e do espaço na minha velocidade [e
no] meu ritmo. (Andrea)

O som, ao mesmo tempo que coloniza o ouvinte, ativamente re-


cria e reconfigura os espaços da experiência. Através do poder de um
mundo sonoro privatizado, o mundo se torna íntimo, conhecido e
possuído. A imaginação é mediada pelos sons do iPod, tornando-se
um componente essencial da própria capacidade de imaginar. Os
usuários de iPod constroem uma narrativa estética para a cidade
decifrada a partir dos sons da indústria cultural que emana de seus
iPods. Ao fazê-lo, se tornam o centro de seu mundo: “O mundo
parece menor – Sou muito maior e mais poderosa escutando mú-
sica. O mundo é, geralmente, um lugar melhor; ou, pelo menos, é
simpático ao meu humor. (Sophie)”

• iPods e anti-flânerie: Estetizando a cidade no século XXI •


• 120 •

O mundo é alinhado através de um ato de cognição privado e


mediado. No entanto, a estetização tem implicações utópicas para
os usuários. Estetizar é transcender a vida mundana como ela é vi-
vida. Estetização continua a ser um modo ativo de se apropriar do
urbano, transformando aquilo que existe, tornando-o do próprio
usuário. Neste processo de estetização, os usuários de iPod trans-
formam o mundo em conformidade com suas predisposições, tor-
nando-o uma fantasia mimética cuja “alteridade”, em seus vários
aspectos, é negada. A cidade do século XXI é o espaço do usuário
de iPod, não do flâneur.

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Durham: Duke University Press, 2001.

Michael Bull
• 121 •

SENNETT, R. The conscience of the eye. London: Faber, 1994.


SIMMEL, G. Simmel on culture. London: Sage, 1997.
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WHITE, E. The flaneur: a stroll through the paradoxes of Paris.
London: Bloomsbury Books, 2001.

• iPods e anti-flânerie: Estetizando a cidade no século XXI •


Holger Schulze

A SALA AUDÍVEL: INTRODUÇÃO A UMA


ANTROPOLOGIA HISTÓRICA DO SOM NA
ARQUITETURA1

Introdução
O espaço no qual você lê este ensaio, um espaço no qual você talvez
tente imaginar minha voz neste momento – o seu espaço é completa-
mente desconhecido para mim. Eu nunca estive aí. Esse ensaio é uma
tradução da transcrição de uma palestra minha que foi gravada para
uma exibição em Maracaíbo, Venezuela, curada pelo artista sonoro
Marco Montiel-Soto em março de 2010. Agora você começa a con-
centrar sua atenção cada vez mais nestas palavras e enquanto começo
a contar sobre a pequena história deste ensaio você percebe: este pe-
queno começo, estas poucas palavras servem como uma desculpa para
encontrar minha voz escrita, minhas palavras em inglês – que não é a
minha língua nativa, o alemão – e que foram traduzidas por Natalia
Coimbra de Sá para o português, que eu mal compreendo, e muito
menos falo. Como qualquer introdução, essas palavras são um tipo de
tempo de ataque, Einschwingzeit2 para todos nós – para mim, autor,
e para você, leitor. O ensaio começou; talvez nós estabelecemos um
tipo de relacionamento, um contato, um fluxo de comunicação entre
nós – e agora, a parte principal do meu ensaio pode começar.

1
O presente texto foi cedido pelo autor para publicação no Brasil no ECUS – Cadernos de Pesquisa,
e consiste na transcrição da palestra “The Audile Room: Introduction to a Historical Anthropology of
Sound in Architecture” proferida durante o evento (((ESTA CASA ESTA SONADA))) organizado por
Marco Montiel-Soto e realizado no Bairro de Santa Lucía, Maracaibo (Venezuela), durante os dias 5 e
6 de março de 2010. Traduzido por Natalia Coimbra de Sá.
2
Einschwingzeit pode significar “tempo de assentamento” ou “tempo de ajuste” e aqui quer dizer aqui-
lo que sai da oscilação e volta para uma posição de equilíbrio (N. T.).
• 123 •

O que é o som de uma construção?


Como todos devem saber, o discurso sobre arquitetura e som não é
algo novo. Ele tem uma antiga história: há uma longa tradição de
impressionantes construções, catedrais, castelos, até salas de concer-
tos e sedes de empresas; vocês devem conhecer os estudos influentes
de Leo Beranek e outros; e há ainda outra tradição de incorporação
de sons, músicas e experiências auditivas no pensamento sobre ar-
quitetura – e na construção. Talvez vocês conheçam a Sound Art ou
Klangkunst, de Bernhard Leitner e outros.
Por outro lado, vocês devem saber também que a tarefa profissio-
nal diária não é o projeto de galerias de arte sonora ou a extravagân-
cia das salas de concerto, ou construir grandes e impressionantes vilas
ou sedes de empresas. A tarefa diária dos arquitetos está em construir
edifícios, salas de escritórios ou shopping centers, complexos de en-
tretenimento e prédios funcionais para produção industrial. Então,
como estas construções soam? Nós simplesmente não sabemos. Por-
que nossa sociedade e nós, os que somos politicamente ativos, que
votamos, e todos os legisladores, eles parecem não se importar.
Mas então, por que devemos nos importar? Pare, vocês podem di-
zer. A Room Acoustics e a Architectural ou Building Acoustics e tam-
bém o campo da Noise Reduction e suas pesquisas, eles se importam
com o som. Mas essa não é a qualidade auditiva do som da qual eu
estou falando. Redução de ruído e construção acústica são campos
de pesquisa para parar e impedir o ruído de se propagar através de
materiais elásticos nas construções. Eles pretendem prevenir o som.
Eles não buscam projetar a experiência sônica nas construções. E esse
é o ponto onde a qualidade antropológica de projetar construções, a
arquitetura inventiva, surge.

• A sala audível: introdução a uma antropologia histórica do som na arquitetura •


• 124 •

A perspectiva auditiva antropológica


Nós estamos neste momento parados ou sentados em uma determinada
construção ou área urbana arquitetonicamente projetada e construí-
da. Nós não olhamos cartões ou maquetes de madeira. Nós não pro-
cessamos um gráfico 3D de uma construção e o olhamos numa tela.
Nós estamos inseridos nessa situação de uma forma mais ou menos
intensa, desafiadora, tediosa ou irrelevante. Com pessoas sentando e
levantando, respirando e pensando, divagando em seus próprios pen-
samentos; com roupas e movimentos, sussurrando e usando pequenos
aparelhos eletrônicos. Nós agimos e respiramos e ouvimos e sentimos
e percebemos esse espaço aqui: esse espaço também é – como qual-
quer espaço – uma sala audível. Uma sala para ouvir.
Esse é o lado experiencial da arquitetura, o lado antropológico de
construir – e viver em construções. A antropologia histórica com-
promete-se com pesquisas a esse respeito – em qualquer aspecto da
vida humana. Seja a qualidade de vida humana com as máquinas,
trabalho ou amor, violência ou meditação. A disciplina da antropo-
logia histórica formula a questão: como, no presente e no passado,
os seres humanos de diversas culturas, diversas raças, gêneros, idades
e constituições físicas, experimentam as qualidades multifacetadas de
suas vidas? Como os seres humanos experimentam a mudança dessas
qualidades e como elas contribuem para a transformação constante
de suas vidas?
Agora, numa história antropológica do som – como eu estou de-
senvolvendo há alguns anos – este campo de pesquisa lança um olhar,
ou melhor, uma escuta às transformações nas qualidades experienciais
individuais, específicas dos seres humanos (ou grupos de seres huma-
nos) convivendo e percebendo suas vidas com e através do som. A
antropologia histórica do som questiona nossas – não raramente equi-
vocadas – suposições fixas sobre as qualidades auditivas e sonoras do

Holger Schulze
• 125 •

espaço, a situação da nossa percepção corporal, da cultura, da nossa


experiência, da tecnologia e da narração, da história e do tempo.
Todas essas categorias que eu listei foram definidas na história e
cultura ocidental como estáveis, estáticas e caracterizadas como cons-
tantes e lineares – ou, ao menos, melodramáticos e agonísticos desen-
volvimentos; mas quando escutamos o som nas nossas culturas, nos
tornamos conscientes de que, por exemplo, nossa percepção corporal
é diferente daquilo que é aceito como a verdade comum – mesmo
em diversas ciências: percepção corporal é normalmente descrita em
termos de canais sensoriais corporais específicos, que estão abertos
exclusivamente para informações sensoriais específicas processadas
exclusivamente no nosso cérebro, e ali, por sua vez, em áreas especí-
ficas e separadas.
Mas se ouvirmos a nós mesmos e a nossas experiências em situa-
ções de escuta específicas, situações de autopercepção, podemos dizer:
Não. Eu não posso separar minha experiência sensorial (neste mo-
mento, por exemplo) de perceber o espaço onde estou escrevendo e
revisando este ensaio da minha escuta deste espaço no qual me en-
contro agora. Eu não posso separar minha experiência sensorial das
minhas antecipações das possíveis reações dos leitores (e tradutores)
a estas palavras e aos meus argumentos.
A antropologia histórica dos sentidos (e dos sentidos auditivos espe-
cificamente), pode demonstrar a historicidade dos conceitos de corpo
e de percepção. Nós tomamos, assim, a posição de uma perspectiva
auditiva antropológica. Eu tomo emprestado esse termo “perspecti-
va auditiva” do artista sonoro e compositor austríaco Sam Auinger
e do artista norte-americano Bruce Odland. Em um ensaio eles nos
lembram dos seguintes fatos:
Desde a renascença nós temos uma perspectiva visual consen-
sual e linguagem para falar precisamente sobre imagens. Isso
ainda nos falta no mundo do som, onde o mundo nos falha até
mesmo para descrever, por exemplo, a complexa forma de on-
das de um ambiente urbano, muito menos aquilo que os sons

• A sala audível: introdução a uma antropologia histórica do som na arquitetura •


• 126 •

fazem para nós e como nos fazem sentir. Nós estamos perdidos
em uma tempestade de ruídos sem linguagem para discussão
(AUINGER; ODLAND, 2007).

Então, antropologicamente, nós podemos perguntar: Como po-


demos escutar e ouvir com um conceito sensorial em mente que não
nos separe dos sentidos? Isto nos garante a habilidade de perceber uma
situação em toda sua totalidade – com suas qualidades sensoriais todas
presentes enquanto qualidades – e não detalhes atomizados.
Quando transferimos essas idéias para o projeto arquitetônico de-
vemos, a princípio, esquecer nossos pressupostos de que certamente
sabemos (pela tradição, pela autoridade, pelos diplomas universitá-
rios) o que uma construção precisa, como funciona e o que é, porque
elas são construídas assim sempre... Mas como poderíamos construir
e projetar com as reflexões sonoras e as necessidades dos ouvintes em
mente?

Arquitetura aural
Uma proposta para responder essa questão foi publicada em 2006
por Barry Blesser, o famoso engenheiro e programador do primeiro
algoritmo digital de reverberação no final dos anos 1970. Seu am-
plamente reconhecido trabalho na MIT-Press, sobre os aspectos au-
ditivos da arquitetura (que ele escreveu juntamente com sua esposa
Linda Ruth-Salter) se chama: Space speak – Are you listening? Expe-
riencing Aural Architecture. Este volume é, ao meu ver, o principal e
essencial trabalho para o ensino e aprendizado, pesquisas e projetos
que relacionam arquitetura e som: projetar arquitetura com um sen-
so auditivo. Blesser desdobra aspectos antropológicos e tecnológicos,
históricos, psicológicos e, até mesmo, sociológicos da arquitetura so-
nora. E ele propõe e cunha novos termos para tratar do projeto so-
noro em construções. Nos posicionamos, de acordo com Blesser, em
uma arena auricular em qualquer momento de nossas vidas; a escuta

Holger Schulze
• 127 •

numa sala se torna iluminada pelo som:; assim, nós experimentamos


o horizonte aural de uma situação de escuta – e por aí vai.
A crítica acadêmica de tais teorias ou um corpus de novas defini-
ções e termos úteis é rapidamente crescente: Talvez esses novos termos
sejam enganadores? Muito fortemente conectados a uma perspectiva
visual e não a uma dinâmica de escutar e ouvir? Talvez o conceito de
arquitetura sonora implique principalmente estruturas estáticas, ao
invés de fluxos de movimentos e tráfego?
Mas, apesar disso, essa breve introdução de Berry Blesser abre e pa-
vimenta um caminho que mostra uma forma de projetar arquitetura
com ouvido – não apenas com o órgão auditivo “ouvido”, mas com
a habilidade de escutar e ouvir sons com todo o corpo, como sem-
pre fazemos. Ouvimos, por exemplo, com nosso estômago – nosso
altamente conectado e praticamente independente centro de reações
nervoso interno, denominado na medicina de cérebro no estômago.
Nós ressonamos com nossas pontas dos dedos, nossos ossos, nosso
crânio. Nós reagimos às emissões sonoras que se propagam através do
nosso próprio corpo – em qualquer instante de nossas vidas.
Esse contorno teórico elaborado por um engenheiro como Bles-
ser mostra vividamente os ensinamentos da antropologia histórica do
som: nós ouvimos com todo nosso corpo, percebemos sonoramente
com nosso corpo vivo de tensões, nosso corpus (Nancy), nosso Leib
(Schmitz). Nós mesmos somos o palco, a arena onde esses eventos
sensoriais acontecem. Eles não acontecem fora de nós – onde esse es-
tranho lugar chamado fora poderia estar?
Então, eu volto a uma das minhas definições preferidas de som.
Vocês podem encontrá-la na mais recente edição impressa da Enci-
clopédia Britânica. Lá vocês verão que som é definido como: “Per-
turbação mecânica de um estado de equilíbrio que se propaga através
de um meio material elástico”3.

3
Encyclopaedia Britannica, 2003 A.D.

• A sala audível: introdução a uma antropologia histórica do som na arquitetura •


• 128 •

A sala audível
Então, como podemos projetar espaços, salas, estruturas arquitetôni-
cas que podem tentar seguir na busca de ser um apoio auditivo, ade-
quadas para experiências sonoras específicas – que não sejam definidas
por institutos de padronização? Por exemplo, o Instituto Alemão de
Padronização se envolve em experiências auditivas, obviamente relati-
vas ao campo amplamente profissional e de tecnologias para consumo
de áudio, mas também no campo da acústica de ambientes, relativo
à adequação para experiências auditivas definidas.
Não é necessário dizer que os padrões da DIN 18041 Hörsamkeit
in kleinen bis mittelgroßen Räumen4 não são leis – eles são apenas
para orientação, e talvez para o bom senso dos legisladores e planeja-
dores urbanos. Mas: é útil seguir estes padrões? Pode ser útil apenas
construir salas que seguem o padrão mais baixo de adequação auditiva.
Mas devemos mirar mais alto. Por que não há modelos para projetar
espaços privados em um sentido auditivo – que não seja de acordo
com alguma lei ou padrão ou apenas com os orçamentos disponí-
veis? Mas, de acordo com as necessidades e os desejos individuais das
pessoas que lá estão relaxando, ou trabalhando, ou comprando (este
é um tipo de trabalho, por sinal), ou apenas vivendo lá.
Então, a questão não é como conceituamos uma sala, como uma
idéia abstrata, talvez um conceito esteticamente satisfatório ou um
padrão de design inovador. A questão é: como vivenciamos uma sala
– e como podemos projetar um ambiente que proporcione um pano
de fundo adequado ou fundamental para as principais ações que es-
tarão acontecendo numa construção ou estrutura arquitetônica.
Para este fim, eu quero propor o termo sala audível. Uma sala
audível não é apenas uma sala na qual podemos ouvir. Qualquer
sala é assim: até a mais terrível sala de conferências, feita de placas

4
Um tipo de norma padrão alemã para certificação de qualidade acústica em salas pequenas a mé-
dias (N. T.)

Holger Schulze
• 129 •

retangulares dispostas em vidro polido e aço. Esse refinado cubo de


vidro sem junções visíveis ou seções de contato é o mais nobre con-
ceito do modernismo estético – e é sonoramente o mais insuportável
e desastroso ambiente, devido a todas as camadas e imponentes on-
das estacionárias que produzem a partir de qualquer pequeno even-
to sonoro. É um inferno acústico. Mas até em um lugar assim isso é
possível. Você pode ouvi-lo. Apesar de não por muito tempo...
Mas um lugar assim não é audível: não é feito e nem apropriado
para nenhum evento auditivo ou sonoro. O termo utilizado em ale-
mão é hörsam – e foi recentemente utilizado pelo influente pesquisa-
dor canadense de estudos do som Jonathan Sterne, no seu importante
trabalho sobre Audile Techniques: as técnicas que são qualificadas para
todos os eventos na esfera sônica.
Desenvolvemos técnicas audíveis quando colocamos nossos fones
de ouvido do iPhone, quando escutamos um estéreo ou efeito de som
surround; quando escutamos uma comunicação por telefone celular e
reconhecemos que é alguém conhecido – através dessas informações
sonoras muito básicas e mínimas.
Uma sala audível, portanto, seria uma sala qualificada para eventos
específicos na esfera sonora. Não precisa ser qualificada para qualquer
evento sonoro; mas deve ser apropriada para uma série de eventos que
podem acontecer lá,para que a maioria dos seres humanos que se es-
palhem por lá – e para as experiências que eles poderão encontrar.
Uma sala audível necessita de arquitetos audíveis; e arquitetos au-
díveis precisam de respeito, empatia, e até de uma habilidade miméti-
ca: o senso para os desejos das pessoas que se apropriam daquele novo
espaço construído, apenas usando-o, vivenciando-o, adicionando a
ele uma história – no curso de anos e décadas.

• A sala audível: introdução a uma antropologia histórica do som na arquitetura •


• 130 •

REFERÊNCIAS

AUINGER, Sam; ODLAND, Bruce. Hearing perspective (think with


your ears). In: SEIFFARTH, Carsten; STURM, Martin (Eds.). Sam
Auinger: katalog, Folio Verlag Wien-Bozen, 2007, S. 17.

Holger Schulze
Nancy K. Baym

A NOVA FORMA DE COMUNIDADE ONLINE:


O EXEMPLO DAS COMUNIDADES DE FÃS DE
MÚSICA INDEPENDENTE SUECA1

Introdução
A ascensão das redes sociais é muitas vezes utilizada para exemplificar
um deslocamento das comunidades online com base em interesses
presentes na primeiras versões da Web para uma nova “Web 2.0”,
na qual os indivíduos são a unidade básica, ao invés das comunida-
des. Em um artigo publicado na First Monday, por exemplo, Boyd
(2006) afirma que “as redes egocêntricas substituem grupos.”
Defendo que os grupos online não tenham sido “substituídos”.
Mesmo que seus membros criem perfis pessoais e redes egocêntricas
através do MySpace, Facebook, BlackPlanet, Orkut, Bebo e inúme-
ros outros sites emergentes de redes sociais, os grupos online con-
tinuam a prosperar em fóruns de mensagens, jogos de computador
interativos e, até mesmo, na ainda não esquecida Usenet.
No entanto, as comunidades online também estão adotando uma
nova forma intermediária entre os grupos baseados em web sites e
as redes egocêntricas, distribuindo-se através de uma variedade de
sites em formas quase coerentes de conexões. Esta nova forma de
comunidades distribuídas coloca problemas específicos para os seus
membros, desenvolvedores e analistas.
Este artigo, baseado em mais de dois anos de observação parti-
cipante, descreve esta nova forma de comunidade online através de

1
Este artigo foi cedido pela autora para publicação no Brasil no ECUS – Cadernos de Pesquisa. A
versão original em inglês foi publicada originalmente na First Monday, v. 12, n. 8 (ago. 2007). A
autora agradece a Avi Roig, Craig Bonell e os autores da Absolute Noise e Hello!Surprise! por com-
partilharem suas estatísticas. E também a Roig e Stacey Shackford pela ajuda com a análise, Robert
Burnett pelas correções, Marc Smith e Microsoft Research pelo apoio a este trabalho. Traduzido por
Natalia Coimbra de Sá.
• 133 •

um olhar mais atento sobre a comunidade multinacional de fãs de


música rock independente da Suécia.

Fandom
Aqueles que estudam “fandom” discordam sobre sua definição. No
mínimo, a maioria concordaria que envolve um coletivo de pesso-
as organizadas socialmente em torno de sua apreciação partilhada
de um objeto (ou objetos) de cultura pop (p. ex. JENKINS, 1992,
2006; BAYM, 2000; HILLS, 2002; O’REILLY E DOHERTY, 2006).
Desde meados da década de 1990, estudos sobre fandom têm cres-
cido cada vez mais, focados na internet como um locus de ativida-
de dos fãs.
Os Fandoms agrupam e geram inteligência coletiva e afeto. Indi-
víduos criam autoconceitos e auto-representações dentro dos grupos
de fãs. Alguns tornam-se conhecidos para outros fãs através do fan-
dom. Esses grupos também desenvolvem um senso de identidade
compartilhada. Relações pessoais são formadas entre alguns mem-
bros do grupo de fãs. Fandoms particulares pode ter um ethos com-
partilhado, mas divergências dentro das comunidades de fãs são um
tanto comuns e, muitas vezes, desejáveis. Em geral, os fandoms são
altamente criativos, um fenômeno que a internet trouxe à tona e ao
qual possibilitou novas formas de fandom.
Fandom é um prenúncio de fenômenos culturais futuros. Entre
os primeiros criadores, defensores e usuários da internet estavam
os fãs de Star Trek e Grateful Dead2, ansiosos para usar seu novo
sistema para discutir esses temas de forma comunitária. Músicos e
seus fãs foram, em grande parte, os responsáveis por conduzirem
o desenvolvimento do MySpace. Comunidades online de fãs estão

2
John Perry Barlow, um dos pensadores e usuários pioneiros da internet, não era apenas um fã da
banda, mas também um de seus letristas.

• A nova forma de comunidade online •


• 134 •

na vanguarda da “cultura de convergência”3, em que os materiais e


textos da cultura popular tomam forma através de múltiplas plata-
formas interligadas.
Nessa cultura, os fãs (e, por extensão, os consumidores de qualquer
marca) têm uma influência crescente na formação dos fenômenos
em torno do qual se organizam. Mais do que qualquer outro setor
comercial, a indústria da cultura popular se baseia em comunidades
online para divulgar e dar recomendações sobre seus produtos. E
cada vez mais indústrias tendem a procurar desenvolver bases de fãs
online à medida em que comercializam os seus produtos de forma
cada vez mais desterritorializada e interativa. No início de 2000, o
lançamento feito pelo Yahoo de Brand Universe, portais concebi-
dos especificamente para os fãs de marcas específicas, sugere a am-
plitude deste potencial.
Os fãs de música têm se conectado online desde o início da in-
ternet e atualmente continuam a expandir seus limites. A partir do
final dos anos 1970 e início de 1980, as comunidades de fãs de mú-
sicas mais antigas na internet foram as listas e grupos de discussão da
Usenet, muitos dos quais ainda funcionam. Em meados da década
de 1990, os fãs de música estavam entre os primeiros a construir si-
tes para promover interação comunitária.
Este desenvolvimento é muito bem ilustrado pela atividade onli-
ne dos fãs em relação à banda norte-americana R.E.M. Essa base de
fãs começou a sua vida online com uma lista de discussão no final
dos anos 1980. Quando a popularidade da banda e do tamanho da
lista cresceu, no início dos anos 1990, os membros votaram a favor
da dissolução deste modelo e criação de um grupo de notícias atra-
vés da Usenet chamado rec.music.rem, em seu lugar. Uma vez que
o canal foi lançado, um pequeno grupo de articuladores criou uma
lista de discussão só para convidados.

3
Frase de Henry Jenkins.

Nancy K. Baym
• 135 •

Com o tempo, rec.music.rem encheu-se de spam e tornou-se li-


mitado pela relativamente estreita plataforma de comunicação da
Usenet em comparação com web sites e fóruns. Nessa brecha surgiu
Ethan Kaplan, então com 16 anos de idade, que construiu murmurs.
com, um site de fãs do R.E.M., em 1997. Esse site foi tão bem suce-
dido que a gravadora do R.E.M., a Warner Brothers, eventualmente
contratou Kaplan como seu diretor de tecnologia. Hoje, murmurs.
com, rec.music.rem, outras listas de discussões derivadas e muitos
outros sites criados por fãs do R.E.M. coexistem.
Na década de 2000, os fãs de música têm desempenhado um pa-
pel central nas redes sociais online. Nem todas têm sido alimentadas
pela relação entre fãs e bandas como o MySpace, mas a maioria das
interfaces incentivam as pessoas a listar ou adicionar em seus perfis
as bandas de que gostam para a construção de sua identidade vir-
tual. Desde 2005, pelo menos duas dúzias de redes sociais baseadas
em música foram (e continuam sendo) lançadas, incluindo Last.fm,
MOG, iLike e Goombah.
Last.fm, o maior e mais antigo site de relacionamento social ba-
seado em música, permite aos usuários baixar um software que ras-
treia aquilo que eles escutam gerando gráficos pessoais de músicas
que são exibidos em seu perfil. Os usuários da Last.fm também po-
dem usar seus perfis para escrever autodescrições e criar blogs, adi-
cionar como amigo outros usuários, ver quem são seus “vizinhos
musicais” (usuários que, de acordo com os algoritmos da Last.fm,
têm gosto musical mais semelhante ao seu), participar dos grupos,
criar playlists, ter acesso às rádios personalizadas, escrever e ler men-
sagens pessoais, deixar mensagens em quadros de recados públicos.
Widgets4 baseados nas listas de preferência musicais dos usuários da

4
Normalmente são componentes de uma interface gráfica que podem receber dados de uma conta
de usuário e gerar algum tipo de registro (N. T.).

• A nova forma de comunidade online •


• 136 •

Last.fm e tags5 podem ser exportados para criar transmissões de rá-


dio via stream6 de suas músicas favoritas em outros sites.
Outro importante desenvolvimento no fandom de música online
tem sido o aumento dos blogs de MP3 assinados por fãs, no qual os
indivíduos postam arquivos de som de músicas acompanhados por
uma breve descrição e/ou análise7. Embora seja fácil descartar isso
como sendo “pirataria”, esses blogs têm um papel fundamental de
divulgação, especialmente no cenário da música independente. De
fato, muitos blogueiros são inundados com pedidos de selos inde-
pendentes e bandas para escrever sobre sua música. Bonell Craig,
que escreve no blog de MP3 SwedesPlease conta que “bandas e gra-
vadoras parecem, em geral, empolgadas ao receber a atenção.” 8
Muitos destes blogueiros disponibilizam links entre si através de
caixas específicas em seus blogs, criando uma comunidade multi-
localizada de blogueiros afins, que interagem através de suas posta-
gens e comentários. Como regra geral, no entanto, comentários em
blogs de MP3 são muito leves.
À medida que cada nova encarnação de fandom online vai sur-
gindo, as formas anteriores não desaparecem. Em vez disso, as co-
munidades de fãs distribuem-se mais amplamente. Os indivíduos
podem tornar-se cada vez mais seletivos sobre quais os locais em que
querem passar seu tempo. Plataformas online e locais têm se tornado
cada vez mais especializadas nas funções que servem para os fãs.

5 Termo utilizado na internet para denominar palavras-chaves que funcionam como marcadores de
conteúdo (N. T.).
6 Quando o arquivo é aberto ele é carregado e aberto aos poucos até o final, como um fluxo de da-
dos através do sistema computacional. Esse tipo de transmissão é comum em sites de músicas e ví-
deos (N. T.).
7
Os leitores não familiarizados com os blogs de MP3 são incentivados a navegar pelo site agregador
de blogs de MP3 The Hype Machine (http://hypem.com/), que indexa centenas deles.
8
Para mais detalhes sobre este assunto, ver: http://www.onlinefandom.com/archives/interview-wi-
th-an-mp3-blogger/

Nancy K. Baym
• 137 •

Música popular sueca


A Suécia é um dos exportadores de música popular mais bem su-
cedidos do mundo. Exportações de música têm sido responsáveis
por três a sete bilhões de coroas suecas por ano nos últimos anos,
de acordo com a Export Music Sweden (http://www.exms.com/).
As vendas de música popular sueca subiram mais de 50% na déca-
da de 1990, mas foram impactadas pelo declínio geral da indústria
da música, que luta para se adaptar às mudanças introduzidas pela
internet (BURNETT; WIKSTRÖM, 2006).
A popularidade internacional da música sueca tem raízes no início
da década de 1840, quando P.T. Barnum trouxe a cantora de ópera
Jenny Lind, conhecida como o “Rouxinol Sueco” para a América,
efetivamente transformando-a na primeira estrela internacional sue-
ca. Na década de 1970, ABBA tornou-se a banda de maior sucesso
da Suécia de todos os tempos. Seu sucesso internacional foi segui-
do, em menor medida, por outras bandas de grandes gravadoras,
incluindo Europa, Roxette, Cardigans. Desde o início de 2000, a
cena da música independente do país vem ganhando cada vez mais
destaque internacional.
Discutir as razões para a fertilidade desta cena e seu apelo interna-
cional está além do escopo deste artigo9. O país oferece uma excelente
infraestrutura de estúdios de gravação, produtores e apoio à educação
musical. A cena é profundamente incestuosa, com muitos músicos
e produtores envolvidos com várias bandas. Além disso, certamente
uma ajuda é o fato de que muitos deles cantam em inglês.
A maior parte do negócio da música sueca opera dentro da in-
dústria musical mundial que atualmente é dominada por quatro
conglomerados multinacionais (EMIGroup, Sony/BMGMusic Enter-
tainment, UniversalMusic Group e WarnerMusic Group), que con-
trolam cerca de 80% do mercado global de música (WIKSTRÖM,

9
Burnett e Wikström (2006) abordam este assunto.

• A nova forma de comunidade online •


• 138 •

2006). Uma porcentagem surpreendente dos sucessos de superes-


trelas globais, como por exemplo, a americana Britney Spears, são
escritas e produzidas naquilo que muitas vezes é referido como as
“fábricas de música sueca.”
No entanto, na Suécia, como em outros locais, há uma próspe-
ra cena musical independente, lançando discos através de pequenos
selos. As cenas de música independente são geralmente organiza-
das localmente (KRUSE, 2003) e tem centros interdependentes em
Gothenburg, Malmö, Umeå e Estocolmo. Suas bandas tocam pelo
país e fazem breves incursões nos países vizinhos, mas poucas lançam
turnês internacionais. A música independente sueca abrange vários
gêneros, incluindo death metal e seu oposto mais suave e inocente,
o “twee”; música eletrônica, rock progressivo, hip hop, jazz, Ameri-
cana, punk e “indie-pop”.
Gravadoras independentes10 também estão associadas a determi-
nadas cenas e locais11. Entre os mais importantes selos independen-
tes suecos estão o Labrador Records (Estocolmo e Malmö), Hybris
(Estocolmo e Malmö) e Adrian Recordings (Malmö). Embora re-
presentem apenas 20% das vendas de discos, Burnett e Wikström
argumentam que estes tipos de selos são particularmente importan-
tes “porque estão muitas vezes na vanguarda do desenvolvimento na
música popular.” (2006, p. 576)
As gravadoras suecas independentes promovem sua música em
seus próprios sites, no MySpace, Last.fm e em outras redes sociais,
e através de blogs de MP3. Elas vendem suas gravações através de
varejistas, tais como Amazon e pequenas lojas de discos independen-
tes, como a americana Parasol Records. As bandas suecas se promo-

10
No contexto do presente artigo optamos por traduzir o termo label como gravadora (ou selo) in-
dependente; estes termos são usados no decorrer do texto com o mesmo significado (N. T.).
11
Por exemplo, Factory Records na Inglaterra estava indissoluvelmente ligada à cena musical de Man-
chester. Outros exemplos nos Estados Unidos incluem SubPop, ligado a Seattle, Washington; Rough
Trade em São Francisco, Califórnia e Saddle Creek em Omaha, Nebraska.

Nancy K. Baym
• 139 •

vem através de suas gravadoras, sites próprios, e muitas fazem uso


intensivo do MySpace.
A Suécia não é o único país escandinavo a produzir música in-
dependente, mas o faz muito mais do que seus vizinhos nórdicos, e
é muito mais bem sucedida em conquistar o público fora das suas
fronteiras nacionais.

A comunidade de fãs de música independente sueca


O fandom de música independente possivelmente não existiria fora
da Suécia sem a internet. A música independente sueca toca pouco
nas rádios, até mesmo no próprio país, e seus fãs dependem da in-
ternet para encontrar músicas novas e manter contato uns com os
outros. Embora possa haver determinadas bandas recebendo atenção
em certos momentos, os fãs do indie12 sueco como um todo estão
mais preocupados com o monitoramento e promoção de diversas
bandas de várias gravadoras do que com o apoio específico a algu-
ma. O grupo de fãs que eu descrevo aqui é diverso em seus gostos,
mas o ponto em comum é o afeto compartilhado pelo indie rock
e indie pop.
Esses fãs podem ser encontrados em sites de banda ou gravado-
ras, mas como fandom eles não se reúnem em sites únicos. Em vez
disso, constroem comunidades através de uma rede de sites, criando
seus próprios e aproveitando-se daqueles já disponíveis para fortale-
cerem seu envolvimento com a música indie sueca e os laços sociais
de uns com os outros. Ao fazer isso, eles representam a nova forma
de comunidade online com a qual este artigo está preocupado, uma
que se estende muito além do fandom.

12
Termo de origem inglesa popularizado no meio musical no cenário rock e pop para referir-se a uma
música de estilo independente ou alternativo. Existem muitas disputas em torno do que a classificação
“indie” (muito utilizada pelos jovens a partir do final dos anos 1980 e intensificada a partir da década
de 1990) representa na indústria fonográfica atual, mas estas fogem ao escopo da discussão presente
neste artigo. Aqui optamos por traduzir indie como independente (N. T.).

• A nova forma de comunidade online •


• 140 •

Mapear os limites desta comunidade online é um desafio, tanto


para o analista acadêmico quanto para os fãs. Falo de ambas as pers-
pectivas, como uma fã ativa desta cena musical, e como uma estu-
diosa que esteve envolvida neste fandom online quase diariamente
por mais de dois anos.
Não há um web site denominado “swedishindiefans.com”13 que
sirva como um site único sobre o tema para todos os propósitos.
Existem sites oficiais associadas à cena, principalmente os das bandas,
suas gravadoras, e das lojas especializadas em comercializar música
independente. Estes sites divulgam e distribuem a música e, por-
tanto, são importantes pontos de encontro para os membros da co-
munidade de fãs de música indie sueca. No entanto, eles geralmente
não servem como espaços em que os fãs podem se relacionar entre
si e, portanto, não podem promover o fandom.
Por exemplo, Parasol Records (http://www.parasol.com/) em Ur-
bana, Illinois (EUA) tanto vende quanto lança música indie sueca
através de seus selos próprios. Seu web site oferece um guia para a
cena musical sueca e seu especialista sueco, Jim Kelly (que nunca
foi para a Suécia), recomenda a melhor nova música escandinava e
disponibiliza streams de músicas selecionadas. No entanto, a infra-
estrutura do site não oferece qualquer meio para que os fãs possam
conversar. Alguns sites de bandas, que incluem seus próprios web
sites, blogs e perfis em redes sociais permitem discussão, embora se-
jam, mais provavelmente, focados apenas naquela banda.
Vários blogs de MP3 de autoria de fãs focam na cena indepen-
dente sueca, sendo os mais destacados: SwedesPlease, Absolute Noise
e Hello!Surprise! O blog SwedesPlease (http://swedesplease.blogs-
pot.com/), escrito por um americano, tem oferecido atualizações
quase diárias, destacando músicas de bandas suecas desde janei-
ro de 2005. Bonell estima que o SwedesPlease tenha cerca de 700

13
Literalmente: fãs de música independente sueca.com (N. T.).

Nancy K. Baym
• 141 •

visitantes únicos diariamente, e várias centenas ainda o lêem através


de assinaturas por feed14.
Absolut Noise (http://absolutnoise.blogspot.com/) é um blog de
MP3 francês feito por fãs que fornece atualizações em inglês e fran-
cês sobre novas músicas e vídeos suecos desde o início de 2006. A
pessoa que escreve este site não acompanha os visitantes únicos, mas
o descreve como um dos três melhores blogs de áudio franceses.
Hello!Surprise! (http://www.hellosurprise.com/) é um web site
sueco escrito em inglês que se descreve como uma “guia de músi-
ca pop em constante progresso [...] que busca cobrir o cenário pop
sueco.” Hello!Surprise! lista mais de 500 bandas de 47 gravadoras,
e oferece MP3 de muitas dessas bandas. Ele recebe de 200 a 300 vi-
sitantes únicos por dia.
Nenhum desses sites proporciona muita interação entre fãs, ape-
sar de terem uma infraestrutura mínima que permita esse poten-
cial. Ambos os blogs de MP3 têm sessões de comentários ativadas,
mas raramente os recebem. Hello!Surprise! disponibiliza um livro
de visitas, mas a oportunidade de interação entre os fãs através do
site é mínima.
O mais próximo de um site que atenda a todos os propósitos (e,
portanto, um lar em potencial) para este fandom é IT’S A TRAP!15
(IAT no endereço http://www.itsatrap.com), que abrange música
escandinava. Embora seu foco não seja apenas a Suécia, o tamanho
da cena musical sueca em relação a dos outros países escandinavos
garante que grande parte da música presente no IAT seja sueca. Cria-
do por um americano, Avi Roig em 2002, IAT é atualizado seis dias
por semana. O site é visitado por 2.000 a 3.000 pessoas a cada dia,
mais de 12.000 a cada mês. E cerca de 25 mil outras pessoas acessam

14
Distribuidores de informação, blogueiros ou canais de notícias normalmente disponibilizam um
feed (serviço de alimentação de notícias que são postadas no blog ou site) no qual usuários interes-
sados podem se inscrever para serem atualizados de tudo que é disponibilizado pelo autor sem que
precisem visitar o site ou blog periodicamente. (N.T.)
15
É UMA ARMADILHA! (N. T.).

• A nova forma de comunidade online •


• 142 •

IAT a cada mês, através de feeds RSS e hotlinks. Aproximadamente


57% dos usuários do site IAT são visitantes que retornam. Como
nos outros sites mencionados, muitos dos leitores são suecos, mas a
maioria são americanos e europeus não escandinavos.
De segunda a sexta-feira, Roig posta um MP3 e também um
stream contínuo de notícias (discos que serão lançados, bandas que
estão trabalhando em estúdio, bandas sendo lançadas, datas das tur-
nês, etc.)16 .Além disso, ele publica perfis de bandas novas e resenhas
de discos escritos por uma equipe de voluntários que são também
leitores17. IAT é ainda uma pequena loja de discos virtual e um selo
ainda menor, que distribui e vende música escandinava.
A partir do final de 2006, o IAT passou a oferecer plataformas
para o engajamento social: além de deixar comentários sobre a en-
trada de cada dia e cada artigo (o que raramente fazem), os leitores
podem registrar-se para participar em um fórum de discussão, criar
um perfil próprio e enviar e receber mensagens privadas. As discus-
sões no site estão crescendo lentamente.
No entanto, mesmo tendo este site como um possível lar, os fãs
de música independente sueca não limitam a sua construção de uma
comunidade a ele. Podemos ver isso ao acompanhar o IAT através
de outros locais na internet. Além de manter o site do IAT, Roig
também criou um perfil dele em três redes sociais: MySpace, Virb
e Last.fm.
Os sites MySpace e Virb funcionam principalmente para divul-
gar o selo e o site, mas a oportunidade de adicionar o perfil do IAT
como amigo significa que as pessoas podem filiar-se a ele, e ao fazê-
lo, marcarem-se como participantes do fandom de música escan-
dinava (que pode ou não ser sueca) de uma forma que os outros
participantes reconheçam.

16
Nos sábados de 2007, ele posta uma música de The Bear Quartet.
17
Eu tenho sido uma das contribuidoras do IAT desde o início de 2006.

Nancy K. Baym
• 143 •

Na Last.fm, contudo, o IAT pode ser encontrado tanto como um


perfil (onde os hábitos de escuta e amigos do próprio Roig são lista-
dos), quanto como um grupo ao qual qualquer pessoa que esteja na
Last.fm pode se unir (http://www.last.fm/group/itsatrap). Enquanto
o próprio quadro de mensagens do IAT tem 114 usuários registrados
e 48 tópicos de discussão, o grupo IAT tem 320 membros, muito
mais tópicos e muito mais discussão em várias postagens. Parece,
então, que o desenvolvimento de uma comunidade entre os leitores
do IAT é mais forte na Last.fm do que no próprio site do IAT.
Não é surpresa que Roig busque na Last.fm uma forma de for-
talecer o senso de comunidade do seu site. Roig posta as listas de
sucesso semanais do grupo IAT na Last.fm, que são geradas auto-
maticamente no seu próprio site como um impulso para que mais
ouvintes se cadastrem. Os usuários registrados nos fóruns de men-
sagens do IAT podem entrar com suas identidades da Last.fm e,
dessa forma, seu perfil no IAT irá disponibilizar as últimas dez mú-
sicas que escutaram.
Um dos tópicos de maior sucesso no IAT é intitulado “Last.fm”
e tem sido utilizado para encorajar outros a se cadastrar na Last.fm
a fim de responder perguntas sobre ela. Para discutir o que os ou-
tros estão ouvindo, e comparar hábitos de escuta usando replica-
dores da Last.fm tais como cálculos de quanto “mainstream”18 ou
“eclético” estes são (altos escores no primeiro é considerado ruim,
no último é bom).
Fãs individuais participam no fandom de música independen-
te sueca de várias maneiras. A maioria lê um (ou mais) destes sites,
sem jamais se registrar ou deixar mensagens, como as enormes lacu-
nas entre visitantes do site do IAT e membros registrados - mesmo
no maior grupo da Last.fm - demonstram (ver http://www.last.fm/
group/swedish+music).

18
Termo genérico para classificar o gosto de uma corrente dominante, mais popular e/ou massiva,
associado normalmente a produtos culturais que circulam nos meios de comunicação de massa.

• A nova forma de comunidade online •


• 144 •

Aqueles que tornam a sua participação visível podem fazê-lo tor-


nando-se escritores (dos sites de fãs ou de contribuições para estes
sites), deixando comentários, ou, mais provavelmente, ligando os
seus perfis com as bandas, grupos e selos que os identificam como
membros deste fandom em redes sociais como MySpace ou Last.
fm. Alguns fãs criam perfis no YouTube para fazer upload de vídeos
de bandas suecas e/ou criar listas de músicas para si próprios e ou-
tros desfrutarem. Os fãs também usam esses sites em conjunto com
outros, exportando gráficos da Last.fm para MySpace, Facebook,
LiveJournal, Virb e muitos outros lugares, para mostrar que este é
o tipo de música que ouvem.
Alguns fãs participam em sites de compartilhamento de arquivos
como o Soulseek para localizar e compartilhar música indie sueca.
Invisivelmente, podem participar na comunidade de fãs suecos atra-
vés do upload e download de gravações através de serviços peer-to-
peer19, que não necessitam de perfis públicos.
Redes sociais apoiam as comunidades de fãs através de platafor-
mas que permitem que os indivíduos entrem em contato uns com
os outros. As pessoas podem construir relações pessoais. Estas vão
além do simples fato de adicionar amigos, mas incluem envios de
mensagens pessoais que levam a outros tipos de contato interpesso-
al. Troca de arquivos de música através de e-mail ou sites de uplo-
ad, como o YouSendIt ou SendSpace, por exemplo, é comum, e as
amizades também se desenvolvem mediante e-mail e mensagens
instantâneas.
Os fãs também se conectam em redes sociais através da criação
de grupos. Além do grupo IAT na Last.fm, por exemplo, existem
dezenas de grupos neste site dedicado à música sueca. Buscando
grupos usando termos como “Suécia”, “sueca”, “Sverige”, “Svensk”
e “Svenska”, aparecem mais de 60 grupos, sugerindo como pode ser

19
Par a par ou ponto a ponto. Sistema de troca de arquivos de forma descentralizada, entre usuá-
rios (N. T.)

Nancy K. Baym
• 145 •

redundante, desorganizada e caótica a formação de comunidades


nestes novos sites orientados para um perfil individualizado. O gru-
po “música sueca”, que foca em todas as bandas da Suécia, é o mais
bem sucedido deles, com mais de 2.300 membros e, assim como
o grupo Last.fm do IAT, tem uma atividade moderadamente ativa,
com presença de discussões.
Alguns participantes desta comunidade de fãs online se envol-
vem em atividades locais de construção de fandom em suas cida-
des natais. Um dos colaboradores do IAT mantém o “Sounds of
Sweden”20, em Glasgow, na Escócia: uma série de concertos men-
sais com bandas indie suecas. Outros colaboradores do IAT mantêm
o “Tack!Tack!Tack!”, uma série de eventos similares e que agencia
bandas escandinavas em Londres. Ambos, “Sounds of Sweden” e
“Tack!Tack!Tack!” têm grupos no Facebook. Outros são menos am-
biciosos, mas também compartilham as músicas que encontraram
online com amigos offline, integrando esta cena musical em seus
relacionamentos locais também.
Para resumir, a comunidade de fãs de música indie sueca é distri-
buída em muitos lugares, na internet e fora dela. Sua forma online
não habita apenas nas comunidades de interesse baseadas em sites que
as encarnações anteriores do fandom de música online implicavam;
nem nas redes sociais individualizadas que supostamente os seguiram.
Em vez disso, está em todos esses lugares e em outros, espalhando-se
através de uma rede de sites. Poucos fãs frequentam todos.
Ao longo do tempo, os fãs ativos irão achar que se encontram
muitas vezes com as mesmas pessoas por onde passam. Dentro desse
processo, um sentido de “comunidade” pode ser formado. Por exem-
plo, eu encontrei vídeos raros no YouTube e, em seguida, percebi
que os mesmos tinham sido enviados por “amigos” para a Last.fm,
um dos quais eu também conhecia, através da participação no IAT

20
“Sons da Suécia” (N. T.).

• A nova forma de comunidade online •


• 146 •

e troca de e-mails pessoais. Eu comecei conversas sobre o IAT, que


terminaram com mensagens no meu perfil da Last.fm.
A esse respeito, esta nova forma de comunidade online pode ter
mais em comum com as comunidades baseadas geograficamente
nas localidades do que com as antigas, de interesses online. Poucas
pessoas visitam todos os lugares em uma cidade, mas se frequentam
regularmente as mesmas lojas, ruas, restaurantes, clubes, e assim por
diante, irão encontrar as mesmas pessoas sempre. Alguns tornam-se
amigos, outros conhecidos, e alguns, desconhecidos familiares.

Discussões
O fandom indie sueco exemplifica uma nova forma de organização
social online no qual os membros se movem entre um ecossistema
complexo de sites, construindo conexões entre si e seus sites en-
quanto o fazem. Eles recorrem a múltiplas plataformas de comuni-
cação através da internet: blogs, redes sociais, comentários, fóruns
de discussão, mensagens privadas, quadros de mensagens públicos,
arquivos de MP3 e vídeos.
Apenas alguns se mostram visíveis nos sites dedicados ao tema do
seu fandom, mas muitos fazem a sua identificação com o fandom
visível através de perfis no MySpace, Last.fm e outras redes sociais.
Os fãs usam esses variados sites e plataformas para se animarem mu-
tuamente sobre músicas novas relativamente desconhecidas, para
compartilhar notícias, para comparar perspectivas através de rese-
nhas e discussões, criar identidades públicas como membros desse
fandom e estabelecer relações pessoais com outros fãs.
Os artistas e gravadoras estão ativamente engajados nessas co-
munidades, gerando streams constantes de músicas para livre dis-
tribuição legal, adicionando seus fãs em seus perfis, e muitas vezes
agindo também como fãs. Este artigo buscou focar nos fãs, ao invés

Nancy K. Baym
• 147 •

de tentar detalhar o envolvimento dos selos e artistas na comuni-


dade que os descreve. O sucesso dos sites de autoria dos fãs aqui
discutido, no entanto, aponta para importantes mudanças na in-
dústria da música.
Fãs como aqueles que cuidam de sites como o IAT ou Swedes-
Please estão agindo em novos papéis. Em modesta medida, os fãs
sempre fizeram propaganda, mas havia uma distinção clara entre
aqueles que faziam de forma profissional e os fãs. Isso está mudan-
do. Além disso, os fãs estão usando a internet para divulgar e dis-
tribuir produtos da cultura pop através de fronteiras internacionais
de forma a remodelar os mercados tradicionais.
As relações entre fãs, artistas e as indústrias estão mudando. Bur-
nett e Wikström (2006) afirmam que as gravadoras independentes
estão, muitas vezes, na vanguarda da mudança. Selos e artistas inde-
pendentes em cenas como esta fornecem os primeiros modelos de
como os papéis serão remodelados neste novo ecossistema.

Conclusão
Alguns poderiam argumentar que a formação social que descrevi não
deve ser rotulada como “comunidade”, um desafio que remonta aos
antigos debates sobre definições. Eu tenho sido intencionalmente
vaga no uso desse termo. Em última análise, importa menos como
nós chamamos do quão bem nós o entendemos.
Quer seja chamada de comunidade ou não, esta é uma impor-
tante nova formação social online, que levanta muitos problemas
teóricos, metodológicos e práticos. Como são organizados e nave-
gados estes ecossistemas? Quais são as consequências para a coesão
social se os grupos estão espalhados por vários locais, dos quais ape-
nas alguns são explicitamente ligados uns aos outros?
Barry Wellman e seus colegas (p. ex. WELLMAN, 2001) têm es-
crito sobre “individualismo em rede”, postulando que a organização

• A nova forma de comunidade online •


• 148 •

social é cada vez mais realizada através de indivíduos que se conec-


tam em redes fracamente delimitadas e não através de redes firme-
mente limitadas por localidade geográfica.
A prática dos fãs de música independente sueca poderia ser cha-
mada de “coletivismo em rede”, no qual grupos coletivos dispersos
de indivíduos associados se unem. Por um lado, isso significa que
os grupos podem se valer de muitas oportunidades mediadas de
compartilhar diferentes tipos de materiais, incluindo textos, músi-
cas, vídeos e fotografias em tempo real e de forma não simultânea.
Por outro lado, isso cria muitos problemas, especialmente com a
coordenação, coerência e eficiência (ou seja, os mesmos materiais
devem ser distribuídos em vários locais, e às vezes ocorrem muitos
esforços duplicados).
Para aqueles que procuram estudar as comunidades online, este
tipo de formação social coloca o desafio metodológico de como amar-
rar o objeto de estudo. A norma tem sido ir para um espaço online e
estudá-lo. Temos inúmeros estudos de grupos de notícias particulares,
fóruns, redes sociais e blogs. Temos poucos estudos que exploram as
conexões entre essas diferentes plataformas, apesar do fato de que as
atividades online das pessoas quase sempre são distribuídas em vá-
rios locais. Já não está tão claro que ir a um site seja uma estratégia
adequada para o estudo de comunidades na internet.
Poderíamos comparar o problema ao de uma “maratona de ba-
res”, em que um grupo vai de bar em bar bebendo. Poderia ser feito
um bom estudo de qualquer um desses bares, e provavelmente ali
seria encontrado algo semelhante a uma comunidade. No entanto,
uma ligeira mudança de perspectiva do espaço para os clientes revela
que, para eles, qualquer que seja a comunidade reunida naquele bar,
esta não pode ser compreendida sem referência aos outros espaços
em que essas pessoas também se encontram.
Do ponto de vista prático, esta forma de organização social coloca
problemas tanto para os indivíduos como para aqueles que querem

Nancy K. Baym
• 149 •

manter contato com eles. Quando uma comunidade está espalhada


em vários espaços virtuais, requer mais tempo e esforço das pesso-
as para descobrir o que existe, em que medida e em quais espaços
seus membros irão desenvolver identidades comunitárias específi-
cas. A análise aqui apresentada sugere que, com tantos lugares para
se desenvolverem discussões, pode ser difícil atingir a massa crítica
necessária para manter uma conversa contínua em qualquer lugar,
com potenciais consequências negativas para o desenvolvimento de
significados compartilhados dentro dos grupos.
Desenvolvedores enfrentam o problema prático de como eles po-
dem fazer sites que servem como locais de atividade e que também
podem ser exportados para outros sites, a fim de construir conec-
tividade entre os locais. Os gráficos que a Last.fm exporta são um
exemplo para responder a esta demanda emergente, assim como a
capacidade embutida do Virb de importar blogs e feeds de fotos de
outros sites em um único perfil.
No momento em que as organizações – de bandas de rock a ser-
viços públicos de saúde – estão cada vez mais recorrendo à internet
para alcançar seu público, não é mais suficiente apenas criar um site
próprio ou entrar no MySpace. Como os membros da comunida-
de, eles precisam mergulhar neste terreno cada vez mais distribuí-
do e complexo, a fim de compreender quais espaços online devem
atingir e como.

REFERÊNCIAS

BAYM, Nancy. Tune in, log on: Soaps, fandom, and online
community. Thousand Oaks. Calif.: Sage, 2000.
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into being on social network sites.” First Monday, [S. l.], v. 11, n. 12,
dez. 2006. Disponível em: <http://firstmonday.org/issues/issue11_12/
boyd/>. Acesso em: 1 abril 2006.

• A nova forma de comunidade online •


• 150 •

BURNETT, Robert; Wikström, Patrik. Music production in times of


monopoly: the example of Sweden. Popular Music & Society, [S. l.],
v. 29, n. 5, p. 575–582 2006.
HILLS, Matt. Fan cultures. London: Routledge, 2002.
JENKINS, Henry. Convergence culture: where new and old media
collide. New York, New York University Press, 2006.
______. Textual poachers: television fans & participatory culture. New
York: Routledge, 1992.
KRUSE, Holly. Site and sound: understanding independent music
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O’REILLY, Daragh; DOHERTY, Kathy. Music b(r)ands online and
constructing community: the case of New Model Army. In: AYERS,
Michael D. (editor). Cybersounds: essays on virtual music culture.
New York: Peter Lang, 2006. p. 137–160.
WELLMAN, Barry. Physical place and cyber–place: the rise of
networked individualism. International Journal for Urban and
Regional
Research, [S. l.], v. 25, p. 227–252, 2001.
WIKSTRÖM, Patrik. Reluctantly virtual: modelling copyright
industry dynamics. 2006. Tese (Doctoral dissertation, Department of
Media and Communication Studies) - Karlstad University, Sweden,
2006.

Nancy K. Baym
PULSAÇÕES
MULTIMÍDIA E
CULTURA
José Cláudio Alves de Oliveira

A CIBERCULTURA, A LOCATIVIDADE E O
COMPARTILHAMENTO DA MEMÓRIA SOCIAL1

A sociedade tende a se modificar diante das novas estruturas tecno-


lógicas. As cidades mudam nos seus aspectos paisagísticos, com tor-
res, sinais, caixas eletrônicos, quiosques multimídia, serviços on-line,
transformando a arquitetura urbana. Os aspectos psicossociais e an-
tropológicos são alterados no movimento do dia a dia. As filas não
são as mesmas. O contato entre as pessoas tornou-se mais rápido com
a mobilidade digital. A influência tecnológica é inegável na sociabili-
dade (PALÁCIOS, 1996).
Para André Lemos (1999), a tecnologia foi o instrumento princi-
pal da alienação, do desencantamento do mundo (Weber) e do indi-
vidualismo burguês, sendo investida pelas potências da sociedade. A
cibercultura que se forma sob os nossos olhos mostra, para o melhor
ou para o pior, de que maneira as novas tecnologias estão sendo efeti-
vamente utilizadas como ferramentas de convivialidade e de formação
comunitária, principalmente em se tratando da tecnologia, colocada
à parte pela modernidade (ativistas, terroristas, pedófilos, anarquistas,
ONGs...). A cibercultura é a sociedade que se apropria da técnica.
Isso não significa o fim daquilo que é tradicional. Bancos financei-
ros, bancas de jornal, museus, universidades, etc. continuarão existindo
nos seus ambientes físicos, ou seja, de pedra, “reais” ou em “átomos”,
como fala Negroponte (1995). Hoje se pode pensar na técnica, no
meio tecnológico como extensão e comunicação da sociedade, da his-
tória e memória social. Um dos principais exemplos está na interco-

1
Parte deste texto foi enviada para o XI ENANCIB, Encontro Nacional das Ciências da Informação
e Biblioteconomia, em agosto de 2010. Evento no Rio de Janeiro.
• 155 •

nexão de linguagens, escritas, sons e produções variadas nos agentes


mediadores conectados que possibilitam o diálogo “todos-todos”:
Os mundos virtuais para diversos participantes, os sistemas para
ensino ou trabalho cooperativo, ou até mesmo, em uma esca-
la gigante, a WWW, podem todos ser considerados sistemas de
comunicação todos-todos. Mais uma vez, o dispositivo comu-
nicacional independe dos sentidos implicados pela recepção, e
também do modo de representação da informação. Insisto nesse
ponto porque são os novos dispositivos informacionais (mundos
virtuais, informação em fluxo e comunicacionais (comunicação
todos-todos) que são os melhores portadores de mutações cul-
turais... (LÉVY, 1999a, p.63).

A questão da memória social vem emergindo como muito impor-


tante na cibercultura, com a multiplicação de projetos sobre memórias
locais, museus virtuais e mídias locativas. Hoje em dia, cada vez mais
as pessoas percebem a importância de terem suas próprias histórias
como tema e como essa construção de vínculos é importante para a
própria autoestima. Daí a divulgação, ou pelo menos tentativas de
fazê-lo, de retratos históricos individuais e coletivos, sistematizados
ou em moldes simples, sem tratamento científico.
Voltando-se um pouco para o passado, pode-se perceber uma con-
vergência de maneiras diferentes de preservar a memória social. Fa-
lando de tecnologia, o ciberespaço é caminho fundamental para isso
hoje, desde que essa tecnologia possa ser compartilhada e seu acesso,
democratizado. Os meios se somam. A preservação de sons, imagens e
textos permite que essa relação seja mais rica, desde que quem produz
a informação possa se reconhecer no que está lá, de alguma manei-
ra. Isso permite a criação de vínculos. As tecnologias, em si, não são
nem positivas nem negativas, o importante é que a sociedade consiga
se perceber ao ver sua história retratada.
O exemplo do www.museudapessoa.net, que se utiliza da tecnolo-
gia dando voz e preservando a experiência de pessoas comuns, é no-
tório para ilustrar esse assunto que enaltece a história social e amplia

• A cibercultura, a locatividade e o compartilhamento da memória social •


• 156 •

o universo biográfico do homem comum e dos famosos. A história é


uma construção de narrativas, feita de vários pontos de vista. Quan-
to mais as pessoas tiverem suas experiências preservadas e comparti-
lhadas, mais se garante a preservação da memória histórica. No caso
do www.museudapessoa.net, a expectativa é que muitos possam fa-
lar para muitos. A Internet, principalmente, torna-se um espaço útil
e democrático, notadamente quando a sociedade por inteiro faz uso
consequente dela.
Hoje, através de buscas na web, pode-se encontrar um grande nú-
mero de sites que mostram as mais diversas formas com que a histó-
ria e a memória social se partilham. Nesses ambientes digitais, novos
museus estão se organizando. E neles a sociedade se coloca diante de
um novo modelo, o da possibilidade de também ajudar na criação
de acervos, onde o próprio visitante, cidadão comum, guardará e di-
vulgará a sua história. É uma demonstração da democracia que os ci-
bermuseus (CMs), ambientes criados para funcionar efetivamente no
ciberespaço, vêm demonstrando desde 1994, num efeito totalmente
oposto ao da pomposidade e do luxo da grande maioria dos museus
presenciais (MPs). (OLIVEIRA, 2009a). Esse processo mostra a pos-
sibilidade do compartilhamento de dados histórico-pessoais e histó-
rico-coletivos que valorizam a memória social, aquela que muda em
cada período o espírito do tempo que a molda.
O museu – dentre outras instituições e medium – trabalha a me-
mória social, busca armazená-la, quantificá-la, preservar, atualizar e
contextualizar os fatos, os acontecimentos, as atitudes e valores huma-
nos. É na preservação do que foi, do que é e daquilo que está sendo
construído que o museu vem se tornando sólido na sociedade.
Para Bérgson (1999), o universo das lembranças não se constitui
do mesmo modo que o universo das percepções e das idéias. Bérgson
está centrado no princípio da diferença: de um lado, o par percepção
e idéia; de outro, o fenômeno da lembrança.

José Cláudio Alves de Oliveira


• 157 •

A observação de Bérgson a propósito da natureza e das funções da


memória só pode ser avaliada com a devida justeza quando posta em
relação com o contexto da sua obra filosófica, em que se interpenetram
e se iluminam mutuamente as definições de memória, tempo, devir,
energia. Esses termos trazem uma rica fenomenologia da lembrança
que ele perseguiu em sua obra, bem como uma série de distinções de
caráter analítico, as quais auxiliam na compreensão do museu como
sistema que objetiva, também, a preservação, processamento e divul-
gação de fatos, acontecimentos e histórias; fatores pertinentes à lem-
brança, aos flashbacks de um passado distante ou recente.
Aos dados imediatos e presentes dos nossos sentidos nós mis-
turamos milhares de pormenores da nossa experiência passada.
Quase sempre essas lembranças deslocam nossas percepções re-
ais, das quais retemos então apenas algumas indicações, me-
ros signos destinados a evocar antigas imagens. (BERGSON,
1999, p. 183).

Segundo Ecléa Bosi (1979), o que o método introspectivo de Bér-


gson sugere é a conservação dos estados psíquicos já vividos; é essa
conservação que nos permite escolher entre as alternativas que um
novo estilo possa oferecer. A memória teria uma função prática de li-
mitar a indeterminação (do pensamento e da ação) e levar o sujeito a
reproduzir formas de pensamento que já deram certo. Mais uma vez:
a percepção concreta precisa valer-se do passado que de algum modo
se conservou, pois a memória é essa reserva crescente a cada instante
e que dispõe da totalidade de nossa experiência adquirida.
A figura abaixo clareia o pensamento bergsoniano sobre a me-
mória:

• A cibercultura, a locatividade e o compartilhamento da memória social •


• 158 •

Onde: SAB = Totalidade das lembranças acumuladas na memória


de uma pessoa; AB = assentada no passado, permanece imóvel; S =
Figura em todos os momentos do presente de um indivíduo, avança
sem cessar, e sem cessar toca em P, que é o plano móvel da represen-
tação atual do universo do indivíduo. Em S concentra-se a imagem
do corpo e, fazendo parte do plano P, essa imagem limita-se a receber
e a devolver as ações emanadas de todas as imagens de que se com-
põe o plano.
Embora em Bérgson o objetivo seja entender as relações entre a
conservação do passado e a sua articulação com o presente, a conflu-
ência entre memória e percepção, falta-lhe, a rigor, um tratamento
da memória como fenômeno social (LE GOFF, 1996).
O passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente,
mas de forma homogênea, num processo onde ocorrem lembranças
independentes de quaisquer hábitos: “lembranças isoladas, singula-
res, que constituiriam autênticas ressurreições do passado”. Na visão
de Leroi-Gourhan (apud LE GOFF, 1996), esse processo é denomi-
nado de Memória-Hábito, que se adquire pelo esforço da atenção e
pela repetição de gestos ou palavras, o que faz parte de todo o nosso
adestramento cultural.
Há outro tipo de memória social que está no outro extremo, e que
seria a “lembrança pura”. Quando se atualiza a Imagem-Lembrança,

José Cláudio Alves de Oliveira


• 159 •

vem à tona da consciência um momento único, singular, não repeti-


do e irreversível da vida que tem “data certa: refere-se a uma situação
definida, individualizada, ao passo que a Memória-Hábito já se in-
corporou às práticas do dia a dia”. Ela “parece fazer um só todo com
a percepção do presente” (BOSI, 1979, p. 9).
As lembranças e as memórias, preservadas por cada um em casas,
memoriais, arquivos, bibliotecas e até mesmo em museus, podem ser
difundidas e socializadas para entendimento de fontes históricas, como
acontecimentos e fatos; para compreensão como fora o passado, das
mudanças até o presente, num ritmo ex-post-facto2.
Em sua obra “As tecnologias da inteligência”, Pierre Lévy reserva a
memória ao capítulo que reflete sobre a oralidade primária, a escrita
e a informática. Nele, Lévy trabalha a palavra, a escrita, a história, o
tempo, o esquecimento e a memória voltada, em sua concepção, ao
atual mundo e na cibercultura: “Ao conservar e reproduzir os artefa-
tos materiais com os quais vivemos, conservamos ao mesmo tempo
os agenciamentos sociais e as representações ligados a suas formas e
seus usos.” (LÉVY, 1999b, p. 78).
A emergência da cibercultura provocou uma mudança radical no
imaginário humano, transformando a natureza das relações dos ho-
mens com a tecnologia e entre si. Lévy (1999b) defende uma inter-
relação muito próxima entre subjetividade e tecnologia. Esta influencia
aquela de forma determinante, na medida em que fornece referenciais
que modelam nossa forma de representar e interagir com o mundo.
Através do conceito de “tecnologia intelectual”, o autor supracitado
discorre sobre como a tecnologia afeta o registro da memória coletiva
social. O que se compreende é que as noções de tempo e espaço das

2
Algo “realizado ou formulado depois de certo fato e com ação retroativa”. (DICIONÁRIO..., 2010).
O termo aplicado aqui referencia também ao tipo de pesquisa que leva o mesmo nome, cuja técnica é
entrevistar pessoas (testemunhas) que possam descrever as mudanças ocorridas em determinados espa-
ços, como ruas, jardins, bairros etc.. Método utilizado pela Sociologia, Turismo e Antropologia, que
visa verificar as transformações ocorridas em espaços e ambientes físicos.

• A cibercultura, a locatividade e o compartilhamento da memória social •


• 160 •

sociedades humanas são afetadas pelas diferentes formas através das


quais este registro é realizado (OLIVEIRA, 2009b).
O fato é que a memória humana possui dois momentos: o de cur-
to e o de longo prazo. O primeiro momento é considerado como o
do trabalho, que mobiliza a atenção. “Ela é usada, e.g., quando le-
mos um número de telefone e o anotamos mentalmente até que o
tenhamos discado no aparelho”. O segundo momento necessita da
construção de representações “quando uma nova informação ou um
novo fato surge diante de nós”, pois “esta representação encontra-se
em estado de intensa ativação no núcleo do sistema cognitivo, ou
seja, está em nossa zona de atenção, ou muito próxima a esta zona”.
(LÉVY, 1999b, p. 78).
A partir da história, da escrita e da palavra (a oralidade), preser-
var e mostrar os testemunhos dos fatos é uma forma de preocupação
cultural com os signos que se transformam diariamente. Daí a articu-
lação que Lévy faz com questões que vão de Gutenberg a Bill Gates.
Para Lévy, “à medida que passamos da ideografia ao alfabeto e da ca-
ligrafia à impressão, o tempo torna-se cada vez mais linear, histórico.
A ordem sequencial dos signos aparece sobre a página ou monumen-
to”. (LÉVY, 1999b, p. 94).
Desde que a história se tornou efeito da escrita, trabalhada e discu-
tida por personagens que a contextualizam, ela pode “ser constituída,
fruto da dialética do ser e do devir...”, mas um devir “secundário”, re-
lativo ao ser, capaz de “desenhar uma progressão ou um declínio”.
A partir de então, a memória separa-se do sujeito ou da co-
munidade tomada como um todo. O saber está lá, disponível,
estocado, consultável, comparável. Este tipo de memória obje-
tiva, morta, impessoal, favorece uma preocupação que, decer-
to, não é totalmente nova, mas que a partir de agora irá tomar
os especialistas do saber com uma acuidade peculiar: a de uma
verdade independente dos sujeitos que a comunicam. (LÉVY,
1999b, p. 94).

José Cláudio Alves de Oliveira


• 161 •

A objetivação da memória como uma separação existente entre o


conhecimento e a identidade pessoal ou coletiva. Lévy acredita que
[...] o saber deixa de ser apenas aquilo que me é útil no dia a dia,
o que me nutre e me constitui enquanto ser humano membro
desta comunidade. [...] A exigência da verdade, no sentido mo-
derno e crítico da palavra, seria um efeito de necrose parcial da
memória social quando ela se vê capturada pela rede de signos
tecida pela escrita. (LÉVY, 1999b, p. 94).

O que interessa aqui é que o estudo da escrita, palavra e memória


são as palavras-chave do capítulo da obra que Lévy traça com o obje-
tivo de identificar os suportes que mostram os testemunhos, embora
ele se prenda à escrita e ao armazenamento de dados. A escrita, que
vai dos poemas e registros de Heródoto até chegar na difusão pós-
Gutenberg. Os dados, trazidos das memórias digitais, que acumulam
signos e representações de acontecimentos compartilhados entre sis-
temas – do tradicional ao cibersistema –, dos smartphones às redes,
do GPS aos mobiles services. Todos como fatores sociais, representa-
tivos do próprio pensamento e períodos históricos.
Ao analisar o que diz André Lemos (2001) sobre cibercidades, e
elucidando o projeto Living Memory, verifica-se que há um compar-
tilhamento e troca de experiências e conhecimentos entre as pessoas
em um ritmo mais acelerado quando há uma intercessão entre a cida-
de digital e a cidade real. Lemos acredita que tal processo é alcançado
quando há a possibilidade de coleta, estoque e distribuição de “infor-
mação entre as pessoas” (LEMOS, 1999b, p. 31). Esse objetivo já foi
alcançado, com os projetos dos CMs e das mídias locativas, ambos
processando a troca coletiva e de grande dimensão de dados históricos
que refletem no patrimônio cultural. Tais dados elucidam não apenas
o local ou regional a partir dos acontecimentos, as histórias, estórias,
enfim, “retratos da memória”, mas também o cruzamento e partilha
da “multimemória”, quando qualquer pessoa adiciona o seu conheci-
mento sobre lugares e sobre si própria. Esse fator nos faz refletir sobre

• A cibercultura, a locatividade e o compartilhamento da memória social •


• 162 •

a dilatação do armazenamento da memória social, agora não mais res-


trita a arquivos, bibliotecas e museus tradicionais. Trata-se, portanto,
de uma media mais dinâmica, em algum ponto de uma rua, estação
ou praça onde direcionamos o telefone celular ou o laptop, e troca-
mos informações do que foi aquele lugar, ao mesmo tempo em que
retrucarmos para uma atualização algum dado a dizer das mudanças.
Assim os dados estarão mais completos, num ritmo passado-presente
digamos mais enriquecedor para o observador que busca a informa-
ção e que pode completá-la ainda mais (LEMOS, 2007).
Ainda de acordo com Lemos (2009), tudo é locativo. Aprende-
mos, amamos, socializamos, jogamos, brigamos, festejamos e traba-
lhamos sempre de forma locativa. Não há nada que esteja fora do
tempo ou do espaço. E o espaço social é o lugar. Em tudo, o lugar é
o que importa.
Dois exemplos bastante contemporâneos sobre o patrimônio cul-
tural, a memória, a informação e a preservação no processo da loca-
tividade estão em dois projetos:

a) One Block Radius http://oneblockradius.org. Projeto que tra-


balha um documentário psicogeográfico, convidando o público a en-
viar material para o mapeamento da quadra onde vai ser construído
o Novo Museu de Arte Contemporânea de Nova Iorque. As pessoas
cooperam com fotos, vídeos e áudios, num esquema de colaboração
para um mapeamento fixo. (BRUNET, 2008, p. 220)
b) Texting Glances, em Dublin. Projeto que estrutura QRCODES
em locais determinados da cidade, e dentro dos ônibus coletivos. A
idéia é informar, via Bluetooth, fatos, acontecimentos, nomes e situ-
ações de cada rua ao observador que passa pelos locais.

Falando de mobilidade e territorialidade, Lemos (2009b) afirma


que, com a computação ubíqua e disseminada em lugares e objetos a
partir dos Location-based technology (LBT) e Location-based services

José Cláudio Alves de Oliveira


• 163 •

(LBS), emerge a nova territorialização informacional que amplia, trans-


forma e/ou modifica antigas funções dos lugares. Isso equivale dizer
que o patrimônio total, onde podemos incluir os museus, memoriais,
bibliotecas, arquivos ou – como afirma Lemos (2009b) – um café,
uma praça, um mercado, mesmo dotados de sensores, dispositivos e
redes sem fio continuam sendo um café, uma praça ou um merca-
do. Só que estes são transformados pela territorialidade informacio-
nal emergente que, além de manter a situação demográfica, refere o
ponto do patrimônio.
A mobilidade e locatividade são sem dúvida os processos propul-
sores da nova etapa da cibercultura, cujas formas de trocas de dados
sobre lugares, pessoas e histórias passam a ser mais aproximadoras,
rápidas e dinâmicas. Como bem sugere Dodebei (2008), embora o
sentido de acumulação não faça parte do mundo virtual, a digitaliza-
ção do patrimônio permite a construção de coleções virtuais. E nesse
sentido produz expansão, a exemplo da exposição “Museus e Milê-
nio”, http://www.mumi.org, promovida pelo Museu da Civilização
de Québec em 2000, ainda em rede. Esse exemplo é bastante signi-
ficativo para a noção do compartilhamento da memória social, mais
enciclopédica e, digamos, oficial.
O Museu da Civilização convidou várias instituições museológi-
cas de todo o mundo para criar ou expor conteúdos dos seus acervos
relativos ao século XX no ciberespaço. O resultado foi uma exposição
multifacetada de questões culturais e patrimoniais de vários museus
no mundo. Nesta exposição colaboraram doze museus de várias par-
tes do mundo, inclusive do Brasil. Este tipo de colaboração, embora
mais raro, é de fundamental importância, pois permite que os museus
usem a Internet no seu principal objetivo: a globalização da cultura.
Infelizmente, a maioria dos museus ainda não viu a potencialidade
de utilizar a Internet para este tipo de colaboração interinstitucio-
nal. Para a grande maioria das instituições a Internet serve apenas
como um grande painel para afixar suas informações institucionais e

• A cibercultura, a locatividade e o compartilhamento da memória social •


• 164 •

publicitárias, e não como uma ferramenta de troca e entrelaçamento


de referências patrimoniais. (OLIVEIRA, 2004, p. 226)
Todo esse processo, que vem das antigas formas de armazena-
mento de dados, passando pelos museus no ciberespaço até chegar à
locatividade mediática, é o que podemos denominar de cibermemó-
ria, que em linhas mais acuradas diríamos ser o contexto histórico-
social (individual ou coletivo) armazenado e difundido digitalmente,
expandido no ciberespaço e pronto para ser atualizado e partilhado
universalmente com o auxílio das TIs. E em outro caminho com-
plementaríamos mais precisamente com as noções de preservação,
armazenamento e atualização, com o objetivo de divulgar os fatos e
objetos testemunhais, acumulando, processando e partilhando um
interminável banco de dados. Esse processo reflete muito bem o que
parafraseou Le Goff (1996) ao afirmar que o estudo da memória social
é um dos meios fundamentais para abordar os problemas do tempo
e da história, relativamente aos quais a memória está ora em retrai-
mento, ora em transbordamento.

A memória a partir do objeto-testemunho


É incontestável que, independentemente do valor artístico, histórico
ou científico dos objetos de museus, memoriais, bibliotecas e arquivos,
o modo de apresentação dos mesmos tem um papel importante.
A importância do objeto reside no tipo de relação que mantém
com o elemento humano, e na valorização dessa relação pela (s) co-
munidade (s), o que ocorre em processos de comunicação. É preci-
samente esta relação que impregna o objeto de vida e lhe confere um
significado cultural, e a valorização é que lhe garante um significa-
do social.
Descobrir e nutrir a vida do objeto através de um trabalho cons-
tante de pesquisa e informação; perceber e evidenciar os seus signi-

José Cláudio Alves de Oliveira


• 165 •

ficados, através de uma linguagem adequada aos diversos interesses


são alguns dos objetivos do museu.
O objeto, em um museu, dever ser visto na sua integridade de
estilo, época, pormenores, textura, cor e dimensões para que haja
uma interação entre percepção e observação histórica, ou seja, uma
contextualização, que seria a causa entre o apresentar e o aprender.
(BAUDRILLARD, 1973).
Já não se trata apenas de discernir, acumular e comercializar dados
e informações, mas, sobretudo, de processá-los de forma cada vez mais
diferenciada, cada vez mais excêntrica. A informação a ser obtida de
dados “brutos” depende, para fazer efeito, de processos de comuni-
cação criativos. De outro modo os dados ficam mortos, desatualiza-
dos, e a informação emergente se torna inútil. O seu significado deve
ser criado, inventado, em atos comunicativos.3 Sem comunicação, a
informação efetiva, aquela que realmente “faz a diferença” fica enco-
berta, indistinguível, apenas armazenada em memória psíquica e ar-
quivos mediáticos. Ela é apenas informação potencial, e não chega a
ser significativa, não se torna real. A realidade social não tem outra
maneira de se expressar a não ser em forma de comunicação (STO-
CKINGER, 2001, p. 2).
Os CMs e os MDs (museus digitais)4 tem a missão de conservar
o patrimônio cultural, apresentando às culturas – quer na forma tra-
dicional, quer via “ciber” – dados e informações diversos, colhidos
através de um click que disponibiliza a riqueza temática dos museus
a turistas, estudantes de todos os graus e pesquisadores.
A reflexão sobre os conceitos de patrimônio digital e de memó-
ria virtual indica que a digitalização pode ser uma das garantias
da preservação do patrimônio; que a formação de coleção, ainda
que destituída do atributo de acumulação, organiza um domínio

3
“No espaço do saber, cada descoberta é uma criação”. (LÉVY, 1999a, p.175).
4
Aqui, os cibermuseus (CMs) referenciam os ambientes museológicos, sistematizados, criados para
funcionar somente no ciberespaço. Já os Museus Digitais (MDs) são ambientes com interface na ar-
quitetura tradicional (presencial).

• A cibercultura, a locatividade e o compartilhamento da memória social •


• 166 •

do conhecimento, essencial ao desenvolvimento da comunica-


ção no ciberespaço. (DODEBEI, 2008, p. 31).

O conteúdo social e cultural que as medias clássicas: museus, ar-


quivos e bibliotecas vêm desenvolvendo através dos seus acervos não
se prende apenas ao olhar “técnico”, mas sim a duas noções básicas:

a) imanente aos objetos-testemunhos que são pesquisados e que


trazem fatos, acontecimentos, valor social, representatividade, etc.
b) o retorno que o observador, seja ele leigo ou cientista, propor-
ciona à sociedade, à academia, aos meios de comunicação e à própria
media, enriquecendo os dados informacionais sobre determinados
temas que abrigam a memória social.

Os suportes que guardam, processam e difundem a memória his-


tórica facilitam e possibilitam a investigação, a ludicidade, o entrete-
nimento, a tristeza, a alegria, a nostalgia, enfim, saudosismos que se
refletem sobre o homem e os seus artefatos, os objetos, agora testemu-
nhos divulgados “museologicamente” por infinitos observadores.
Na verdade, os “objetos” são construções denominadas como tais,
que variam de cultura para cultura. Para autores como Dufrenne
(1998) e Baudrillard (1973), os objetos são utilitários, estéticos, de
uso individual e íntimo. Gilbert Simondon (1958), por outra via,
trata os objetos como uma gama de tecnicidade que possui cultura
própria. Esses três pensadores trazem uma tese em comum, a de que
qualquer coisa pode ser um objeto, e quando diretamente relativa ao
homem está respaldada no acervo da sua memória coletiva.
Assim, os museus em web, wap e as mídias locativas – e de certa
forma o museu tradicional – tecem três fatores aproximadores das
culturas do homem e da técnica (SIMONDON, 1958). Primeiro,
quando expandem o conhecimento sobre a memória social. A di-
vulgação de histórias do passado e do presente aumenta o reconhe-
cimento sobre temas, além de evidenciar histórias de vida não mais

José Cláudio Alves de Oliveira


• 167 •

pautadas em “grandes personalidades”. Outro detalhe a ser correspon-


dido nesse plano é o das produções de fontes para a historiografia,
que trilhará em um maior manancial na busca de fontes temáticas.
O segundo fator é a possibilidade de todo o conteúdo informacional
dos testemunhos e das histórias ser compartilhado entre as pessoas no
mundo inteiro e sem grandes burocracias. Significa a troca de dados
e informações em redes telemáticas e no ciberespaço. O terceiro fa-
tor é a universalidade e democratização do espaço. O reconhecimen-
to de que, a partir da tecnologia, é possível visitar museus, arquivos
e bibliotecas de qualquer lugar no mundo.
E não se restringindo aos museus, editar a própria história de vida,
de onde nasceu, em algum lugar da cidade, e disponibilizá-la em de-
terminados lugares como aeroportos ou estradas. Esse fator reflete
exatamente o sentido coletivo da expansão da memória social, prin-
cipalmente quando ela remete a lugares, praças, parques etc., num
sentido não mais individual, mas coletivo e democrático de redese-
nhar e difundir o passado para uma reflexão mais rápida, contínua e
compartilhada do presente.

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• A cibercultura, a locatividade e o compartilhamento da memória social •


Flávia Rosa

MECANISMOS E PERSPECTIVAS PARA A


DISSEMINAÇÃO DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA EM
MEIO DIGITAL

Introdução
A evolução da comunicação da produção científica está atrelada ao
desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação que
tem seus primórdios na Grécia Antiga, através da oralidade dos dis-
cursos que foram transmitidos de geração a geração, atingindo neste
século a hipertextualidade.
As transformações ocorridas na segunda metade do século XX
trouxeram uma série de alterações pautadas no desenvolvimento de
instrumentos e sistemas de informação e comunicação, com aplicação
na economia, política e cultura. Há um deslocamento do regime de
acumulação, baseado na grande indústria, para as atividades imate-
riais, deslocamento esse imposto pela globalização do mercado com
relação à produção intelectual.
Os sistemas de informação e comunicação daí decorrentes são res-
ponsáveis por alterações nas relações sociais. Os avanços tecnológicos
da comunicação e da informação permitiram o surgimento de redes
de comunicação eletrônica, revolucionando os fluxos de informação
e a forma de acesso, ampliando o espiral do conhecimento. Produzir
saberes e transmitir conhecimentos são palavras-chave dessa Era, cujo
símbolo para estas transformações é o computador como equipamen-
to e a internet como meio, os quais introduziram um novo parâmetro
de espaço-tempo para a sociedade moderna. A transmissão de dados
quase instantaneamente entre todas as regiões do mundo tornou-se
possível graças à convergência tecnológica com as telecomunicações e
com a microeletrônica. Esses são os instrumentos considerados como
• 171 •

a base da Sociedade da Informação (SI). Essa expressão remonta aos


anos de 1960, quando Jiro Kamishina publicou o artigo Sociologia
em Sociedades de Informação (Japão, 1964) e Yoneji Masuda escreveu
o livro Introdução à Sociedade da Informação (Japão, 1967).
Nos anos 1970, Daniel Bell e Alain Touriane em seus estudos
referem-se à Sociedade Pós-industrial concentrando-se, sobretudo
“[...] na evolução para uma economia de serviço e uma ‘sociedade
do conhecimento’, e nas mudanças [em] consequência de tal situa-
ção” (KUMAR, 2006, p. 9). Bell destacou em suas análises o valor
da informação como recurso principal nessa sociedade, e dentro das
organizações, uma fonte de poder, em oposição à sociedade indus-
trial, onde a força muscular e a energia eram as molas propulsoras
(BELL, 2006, p. 87).
O século XXI consolida esse formato da informação – eletrônica. A
internet possibilitou acesso às fontes de informação, sendo relevantes
o correio eletrônico, a Web, listas de discussão – que permitem a troca
de informações entre os especialistas, blogs, chats – a disponibilização
de versões preliminares de artigos de periódicos e de comunicações
em conferências científicas, de capítulos de livros, publicações peri-
ódicas eletrônicas, materiais de ensino, bases de dados, compilações
de dados eletrônicos, e os repositórios, dentre outros.
A informação, antes apenas acessada por uma elite acadêmica,
passa a ter uma ampliação de acessibilidade para outras camadas da
população. A internet passa a ser um espaço de produção contínua
de conteúdos, emissão e recepção destes por públicos que dependiam
de outros meios de comunicação para se manterem informados e/ou
adquirir saberes. É necessário não apenas uma cultura científica, mas
também, uma cultura informacional (LE COADIC, 2004).
Para os pesquisadores, não basta pesquisar, é necessário disseminar
os resultados da pesquisa, tornando-os acessíveis e contribuindo para
o avanço da ciência. A produtividade científica deve ser avaliada não
apenas pela quantidade, mas, sobretudo pelo impacto – traduzido em

• Mecanismos e perspectivas para a disseminação da produção científica em meio digital •


• 172 •

qualidade – a partir do número de citações. As tecnologias de in-


formação e comunicação (TIC) alteraram a disseminação da produ-
ção científica e introduziram mudanças nessa cadeia. Para Meadows
(1999), dentre os vários aspectos positivos, o ambiente criado pelos
meios eletrônicos possibilita uma comunicação democrática e incen-
tiva a colaboração e a troca mais rápida e eficaz da informação.

Contextualização
Ao longo da história, tecnologias outras foram surgindo e contribuí-
ram para que os novos saberes eruditos, acadêmicos, científicos, artís-
ticos, dentre outros, chegassem a um público mais amplo. O século
XX foi marcante, pois imprimiu uma revolução tecnológica a partir
das guerras mundiais, motivando o desenvolvimento científico e tec-
nológico e a necessidade de se ampliar o acesso ao conhecimento.
Destaca-se nesse período a atuação de Vannevar Bush, autor do
famoso texto As We May Think, publicado em julho de 1945, na
The Atlantic Review (BUSH, 1945). Ele descreveu uma máquina que
denominou de Memex – MEMory EXtension, que traduzido sig-
nifica memória extensiva. Bush acreditava que esta seria a biblioteca
universal do futuro (PROCÓPIO, 2005), com a finalidade de me-
lhorar a “memória humana”, em função do volume de informação
disponível e a dificuldade de se localizar e estabelecer relações entre
textos e pesquisas publicadas. Essa máquina permitiria que o usuário
armazenasse e recuperasse documentos. Seu nome está vinculado ao
período ao qual se atribui a “explosão da informação”. A essência de
seu trabalho, no entanto, não era o volume da informação, e sim, a
necessidade de uma mudança na qualidade do tratamento da infor-
mação, pois para ele os métodos de transmitir e analisar os resultados
das pesquisas eram inadequados diante da nova realidade.
O surgimento da internet e da www, em fins dos anos de 1980,
acelerou as mudanças na forma de publicação da produção científica,

Flávia Rosa
• 173 •

que passou do suporte exclusivamente em papel para o uso também


do suporte digital. Weitzel (2005) resume em três os fatores que con-
tribuíram para as mudanças no modelo clássico da comunicação cien-
tífica: o custo alto das assinaturas de periódicos científicos, os avanços
das TIC e o papel desempenhado pelas revistas científicas.
A partir do ano de 1986, o preço das assinaturas dos periódicos
(ACRL, 2003; MULLER, 2006; OKERSON, 2000; SAUBER, 2007)
subiu acima dos valores da inflação, causando um impacto sem pre-
cedentes, sobretudo para as bibliotecas de países periféricos. Foi a de-
nominada “crise dos periódicos acadêmicos” (MARCONDES, 2009;
RODRIGUES, 2004). Para Mueller (2006), como a manutenção atu-
alizada das coleções de periódicos pelas bibliotecas demandava altos
custos, isso dificultou o acesso à informação pela comunidade leito-
ra. Havia também uma corrida para a publicação do resultado das
pesquisas nos periódicos científicos internacionais, e aos poucos os
altos preços cobrados (ACRL, 2003; MARCONDES, 2009; MUL-
LER, 2006; RODRIGUES, 2004; SWANEPOEL, 2005) obrigaram
os pesquisadores a entregarem gratuitamente seus artigos para publi-
cações em periódicos que, na maioria das vezes, a instituição onde
havia sido desenvolvida a pesquisa não tinha recursos para adquirir
os “pacotes” de assinatura.
A resposta a esse cenário veio da própria comunidade científica,
graças ao desenvolvimento acelerado da tecnologia de armazena-
mento de recursos digitais. Em 1991, em Los Alamos, Novo México,
EUA, surgiu o primeiro repositório digital de pré-prints – ArXiv.org
– desenvolvido no laboratório de física e coordenado pelo físico Paul
Ginsparg (1996). O projetou se iniciou com um servidor no qual os
físicos poderiam depositar cópias digitais de seus manuscritos antes de
serem publicados - e-prints. Hoje este servidor, que começou apenas
como um veículo de intercâmbio de informações sobre física, se ex-
pandiu e abriga uma “biblioteca” de literatura de pesquisa em física,
ciências da computação, astronomia e matemática. Existem outros

• Mecanismos e perspectivas para a disseminação da produção científica em meio digital •


• 174 •

projetos semelhantes no mundo todo, tais como: Cognitive Sciences


Eprint Archive (CogPrints) no Reino Unido, que abrange a área de
psicologia, linguística e neurociências; o Networked Computer Scien-
ce Technical Reference Library (NCSTRL), acervo da área de ciências
da computação, e o Research Papers in Economy (RePEC), coleção
de documentos da área de economia (SENA, 2000).
Essa crise dos periódicos durou algumas décadas, e paralelamente
as tecnologias foram se desenvolvendo e se aprimorando, constituin-
do assim uma nova forma de lidar com a informação e sua dissemina-
ção. Segundo Valério e Pinheiro (2008), além do aumento do fluxo
de informações possibilitado pelas TIC, ele também perpassa novos
territórios e diversos campos do conhecimento de interesses múlti-
plos e acesso livre. O ciberespaço e o acesso à rede agregam membros
de comunidades científicas reconhecidas e estabelecidas e a socieda-
de em geral, ou melhor, aqueles que têm interesse em ciência ou são
curiosos de outros saberes, contribuindo assim para a popularização
da ciência.
Nesse contexto surge o movimento mundial de Acesso Livre, que
implica disponibilizar na internet a literatura acadêmica e científica,
permitindo que seja lida, descarregada, distribuída, impressa, pesqui-
sada ou referenciada, o que contribui para o avanço e disseminação da
ciência. Essa forma de difusão tem se firmado cada vez mais e come-
çou a se consolidar no início deste século com a assinatura da Decla-
ração de Berlim sobre o Acesso Livre ao Conhecimento nas Ciências
e Humanidades (2003). Segundo Harnard (2001)
Com a era on-line finalmente foi possível libertar a literatura
deste impedimento indesejável. Autores precisam apenas depo-
sitar seus artigos arbitrados em arquivos eprints em suas próprias
instituições; esses arquivos interoperáveis podem todos ser reco-
lhidos em um arquivo global, seus conteúdos completos, livre-
mente pesquisáveis e acessíveis on-line para todos.1

1
“With the online age, it has at last become possible to free the literature from this unwelcome impe-
diment. Authors need only deposit their refereed articles in ‘eprint’ archives at their own institutions;

Flávia Rosa
• 175 •

A Iniciativa de Arquivos Abertos e o Movimento de Acesso Livre


modificaram inteiramente o cenário da comunicação científica, não
apenas no que diz respeito ao processo de aquisição, mas também o
processo de produção, disseminação, uso e modo como os cientistas
publicam os resultados de suas pesquisas e se relacionam com seus
pares. Os editores perderam a exclusividade de distribuir a produção
científica no contexto digital. “Isto é feito de forma descentralizada e
dependente da iniciativa de cada autor.” (WEITZEL, 2006, p. 62).
Em resumo, o aperfeiçoamento das TIC facilitou a disseminação
e a acessibilidade da informação. A criação de barreiras associadas aos
elevados valores cobrados por parte das grandes editoras que contro-
lavam o mercado das publicações cientificas foram fatores decisivos
para o surgimento do Movimento do Acesso Livre – Open Access
Movement (OAM) – referente às publicações científicas. Este surge
como “[…] uma forte reação por parte de pesquisadores, acadêmi-
cos, bibliotecários e gestores de informação em contexto internacio-
nal […]”2 . (JORGE, 2006,p. 3 tradução nossa)
Este movimento é definido pelo “uso de ferramentas, estratégias e
metodologias que denotam um novo modelo de representar um igual-
mente novo processo de comunicação científica.” (COSTA, 2006).
Engloba questões como: software livre ou aberto; arquivos abertos (in-
teroperabilidade em nível global); acesso aberto (disseminação ampla
de resultados de investigações científicas) e a ideia de eliminar a obri-
gatoriedade de ceder o copyright de artigos publicados, permitindo
aos autores a inserção da sua produção científica, sem restrições, em
repositórios temáticos ou institucionais (LINCH, 2003), o que faci-
lita a sua disseminação de forma mais rápida, eficaz e gratuita.

these interoperable archives can then all be harvested into a global virtual archive, its full contents fre-
ely searchable and accessible online by everyone.”
2
“[…] una fuerte reacción por parte de investigadores, académicos, bibliotecarios y gestores de in-
formación en el ámbito internacional […]”

• Mecanismos e perspectivas para a disseminação da produção científica em meio digital •


• 176 •

A partir de 2004 surge a web 2.03, designação dada pela empresas


americanas do setor de comunicação, O’Reilly e MediaLive Interna-
tional, para uma segunda geração de comunidades e serviços, tendo
como conceito a “Web como plataforma”, que envolve wikis, aplica-
ções baseadas em folksonomia, redes sociais e tecnologia da informa-
ção. Em 2005, com a divulgação do texto de autoria de Tim O’Reilly,
What is Web 2.0: Design patterns and business models for the next
generation of softwares, o termo atingiu as esferas da comunicação,
embora não tenha conseguido grande adesão, sendo visto por muitos
como uma estratégia de marketing (CURTY, 2008).
A comunidade científica aderiu ao uso dessa plataforma – web
2.0 – e contribuiu de forma participativa no processo de construção
social do conhecimento, possibilitando uma maior interação entre
aqueles que fazem parte do ambiente acadêmico ou não, alterando
inclusive o processo de avaliação dos conteúdos disponibilizados. O
uso por pesquisadores dos recursos de blogs, listas de discussão, faz
com que o modelo informacional de um grande centro distribuidor
de mensagens passe a competir com a lógica sistêmica da conexão de
micro-redes. Em outras palavras, enquanto o modelo massivo foca-
se no centro, a web 2.0 fortalece as bordas da rede. (PRIMO, 2006)
É possível dizer que os pesquisadores já não dependem tanto dos pe-
riódicos e bases de dados, já que, graças às técnicas de informática
atreladas aos processos de comunicação mediados pelo computador, é
possível o compartilhamento, a organização e a ampliação dos espaços
de interação entre as comunidades acadêmicas. (PRIMO, 2008)
Segundo Barros (2010, p. 55), esses avanços e novas formas de in-
teragir da comunidade acadêmica conduzem para o seguinte: “a pu-
blicação de resultados em periódicos científicos pode estar perdendo
seu status no que se refere à velocidade de disseminação de resultados

3
O termo faz um trocadilho com o tipo de notação em informática que indica a versão de um softwa-
re, e foi popularizado pela O’Reilly Media e pela MediaLive International como denominação de uma
série de conferências que tiveram início em outubro de 2004. (PRIMO, 2006)

Flávia Rosa
• 177 •

de pesquisa”. É, pois, uma alteração no fluxo informacional propos-


ta na esfera da comunicação científica, que visa otimizar o acesso aos
resultados de pesquisa e atender às necessidades da própria comuni-
dade, conclui Barros (2010).
O desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação
(TIC) - em especial a publicação eletrônica e a Internet - foi, de fato,
indispensável no surgimento destas novas formas da academia disse-
minar sua produção e se comunicar com seus pares. O acesso on line
ao texto completo rapidamente conquistou o interesse de todos os
envolvidos na publicação cientifica, editores, bibliotecários, autores e
especialmente os leitores, em função da rapidez, facilidade de acesso e
baixo custo. Os Repositórios Institucionais têm desempenhado im-
portante papel neste cenário, sobretudo, para as Instituições de Ensino
Superior (IES), ampliando a visibilidade no contexto mundial.4

Repositórios institucionais
No ano de 2002, foram criados os primeiros Repositórios Institucio-
nais (RI), e em junho de 2010 o Registry of Open Access Repository
(ROAR), referência à existência de 1.594 RI pertencentes a univer-
sidades e centros de pesquisa, distribuídos em todos os continentes,
sendo que quase 50% destes localizam-se na Europa. Ampla pesquisa
vem se desenvolvendo sobre o tema, sobretudo com relação à confi-
guração técnica e operacional (WILLIAMS; LAWTON, 2005), além
da motivação e demandas para desenvolvimento de Repositórios Ins-
titucionais. Para alguns autores, mesmo após quase uma década dos
primeiros RI no Reino Unido e nos Estados Unidos (SHEEREVES;
CRAGIN, 2008), não existe unanimidade sobre o que levou deter-
minada instituição a implantar seu repositório. Há demandas que va-

4
http://repositories.webometrics.info/ - Ranking Web of World Repositories.

• Mecanismos e perspectivas para a disseminação da produção científica em meio digital •


• 178 •

riam para atender a realidade de cada país e de cada instituição. Para


Dávila e outros (2006, p. 7, tradução nossa):
A sustentabilidade e desenvolvimento de um RI baseiam-se,
principalmente, na sensibilização da comunidade acadêmica para
preservar e difundir sua produção intelectual mediante este tipo
de plataforma. Não existe uma metodologia única e os meca-
nismos de alimentação da informação não são universais, uma
vez que se fundamentam em esquemas culturais e costumes
institucionais.5

Fica evidente, no entanto, que taxas elevadas de participação dos


autores no RI, através do depósito de sua produção, são o principal
indicador de sucesso deste tipo de empreendimento (LYNCH; LIP-
PINCOTT, 2005). Em 2005, uma pesquisa relatada por Hajjem e
outros dava conta de que apenas 15% dos autores autoarquivavam
seus trabalhos espontaneamente, e em torno de 80% estariam de acor-
do com o autoarquivamento, mesmo que não houvesse uma política
institucional que assim o requeresse (SWAN; BROWN, 2005).
Para Prosser (2005), os benefícios decorrentes da criação de repo-
sitórios institucionais ocorrem em três dimensões:

• Para o indivíduo - proporcionam um repositório central para o


trabalho do pesquisador; uma vez que são livres e abertos, aumen-
tam a divulgação e o impacto da pesquisa do indivíduo e exercem
a função de um currículo para o pesquisador;
• Para a instituição - ampliam a visibilidade e o prestígio da ins-
tituição, ao reunir toda a gama e extensão da pesquisa que é de
interesse dela, funcionando como um meio de divulgação para a
mesma e visando fontes de financiamento, bem como arregimen-
tar novos pesquisadores e estudantes;
• Para a sociedade - fornecem acesso à investigação do mundo;

5
“La sustentabilidad y desarrollo de un RI se basa, principalmente, en el convencimiento de la comu-
nidad académica para preservar y difundir su producción intelectual mediante este tipo de plataforma.
No existe una metodología única y los mecanismos de alimentación de información no son universales,
ya que se fundamentan en esquemas culturales y costumbres institucionales.”

Flávia Rosa
• 179 •

asseguram a preservação a longo prazo da produção das institui-


ções acadêmicas; podem acomodar maior volume de produção
de pesquisas (sem limite de páginas, podem aceitar grandes con-
juntos de dados,etc).

Greg Tananbaum (THE BERKEALGULEY ELETRONIC PRESS,


2005), presidente da Electronic Berkeley Press afirmou que os repo-
sitórios institucionais estão fornecendo informações valiosas e dese-
jáveis, tanto para estudiosos na área acadêmica como ao público em
geral. No RI da Universidade da Califórnia identificou-se que 98%
do público que o acessa vem de fora da instituição. Foster e Gibbons
(2005) afirmam que para o RI de uma universidade ser bem sucedi-
do, ele deve disponibilizar conteúdo resultante de trabalho acadêmico
cujo valor justifique sua preservação para ser utilizado como pesqui-
sa e citação. Na perspectiva de Leite (2006, p. 88), complementa-se
que os repositórios,
[...] além de expandir o acesso à pesquisa, reafirmam o controle
sobre o saber pela academia [...] têm o potencial de servir como
indicadores tangíveis da qualidade de uma universidade e de
demonstrar a relevância cientifica, social e econômica de suas
atividades de pesquisa, aumentando a visibilidade, o status e o
valor público da instituição.

Quanto aos usuários envolvidos em um RI, identificam-se pelo


menos três grupos principais: criadores\mantenedores, autores e usu-
ários – estes últimos são os utilizadores finais.
No que diz respeito aos usuários finais, Fachin e outros (2009)
levantam uma questão importante que se refere à visão cognitiva na
estruturação de repositórios, já que há uma variedade de informações
para uma diversidade de usuários. Desse modo “[...] a compreensão
textual, a geração de texto (tradução para linguagem de indexação
e\ou resumo) e a representação do conteúdo (criação de linguagens
de indexação) devem ser evidenciadas.” (2009, p. 230) Na busca da

• Mecanismos e perspectivas para a disseminação da produção científica em meio digital •


• 180 •

informação, os conhecimentos conceituais, os conhecimentos con-


ceituais implícitos nos repositórios – linguagens documentais e polí-
ticas adotadas – bem como a forma de representação do documento
interferem nas fases do processo de utilização da informação dispo-
nível, ou seja, na categorização, indexação e recuperação da informa-
ção. (FACHIN et al., 2009)
Para os usuários, procurar informações não é apenas um ato de
acessar um sistema de busca, sobretudo quando não está claro para
ele próprio, exatamente o que procura. Existem alguns modelos que
retratam esse processo de busca pelo conteúdo e McKey (2007) des-
creve um breve roteiro em seis etapas:

• Perceber a necessidade de informação;


• Investigar as formas pelas quais a necessidade de informação
pode ser suprida, incluindo a avaliação de fontes de informação
disponíveis e uma possível busca e navegação para os resultados
preliminares;
• Esclarecer a necessidade de informação para atender um peque-
no número de questões específicas, com base nos recursos dispo-
níveis e interesse pessoal;
• Consultar as fontes de informação para atender a necessidade;
• Navegar e avaliar os resultados;
• Assimilar os resultados e refinar a busca no caso da necessidade
de informação não ter sido atendida.

Os criadores\mantenedores dos RI geralmente estão ligados aos


serviços de informação das instituições e sua função principal é, por-
tanto, preservar e disponibilizar a produção intelectual da instituição
representando-a, documentando-a e compartilhando-a em formato
digital. Ressalta-se principalmente a questão da preservação digital,
“[...] uma vez que o gerenciamento da migração do conteúdo digital

Flávia Rosa
• 181 •

de uma tecnologia em vias de ser desativada para um sistema de ponta


deve ocupar um espaço primordial nas preocupações das organizações
que detêm repositórios institucionais.” (CAFÉ et al., 2003, p. 4).
Para tanto, é fundamental a participação de uma equipe multi-
disciplinar formada de bibliotecários, analistas de informação, ad-
ministradores de arquivos, administradores de departamentos e da
instituição, pesquisadores e pessoal envolvido com a política univer-
sitária (BARTON, 2004), e que promova a utilização do RI, quer por
parte dos potenciais depositantes, quer por parte dos usuários finais.
Este processo, para ser bem sucedido, passa pela definição de políti-
cas institucionais de diversas ordens e por opções organizacionais de
diferente natureza.
Assim, importa que nos processos de desenvolvimento dos RI se-
jam assegurados mecanismos de informação, formação e motivação
dos membros das diferentes comunidades. A existência de um Co-
ordenador para cada comunidade de um RI pode ser um elemento
importante no processo de dinamização e desenvolvimento da mes-
ma. O Coordenador fará a intermediação entre o autor\pesquisador\
depositante e o setor da instituição responsável pela implantação e
pleno funcionamento do repositório.
Outro mecanismo importante são os programas estatísticos, com
capacidade de monitorar o número de downloads e que faz parte dos
pacotes de software de um RI. Um exemplo é o Repositório eScho-
larship da Universidade da Califórnia. O repositório usa o software
“Digital Commons”, construído com funcionalidades para monitorar
o uso do conteúdo. Ele indica quantas vezes cada artigo foi baixado.
O repositório também mantém uma lista de execução de downloa-
ds, os “dez mais” e um “livro do dia”. Além disso, controla o núme-
ro total de downloads para o repositório inteiro, e o número total de
downloads semanais. (MARK; SHEARER, 2006) A Universidade
do Minho também desenvolveu seu software estatístico de registros

• Mecanismos e perspectivas para a disseminação da produção científica em meio digital •


• 182 •

automáticos associados ao software de suporte do RepositóriUM6, in-


formando o número de acessos e downloads e os países que acessam.
Desse modo é possível traçar a trajetória de um documento e o grau
de interesse que ele despertou na comunidade científica.
Finalmente, um trabalho de marketing no âmbito da instituição é
fundamental para o sucesso de um projeto de implantação e manu-
tenção de um RI. Os acadêmicos – prováveis depositantes de conte-
údo – têm de ouvir sobre os serviços do repositório repetidas vezes ao
longo de um período de tempo e através de diversas fontes – on-line,
jornais, correspondências, reuniões, seminários – é preciso esboçar ex-
plicitamente para a comunidade os benefícios desse serviço.

De olho no futuro
O conceito de arquivos abertos tem pouco mais de dez anos. Seu
marco foi consolidado em outubro de 1999 durante a Convenção
de Santa Fé , realizada no Novo México, sob os auspícios da Asso-
ciation of Research Libraries (ARL), do Council on Library and In-
formation Resources (CLIR), da Digital Library Federation (DLF),
da Scholarly Publishing & Academic Resources Coalition (SPARC),
e do Los Alamos National Laboratory (LANL). Esse movimento, a
cada dia, se fortalece, no mundo todo. As IES e instituições de pes-
quisa têm sido responsáveis por grande parte do conteúdo que é dis-
ponibilizado.
No âmbito das bibliotecas há um movimento de apoio ao acesso
aberto no sentido de dotá-las da tecnologia adequada para abrigar
coleções que estejam de acordo com esses princípios. Além disso, é
importante adotar políticas cooperativas de repositórios de documen-
tos eletrônicos e cooperar na criação de recursos informacionais que
integrem a busca de documentos de livre acesso.

6
StatisticsAddOn, disponível em: http://wiki.dspace.org/index.php/StatisticsAddOn.

Flávia Rosa
• 183 •

O futuro vai depender do empenho de cada autor envolvido no


processo de disseminação da produção científica, sendo os autores os
grandes parceiros na liderança desse movimento que é, antes de mais
nada, extremamente inclusivo.

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• Mecanismos e perspectivas para a disseminação da produção científica em meio digital •


Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos

CULTURA PARTICIPATÓRIA E FESTIVAIS


INTERNACIONAIS DE MÚSICA E ARTE: OS
EXEMPLOS DE GLASTONBURY (REINO UNIDO),
COACHELLA (ESTADOS UNIDOS) E STARTS WITH
YOU (BRASIL)

Os festivais de arte e música no contexto dos estudos de mega-


eventos
Apesar de o contexto tecnológico atual favorecer cada vez mais a di-
vulgação rápida e em grande escala de espetáculos de diversos tipos,
tamanhos e objetivos, a realização de grandes eventos não é algo re-
cente. No entanto, no último século, o crescimento de celebrações
prolongadas, espetaculares, de larga escala na área das artes, esportes
ou ciências, tem sido exponencial. Os mega-eventos caracterizam-se
como grandes reuniões realizadas com uma determinada periodicida-
de, que atraem multidões, interesse midiático, e vão desde encontros
esportivos internacionais, feiras de lançamentos tecnológicos ou cien-
tíficos de ponta, até festivais musicais e artísticos, entre outros. Alguns
se realizam regularmente em uma cidade específica, outros são rota-
tivos, e ainda há aqueles que são realizados por quem conseguir com
sucesso captá-los, através de concorridas disputas internacionais1.
Apesar de suas diferentes origens, as práticas para a realização de
grandes espetáculos, principalmente aqueles voltados a audiências
internacionais, não devem ser vistos de forma isolada2. Os objetivos

1
Para uma discussão mais ampla sobre o contexto histórico do surgimento dos grandes eventos internacio-
nais e a respeito dos diversos tipos de espetáculos, festivais e mega-eventos ver Gold & Gold (2005).
2
Conforme discutido anteriormente em Sá (2009), os estudos de festivais se inserem em um contex-
to mais amplo da preocupação com o simbólico que vem ganhando espaço nos mais diversos campos
do conhecimento e com a compreensão da vida cotidiana como sendo desta forma mediada. Espaços,
momentos e memórias pertencentes ao extraordinário e ao espetacular passam a ser percebidos pelos
seus potenciais em termos de ganhos econômicos, significados culturais, momentos de sociabilidade
ou disputas políticas.
• 189 •

que se buscam atingir com a realização deste tipo de eventos, suas


principais características de organização e elaboração de programa-
ção são definidas, normalmente, a partir de experiências acumuladas
na área dos espetáculos utilizando fórmulas que buscam atrair pú-
blicos cada vez maiores e mais destaque midiático. O destaque que
um espetáculo terá em relação aos demais irá depender da eficiente
utilização dessas fórmulas já testadas e aprovadas pelo público, bem
como de um grau de inovação e surpresa, que depende sempre de
maiores possibilidades de investimentos por parte dos organizadores
e seus patrocinadores.
Gold & Gold (2005) apontam quatro características principais
comuns aos grandes espetáculos3: eles são realizados em grande es-
cala, com grande número de pessoas envolvidas em sua organização
e possuem um ciclo de produção definido, incluindo toda a sua his-
tória de existência. Além disso, normalmente ocorrem com certa re-
corrência e são controlados por um grupo, que escolhe como e onde
o mesmo será realizado. São considerados situações extraordinárias
na vida cotidiana de uma cidade, e precisam contar com espaços ou
estruturas diferentes daquelas utilizadas comumente pela população
para a sua realização. E, por fim, representam as mais diversas agen-
das de intenções.
A partir das características apresentadas, é no contexto destes even-
tos espetaculares que estão inseridos os festivais4 internacionais de

3 Espetáculos, aqui, serão considerados como performances e eventos realizados em grande escala, orien-
tados para o entretenimento de um público específico e numeroso e mediados por processos comuni-
cacionais. Assim como diversas palavras que são utilizadas como termos “guarda-chuva”, espetáculo é
uma denominação amplamente utilizada em diversos contextos e bastante contestada, representando
um território de disputas em diversos campos do conhecimento e correntes do pensamento que dela se
apropriam e a ressignificam. O presente artigo pretende apresentar estudos de caso e não se aprofundar
numa discussão teórica sobre espetáculos. Portanto, para uma discussão mais ampla sobre este assunto
ver Gold & Gold (2005, p. 14-19).
4 Festival é um termo que deriva do Latim festum e que significa dia festivo ou feriado observado em
honra a um deus, com rituais solenes. Para uma análise sobre como os rituais se aproximam do mun-
do cotidiano e são momentos de celebração e diversão, ver os trabalhos de Amaral (1998) e Sá (2007),
a partir das contribuições de Durkheim (1968) e DaMatta (1997). Trata-se de um expressão cultural
importante e amplamente disseminada no mundo antigo, que continua mantendo um papel central
em diversas culturas contemporâneas. Sobre isso ver: Bauman et al. (1992), Manning (1983), Falassi

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 190 •

música e artes. De acordo com Garofalo (1992), estes festivais tam-


bém são considerados mega-eventos, pois não se limitam ao momen-
to de fruição por parte do público presente. Além das performances
ao vivo, eles envolvem criação e distribuição de uma variedade de
produtos culturais que fazem parte ou estão associados à experiência
que proporcionam: transmissão dos shows através de canais de TV
ou internet, gravação de CDs e DVDs das apresentações, produção
de documentários e making of dos bastidores do evento, apenas para
citar alguns exemplos. Esses tipos de produtos associados permitem
que – não apenas aqueles que estão presentes no festival – mas mi-
lhões de outras pessoas possam vivenciar e compartilhar experiências
relacionadas ao festival, além de proporcionar aos organizadores di-
versos ganhos econômicos e simbólicos que são potencializados para
a produção de outros eventos.
Acreditamos, como defende Garofalo (1992), que o fenômeno
dos mega-eventos representa uma importante convergência de forças
que podem desafiar as visões tradicionais do que é cultura de massa,
cultura popular5 e, da mesma forma, contribuir para uma reflexão a
respeito de ativismo e participação política nos dias atuais.

Breve histórico da relação entre festivais e participação: da cultura


folk à cultura digital
Tradicionalmente, a maioria dos festivais são analisados em relação ao
mais conhecido exemplo de todos os tempos: Woodstock6 , considera-

(1987) e Handelman (1990). No presente artigo consideramos festival como sendo um evento público,
temático, que acontece num período determinado e tendo objetivos específicos. Os temas principais
deste tipo de celebração normalmente são: artes, festas, carnavais, jogos e marcos históricos. Gold &
Gold (2005), Getz (1991) e Hall (1992) discutem a analisam diversos tipos de festivais.
5 Ver Canclini (2003) para uma ampla discussão sobre hibridismos e a nova perspectiva de análise do
tradicional-popular levando em conta suas interações com a cultura de elite e com as indústrias culturais.
Apesar de que, nas ciências sociais, há certo consenso em relação a esta discussão, ainda hoje, no senso
comum e na linguagem cotidiana, existe alguma confusão em relação aos termos “folclore”, “cultura
popular”, “alta cultura” e “cultura de massa” (e suas variações), como destaca Garofalo (1992).
6
No entanto, Garofalo (1992) destaca que foi exatamente Woodstock que deslanchou a relação comercial

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 191 •

do historicamente o mais participatório, comunitário, anticomercial


e sem barreiras entre artistas e público.
O Festival de Arte e Música de Woodstock (Woodstock Music and
Arts Fair, originalmente denominado An Aquarian Exposition) foi
realizado entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969, na fazenda de pro-
priedade de Max Yasgur – que forneceu 50 mil dólares e uma área de
aproximadamente 2.5 km² em Bethel, uma pequena cidade em Nova
York – aos organizadores que venderam, antecipadamente, cerca de
186 mil ingressos em lojas de música. O festival durou três dias e se
transformou em um dos mais conhecidos eventos do movimento hi-
ppie, das palavras de ordem paz e amor, além da luta pela liberdade
e democracia. Conhecido e aclamado mundialmente, nem o final de
semana chuvoso e a infraestrutura precária impediram a presença de
cerca de 450 mil jovens no evento (além de 1.500 jornalistas) que
assistiram às 32 performances ao vivo e viveram o momento que foi
considerado um marco mundial na história do rock and roll e do seu
papel para a cultura popular7.
A partir de Woodstock, o potencial político e revolucionário da
música popular se tornou explícito.
Quando os ativistas finalmente reconheceram a conexão entre
política e música popular no final dos anos 60, a música era va-
lorizada precisamente quando era pensada como algo além da
cultura de massa ou quando era vista como progressiva apesar
de ser cultura de massa. Sgt. Pepper era arte. As letras de Dylan
eram poesia. Woodstock era comunidade. E Motown... Bem,
Motown era negro. Em nenhum momento essa música era cele-
brada como cultura de massa, apesar de que isso era claramente
a base para sua divulgação – massiva, digamos – e apelo. A falha
em aceitar cultura de massa como cultura de massa contribuiu

entre música popular e negócios na contemporaneidade. Ao tentar conciliar uma aparente incoerente
relação entre valores folk (termo aqui utilizado para fazer referência a uma cultura tradicional-popular,
de origens rurais) e os imperativos da cultura popular massiva (urbana), muitos estudos buscam refú-
gio nas relações sociais de um passado idealizado.
7
Woodstock Preservation Archives (2002); BBC (2008); Times Herald-Record (2009).

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 192 •

fortemente para a nossa inabilidade em perceber seu potencial


político (GAROFALO, 1992, p. 188).

No entanto, também há uma significativa diferença no papel da


música popular em criar movimentos políticos. Nesse período, as lutas
pelos direitos civis e protestos antiguerra envolviam milhares de pessoas
de forma direta, o que os fortalecia. No processo, esses movimentos
exerciam uma influência profunda nos temas e estilos refletidos na
música popular. Desde os anos 1980, a música (e a cultura) assumi-
ram papel de destaque na mobilização dos jovens, devido à relativa
ausência deste tipo de ativismo. Com um aparente declínio da par-
ticipação popular em movimentos políticos locais, a própria música
popular passou a servir como um catalisador para levantar discussões
e organizar grupos de pessoas (GAROFALO, 1992).
A partir do final do século XX, a relação entre festivais e ativismo
passou a ser cada vez mais reconhecida9. E os efeitos progressivos dos
mega-eventos estão relacionados tanto às intenções dos artistas e or-
ganizadores quanto ao uso criativo que o público10 faz deles. Nesse
período se tornam populares festivais que têm como funções arrecadar
fundos para movimentos sociais, políticos e ambientais; conscientizar
o grande público a respeito de assuntos pouco abordados pela grande
mídia; demonstrar apoio e envolvimento de artistas com certas cau-
sas; recrutar, agitar e mobilizar ativistas. E, neste contexto, precisamos
pensar o papel do desenvolvimento tecnológico que se intensifica, de
uma forma sem precedentes, a partir de meados dos anos 1990. Os
mesmos avanços tecnológicos que permitirão transmissões simultâ-

8
Todas as citações de obras originais em inglês incluídas nas referências foram traduzidas pelas au-
toras.
9
Para uma discussão ampla e atual sobre o assunto ver St. John (2008). O autor apresenta novas pers-
pectivas para a compreensão das características festivas e carnavalescas do ativismo contemporâneo a
partir deste período.
10
Consideramos aqui, como vemos em Jenkins (2008), a idéia de consumidores ativos (ou prosumers)
que vem sendo utilizada para explicar os processos pelos quais os públicos (audiências) – anteriormen-
te considerados (equivocadamente) receptores passivos de conteúdos de mídia – são atualmente vistos
como ativos (re)produtores, (re)significadores e (re)distribuidores culturais através de diversos canais
de comunicação.

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 193 •

neas mundiais dos eventos e a construção de mega-audiências inter-


nacionais para os detentores de grandes capitais transnacionais (redes
de TV e rádio, gravadoras, grandes produtoras de eventos) também
irão encorajar a descentralização do processo criativo, tornando a dis-
tinção entre produção e consumo cada vez mais fluida.
Ullestad (1992) considera que foi a partir da realização do Live Aid
(1985) que surgiu a articulação entre a cultura popular e a indústria
do entretenimento como conhecemos atualmente, através da mobili-
zação de milhares de indivíduos reunidos em mega-eventos, pelo que
se convencionou chamar de responsabilidade social. Ele analisa diver-
sos projetos musicais (não apenas festivais11, mas também programas
especiais, vídeos e compilações musicais voltados à arrecadação de do-
ações para alguma causa) que buscaram ativamente conscientização
social através da música popular, principalmente pop e rock.
Apesar das críticas que podem ser feitas a eventos deste tipo12, Ul-
lestead (1992, p. 53) acredita que cada um, à sua maneira, mais ou
menos radicais ou progressivos em suas propostas e ambições, ser-
viram para chamar a atenção para causas e assuntos que são consi-
derados polêmicos em determinados momentos históricos e desafiar
visões dominantes, estabelecendo novas relações entre artistas, audi-
ências, produtores de eventos, organizações humanitárias e empre-
sas de mídia.

11
O autor analisa os seguintes festivais: Live Aid (1985), Mandela Tributes (1988 e 1990), Amnesty
International’s Conspiracy of Hope/Human Rights Now! (1988), assim como os projetos: Sun City
(1985); Greenpeace’s Rainbow Warriors (1989); e Red, Hot & Blue (1990). Ele utiliza quatro cate-
gorias (artistas, audiências, produtos musicais e papel econômico e político das estruturas de poder da
indústria musical) para apresentar suas similaridades e diferenças, e analisando tensões históricas, aber-
turas, disputas por empoderamento, cooptação e rebeldia.
12
Destacamos como principais as seguintes questões: problemas com distribuição e efetiva utilização
do dinheiro arrecadado, compromisso dos artistas com as causas defendidas ou utilização destes even-
tos apenas para marketing, distinção entre objetivos de caridade ou oportunidade de se criar mudanças
efetivas. Para uma série de artigos sobre a relação entre música popular e movimentos políticos e sociais
em diversos países, ver: GAROFALO, R. (Ed.). Rockin’ the boat: mass music and mass movements.
Cambridge: South End Press, 1992.

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 194 •

Os grandes festivais internacionais e a cultura participatória na


era da convergência
Conforme argumenta Jenkins (2008), o contexto atual nos permite
pensar os processos comunicativos contemporâneos de uma forma
que mantém alguma ligação com a cultura folk participativa; sendo
que eles não vêm para substituir a cultura da grande mídia, mas para
acrescentar-lhe novas nuances. A cultura participatória na era da con-
vergência também incentiva a ampla participação, a criatividade e as
trocas em ambientes interativos13. E isso é o que acontece quando
os consumidores tomam a mídia em suas próprias mãos. Obviamen-
te, na cultura tradicional popular (ou folk) não há uma divisão clara
entre produtores e consumidores. Já na cultura da convergência, to-
dos podem ser participantes, embora estes tenham diferentes graus
de status e influência. Isso pode ser observado ao analisarmos as di-
nâmicas históricas dos festivais de música e arte.
As alterações nos processos de produção cultural têm um caráter
histórico e irreversível, mantendo um fluxo contínuo que irá alte-
rando-se de acordo com os novos contextos políticos, econômicos
e sociais. Para Jenkins (2008, p. 139), nunca houve um limite cla-
ro entre a cultura comercial emergente e a cultura popular residual,
como alguns insistiram em defender: a cultura comercial invadiu
a cultura popular e a cultura popular invadiu a cultura comercial.
As novas artes industrializadas necessitavam enormes investimen-
tos e, portanto, exigiam uma audiência de massa. A indústria do
entretenimento comercial estabeleceu normas de perfeição técnica
e realização profissional que poucos artistas tradicionais populares
poderiam atingir. Dessa forma, muitas culturas populares foram

13
É importante destacar a distinção que Jenkins faz entre interatividade e participação. A interatividade
refere-se às maneiras que as novas tecnologias foram concebidas para serem mais sensíveis ao feedback
dos consumidores. As restrições, na interatividade, são tecnológicas. Em quase todos os casos, o que se
pode fazer em um ambiente interativo é pré-estruturado pelo designer. A participação, por outro lado,
é moldada por protocolos culturais e sociais. Esta é mais aberta, está menos sob o controle de produto-
res de mídia e muito mais sob o controle dos consumidores (JENKINS, 2008, p. 137).

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 195 •

empurradas para o underground. Mas, ao mesmo tempo, comuni-


dades de admiradores das culturas populares surgiram em resposta
ao conteúdo da grande mídia massiva. Alguns estudiosos de mídia
defendem uma distinção entre cultura de massa (uma categoria de
produção) e cultura popular (uma categoria de consumo), argumen-
tando que a cultura popular é aquilo que acontece aos produtos da
cultura de massa, quando chegam às mãos dos consumidores. No
entanto, acreditamos que a tentativa em separar e definir as diversas
“modalidades” de cultura não se faz necessária se levamos em conta
a noção de convergência (Jenkins) ou hibridismo (Canclini), uma
vez que os “tipos” de cultura são campos de disputa complexos, que
se relacionam entre si, tanto no momento da produção, quando no
da distribuição e consumo.
Do ponto de vista convencional, entretenimento e participação
política normalmente são considerados duas questões totalmente se-
paradas: um seria material de consumo e outro, cidadania. Jenkins
(2008) observa, contudo, em sua análise das últimas eleições norte-
americanas, que os cidadãos começam a aplicar cada vez mais aquilo
que têm aprendido como consumidores ativos de cultura popular em
direção a formas mais evidentes de ativismo político.
A cultura popular influenciou a maneira como as campanhas
cortejaram os seus eleitores - mas, mais importante, definiu a
forma como o público processou e pôs em prática o discurso
político. [...] A atual diversificação dos canais de comunicação
é politicamente importante porque amplia o leque de vozes que
podem ser ouvidas: apesar de algumas vozes comandarem com
maior destaque do que outras, nenhuma voz fala com autorida-
de inquestionável. A nova mídia opera com princípios diferentes
dos meios de transmissão em massa, que dominaram a política
americana por tanto tempo: acesso, participação, reciprocidade
e peer-to-peer14, ao invés de comunicação one-to-many15. Ten-
do em conta esses princípios, devemos antecipar que a demo-
cracia digital será descentralizada, de forma desigual, dispersa,

14
Em português (P2P): comunicação par a par, ou ponto a ponto. (N. T).
15 Em português: comunicação de um para muitos. (N. T.).

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 196 •

profundamente contraditória e lenta a emergir. Estas forças são


capazes de surgir em primeiro lugar nas formas culturais – um
sentimento de comunidade diferente, um maior senso de par-
ticipação, menor dependência do conhecimento oficial, e uma
maior confiança na resolução de problemas coletivamente [...].
(JENKINS, 2008, p. 219-220).

Para Jenkins (2008), apesar de alguns estudos tenderem a enfatizar


as mudanças que estão ocorrendo com os indivíduos, as maiores mu-
danças estão ocorrendo com as comunidades de consumo. E a maior
delas parece ser a mudança do consumo individualizado e personaliza-
do de mídia em direção ao consumo como uma prática em rede. Daí
a importância de compreendermos a convergência e suas consequên-
cias para uma nova redistribuição do poder participativo coletivo nas
diversas esferas: culturais, sociais, políticas e econômicas.
Estamos apenas começando a aprender a exercer este poder -
individual e coletivamente - e ainda estamos lutando para defi-
nir as condições sob as quais será permitido participar. Muitos
temem esse poder, outros querem aceitá-lo. [...] Estamos ten-
tando determinar como esse poder irá inserir-se no sistema de
entretenimento ou no processo político. [...] como - e porque
- grupos com diferentes histórias, agendas ideológicas, perspec-
tivas e conhecimentos podem ouvir uns aos outros e trabalhar
juntos para o bem comum. (JENKINS, 2008, p. 256).

A cultura da convergência é altamente produtiva: algumas idéias


se propagam de cima para baixo, começando com a mídia comercial
e sendo adotadas e apropriadas por uma gama de diferentes públi-
cos, ao se espalharem para fora e através da cultura. Outras surgem
de baixo para cima, a partir de vários locais da cultura participati-
va, e são puxadas para o mainstream, se as indústrias midiáticas vi-
rem alguma maneira de lucrar com isso. O poder da mídia popular
é que ela diversifica; o poder dos meios de radiodifusão é que eles
ampliam. É por isso que devemos nos preocupar com o fluxo en-
tre os dois: expandir o potencial para participação representa uma
maior oportunidade para a diversidade cultural. Se jogarmos fora os

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 197 •

poderes da radiodifusão, teremos apenas fragmentação cultural. O


poder da participação não vem de destruir a cultura comercial, mas
de escrever sobre ela, modificá-la, alterá-la, expandindo-a, acrescen-
tando uma maior diversidade de perspectivas, e depois recirculan-
do-a, alimentando-a de volta para a mídia de massa. Se pensarmos
nesses termos, a participação se torna um importante direito políti-
co (JENKINS, 2008).
Esse argumento é muito importante para compreendermos as mo-
dificações na relação entre a música (e as artes em geral) e a participa-
ção política (no sentido amplo, e não apenas político-partidário). Da
mesma forma que os meios de comunicação passam por mudanças
aceleradas, também a forma dos jovens se relacionarem com ques-
tões de cidadania, liberdade e responsabilidade social tem mudado
muito nas últimas décadas e, portanto – como temos visto ao longo
do texto – também mudou a forma como isso se observa nos eventos
culturais contemporâneos. Para Bennett16 (2008, apud JENKINS,
2008, p. 289), os jovens estão descobrindo a sua voz através de suas
brincadeiras com a cultura popular e, em seguida, buscam implantá-
la através da sua participação em projetos de serviço público ou vá-
rios movimentos políticos.
Pesquisadores debatem se estes jovens – que cresceram em um
mundo onde o potencial das tecnologias de mídia participativa é
lugar-comum – são, de fato, politicamente engajados, uma vez que
sua vida cívica assume formas muito diferentes daquela das gerações
anteriores. Eles têm, por exemplo, maior probabilidade de obter in-
formações sobre o mundo através de shows de comédia e blogs de
notícias do que através do jornalismo tradicional. Há evidências con-
flitantes sobre a sua vontade de votar, mas a maioria das pesquisas
mostra que eles estão muito preocupados com questões como a guer-
ra e o meio ambiente, e estão dispostos a traduzir essas preocupações

16
BENNETT, W. L. Changing citizenship in a digital age. In: BENNETT, W. L. (Ed.). Civic life on-
line: learning how digital media can engage youth. Cambridge: MIT Press, 2008.

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 198 •

em serviços comunitários. (JENKINS, 2008, p. 289). Sem dúvida,


o tipo de participação é totalmente diferente dos jovens que utiliza-
vam músicas de ordem em suas passeatas de luta pelos Direitos Ci-
vis nos EUA, ou durante o movimento contra a ditadura militar, no
Brasil. No entanto, mais do que julgar uma ou outra geração, o mais
interessante é compreender a cultura em relação aos contextos nos
quais ela está inserida.
Como já exposto, não se trata de defender que a era da convergên-
cia permite uma participação integral e irrestrita por parte de todas as
pessoas – individual ou coletivamente. Existem mudanças em fluxo e
muitas possibilidades, mas também limitações e obstáculos para que
todos sejam capazes de se engajar plenamente na participação, princi-
palmente devido ao controle exercido pelas grandes corporações, e às
lacunas de participação, impostas pelo próprio sistema. Além disso, é
preciso enfrentar os fatores culturais que diminuem a probabilidade
de que grupos distintos possam participar, como diferenças de raça,
classe, língua, religião, entre outras, que podem ampliar as desigual-
dades de oportunidades. Afinal, a existência de plataformas abertas
para participação não garante, necessariamente, diversidade. Da mes-
ma forma que alguns mecanismos atuais permitem avaliar coletiva-
mente os méritos das contribuições individuais para a cultura como
um todo, outros simplesmente facilitam a apropriação de expressões
de perspectivas das minorias e também ocultam certos tipos de con-
teúdos (JENKINS, 2008, p. 290).
Podemos pensar que a realização dos grandes festivais internacio-
nais de música e artes, como veremos a seguir, está inserida numa
lógica de produção de grandes corporações de mídia, marketing, pa-
trocínio, etc. e pouco tem a ver com os primeiros festivais da década
de 1960. Também podemos argumentar que, no que refere aos seus
propósitos, os atuais se diferem daqueles realizados a partir da déca-
da de 1980, autodeclarados eventos ativistas, levantando bandeiras
políticas e de causas sociais explícitas. No entanto, a análise do caso

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 199 •

brasileiro17 – que declaradamente foi inspirado nos modelos norte-


americano e britânico – demonstra como estes festivais, do ponto de
vista do posicionamento midiático e do uso de mecanismos de par-
ticipação, têm se adaptado à era da convergência. Obviamente não
são os únicos exemplos, mas pelos motivos aqui expostos, foram es-
colhidos para a presente análise.
Duncombe18 (2007) acredita que, seguindo os ideais progressistas
de igualdade, de que todos poderão, cada vez mais, contribuir com
valores agregados para a produção cultural contemporânea, os sonhos
não serão construídos por peritos de mídia e então entregues para que
todos possam assistir, consumir e acreditar.
Em vez disso, nossos espetáculos serão participativos: sonhos
que o público possa moldar e dar forma. Eles vão ser ativos: es-
petáculos que só funcionam se as pessoas ajudarem a criá-los.
Serão abertos: montando palcos para fazer perguntas e deixan-
do silêncios para formular respostas. E eles serão transparentes:
sonhos que sabemos que são sonhos, mas que ainda têm poder
de atrair e inspirar. E, finalmente, os espetáculos que nós cria-
mos não vão encobrir ou substituir a realidade e a verdade, mas
que representá-las e amplificá-las. (DUNCOMBE, 2007 apud
JENKINS, 2008, p. 284)

Os festivais atuais, nos moldes que observamos, mantêm-se viáveis


por estarem dentro de estruturas hegemônicas de poder (contando
com patrocínio de grandes empresas, apresentando grande número de
artistas ligados às majors, cobrando altos valores pelos ingressos, nego-
ciando com a grande mídia), mas buscado também adaptar-se à exi-
gência de participação do seu púbico alvo, os jovens. Os organizadores

17
O festival brasileiro Starts With You (SWU) foi escolhido por ser o único mega-festival a ser reali-
zado no Brasil atualmente que segue a lógica dos festivais internacionais. Outro exemplo é o Rock In
Rio (que foi realizado no Rio de Janeiro em 1985, 1991, 2001, exportado como modelo para Lisboa
e Madrid e que, conforme foi anunciado na imprensa, será novamente realizado no Brasil em 2011).
Outros festivais de pop, rock e música eletrônica (e que contam com alguns artistas e bandas interna-
cionais) acontecem em diversos estados brasileiros, no entanto, não seguem o mesmo modelo e escala
dos festivais aqui analisados.
18
DUNCOMBE, S. Dream: re-imagining progressive politics in an age of fantasy. New York: New
Press, 2007, p. 16.

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 200 •

destes eventos têm buscado apoiar e divulgar causas com as quais os


jovens se identificam (principalmente sustentabilidade e diversidade
cultural), abrir canais de comunicação mais diretos, livres e informais
(através das redes sociais) e expor seus produtos de forma meno mas-
sificada (através, principalmente, de sites, blogs, fóruns e portais de
internet que podem, inclusive, disponibilizar entrevistas exclusivas,
podcasts, e mesmo transmitir o evento ao vivo). Este tipo de evento,
para atingir seu potencial, deve ser diretamente democrático, buscar
romper com as hierarquias, promover ações comunitárias, permitir a
diversidade de culturas, religiões, etnias e gênero e, principalmente,
se envolver com a realidade, perguntando que novas realidades po-
dem ser possíveis.
Os três festivais analisados a seguir foram escolhidos por terem
uma proposta que busca aliar participação – do ponto de vista da
responsabilidade social e práticas sustentáveis – com uma intenção
(expressa pelos organizadores através de canais de mídia) de envolver
não apenas o público que se encontra presencialmente do evento –
mas também aqueles que participam através de diversas ferramentas
de internet – na experiência que buscam proporcionar. A ideia para o
presente artigo surgiu quando pensamos em analisar o primeiro fes-
tival internacional brasileiro de grande porte que explicitamente se
declarou preocupado com estas questões e, para isso, fomos buscar
suas fontes de inspiração – de acordo com os organizadores: os festi-
vais de Glastonbury e Coachella.

Glastonbury Festival of Contemporary Performing Arts:


Reino Unido
O Festival de Glastonbury – ou Glasto, como é popularmente co-
nhecido – é um dos maiores e mais antigos festivais de música e artes
performáticas. Sua programação conta não apenas com música con-
temporânea, mas também com espetáculos de dança, comédia, teatro,

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 201 •

circo, entre outras manifestações artísticas e culturais19. Ele acontece


na região sudoeste da Inglaterra, na Worthy Farm, propriedade do fa-
zendeiro local Michael Eavis, seu criador e atual organizador20, numa
área que conta com várias lendas e tradições espirituais relacionadas
ao new age. Sua origem foi influenciada pelo movimento hippie e
inspirado, inicialmente, no Festival Isle of Wight21.
Durante a década de 1970 foram realizadas três pequenas edições
não consecutivas, por organizadores diferentes, com objetivos diver-
sos e sem obter retorno financeiro. Estes eventos, no entanto, des-
pertaram interesse na Inglaterra, se tornando precursores do Festival
de Glastonbury que, a partir dos anos 1980, foi trasnformando-se
no formato conhecido atualmente e que serviu de exemplo para no-
vos festivais em todo o mundo. É importante destacar que o festival
de 1971 foi filmado por Nicolas Roeg e David Puttnam e lançado
no ano seguinte como o documentário Glastonbury Fayre22 (UK,
1972, 87min.).
Em 1981, Eavis (através da sua empresa Glastonbury Festivals
Ltd.) tomou o controle do festival definitivamente e o organizou em

19
Para detalhes sobre todas as manifestações artísticas e atividades que acontecem durante o festival
em suas diversas áreas, ver: <http://www.glastonburyfestivals.co.uk/areas>.
20 Ele foi o pioneiro ao verificar o potencial local para a realização de festivais, criando ali um primei-
ro evento (Pilton Pop, Blues & Folk Festival), em 1970. Depois de algumas edições organizadas por
outras pessoas, Eavis assumiu novamente a organização do evento em 1981. Desde então, assumiu a
coordenação juntamente com sua esposa Jean até a morte dela, em 1999. Atualmente, é assessorado
por sua filha, Emily Eavis. Para uma descrição mais detalhada da história do evento, comentando os
diversos nomes, edições, atrações e organizadores, ver também, além do site oficial do evento citado
acima: <http://en.wikipedia.org/wiki/Glastonbury_Festival>.
21
O Isle of Wight é um festival de música que acontece anualmente no Reino Unido. Originalmente foi
realizado de 1968 a 1970. O evento de 1970 foi um dos primeiros e mais famosos festivais na Europa.
Na época, foi considerado uma das maiores reuniões de pessoas no mundo, com estimativas de mais de
600 mil, sendo assim superior a Woodstock. Contou com a presença de mais de 50 artistas, entre eles:
The Who, Jimi Hendrix, Miles Davis, The Doors, Joni Mitchell, Leonard Cohen, Jethro Tull, etc. De-
vido ao excesso de público, em 1971 o parlamento britânico exigiu que eventos a serem realizados na
ilha e que reunissem mais de 5.000 pessoas solicitassem uma licença especial. O evento foi retomado em
2002 no Seaclose Park, um espaço de lazer nos arredores de Newport, e tem sido realizado anualmente
desde então. Para mais informações, ver: <http://en.wikipedia.org/wiki/Isle_of_wight_festival>.
22
Para maiores informações ver: <http://www.imdb.com/title/tt0810001/> e <http://en.wikipedia.
org/wiki/Glastonbury_Fayre>.

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 202 •

conjunto com a Campaign for Nuclear Disarmament23 (CND). Este


foi o primeiro ano em que o evento deu lucro e Eavis doou parte da
renda para a CND. Nos anos seguintes, as doações passaram a ser fei-
tas a diversas organizações, sendo as principais Oxfam, Greenpeace e
WaterAid, que contribuem com o festival providenciando recursos e
voluntários que trabalham em troca de admissão gratuita.
Em 1990 aconteceu a maior edição do festival, mas problemas
com violência levaram à suspensão da edição seguinte, a fim de se re-
pensar a estrutura. Em 1992, o evento retornou ainda maior, provan-
do ser um grande sucesso de público. Novamente em 1996 o evento
não aconteceu para permitir que a terra se recuperasse. Este passou
a ser o padrão de realização normalmente mantido até hoje: um ano
de descanso em cada cinco. Neste ano foi lançado o Glastonbury the
Movie24 (UK, 1995, 96min.), filmado durante os festivais de 1993
e 1994. Em 1997 o evento retornou, tendo como principais patro-
cinadores o jornal The Guardian e a rede de TV BBC, responsável
pela transmissão televisiva através do Channel 4. Em 1998 o público
rompeu pela primeira vez a marca das 100 mil pessoas.
A edição de 2000 do Glastonbury contou com a primeira trans-
missão online ao vivo do evento. Juntamente com a PlayLouder25, pa-
trocinadora oficial do evento na internet, foram transmitidas algumas
apresentações diárias26. Em 2001, através da tecnologia de webcast
e em conjunto com a PlayLouder, Virtue TV e MSN27, foi criado o

23
Campanha para o Desarmamento Nuclear é uma organização antinuclear e pró-desarmamento do
Reino Unido. (N. T.).
24
Para mais informações ver: <http://www.myspace.com/glastonburythemovie>, <http://www.imdb.
com/title/tt0113178/> e <http://en.wikipedia.org/wiki/Glastonbury_the_Movie>.
25
Companhia de mídia e música digital fundada em 2000 no Reino Unido. Atualmente não se encontra
mais em operação neste formato. Mais informações: <http://playlouder.com/> e <http://en.wikipedia.
org/wiki/Playlouder>.
26
Neste ano cerca de 250 mil pessoas compareceram ao evento, contudo, apenas 100 mil ingressos fo-
ram vendidos e os demais participantes invadiram o local. Isso causou preocupação ao poder público,
que se recusou a conceder futuras licenças até que o problema fosse resolvido. Em 2001 os organizadores
utilizaram o ano de descanso para conceber medidas que evitassem a entrada dos invasores.
27
Ver: <http://news.bbc.co.uk/2/hi/entertainment/1407152.stm>.

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 203 •

Glastonbury Virtual, o primeiro festival a acontecer exclusivamente


online. A transmissão dos três dias gerou mais de dois milhões de vi-
sitas, demonstrando a receptividade do público à interatividade em
festivais musicais28. Os organizadores mativeram o webcast nos anos
seguintes, mudando apenas a tecnologia usada na transmissão dos
dados. Em 2004 e 2005 os ingressos se esgotaram em poucas horas,
o que causou muitas controvérsias sobre o processo de compra, dei-
xando muitos interessados tentando conectar-se por horas aos siste-
mas de venda por telefone e internet. Em 2006 não houve festival,
mas o documentário Glastonbury29 (USA/UK, 2006, 138min.), di-
rigido por Julien Temple, foi lançado juntamente com gravações fei-
tas pelos fãs e de arquivo. Em 2007, a BBC lançou seu novo palco e
o festival teve seu maior público oficial até hoje: os 137.500 ingres-
sos se esgotaram em 1h45min. Em 2008 a transmissão pelo site da
BBC recebeu 600 mil visitantes, o que fez com que a mesma inves-
tisse em tecnologias para o ano seguinte, como o uso de câmeras de
vídeo sem fio mostrando diferentes partes do evento e reportando a
atmosfera para os espectadores. Neste ano, o site contou também com
uma plataforma capaz de integrar feeds do Twitter, onde jornalistas e
apresentadores do canal puderam comentar o evento em tempo real.
A BBC também usou um novo sistema de vídeo digital que facili-
tou a formatação da transmissão para conteúdo online, tornando a
navegação mais fácil pelo site e compatível com celulares. Seguindo
as inovações nas mídias sociais, em 2010 foi criado um blog próprio
do festival e um aplicativo de celular para auxiliar o público em sua
experiência no evento, contando com um mapa interativo e lista das
atrações separadas por palcos.

28
A grande popularidade das transmissões de shows ao vivo pela internet e assistidos através de com-
putadores pessoais foi verificada pela primeira vez no início do mesmo ano, quando o portal MSN do
grupo Microsoft transmitiu uma performance ao vivo de Paul McCartney no Cavern Club, atraindo
três milhões de espectadores online. Esse desempenho foi posteriormente superado com o show de
Madonna na Brixton Academy, também transmitido ao vivo pelo MSN, que foi assistido por mais de
nove milhões de pessoas em todo o mundo.
29
Mais informações: <http://www.imdb.com/title/tt0464022/>.

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 204 •

Os organizadores do evento doam grande parte de seu lucro para


caridade e, com exceção da equipe técnica e de segurança, o festival
acontece basicamente com o apoio de voluntários. Muitas instituições
menores, além das já mencionadas, organizam tendas para divulgar
campanhas educacionais e promocionais. Eles também sempre pro-
curaram manter uma consciência ambiental. O transporte solidário é
estimulado e já foi associado com alguns tipos de ingressos vendidos,
e campanhas internacionais de caridade (como por exemplo, Give Me
Shelter) e ambientais (Stop Climate Chaos) foram promovidas para
receber doações ou alistar voluntários para as causas. Eavis também
criou a campanha Love the Farm, Leave no Trace, que incentivou o
público a limpar sua sujeira após o festival; barracas biodegradáveis
já foram distribuídas gratuitamente a todos os campistas e tratores
ecológicos movidos a óleo vegetal reciclado circulam pela fazenda.
Estes esforços garantiram o prêmio The Greener Festival de 200830,
ao lado de outros festivais igualmente empenhados em questões am-
bientais. Da mesma forma, é dado prioridade à venda de alimentos
e produtos locais, orgânicos e artesanais durante o festival. Como
destaca Eavis no registro de sua empresa, os lucros decorrentes do
festival servem para investir no desenvolvimento sustentável da lo-
calidade e contribuir com as causas que considera importantes e que
apoiam o evento:
Além de tudo isso, a empresa persegue ativamente o objetivo de
obter lucros. E, ao fazê-lo, é capaz não só de fazer melhorias no
local, mas também de distribuir grandes quantidades de dinheiro
para o Greenpeace, Oxfam, Water Aid e outras causas humani-
tárias que melhorem o tecido da nossa sociedade. No decorrer
do evento o Festival deliberadamente utiliza os serviços dessas
organizações, aumentando as quantidades que podem levantar
para atingir seus objetivos31.

30
Ver mais: <http://optimistworld.com/Articles.aspx?id=First-winners-of-Greener-Festival-Award-
2008-announced>.
31
Fonte: <http://www.glastonburyfestivals.co.uk/information/what-is-glastonbury/the-festivals-objec-
tives> Acesso em 15 set. 2010 (tradução nossa).

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 205 •

A participação não é possibilitada apenas pela interatividade do


festival, que perpassa diversas plataformas midiáticas, como transmis-
sões feitas através de internet, DVD, rádio e TV. Nos últimos anos
o evento está presente ativamente durante todo o ano no cotidiano
daqueles que têm interesse em suas edições passadas e futuras. Atra-
vés de links no site oficial, os internautas podem ter acesso a todos
os outros sites e redes sociais onde está disponibilizado todo tipo de
informação e acontecem discussões sobre o assunto: páginas oficiais
do Facebook32 e Twitter33; portal oficial da BBC sobre o evento34;
fóruns especializados em festivais35, apenas para citar alguns. Nestas
redes, o estabelecimento de relações sociais envolvendo pessoas que
têm em comum o interesse pelo evento acontece de forma intensa e
criativa. Os temas das discussões se relacionam ao evento em si, às
artes e cultura em geral, ou a assuntos sociais, políticos e ambientais,
envolvendo práticas e experiências compartilhadas.

Coachella Valley Music and Arts Festival: Estados Unidos


Coachella Fest é um festival anual de música e artes que atualmente
dura três dias. É organizado pela empresa Goldenvoice e realizado
no Empire Polo Fields, na cidade de Indio, na Califórnia. Seu foco
principal são os diversos gêneros musicais, principalmente rock alter-
nativo, hip hop e música eletrônica, bem como esculturas de grande
porte. O evento possui vários palcos e tendas distribuídas em todo o
espaço, tocando música ao vivo continuamente.
Suas origens datam da década de 1990. O Empire Polo Club nunca
havia sediado um evento musical de grande porte quando, em 1993,
a banda Pearl Jam tocou diante de quase 25 mil fãs sem praticamente

32
<http://www.facebook.com/glastonburyofficial>.
33
<http://twitter.com/glastofest>.
34
<http://www.bbc.co.uk/glastonbury>.
35
<http://www.efestivals.co.uk/festivals/glastonbury/> e <http://www.virtualfestivals.com>.

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 206 •

nenhuma estrutura36. No entanto, somente seis anos depois, em 1999


(apenas três meses após o desastroso festival Woodstock 9937), o pri-
meiro Coachella Fest foi realizado. Cerca de 25.000 pessoas partici-
param do evento inaugural, que teve duração de dois dias.
O festival não teria sido realizado em 2000, supostamente devido
aos problemas financeiros do ano inaugural. Em 2001 os organizado-
res decidiram realizar o evento em abril e o diminuiram para apenas
um dia. Em 2002 o evento mais uma vez retornou para o formato de
dois dias. Grandes atrações principais e de apoio ajudaram a provar
para a comunidade local que o evento era capaz de gerar dinheiro e
terminar sem conflitos. Coachella começou a despertar interesse e o
festival de 2003 atraiu um público recorde. Nesta época, o evento
começou a gerar interesse internacional. Em 2003, passou a incluir
área de camping em um campo de pólo adjacente, próximo à area
do evento. 2004 foi a primeira edição do evento a esgotar os ingres-
sos com antecedência, com 50 mil bilhetes vendidos para cada dia.
Desde então, o festival continua a gerar grande demanda, devido às
fortes atrações musicais em toda sua programação.
Desde 2006, a organização do Coachella e a empresa de telefonia
AT&T, que foi patrocinadora oficial do evento até 2009, ofereceram
transmissão do festival para a internet e usuários de celulares. As trans-
missões contaram com apresentações na íntegra dos diferentes palcos
do evento. O festival de 2007 foi estendido para três dias e teve sua

36
Havia motivos para se questionar a adequação do espaço a este tipo de iniciativa. Trata-se de um
vasto e deserto gramado irrigado localizado em um dos pontos mais quentes e secos da América. As
cidades da região, embora tenham uma tradição em resorts, são pouco populosas e ficam há horas de
carro de vários dos principais centros populacionais regionais (San Diego, Los Angeles, Las Vegas e
Phoenix). O site oficial <http://www.coachella.com/> não traz a história completa do evento e os arqui-
vos do fórum registram informações principalmente a partir de 2004. Para maiores informações sobre
a história: <http://en.wikipedia.org/wiki/Coachella_Valley_Music_and_Arts_Festival>. <http://top40.
about.com/od/concerts/tp/coachellafestival.htm>. <http://www.signonsandiego.com/feature/coachella-
festival/coachella_history.html>.
37
Devido aos incêndios e tumultos do Woodstock 1999, os promotores de Coachella não foram au-
torizados a oferecer camping no local, uma proibição que perdurou até o festival de 2002. Para maio-
res referências e informações sobre o Festival Woodstock 1999, ver <http://en.wikipedia.org/wiki/
Woodstock_1999>.

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 207 •

maior audiência. A venda de ingressos para o evento de 2008 não se


esgotou, o que aconteceu pela primeira vez desde 2003. O evento
de 2009 foi organizado uma semana mais cedo que o normal, com a
terceira edição anual do Festival de música country Stagecoach38 co-
meçando na semana seguinte. Aproveitando a conectividade móvel,
em 2009 foram desolvidos aplicativos para os celulares com sistema
operacional iPhone, e para Androide no ano seguinte. Suas funcio-
nalidades contam com acesso ao fórum online, e offline, ao mapa do
local. Dispõe também de contagem regressiva para as apresentações,
a fim de facilitar o fluxo do público na escolha de qual atração irá as-
sistir. Em 2010, a transmissão ficou por conta da 5®REACT™Gum,
que escolheu integrar a transmissão com a sua página no Facebook39.
O site do festival conta com um fórum aberto ao público, que é uti-
lizado para discutir sobre o festival, música, bandas que se apresenta-
rão na edição atual, o que aconteceu em anos anteriores, e para pedir
a presença de artistas e bandas para as edições seguintes, solicitações
que muitas vezes são atendidas. O fórum permanece aberto duran-
te todo o ano e conta com a presença diária de centenas de usuários,
abrindo espaço para comentarem experiências passadas, sobre outros
festivais e assuntos variados. Na edição de 2010, a grande maioria
dos participantes do festival reclamou da falta de conexão no local e
lentidão na navegação. Alguns reportaram um atraso de 6 horas no
envio de mensagens SMS. Mesmo com pacotes 3G nos aparelhos
smartphones, a conexão era limitada, e os participantes que só con-
seguiram utilizar uma velocidade abaixo do normal, aproveitando a
conexão para enviar mensagens no Twitter40 ou fórum oficial41, se
queixaram da falta de sinal wireless42. Este tipo de ação tem se tor-

38
Evento realizado pelos pelos organizadores do Coachella Fest. Mais informações: <http://stagecoa-
chfestival.com/> e <http://en.wikipedia.org/wiki/Stagecoach_Festival>.
39
<http://www.facebook.com/coachella>.
40
<http://twitter.com/coachella>.
41
<http://www.coachella.com/forum/>.
42
<http://blogs.laweekly.com/westcoastsound/off-the-record/veni-vidi-tweetie-coachella-ex/>.

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 208 •

nado muito comum e demonstra que o uso democrático e em tempo


real das redes sociais na internet servem tanto para divulgações posi-
tivas quanto negativas.
Coachella também busca estimular práticas sustentáveis. Através
de suas ferramentas online, estimula campanhas de carona solidária
para o festival com prêmios e sorteios de brindes, como ingressos
VIP e o direito de subir ao palco durante a apresentação de algumas
das atrações principais. Existem jogos para estimular a produção de
energia alternativa, como a solar; discussões sobre prós e contras da
produção e utilização de biodiesel e etanol; moda sustentável e orgâ-
nica; um programa de distribuição de água filtrada para diminuir a
quantidade de garrafas plásticas de água vendidas no show; progra-
mas de reclicagem, entre outras inciativas.
Os organizadores do evento apoiam oficialmente diversas causas
sociais, principalmente aquelas voltadas para crianças e adolescentes.
Eles têm assumido o compromisso, através da Indio Youth Task For-
ce, de trabalhar com a juventude da comunidade local. Eles mantêm
um clube infantil Boys & Girls Club e um Clube de Boxe, projetos
que vêm sendo desenvolvidos há oito anos. Promovem bailes men-
sais, onde mais de 200 crianças participam a cada celebração, e um
jogo de basquete anual entre times dos jovens e policiais locais. Além
disso, parte da renda proveniente da venda dos ingressos é destina-
da ao Silverlake Conservatory of Music localizado em Los Angeles,
uma organização sem fins lucrativos que oferece às crianças cujas fa-
mílias não têm condições para isso, o acesso a instrumentos gratui-
tos e aulas de música.

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 209 •

Starts With You (SWU) Music and Arts Festival: Brasil


O Festival Starts With You – ou SWU, como foi divulgado – acon-
tece nos dias 9, 10 e 11 de outubro de 201043 na Fazenda Maeda,
em Itu, a cerca de 70 km de São Paulo. De acordo com o press rele-
ase divulgado pelos organizadores em São Paulo (SP) no dia 16 de
junho de 2010, trata-se de
[...] um grande festival de música e artes, nos moldes de festivais
internacionais como o Glastonbury (Reino Unido) e Coachella
(EUA). [...] É a primeira vez que o Brasil sedia um festival desse
tipo, oferecendo ao público a oportunidade de viver uma expe-
riência inesquecível de compartilhar música, artes e informação
com milhares de outras pessoas num ambiente fora das grandes
metrópoles. É a primeira vez também que um festival contará
com mega estrutura de camping para receber o público ao longo
de seus três dias de duração (IN PRESS…, 2010, p. 2).

Para os organizadores, a intenção do evento é ser parte de um mo-


vimento de conscientização em prol da sustentabilidade que convida
à ação, segundo eles, algo ainda inédito no país. Através de inten-
sivas campanhas na mídia tradicional (em rádio e TV) e internet, a
equipe de organização tem buscado fomentar a ideia de que preten-
dem criar
[...] uma iniciativa que aponta caminhos para que todas as pesso-
as que querem ajudar a construir um mundo sustentável come-
cem a agir. Movimento que, entre diversas ações programadas,
contará com um grande festival de música, arte e consciência
– o SWU Music and Arts Festival, para celebrar o engajamento
de todos. (IN PRESS…, 2010, p. 1).

O projeto foi lançado inicialmente através de um site oficial pró-


prio44 pelo Grupo Totalcom (comunicação integrada), de Eduardo
Fischer, em parceria com a The Groove Concept (entretenimento),
43
O presente artigo foi elaborado antes que o festival SWU 2010 acontecesse e leva em consideração
as ações propostas pela organização em momento anterior à sua efetiva realização. Como a publicação
deste livro ocorre após a concretização da primeira edição do evento o leitor irá observar que algumas
ideias que foram propostas pela comissão organizadora ocorreram de forma diferente na prática.
44
<http://www.swu.com.br>.

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 210 •

realização da Total on Demand – TOD (marketing) e consultoria da


Visão Sustentável (consultoria de sustentabilidade empresarial). Além
disso, simultaneamente foram lançadas plataformas nos diversos si-
tes e redes sociais mais utilizados pelos jovens – como Facebook45,
Twitter46, Flickr47, Orkut48 e YouTube49 – com postagem de teasers
de propagandas, fotos, depoimentos em áudio e vídeo, chats e con-
cursos culturais.
Para disseminar a ideia de que todos podem contribuir para um
mundo melhor, o SWU terá suporte de uma campanha de mas-
sa, com mensagens, informações e dicas de pequenas atitudes
cotidianas por onde começa a mudança. Exemplos de medidas
simples e individuais que, multiplicadas por um grande núme-
ro de pessoas, produzem grandes resultados. O movimento se
apoiará ainda em redes sociais na web, para que pessoas sensíveis
à causa da sustentabilidade possam trocar experiências e engajar
outras. (IN PRESS…, 2010, p. 2).

O evento conta com grandes patrocinadores – as empresas mul-


tinacionais Nestlé, Oi, Heineken e Coca-Cola; e apoio das prefeiru-
ras das cidades de Itu e São Paulo, da Empresa Paulista de Turismo e
Eventos, Arena Maeda (locação de espaço para eventos) e KM Papel
(empresa de papel reciclado).
O SWU possui uma estrutura bastante parecida com os festivais
internacionais que lhe serviram de inspiração: realização em um sí-
tio fora de um centro urbano, porém com facilidade de acesso para
garantir a presença de um grande público, área de camping e de ali-
mentação, normas de higiene e segurança similares e venda de ingres-
sos através de opções de compra e preços semelhantes aos festivais
estrangeiros. O evento tem três dias de duração, contando com cer-
ca de 20 atrações musicais por dia, entre bandas e artistas nacionais

45
<http://www.facebook.com/SWUBrasil>.
46
<http://twitter.com/swubrasil>.
47
<http://www.flickr.com/photos/swubrasil/>.
48
<http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=102758132>.
49
<http://www.youtube.com/swubrasil>.

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 211 •

e internacionais, DJs e revelações, espalhadas por diversos palcos e


tendas, e com uma previsão de público de aproximadamente 200 mil
pessoas durante os três dias, segundo os organizadores50.
Eles disponibilizam através do site, outras ferramentas de inter-
net e da mídia tradicional, campanhas de conscientização sobre eco-
nomia de água e energia, reclicagem de lixo, importância do uso de
transportes alternativos, entre outras ações, semelhantes aos demais
eventos analisados. Estabelecem descontos de estacionamento para
aqueles que dão carona ao evento, estimulam o uso transportes públi-
cos ou ecológicos (bicicletas) e oferecem espaços para troca de roupas
usadas (brechó solidário), para citar alguns exemplos.
O evento conta também, em sua programação, com exposição e
mostra de artes ligadas ao tema ambiental, com curadoria de Eduardo
Srur, artista plástico conhecido por intervenções urbanas, como uma
instalação de garrafas PET gigantes no rio Tietê (SP). Além disso, sedia
um Fórum de Sustentabilidade onde pensadores, empresários, acadê-
micos e representantes de organizações não-governamentais podem
trocar idéias com o público a respeito de temas ligados à sustentabi-
lidade. Este último tem curadoria de Kate Dohring, fundadora do
Wealth Living and Giving, uma organização filantrópica que reúne
uma revista, website e consultoria para fundo de doações.
Apesar do evento ainda não ter sido realizado até o fechamento
da publicação, o que nos chama a atenção é a sua proposta, total-
mente relacionada com as noções aqui apresentadas de participação
e interatividade, e fundamentada nas experiências dos festivais an-
teriores e mais antigos, nos quais buscaram inspiração. Contudo,
parecem buscar não apenas focar o aspecto comercial e artístico do
evento, mas sim sua inserção em um movimento mais amplo, algo
bastante inovador, que une o ativismo à participação em causas am-
bientais, em um conexto de convergência, desde o momento inicial
de sua concepção.
50
Para informações específicas sobre o festival, ver: <http://www.swu.com.br/pt/festival/>.

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 212 •

Considerações finais
Conforme discutido no presente artigo, as lógicas que perpassam a in-
dústria do entretenimento, seja ela relacionada à música ou a grandes
eventos, são muito complexas e suas análises dependem dos variados
temas sobre o qual nos debruçamos. No entanto, parece haver con-
senso de que é possível afirmar que jamais se produziu tanto e com
tanta liberdade. Mas também é preciso considerar que os processos
de distribuição, divulgação e comercialização de repertórios artísticos
estão cada vez mais voltados para um mercado de nichos, ao mesmo
tempo em que exigem estratégias de grande complexidade.
De acordo com Herschmann (2010), são duas as principais ques-
tões para análise destas transformações:
Primeiramente, presenciamos a desvalorização vertiginosa dos
fonogramas (sua transformação em commodity no mercado), a
busca desesperada por novos modelos de negócio para os fono-
gramas, por meio de lojas digitais e telefonia móvel e, ao mesmo
tempo, o crescente interesse e valorização da música ao vivo e
dos concertos realizados nos corredores culturais das cidades (ou
muitas vezes organizados em forma de festivais). Em segundo
lugar, o crescente emprego das novas tecnologias e das redes so-
ciais na web como uma forma importante de reorganização do
mercado: a utilização das tecnologias em rede como uma rele-
vante estratégia de comunicação e circulação de conteúdos, de
gerenciamento de carreiras artísticas, de formação e renovação
de público, de construção de alianças com os consumidores, etc.
(HERSCHMANN, 2010, p. 22).

Para o autor, sobreviverão aquelas formas de consumo que per-


manecem valorizadas – o que é o caso dos shows de música ao vivo.
Segundo ele, ao analisarmos as revistas especializadas, é possível cons-
tatar que as turnês continentais de músicos e a celebração de festi-
vais internacionais se multiplicaram, enquanto os preços das entradas
vêm sofrendo um aumento significativo (HERSCHMANN, 2010,
p. 26).

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 213 •

Outro fato que chama a atenção nos últimos anos é que, apesar
dos grandes festivais e concertos de música ao vivo promovidos pelas
majors com grandes empresas nacionais e transnacionais – como é
o caso dos eventos analisados neste artigo – também vem crescendo
significativamente o número de festivais independentes. Herschmann
(2010) cita que no Brasil, por exemplo, pela iniciativa de coletivos de
artistas e de pequenas gravadoras e produtoras, mobilizam-se apro-
ximadamente 300 mil pessoas em cerca de 40 festivais por ano que,
em geral, são realizados fora das grandes capitais. Ele destaca a ex-
pressiva presença de um conjunto de redes que envolvem artistas e
públicos e que vem crescendo e desenvolvendo – para garantir o êxi-
to ou sustentabilidade – as seguintes estratégias: utilizam recursos de
leis de incentivo à cultura; empregam o potencial interativo das no-
vas tecnologias digitais visando a formação, divulgação e mobilização
de públicos; e praticam intensa militância na área musical. Segundo
o autor, pode-se afirmar que alguns coletivos de música brasileiros
vêm constituindo novos circuitos de produção-distribuição e consu-
mo culturais.
Nesse novo modelo, fomentado e realizado por jovens artistas, a
produção toda é feita via internet e/ou tecnologias digitais (isto
é, desde a divulgação, a distribuição e o convite para shows até
a organização dos festivais em si). Alguns coletivos, inclusive,
chegaram a elaborar uma espécie de moeda própria que permite
a troca de serviços entre si. É um exemplo muito interessante de
‘economia solidária’ e que sugere alternativas à crise da indústria
da música. (HERSCHMANN, 2010, p. 27).

Já de acordo com Jenkins (2010), o advento de novas ferramentas


de produção e canais de distribuição reduziu as barreiras de entrada
no mercado de idéias. Essas mudanças posicionam recursos para o
ativismo e comentário social nas mãos de cidadãos comuns, recursos
que antes eram de domínio exclusivo de grandes empresas, políticos
e mídia. Essas práticas borram as linhas que separam produtores de
consumidores, consumidores de cidadãos, profissionais de amadores,

• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 214 •

e a separação entre educação, ativismo e entretenimento, uma vez que


grupos concorrentes e com motivos opostos utilizam estratégias se-
melhantes para servir a seus próprios interesses.
Por fim, apesar de termos visto que os festivais internacionais têm
sido um terreno dinâmico para a análise de uma cultura participató-
ria, e que esta tendência parece ter ainda muitos espaços de expansão,
concordamos ainda com Jenkins (2008, p. 293) quando ele escreve
que aqueles que se preocupam com o futuro da cultura participativa
como um mecanismo de promoção da diversidade e da democracia
não podem ignorar a forma como nossa cultura atual está aquém des-
sas metas. Para ele, muitas vezes há uma tendência para lermos todos
os meios de participação populares como algo “resistente” às institui-
ções dominantes, em vez de reconhecermos que os próprios cidadãos,
por vezes, implantam de baixo para cima maneiras de manter outros
“por baixo”. Também caímos, por vezes, na armadilha de ver a de-
mocracia como um resultado “inevitável” da mudança tecnológica,
e não como algo pelo qual temos que lutar para conseguir alcançar,
com todas as ferramentas à nossa disposição. É comum comemorar-
mos as vozes alternativas que estão sendo trazidas para o mercado de
ideias, sem considerar que muitas vozes continuam sem espaço para
se manifestar. O importante é estarmos atentos às dimensões éticas
pelas quais estamos gerando conhecimento, produzindo cultura, e no
engajamento político em conjunto.
Através dos exemplos aqui analisados, buscamos apresentar um pa-
norama mostrando como formas de participação ativa têm aconteci-
do em diferentes momentos históricos e em diferentes países, através
de questões relativas principalmente ao ativismo ou engajamento em
questões sociais e ambientais, por parte de um público jovem, que
frequenta festivais de música e arte e que, cada vez mais, utiliza-se das
tecnologias de comunicação, digitais e em rede, como parte essencial
de suas experiências culturais.

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


• 215 •

REFERÊNCIAS

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• Cultura participatória e festivais internacionais de música e arte •


• 216 •

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Historical and Cultural Significance of the 1969 Woodstock Festival
Site. Preliminary Draft Generic Environmental Impact Statement -
Appendix B. Bethel Performing Arts Center, 2002. Disponível em
<http://www.woodstockpreservation.org/SignificanceStatement.htm>
Acesso em: 20 ago. 2010.

Natalia Coimbra de Sá e Marianne Mattos


Valfrido Moraes Neto

AS FACETAS DO RAP NO BRASIL: RELEITURAS


DA CULTURA POPULAR DE UM FENÔMENO
GLOBAL

A geração hip hop


No livro “The Hip Hop Generation: Young Blacks and The Crisis
in African American Culture1”, Bakari Kitwana2 utiliza-se da expres-
são “Hip Hop Generation3” para delimitar uma geração formada
essencialmente por aqueles nascidos entre os anos de 1965-1984, a
primeira pós-segregação/Movimento dos Direitos Civis nos Estados
Unidos. Para a juventude negra, o contexto após vinte anos de mu-
danças tanto no nível socioeconômico como político (pós-movimento
dos Direitos Civis e Black Power), aliado ao rápido crescimento das
ferramentas tecnológicas e à globalização, estão certamente relacio-
nados com mudanças significativas nas práticas destes jovens: “The
Hip Hop Generation explora novas atitudes e questões de jovens ne-
gros, examina para onde estão indo e analisa as forças sociopolíticas
que os moldaram” (Kitwana; 2002; p. XIII). Para o autor, toda faixa
etária nascida no período acima citado faz parte desta geração e com-
partilha um “conjunto especifico de valores e atitudes. No núcleo,
são pensamentos sobre nossa família, relacionamentos, exploração
infantil, carreira, identidade racial, relações raciais e política” (idem;
p.4). Esta geração é caracterizada como a que tem sofrido os maiores
impactos da globalização nos anos de 1980 e 1990, relacionada às
desigualdades socioeconômicas entre ricos e pobres sem precedentes
nos Estados Unidos (KITWANA, 2002).

1
Traduzido do inglês: “A Geração Hip Hop: Jovens Negros e a Crise na Cultura Afro-Americana”.
2
O autor é jornalista, ativista e analista político.
3
Expressão que ficou conhecida durante os anos 90, na época em que o autor era diretor da revista
“The Source: the magazine of hip hop music culture and politics”
• 219 •

O perfil da cultura hip hop teve seu surgimento favorecido pelo


encontro entre “minorias destituídas” (BHABHA, 2005), sejam elas
afro-americanas, caribenhas, asiáticas dentro de um território comum
estadunidense. O encontro entre tais coletividades revela processos
de sociabilidade que emergem do entrecruzamento de territórios e
suas fronteiras.
Entre integrantes da cultura hip hop está presente “o desli-
ze de uma lógica de identidade para uma lógica da identificação”
(MAFFESOLI, 1996, p. 310), a identificação enquanto um agen-
damento processual, que busca “focalizar aqueles momentos ou
processos que são produzidos na articulação de diferenças cultu-
rais” (BHABHA, 2005, p. 19). As diferenças entre a geração hip
hop foram férteis nas práticas criativas no campo da arte urbana,
entre grupos que se “autoidentificam e/ou são identificadas por
outros”: “Ao invés de dizer ‘são’, dizer se ‘percebem’ é significati-
vo, porque aponta para diferenças que, além de serem qualificadas
como ‘culturais’, são visualizadas como significativas por ao me-
nos um dos atores sociais participantes num contexto ou situação
dada” (MATO, 2009, p. 76).
Por outro lado, no campo das abordagens sociológicas dos movimen-
tos socioculturais contemporâneos, é necessário levar em consideração
que a mobilização de tais coletivos está relacionada ao desenvolvimento
das ferramentas tecnológicas que abrangem, desde a microeletrônica,
a computação, até as telecomunicações\radiodifusão. Essas tecnolo-
gias caracterizam os estágios do sistema de produção capitalista, for-
talecendo o crescimento da indústria voltada para o entretenimento,
incluindo a moda, o espetáculo, o campo estético, as imagens, a in-
dústria fonográfica e a mercantilização da cultura (HARVEY, 1992).
Essas ferramentas tecnológicas contribuem historicamente para alterar
as formas de comportamento dos indivíduos, e isso caracteriza espe-
cialmente a cultura urbana juvenil emergente.

• As facetas do rap no Brasil: releituras da cultura popular de um fenômeno global •


• 220 •

A rede Zulu Nation4 surgiu da necessidade de criar um movimen-


to agregador da cultura hip hop, que tem como mentor o DJ Afrika
Bambaataa5, criador do termo “hip hop6” e da organização. Bambaataa
re-dimensionou a cultura buscando fortalecer entre os integrantes do
movimento a “consciência” da prática conjunta dos seus quatro ele-
mentos7 e de seu lugar de origem: as ruas, os guetos. Este DJ foi um
dos principais articuladores dessa geração ao aproximar os pratican-
tes das linguagens artísticas em encontros como disputas em rodas de
break, animadas pela presença da discotecagem dos DJs e das rimas
dos MCs, tendo a presença dos grafiteiros nas ruas onde aconteciam
os eventos. Kelly enfatiza que ser do gueto tem um significado nega-
tivo, pois: “o gueto é um espaço físico que segrega, estigmatiza, co-
age e torna as pessoas vulneráveis à exploração econômica” (KELLY,
2006, p.187). Para Bambaataa, era preciso inverter esse quadro ne-
gativo, transformar a autoimagem dos jovens ligados ao movimento
hip hop nos Estados Unidos e no mundo.
No inicio da década de 1980, o slogan da organização fundada
pelo DJ ganhou dimensões internacionais tanto através da sua mi-
litância, como através do que foi produzido e distribuído pela in-
dústria cultural, a exemplo do filme Beat Street8 e dos clipes9 “The
Message10” [A mensagem] (1982) e “Looking For The Perfect Beat”

4
A rede Zulu Nation foi fundada no ano de 1974, nos Estados Unidos.
5
Afrika Bambaataa é o pseudônimo de Kevin Donovan. Ele nasceu no dia 19 de abril de 1957 no
bairro do Bronx, Nova York.
6
O termo Hip Hop significa: saltar e quebrar com os quadris.
7
O movimento hip hop é formado por quatro elementos: o break (a dança de passos robóticos e, quan-
do realizada em equipe, sincronizados), o grafite (desenhos realizados nos muros das cidades com spray),
o DJ (o Disc-jóquei) e o rapper (ou MC, mestre de cerimônias, que canta ou declama as letras sobre as
bases eletrônicas criadas e executadas pelo DJ). O rap é a junção dos dois últimos elementos citados e
é a abreviação de rythym and poetry, ritmo e poesia, na tradução do inglês.
8
O filme Beat Street, de Harry Belafonte foi lançado no ano de 1984. Considerado uma referência do
movimento hip hop, foi visto no Brasil por muitos jovens durante os anos 80.
9
A Music Television (MTV) –, emissora fundada em 1º de agosto de 1981 nos Estados Unidos, pro-
duziu novas linguagens audiovisuais, fundindo imagem e música, a partir dos videoclipes destinados
majoritariamente ao público jovem.
10
O álbum “Rapper’s Delight” lançado em 1982 propiciou notoriedade comercial ao rap; a faixa inti-
tulada The Message tornou-se um sucesso nos Estados Unidos.

Valfrido Moraes Neto


• 221 •

[A procura da batida perfeita] (1983), com autorias de Grandmaster


Flash e The Forious Five e do DJ Afrika Bambaataa, respectivamen-
te. A canção “The Message”, considerada uma referência mundial da
década de 80 para o público do hip hop, dá ênfase nas imagens sobre
a “vitrine” social de uma grande cidade, especialmente para a juven-
tude negra nas ruas, perseguida e oprimida pela polícia11. A opressão
política e de discriminação racial nos Estados Unidos, como sugere
Bill E. Lawson sobre a percepção “Estado-contra-a-America-negra,
que define essa questão política” para rappers que possuem uma Fi-
losofia política: “e de Grandmaster Flash, em ‘The Message’ [A Men-
sagem], a Mos Def, ‘War’ [Guerra] (O novo perigo), essa mensagem
tem sido cada vez mais negativa quanto ao tratamento recebido pelos
negros na América e em outros lugares” (LAWSON, 2006, p. 170).
Ele acrescenta:
Uma objeção relacionada é que o rap e a cultura Hip Hop são
simplesmente modismos. Mas o rap existe há mais de 25 anos
e se espalhou dos centros urbanos dos Estados Unidos, como
Nova York e Los Angeles, para países de todo mundo. Existem
agora rappers na África, Rússia, China e França; e eles usam a
forma da arte para expressar suas intensificações com os ‘pode-
res constituídos’ em seus próprios países. Isso está além do mo-
dismo (LAWSON, 2006, p. 170).

As temáticas levantadas pelas letras de rap em diferentes lugares


do mundo discursam sobre desigualdades étnicas e socioeconômicas,
violência policial, tráfico de drogas e armas, sistema carcerário, cor-
rupção política, entre outras. De maneira geral, o tom dos rappers é
de revolta contra todos os tipos de injustiça e de opressão. Queiroz
salienta que em Moçambique as letras de rap trazem à tona ques-
tões pertinentes aos respectivos grupos, inseridos numa sociedade

11
Sobre a situação da juventude negra nos Estados Unidos ver: Tricia Rose “Um estilo que ninguém
segura: Política, estilo e a cidade pós-industrial no hip hop”(1997); Nelson George “Hip Hop Ame-
rica” (1998); Bakari Kitwana “The Hip Hop Generation” (2002); Patricia Hill Collins “From Black
Power to Hip Hop: Racism, Nationalism and Feminism” (2006); Loic Wacquant “Os condenados da
cidade”(2005).

• As facetas do rap no Brasil: releituras da cultura popular de um fenômeno global •


• 222 •

moçambicana com graves problemas de “mudanças de regime políti-


co-econômico, guerras civis, conflitos entre etnias, avanço da AIDS,
desilusões políticas [...] promovendo uma incisiva e permanente re-
flexão sobre elas” (QUEIROZ, 2005, p. 31-32).
Os integrantes da cultura hip hop enfatizam a importância de sa-
berem a “real”, quer dizer, reconhecerem as condições objetivas do
contexto em que vivem, e que isso envolve não só os coletivos aos
quais pertencem, a exemplo das gangues, mas que tais coletivos fa-
zem parte da vida na sociedade (PITTMAN, 2006). Há ainda um
segundo nível da luta pelo reconhecimento no hip hop como a “dos
legados e tradições culturais onde nasceu o Hip Hop. Em primeiro
lugar, e acima de tudo, isso significa o legado da juventude urbana
negra e latina que deu origem a essa forma de criatividade cultural”
(PITTMAN, 2006, p. 63). É o que Shusterman (1998) confirma
como duplo caráter do hip hop: ele é global, posto que trata de te-
mas universais e, concomitantemente, estabelece um compromisso
local com o gueto urbano e sua cultura, pois focaliza assuntos que
são rejeitados pela sociedade branca exclusivista. Shusterman ainda
afirma: “Esse rompimento das divisões tradicionais entre cultura ar-
tística, ciência e política é parte do que eu considero a profunda ‘Fi-
losofia da mistura’ do rap, que é expressa, é claro, também em suas
técnicas estéticas de samplear12 e suas referências a tantos aspectos da
cultura popular e política” (Shusterman, 2006; p. 67).
A mescla entre fronteiras que se dá através das artes, antes compar-
timentalizadas para distinguir o culto (alta-cultura) da cultura popu-
lar (cotidiana), dá lugar às múltiplas referências musicais e culturais,
com temporalidades diversas, características da flexibilidade das cul-
turas juvenis e da apropriação de diversos saberes.

12
Sobre a situação da juventude negra nos Estados Unidos ver: Tricia Rose “Um estilo que ninguém
segura: Política, estilo e a cidade pós-industrial no hip hop”(1997); Nelson George “Hip Hop Ame-
rica” (1998); Bakari Kitwana “The Hip Hop Generation” (2002); Patricia Hill Collins “From Black
Power to Hip Hop: Racism, Nationalism and Feminism” (2006); Loic Wacquant “Os condenados da
cidade”(2005).

Valfrido Moraes Neto


• 223 •

A relação entre música, cultura e identidade negra não é está-


tica e precisa ser problematizada. Por um lado, na construção
da identidade negra a música tem um papel essencial tanto em
versões tradicionais como modernas; por outro, a música afro-
americana têm se desenvolvido atualmente não somente como
reminiscência de uma cultura musical africana, mas também em
estreita sintonia com as músicas populares e eruditas européias
– aproveitando-se de, e reinterpretando instrumentos, danças,
formas de cantar e letras européias (MARTÍN, 1997; SANSO-
NE, 1997, p. 22).

As narrativas contemporâneas rearranjam os fragmentos dos textos


pré-existentes, e já não se permitem mais uma linearidade dos acon-
tecimentos, mas o manejo de diferentes temporalidades históricas, e
aí se destaca a importância dos meios de comunicação de massa no
sentido de “recuperar”, de “reconhecimento”, e “diálogo entre gera-
ções e tradições” (YÚDICE, 2000). Canclini ressalta que a circulação
mais fluida e complexa entre campos outrora considerados autôno-
mos, ou seja, entre a cultura erudita e a popular não exclui as diferen-
ças entre as classes, mas exige um novo modo de investigar as relações
materiais e simbólicas entre grupos, numa reorganização dos cenários
culturais que contemple os cruzamentos constantes das identidades
(CANCLINI, 2008). O autor ainda acrescenta: “A remodelação tec-
nológica das práticas sociais nem sempre contradiz as culturas tradi-
cionais das artes modernas” (CANCLINI, 2008, p. 308).
Hall destaca dois processos opostos na globalização: de um lado,
a cultura americana ameaça subjugar todas as outras ao impor uma
mesmice cultural homogeneizante, chamada de ‘MacDonaldização’
ou ‘Nikezação,’ por causa “da sua ascendência no mercado cultural e
de seu domínio do capital, dos ‘fluxos’ cultural e tecnológico”; mas,
do outro lado, destaca que “bem junto a isso estão os processos que
vagarosa e sutilmente estão descentrando os modelos ocidentais, le-
vando a uma disseminação da diferença cultural em todo o globo”
(HALL, 2003; p. 45).

• As facetas do rap no Brasil: releituras da cultura popular de um fenômeno global •


• 224 •

As múltiplas referências musicais e culturais nas facetas do rap


Para muitos jovens da geração hip hop no Brasil tem ocorrido a va-
lorização das referências ligadas à cultura popular, especialmente ne-
gra, seja ela nacional ou internacional, através da apropriação dos
elementos do hip hop - com destaque para a música rap – a exemplo
das relações que os jovens das periferias têm com o gênero da Black
Music13 e das representações de que fazem uso para afirmarem uma
“identidade afro-brasileira”. Em entrevista a César Alves, o rapper
Thaíde, um dos pioneiros do hip hop nacional14, ele destaca as in-
fluências que os encontros de bailes Soul e Black na capital paulista
e posteriormente a cultura hip hop tiveram na tomada de consciên-
cia da sua negritude:
Quando eu cresci, quando comecei a me entender como adulto,
eu comecei a tomar consciência da minha negritude. E isso só
aconteceu através da cultura hip hop. Eu já conseguia perceber
isso nos bailes soul e de funk. Mas foi o movimento hip hop que
realmente abriu minha cabeça. (ALVES, 2004, p. 21).

Nos bailes em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador,


nos anos de 1980, guardadas as diferenças entre os três espaços, a te-
mática negra sempre esteve presente em seus contextos, mas como
salienta Silva (1998) em pesquisa realizada no baile “Black Bahia”,
localizado no bairro de Periperi15, a grande motivação dos participan-
tes que frequentavam o evento era o apelo lúdico do mesmo, con-
centrado na dança, na musica, na paquera, no ambiente: “o que se
percebe é a presença de uma etnicidade ‘comportamental’, se é que

13
O gênero musical da Black Music brasileira é citado por muitos rappers paulistanos; entre os desta-
ques estão: Tim Maia, Jorge Ben, Cassiano, Toni Tornado, como suas principais referências. O nome
de um dos principais grupos de rap do país, “Racionais MCs”, faz referência a um disco de Tim Maia,
o álbum duplo Tim Maia Racional, de 1975.
14
A cidade de São Paulo é considerada o centro irradiador da cultura hip hop no país. O primeiro CD
de rap lançado no Brasil, intitulado Hip Hop Cultura de Rua, é uma coletânea com alguns grupos de
rap paulistano, lançado no ano de 1986.
15
Os bailes “Black Bahia” aconteciam todos os domingos no Subúrbio Ferroviário da cidade de Salva-
dor. Ananias do Break, que foi frequentador do “Black Bahia”, atualmente é uma das principais refe-
rências do break na cidade e líder do grupo de break chamado Independentes de Rua.

Valfrido Moraes Neto


• 225 •

se pode classificá-la dessa maneira, e não mais no sentido tradicional


do termo, com seu forte teor político-ideológico” (SILVA, 1998, p.
202). Ele salienta que na sociedade contemporânea os grupos juvenis
emergentes configuram uma identidade “coletiva mais aberta, onde
seus membros realmente se sintam constituintes de uma identidade
partilhada, adquirida e não mais unicamente atribuída ou hereditária,
como nas sociedades tradicionais” (IDEM, p. 215). Se para Silva os
bailes são espaços de sociabilidade onde a questão “étnica e de clas-
se se fazem presentes no universo do “Black Bahia”, mas por outro
lado “o que se percebe é que os frequentadores do baile não se utili-
zam desses discursos para afirmar sua identidade” (IBDEM, p. 210-
11), para os grupos de rap as longas letras revelam experiências que
são pessoais e coletivas \ comunitárias, e que os posicionam dentro
do contexto que descrevem. As letras refletem a consciência do lugar
ocupado pelos rappers e sutis alusões ao processo histórico do país
(ZENI, 2004). Para este autor:
O tema da discriminação e da opressão que recai sobre a raça
negra foi, também, uma constante desde o começo do rap fei-
to em São Paulo. Do início dos anos de 1990 até hoje, nota-se
uma continuidade e um refinamento no trato da questão, que
vai da postura agressiva e de enfrentamento do início – como
indicam algumas primeiras letras dos Racionais, como ‘Racis-
tas Otários’ e ‘Negro limitado’ – até uma atitude mais afirmati-
va, de orgulho de ser negro, como mostram as letras de Rappin’
Hood ‘Sou Negrão’ e ‘Tributo às mulheres negras’, do CD Su-
jeito Homem. O uso do termo “preto”, aliás, é bastante difun-
dido e aceito entre a maioria dos rappers, que se apropriam da
palavra de forma a transformá-la de designação depreciativa em
motivo de orgulho. (ZENI, 2004, p. 232).

E mais: “Zumbi dos Palmares tornou-se uma referência fortíssi-


ma para todo o universo do hip hop, de forma a lembrar a luta con-
tra a escravidão e a necessidade de se conscientizar sobre a herança
colonial brasileira, que ainda projeta suas sequelas sobre a sociedade
contemporânea” (ZENI, 2004, p. 232).

• As facetas do rap no Brasil: releituras da cultura popular de um fenômeno global •


• 226 •

No livro “A música entra em cena: o rap e o funk na socialização


da juventude”, de autoria de Juarez Dayrell, os grupos de rap na capi-
tal mineira são majoritariamente formados por coletivos que adotam
uma postura afirmativa da sua “condição de negros, marginalizados, e
uma postura ativa de denúncia” (DAYRELL, 2005, p. 116). O autor
ainda ressalta que esses grupos utilizam-se do visual, como cortes de
cabelo afro que reforçam uma estética da beleza negra e que a elabo-
ração dos discursos presentes nas letras dos raps favoreceu a articula-
ção da música e da etnicidade, através da (re) descoberta e valorização
da cultura afro-brasileira, no sentido de positivá-la e dar-lhe visibili-
dade. Acrescenta também que entre os rappers de Belo Horizonte “a
identidade étnica caminha lado a lado com a posição socioeconômica
e com o lugar em que vivem (DAYRELL, 2005, p. 119). O univer-
so simbólico referente à estética como maneira de “afirmar a beleza
negra”, de fortalecer laços com a cultura afro-brasileira para assumir
uma narrativa positiva e uma postura identitária sobre si relativa à
reconstrução da negritude, leva os grupos a um processo reorgani-
zacional das suas práticas nos universos artístico e, também político,
sem necessariamente estarem vinculados a espaços tradicionais de
lutas políticas, como partidos políticos, sindicatos ou movimentos
negros. Além disso, a citação acima evidencia o lugar de enunciação
dos grupos de rap mineiro ao relacionar a identidade étnica com a
“posição socioeconômica e com o lugar em que vivem”.
A revista RAIZ, lançada em abril de 2006, traz na capa a manchete
“Favor não pichar: Contrariando críticas, o hip hop descobre samba,
repente e capoeira e se afirma como autêntica cultura do Brasil”, com
conteúdo que enfatiza o perfil híbrido da cultura hip hop e a afirma-
ção de uma identidade “autêntica” da cultura brasileira.
A preocupação com as tradições também está presente no “Ne-
gros da Unidade Consciente” (NUC), quarteto de Belo Horizonte,
Minas Gerais [...] A música do NUC passou a ter congado, samba
e maracatu.

Valfrido Moraes Neto


• 227 •

“Beber na fonte americana é mais fácil para quem está no Sudeste”,


diz Hot Black, rapper do “Mensagenegra”, grupo de Aracaju, Sergi-
pe, que faz rap com elementos regionais, como repente, embolada,
reisado, chegança e coco. Segundo ele, manter o diálogo com a tra-
dição é fundamental no Nordeste. “É uma forma de resistência. São
expressões que vêm do povo, das mesmas classes sociais de onde vem
o rap”, afirma o MC, lembrando que no começo, devido à dificulda-
de em conseguir um DJ, o “Mensagenegra” utilizava instrumentos
musicais, o que significou um diferencial na sonoridade.
As referências da cultura popular brasileira com o rap são proces-
sos de fusões musicais criativas por parte dos integrantes do hip hop
em todo o país. Os exemplos chamam a atenção tanto pela diversida-
de das fusões que vão do congado, do samba até o reisado, chegança
e coco, como também dos nomes dos grupos: “Negros da Unidade
Consciente” e “Mensagenegra”, de Belo Horizonte e Aracaju, respec-
tivamente. A fala do rapper Hot Black, do grupo “Mensagenegra”,
dá ênfase à tradição como “uma forma de resistência”, enquanto ex-
pressões “que vem do povo, das mesmas classes sociais de onde vem o
rap”, nos leva a considerar a tradição como processo de sociabilidade,
de laços entre grupos populares, numa intersecção que dialoga com
diferentes temporalidades históricas. De acordo com Bhabha:
O ‘direito’ de se expressar a partir da periferia do poder e do
privilégio autorizado não depende da persistência da tradição;
ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através
das condições de contingência e contraditoriedade que presidem
sobre as vidas dos que estão na ‘minoria’. O reconhecimento que
a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao re-
encenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais
incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo afasta
qualquer acesso imediato a uma identidade original ou uma tra-
dição ‘recebida’ (BHABHA, 2005, p.21).

A influência de uma identidade que valorize o negro, o nordestino,


as ‘raízes’, como muitos representantes da cultura hip hop definem tais

• As facetas do rap no Brasil: releituras da cultura popular de um fenômeno global •


• 228 •

referências da cultura brasileira, está presente nas performances desses


artistas, atuando politicamente sem necessariamente estarem vincula-
dos a espaços tradicionais de lutas políticas. Para Herschmann, mesmo
com tantas evidências de que o hip hop nacional procura resgatar a
identidade e autoestima da juventude negra, há certo distanciamento
ao movimento negro: “O hip hop no Brasil não faz parte da estrutura
do movimento negro, mas, ao mesmo tempo, não se encontra com-
pletamente alijado dele” (HERSCHMANN, 2000; p. 185).
Na cidade de Salvador alguns grupos adotam a mesma postura
afirmativa já no momento de nomearem seus coletivos de rap. Um
exemplo característico é o do grupo Opanijé:
‘O Opanijé faz rap com a cara de Salvador’, destaca Lázaro. Mais
exatamente, significa que as articulações da rima, o ritmo, a de-
núncia social e as roupas largas se unem a características locais:
sample de berimbau, letras que falam da cultura e religiosidade
afro-baianas, musicalidade do candomblé e um visual que não
dispensa o estilo afro. O próprio nome do grupo, nascido em
2005, já dá uma pista de como seus integrantes querem militar
no hip hop, mas com identidade própria. A sigla Organização
Popular Africana de Negros Invertendo o Jogo Excludente é, na
verdade, um toque e dança pra Omolu16.

A fala de Lázaro aponta para questões que abrangem esferas do


social e artístico, e para a escolha do nome do grupo como uma for-
ma de militância no hip hop “com identidade própria”. Criado no
ano de 2005, o grupo Opanijé17, conforme define o vocalista Lázaro
Erê, faz rap com uma cara mais afro-brasileira. Dentro da diversida-
de dos raps produzidos em Salvador, há ainda grupos que escolhem
militar através de temas mais politizados.
Muitos símbolos da tradição ligada aos cultos de religiões de ma-
trizes africanas vêm passando por transformações, modificados por

16 Matéria de Joceval Santana. In: MUITO. Revista Semanal do Grupo A Tarde. 15 de Março de
2009. Com Manchete da capa: “Barulho Negro: o coletivo Blackitude une arte e engajamento e faz
ponte entre centro e periferia”.
17
O grupo de rap Opanijé é formado por Lázaro Erê, Chiba e DumDum. OPANIJÉ também signi-
fica o toque e dança do Orixá Omolú.

Valfrido Moraes Neto


• 229 •

seus adeptos e não-adeptos através de uma nova linguagem estética,


presente principalmente nas representações no campo das artes, o
que dá novos sentidos às tradições que, ao invés de permanecerem
estáticas, acompanham a dinâmica das misturas referenciais\conhe-
cimentos das gerações. Para os integrantes do Opanijé, a escolha do
nome abrange uma postura étnica e política. Na abertura dos seus
shows, o grupo Opanijé realiza uma saudação ao orixá “Exú”, com
a música intitulada “Encruzilhada”, ao som de atabaques que reme-
tem aos cultos de candomblé. Ao acessar a pagina virtual do grupo é
possível ainda ouvir outras músicas como “Valeu Zumbi” e ter uma
descrição do perfil do grupo18:
Com a proposta de fazer um estilo próprio de rap, com letras
que exaltam a cultura negra e a ancestralidade africana, a banda
une o que há de mais moderno nas tendências musicais, como:
samplers, efeitos e batidas eletrônicas ao que temos de mais tra-
dicional na cultura afro-baiana, como o uso de berimbaus, ins-
trumentos percussivos e cânticos de candomblé, transformando
fé, aprendizado, amizade e consciência em música.

Trata-se de formas de intervenção urbana feitas por artistas oriun-


dos das camadas populares que se utilizam da simbologia da cultura
afro-brasileira. Além da afirmação simbólica da cultura afro-brasilei-
ra, especialmente negra local, seja através da ressignificação realizada
com as tradições – de religiosidade afro-brasileira de matriz africana,
culturais como a capoeira e sonoridades oriundas das festas popula-
res nordestinas – há, por parte dos coletivos de hip hop soteropo-
litano, uma necessidade de contar a história que lhes é negada pela
cultura dominante.

18
A página virtual do grupo é www.myspace.com\opanijé. O Myspace.com é um endereço virtual de-
dicado ao universo musical, onde atualmente diversos artistas disponibilizam de forma gratuita suas
produções musicais pela internet. A produção dos sites é uma extensão dos grupos de rap; ao acessar
as páginas virtuais dos grupos de rap é possível obter informações sobre o perfil dos grupos, agenda de
participação em eventos ou realização de shows, filmagens e fotos, redes de amigos (entre a variedade
das comunidades vinculadas aos sites desses grupos, encontra-se ainda outros grupos de rap e\ou de
outros estilos musicais) e mensagens de pessoas que acessam esses portais virtuais. Atualmente a inter-
net tem sido o principal meio de comunicação do hip hop no Brasil.

• As facetas do rap no Brasil: releituras da cultura popular de um fenômeno global •


• 230 •

Conclusão
As linguagens do hip hop são fundamentalmente férteis em solos ur-
banos para os artistas das classes populares nas metrópoles mundiais.
A fragmentação dos espaços urbanos aliada a um crescente desenvol-
vimento das novas tecnologias revela as ‘exclusões’ vivenciadas no co-
tidiano. Ao mesmo tempo denota um processo híbrido, histórico e
humano, ligado aos coletivos, minorias e integrantes da cultura hip
hop nas suas lutas sociais por reconhecimento, no sentido de uma
interculturalidade na produção de saberes\conhecimentos e nas pos-
sibilidades criativas de interação com o ‘outro’, de novas (re)-leituras
das linguagens artísticas, da apropriação da cultura popular através
do olhar crítico e do aumento da autoestima. O processo de homo-
geneização da indústria cultural no capitalismo global não pode ser
confundido com a reprodução imediatamente sequencial dos proces-
sos criativos e da apropriação de que fazem uso os sujeitos das novas
tecnologias. Na contemporaneidade são vários os níveis de significa-
dos e expressões nas linguagens artísticas da cultura hip hop, especial-
mente nas letras de rap, nas inter-relações oriundas dos bens culturais
simbólicos que circulam a nível global e dos seus referenciais locais.
A dinâmica cultural traz com ela toda uma gama de novas possibi-
lidades de processos de identificação, mas se depara com processos
identitários que se ‘cristalizam’, não como significantes definitivos,
mas estratégicos, que funcionam como reivindicações para pautarem
demandas sociais, culturais e também econômicas.
As posições dos sujeitos requerem construções identitárias que
precisam ser negociadas tanto interna quanto externamente, com o
intuito de formarem uma unidade discursiva de lutas políticas. A res-
significação, para muitos grupos de rap nacionais, leva a uma autoi-
dentificação que serve para instrumentalizar reivindicações presentes
no imaginário social referente à negritude e ao passado escravista. A
música tem sido uma das principais expressões artísticas pela qual os

Valfrido Moraes Neto


• 231 •

jovens visualizam a possibilidade de expressar-se e de ter visibilidade,


através da ressignificação simbólica que dialoga com o ‘outro’, em um
fluxo sociocultural que opera a partir de múltiplas referências.

REFERÊNCIAS

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Labortexto, 2004.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
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e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2008.
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economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v.1.
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In: HERSCHMANN, Micael. Abalando os anos 90: funk e hip hop:
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MAFESSOLI, M. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.
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produção de conhecimentos e práticas socioeducativas. In: CANDAU,
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• As facetas do rap no Brasil: releituras da cultura popular de um fenômeno global •


• 232 •

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Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 18, n. 50, jan. – abr. 2004.

Valfrido Moraes Neto


Andréa Betânia da Silva

PELOS ACORDES DA VIOLA: AS PERFORMANCES


DA CANTORIA DE IMPROVISO

Introdução
O desenvolvimento dos medias e sua cada vez mais instigante ten-
dência à virtualidade nos coloca diante de situações que, embora re-
ais, mostram-se mais fluidas a ponto de não ser possível, em alguns
casos, determinar quais são seus limites existenciais e, muito menos,
de onde advêm. Assim, os modos espetaculares de constituir o mundo
passam a ditar as variadas formas de habitar o universo. A busca por
perceber elementos constituintes das performances apresentadas nos
pés-de-parede1 e nos festivais de violeiros torna necessário um breve
levantamento de fatores que parecem ter contribuído para a consoli-
dação da configuração que ora se apresenta.

Entre o oral e o escrito, o ritmo que se insinua


A peleja que circunda as relações entre oralidade e escritura é antiga,
corre os tempos e tenta manter-se firme, explorando sempre caracte-
rísticas peculiares de cada uma de modo a reforçar suas diferenças e
diminuir suas semelhanças, buscando dicotomizá-las. Mas é na tôni-
ca dos usos práticos da vida em sociedade, na coletividade, que essas
duas modalidades de uso da língua podem ser melhor observadas.

1
Os pés-de-parede constituem a forma atualmente vista como mais tradicional na cantoria de impro-
viso, cujo nome surge em função do local onde os cantadores ficam, encostados à parede, por vezes
em pé, com o pé encostado a fim de manter o equilíbrio, embora também seja possível que os poetas
fiquem sentados. Nesse contexto, a interação entre o público e os cantadores encontra-se diferenciada
pela possibilidade de sugestão de motes, pela presença da bandeja e de outros elementos que tendem a
manter-se ou metamorfosear-se em outros contextos em função das demandas.
• 235 •

Em meio a tantas formas de expressão, eis que se torna necessário


perceber a existência do texto falado ou oralizado como distinto de
uma produção oral, o que “[...] permite reconhecer o oral como um
primado do ritmo e da prosódia, com sua semântica própria, orga-
nização subjetiva e cultural de um discurso, que pode se realizar tan-
to no escrito como no falado” (MESCHONNIC, 2007, p. 8). Isso
contribui para o entendimento de que a oralidade pode estar na fala,
mas isso não garante que o seu modo de produção tenha sido oral,
de modo que é o ritmo, elemento constituinte da voz, que determi-
na a procedência do que é produzido, localizando de onde surgiu, o
que pretende, a quem pertence. Há de se pensar na capacidade asso-
ciativa de juntar palavras e possibilitar a construção de sentidos, mas
a cadência que as une também precisa ser considerada como colabo-
rativa para os sentidos que se enunciam, uma vez que a linguagem
é dialógica, resultante do entrelaçamento de saberes que aproximam
produtores e receptores.

Reconhecendo lugares e tomando assento


As mudanças econômicas que assolaram o Brasil contribuíram para
o deslocamento de identidades já forjadas e criaram condições para
que tantas outras formas de pertencimento pudessem ser possíveis.
No Brasil, o êxodo rural redesenhou o que se concebia como zona
urbana e zona rural, esvaziando as fazendas e povoando as cidades,
aproximando iguais e diferentes, favorecendo contatos e dilatando
preconceitos, mas criando outros que foram paulatinamente fortale-
cidos. Ao vir para as capitais ou para as metrópoles, os modos de vi-
ver presentes nas localidades mais afastadas dos grandes centros foram
alçados a um contexto que se apresenta assustador e atraente, capaz
e disposto a mostrar-se aberto, receptivo, convidativo e envolven-
te. Com práticas de interação mais fundamentadas na oralidade do
que na escrita, esses indivíduos, ao serem de algum modo obrigados

• Pelos acordes da viola: as performances da cantoria de improviso •


• 236 •

a conviver com formas de expressão desconhecidas, descobrem que


viver na cidade não é apenas deparar-se com arquiteturas variadas,
sotaques diferentes, modos de vestir pouco ortodoxos, um tempo con-
dicionado à movimentação do trânsito, mas também ver-se cercado
por um mundo que se apresenta para ser lido pela escrita, mediado
por estratégias de divulgação que excluem quem não se dispuser a
deixar-se levar pela música que embala os movimentos culturais di-
tados pela sonoridade da escrita.
Acostumados a embalar seus dias com cantorias que reuniam a
cidade em volta de um lugar conseguido às pressas ou previamente
combinado, fosse ele um sítio, uma fazenda, um bar ou uma praça,
os novos habitantes das capitais passaram a sentir falta da linguagem
que conheciam, de falar sobre assuntos com os quais tinham iden-
tificação. Então, começaram a promover encontros frequentes entre
os conhecidos que também estavam longe de seus antigos lugares de
pertencimento. A partir disso, os “pé-de-parede”, ou seja, as apre-
sentações de cantadores nas casas ou nos quintais junto a paredes,
encostando-se nelas a fim de manterem-se apoiados, passaram a ter
seu espaço revisto nessa dinâmica urbana, sendo preciso providen-
ciar outras estratégias de articulação e manutenção. Embora preserve
muitas características que lembram o mundo rural, inclusive com os
temas em voga a partir dos motes2, hoje, os cantadores desenvolvem
suas produções a partir de referenciais urbanos e costumam referir-
se ao rural como o paraíso perdido, incorporando uma melodia nos-
tálgica aos seus versos.
A introdução de cantadores em ambientes até então distantes da
sua realidade, como os teatros, por exemplo, contribuiu para que
uma nova configuração fosse dada ao universo da cantoria. Iniciou-
se, então, a substituição/co-existência de elementos que representam
o rural e o urbano, os dois mundos nos quais os cantadores precisam

2
Para Sobrinho (2003, p. 50), mote é “a frase metrificada apresentada em até quatro pés de sete ou
dez sílabas.”

Andréa Betânia da Silva


• 237 •

estar inseridos: a bandeja3, utilizada para recolher a contribuição dos


participantes, ficou restrita às apresentações rurais, substituída, no
meio urbano, por cachês pagos antecipadamente; o desafio4, repre-
sentando o antagonismo entre cantadores, agora se dá entre parceiros,
uma vez que normalmente contratam-se duplas, e, ao contrário das
lendas as quais citam cantorias que duravam noites a fio, hoje existe
um tempo estipulado para começar e terminar, conforme o contra-
to. Os motes, que normalmente eram propostos pelo público, agora,
por vezes, são pré-estabelecidos por quem contrata, havendo inclusi-
ve produções sob encomenda.
Na configuração dos festivais de violeiros, a dinâmica envolvida
contempla desde apresentações em escolas públicas, localizadas em
cidades do interior, até apresentações em teatros ou em praças com
teatro de arena, o que contribui para a diversificação do público, de-
nunciando, também, como o apoio de poderes locais influencia di-
retamente a visibilidade dada aos cantadores.
Contando com a participação de duplas que vão se digladiar pú-
blica e poeticamente objetivando despertar paixões na platéia, os fes-
tivais podem ser eventos capazes de alterar o cotidiano de algumas
comunidades, pois passam a fazer parte do calendário de festejos
do município, movimentando também as cidades vizinhas e contri-
buindo para o comércio local. A estrutura que se apresenta depende-
rá dos recursos de que dispõe cada comissão organizadora, podendo
ter inúmeros patrocinadores dispostos a fomentar essa expressão po-
pular, mas, em alguns contextos, senão em sua maioria, a realização
dos festivais depende da cotização de parceiros e admiradores que se
dispõem a contribuir em prol da manutenção dessa arte. O desenvol-
vimento dos motes a partir dos temas, no caso dos eventos em foco,
encontra-se norteado por associações previamente estabelecidas pelos

3
A bandeja é um recipiente (até um chapéu) onde o público deposita sua colaboração em dinheiro.
4
O desafio consiste num duelo travado entre os cantadores, sendo atualmente mais pacífico, de modo
a manter uma relação amigável entre os parceiros.

• Pelos acordes da viola: as performances da cantoria de improviso •


• 238 •

organizadores entre gêneros e temáticas considerando-se um tempo,


também previamente determinado, em torno de três ou cinco mi-
nutos, conforme a quantidade de duplas participantes e o regimento
de cada produção.
Embora a constituição de uma mesa de júri possa parecer inerente
à formulação dos festivais, muitas formatações em voga no nordes-
te apresentam variações e até a inexistência desta. Como se trata de
uma disputa pública, se torna necessário construir critérios para ava-
liar os diferentes desempenhos, de modo a apresentar um resultado
que possa ser considerado justo. Nesse sentido, geralmente constitui-
se um corpo de jurados formado por membros que sejam reconhe-
cidamente apreciadores da arte de versejar, mas também capazes de
avaliar tecnicamente as apresentações, atribuindo notas à métrica, à
rima e à oração, envolvendo: quantidade de sílabas métricas, quanti-
dade de pés e estrutura conforme o gênero. Em alguns contextos, são
os próprios cantadores que avaliam seus concorrentes, ocupando a
dupla função de avaliados e avaliadores. Entretanto, há configurações
que primam por apresentações que dispensam classificações. De qual-
quer modo, os repentistas são avaliados, seja por aqueles escolhidos
pela organização para ocupar esse lugar, seja pelo público, que con-
tribui diretamente para a avaliação, independente do formato dado
a cada festival, escolhendo seus vencedores e montando uma ordem
de classificação que costuma não coincidir com o resultado divulga-
do pelos apresentadores.

Performance: sons e imagens em movimento


Ao tentar propor uma definição para cantoria, Zumthor (1997, p.
156) diz o seguinte: “No uso popular do Nordeste brasileiro, a mes-
ma palavra, cantoria, designa a atividade poética em geral, as regras
que ela se impõe e a performance”. Esta última, imprescindível de
ser observada por quem se arvora a garimpar a ambiência da cantoria

Andréa Betânia da Silva


• 239 •

de improviso, é, pelo mesmo autor, entendida assim: “A performan-


ce é uma realização poética plena: as palavras nela são tomadas num
conjunto gestual, sonoro, circunstancial tão coerente (em princípio)
que, mesmo se distinguem mal palavras e frases, esse conjunto como
tal faz sentido. (ZUMTHOR, 2007, p. 87)
É justamente essa articulação entre ritmos, vozes e imagens em
movimento que se mostra em sua plenitude quando se estabelece a
sintonia entre os que se apresentam e os que assistem, quer seja nos
pés-de-parede ou nos festivais. No primeiro, a maior proximidade
com o público e a participação desse a partir da bandeja estabelecem
modos de produção pautados nas escolhas feitas pelos presentes e
suas solicitações, de modo que os cantadores contemplam mais dire-
tamente os desejos do público, desenvolvendo seus motes enquanto
a platéia mantiver-se interessada e enquanto a produção mostrar-se
tecnicamente aceita por produtores e receptores. Em se tratando dos
festivais, a delimitação de temas, gêneros e tempo para execução res-
significa o lugar ocupado pela platéia e coloca a produção poética em
condição de subordinação a determinações externas que não estão di-
retamente relacionadas a sua produção poética.
A aproximação com variados cantadores, de diferentes lugares,
tem oportunizado perceber uma movimentação quanto ao posicio-
namento destes em relação aos festivais. Embora sejam vistos por al-
guns como uma ameaça à tradição da cantoria, contribuindo para o
seu enfraquecimento, tem-se notado a configuração de um viés dis-
cursivo que passa a entendê-los como vitrines, grandes oportunidades
para a consolidação e consagração de duplas que, ainda desconhe-
cidas do cenário nacional, encontram ali a possibilidade de duelar
com ilustres representantes da cantoria de improviso nordestina. É
nos festivais que podem mostrar sua capacidade criativa e fazerem-se
inesquecíveis a partir dos versos eternizados mediante a identificação
do público com as ideias expostas e com a performance apresentada,

• Pelos acordes da viola: as performances da cantoria de improviso •


• 240 •

resultante de uma articulação de fatores que contribuem para a sua


inserção no rol dos que assim podem ser reconhecidos.
Apresentando uma crescente diversidade quanto à faixa etária, é
possível encontrar em um mesmo cenário um repentista de 14 anos,
em suas primeiras apresentações, como Jairo Silva, do Piauí, um ou-
tro com 36 anos, como Edmilson Ferreira, também piauiense e já
reconhecido em alguns estados, ao lado de um cantador consagrado
como Sebastião Dias, com 60 anos, do Rio Grande do Norte, radica-
do em Pernambuco. Entendendo que a roupa é um elemento cons-
tituinte da cena performática, a diversidade etária também contribui
para a imagem a ser apresentada. Tendo sido geralmente percebido
como um universo formal, o mundo da cantoria construiu uma tra-
dição que aproxima os cantadores e os coloca como membros de co-
munidades imaginadas, conforme Anderson (2008), criadas a partir
dos elementos comuns que costumam ser apontados e não apenas
reconhecidos e assumidos para o estabelecimento de uma identifica-
ção identitária.
Para Bauman (2007), as noções tanto de identidade quanto de
pertencimento são constantemente revistas, uma vez que não é mais
possível a manutenção de padrões eternamente postos, os quais pas-
sam a ser negociáveis e revogáveis. Desse modo, a manutenção dessa
arte depende da aprovação da sociedade em geral, ou de grupos espe-
cíficos, a partir da identificação destes com os elementos identitários
que percebem a imagem do repentista como indicativo de seriedade,
lealdade, amizade, honestidade, humildade, competência, agilidade,
dentre outros predicados, que são indicados a partir dos discursos
veiculados a partir dos repentes. A formalidade expressa no vestuário
remete à imagem de homem de família, heterossexual, cujos valo-
res encontram eco na vibração apresentada pela platéia. Entretanto,
gradativamente um vestuário menos formal tem sido adotado por
alguns, rompendo inclusive as questões etárias e introduzindo a cal-

Andréa Betânia da Silva


• 241 •

ça jeans e a camiseta como peças que passam a requerer uma posi-


ção de destaque.
Para Zumthor (2005), a performance é também “[...] o ato pelo
qual um discurso poético é comunicado por meio da voz e, portanto,
recebido pelo ouvido” (p. 87), entendendo que os meios eletrônicos,
auditivos e audiovisuais podem ser comparados à escrita a partir dos
seguintes aspectos: a) abolem a presença de quem traz a voz; b) fogem
aos limites do presente cronológico porque a voz que transmitem é
reiterável, indefinidamente, sempre do mesmo modo; c) valendo-se
das manipulações possíveis para cada sistema de registro, os media
inclinam-se ao apagamento das referências espaciais da voz viva, de
modo que o espaço ocupado pela voz midiatizada tende a tornar-se
artificialmente composto. Entretanto, a diferença entre estes e a escrita
residiria no fato de que “[...] o que transmitem é percebido pelo ouvi-
do (e eventualmente pela vista), mas não pode ser lido propriamente,
isto é, decifrado visualmente como um conjunto de signos codifica-
dos da linguagem”. (2007, p. 14). Assim, faz-se urgente reconhecer e
valorizar as diversas possibilidades de manipulação da voz através dos
media;.entretanto, passa a ser requerida a atenção necessária a fim de
perceber as limitações impostas por estes meios.

Considerações parciais
Visto que o texto apresenta discussões introdutórias e breves acerca
das performances de repentistas, entende-se que embora a voz seja a
responsável por apresentá-los, servindo como veículo para a divulga-
ção de ideias sobre o contemporâneo, ao mesmo tempo em que cria
espaço para uma reflexão sobre o passado, a memória, assim como
a roupa utilizada, a estética da viola e o modo de portá-la, a postura
adotada, a participação do público e também as condições estrutu-
rais locais contribuem para a construção de uma performance que
corresponda às expectativas dos presentes, definindo um modo de

• Pelos acordes da viola: as performances da cantoria de improviso •


• 242 •

conceber o desempenho do poeta a partir da imbricação entre voz e


imagem, embaladas pelo ritmo da viola que as une.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a


origem e a difusão do nacionalismo. Tradução Denise Bottman. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
MESCHONNIC, Henri. Linguagem: ritmo e vida. Belo Horizonte: FALE/
UFMG, 2006.
SOBRINHO, José Alves. Cantadores, repentistas e poetas populares.
Campina Grande: Bagagem, 2003.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução Jerusa Pires
Ferreira; Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
______. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. Tradução Jerusa
Pires Ferreira, Sonia Queiroz. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.
______. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.

Andréa Betânia da Silva


José Raimundo Rios

É BOM E AGORA TEM: A RETÓRICA MUSICAL


COMO ELEMENTO DO ESPETÁCULO TELEVISIVO
DA PROPAGANDA DO GOVERNO DA BAHIA EM
2010

O poder da música
Pensar na música enquanto poder simbólico de comunicação abre
uma importante reflexão criando uma teia de significações que po-
dem sofrer variações com base no contexto cultural em que a músi-
ca é produzida, inserida e ouvida. Também implica em trazer à tona
insolúveis discussões acerca da retórica, afetos, gosto, dentre outros
elementos. Trata-se de um campo multidisciplinar que envolve a psi-
cologia, sociologia, antropologia, etc. Seria ingenuidade pensar que
uma criação musical emociona da mesma forma homens, mulhe-
res, crianças ou até mesmo indivíduos de outra nação ou localidade.
Ao longo da história da humanidade a música pode ser concebida
como construtora de relações interpessoais e mobilizadora cultural,
mas convém destacar seu papel social enquanto detentora do poder
de influenciar a moral de um povo. A revolução francesa é um bom
exemplo de normas sociais pretendidas e reforçadas através da músi-
ca em favor dos ideais estipulados por um grupo.
Squeff (1989) abre caminhos para mostrar que as criações musicais,
voltadas principalmente para as massas, tiveram grande representati-
vidade para a transmissão e proliferação de ideias com objetivos bem
definidos. Muitas canções não haviam sido compostas para a revo-
lução, como destaca Squeff, mas uma música intitulada Ça ira teve
sua letra adaptada para os objetivos revolucionários e se tornou um
hino aos que não aceitavam a nova ordem na França. Um dos tre-
chos diz: “Ah ça ira, ça ira, le peuple ce jour sans cesse repete”, que
• 245 •

posteriormente foi alterado para, “ah ça ira, ça ira, les aristocrates à


la lanterne”. O termo “à lanterna” refere-se ao lugar onde dependu-
ravam os monarquistas antes de serem executados na guilhotina. Esse
modelo de adequar um discurso verbal a uma melodia para atingir
objetivos comunicacionais persiste até os dias atuais.
Deixemos de lado esse tipo de discurso verbal e tomemos a re-
tórica musical para tentar resolver uma de muitas indagações que
surgem: qualquer música poderia ter sua letra alterada ou adequada
a uma canção para atender objetivos políticos ou somente aquelas
que possuem intervalos musicais que despertem e acentuem os afe-
tos nos ouvintes para esse fim?
Comecemos a responder essa pergunta através da música instru-
mental, que já possui o poder de mudar comportamentos através de
elementos como melodia, ritmo, harmonia, timbre, instrumentos e
instrumentações. Importantes nomes como os dos padres Jesuítas
Marin Mersenne e Athanasius Kircher fizeram atribuições de notas,
intervalos musicais e timbres às cores, mostrando que o que é belo
na sequência de “sons” tem igual beleza na sequência e na ligação das
cores. Para eles o som grave teria a tonalidade preta como referência e
os agudos seriam os brancos. Kircher ainda amplia sua definição em
relação ao disco de Newton, que possui todos os matizes principais,
mas quando girado mostra apenas a cor branca. Portanto, as notas
agudas possuem muito mais cores que as graves, conclusão que abre
o pressuposto de que estas despertavam mais emoções. Cook (2004)
segue o mesmo caminho das cores para a entonação das vogais em
termos de qualidade de som de uma música que possui melodia e
letra caminhando concomitantemente. As ideias do autor mostram,
de acordo com o pensamento de Kircher e Mersenne, que cada nota
pode representar uma cor, assim como a palavra. Portanto uma com-
posição musical pode representar um grande colorido e emocionar
da mesma forma como uma pintura, que também desperta afetos.
Piedade (2006) também comunga com essa ideia e faz uma relação

• É bom e agora tem •


• 246 •

análoga entre a música e a literatura. Segundo ele, cada figura retórica


representa a versão musical de cada palavra e pensamento para com
isso atingir os afetos dos ouvintes. A dimensão do inconsciente é uma
das mais atingidas por elementos musicais que sequer são percebidos,
e abre espaço para uma discussão em relação aos afetos despertados
pela música, que pode levar o ouvinte à visualização de paisagens,
cenas ou sinais “que denunciem estados afetivos, tais como lágrimas,
sobressaltos, reencontros, arroubos, decadência física ou moral, soli-
dão e júbilo, dentre outros”. (CAZNOK, 2008, p. 24)
A psicologia concebe a música como um poderoso agente de esti-
mulação sensorial, emocional e intelectual, podendo evocar, associar
e integrar experiências. Sekeff (2007) a considera como importante
elemento para a educação, pois pode estimular reações variáveis, mo-
bilizando e revelando investimentos afetivos. A natureza icônica da
linguagem sempre foi uma barreira nas pesquisas sobre o poder da
música, pois esta não é representada por objetos do mundo exterior.
Para Sekeff a música tem o poder de induzir o ouvinte a alguma ação
sem sequer exprimir qualquer significado. Essa ideia da autora abre
um importante questionamento: através de quais elementos uma
música consegue induzir uma pessoa? Para responder essa pergunta
é necessário pensar no campo da retórica musical enquanto recur-
so que busca o convencimento através de impulsos de natureza psi-
cológica, sendo que os indivíduos podem ter sua vontade moldada
pela audição de uma música, desprovidos da percepção consciente
de que suas necessidades estão sendo educadas. Essa estrutura nos
remete principalmente ao período barroco, onde a criação musical
era pensada como um grande discurso com intenções a serem alcan-
çadas e bem definidas. Esses estados emocionais idealizados foram
cristalizados em figuras musicais que despertam amor, ódio, felici-
dade, dúvida, tristeza, dentre muitos outros sentimentos.
É através da retórica musical que a mente humana pode ser atin-
gida, trilhando um caminho pretensioso que visa dar a sensação de

José Raimundo Rios


• 247 •

que as necessidades do indivíduo podem ser atendidas ou até mesmo


remetê-lo a ambientes objetivando mudar e transformar sua racio-
nalidade em torno de uma ideologia. Com a música política o efeito
não é diferente, e seus códigos podem ser carregados de significações
explícitas e implícitas para legitimar o que se pretende divulgar para
convencer os ouvintes em favor de um governo.

Criação da canção política para a TV


Criar uma canção com objetivos publicitários, seja ela para TV ou
rádio, necessita de um compositor e de músicos que, através de suas
performances, podem ou não remeter os espectadores para ambien-
tes variados. Nem sempre todas essas imagens são dadas na tela e um
espaço secundário é aberto para aquelas que podem ser imaginadas
através da música. Um bom exemplo para ilustrar essa premissa, se-
guindo as pistas de Boccia (2007), são as imagens da dor e da sau-
dade da ex-namorada do representante da ONU; pelo fato dela ser
argentina, a música que apoia o vídeo é o “tango”, mesmo sem que
sequer sejam mostradas imagens da Argentina.
As músicas criadas para legitimar ações governamentais buscam
convencer a maior parte da população de um Estado em favor das
ações do governo. Seu nascimento acontece a partir de uma estra-
tégia definida por uma agência de propaganda que detém a conta
publicitária em questão1. Em primeiro lugar, é importante lembrar
que existe a música instrumental para acompanhar as imagens em
movimento, aquelas que possuem um discurso verbal, chamadas de
canções por uns e de jingles por outros. Essa última representa um

1
No Estado da Bahia todas as propagandas do Governo são produzidas por Agências de publici-
dade vencedoras de um processo de licitação. As empresas responsáveis pela produção do material
publicitário na Bahia são: Leiaute Propaganda (lote 1), Maianga (lote 2), Tempo Propaganda (lote
3) e Objetiva Comunicação (lote 4). A verba total anual gasta com publicidade na Bahia perfaz R$
129.190.000,00, de acordo com o edital 001/2009 disponível em http://www.comunicacao.ba.gov.
br/paginas/edital-de-publicidade. Acesso em 11/08/2010.

• É bom e agora tem •


• 248 •

importante instrumento na divulgação de ideias, através da união


de elementos musicais associados à palavra falada.
A criação musical para governo baiano tem seu ponto de partida
na agência de publicidade que discute com a secretaria de comuni-
cação do Estado o “espírito” da campanha, para que um roteiro de
criação seja enviado para um compositor musical, que transformará
as informações em música observando os modelos culturais do pú-
blico a ser atingido pela mensagem. As palavras-chave, as imagens,
o tempo de transição de vídeos, o gênero musical, o timbre da voz
ou das vozes, dentre outros, são elementos previamente decididos
pela agência e enviados para o criador para que sejam rigorosamente
seguidos em princípio, porém é possível que o criador sugira algu-
mas modificações e estas podem ou não serem aceitas pela agência.
Uma música com um discurso verbal, diferente da instrumental que
pode ser produzida após o vídeo finalizado, é criada antes da edição
do VT, pois as imagens são adequadas à estética para seguir uma di-
nâmica objetivando também despertar emoções que não sigam um
caminho dicotômico ao da música.
A canção, para dar representatividade a uma autoridade políti-
ca no sentido de mostrar suas benfeitorias, necessita de um gênero
musical que instaure um ambiente afetivo, estético e social. Sua so-
noridade também possui grande papel nesse sentido, e é resultado
de uma performance e de timbres (combinação de instrumentos).
Outro importante elemento está relacionado às formas musicais,
que segundo Frith (1996), funcionam como construtoras de senti-
do e valor atribuindo ao gênero um importante papel, o de levar o
indivíduo a unir o estético ao ético através da música e das relações
musicais. É possível perceber, seguido essa premissa de Frith, que a
sonoridade está ligada ao gênero musical e com isso torna-se cons-
trutora do sentido que molda certo referencial de reconhecimento
num contexto sócio-musical-afetivo.

José Raimundo Rios


• 249 •

A estética musical para uma canção política que enalteça um gover-


no geralmente é marcada pela repetição de muitos elementos musicais
como a melodia, ritmo, harmonia e discurso verbal. Adorno (1999),
em o Fetichismo da música e a regressão da audição abre caminhos
para uma reflexão sobre um critério de julgamento musical baseado
na coletividade, ou seja, a canção é para ser reconhecida por todos.
O autor usa a expressão “música ligeira” devido à repetição exausti-
va dos elementos musicais, e sua execução alcança números elevados
para que seja assimilada mais rapidamente. Esse princípio adornia-
no pode ser aplicado às canções de governo que possuem claros ob-
jetivos de esvaziar o senso crítico do ouvinte e moldá-lo em favor do
Estado, criando cenários para relacionamentos humanos. Sua inser-
ção em contextos socioculturais objetiva reforçar normas sociais e a
integração da sociedade em prol de ideais tramados e estipulados por
um determinado grupo responsável pela comunicação.

O espetáculo musical que “é bom e agora tem”


Uma canção criada para um comercial de televisão pode ser consi-
derada um elemento de segundo ou de primeiro plano? Essa é uma
pergunta difícil de ser respondida, pois as imagens da tela nos re-
metem para um ambiente visual “dado”, enquanto a música nos re-
mete a ambientes e lembranças com base na cultura e cognição do
ouvinte. Não queremos com isso dizer que os telespectadores tam-
bém não utilizam o imaginário quando visualizam imagens na TV,
mas que a música pode facilitar esse processo. A estrutura musical
tem, dentre muitas outras funções, o papel social de abrir caminho
para um compartilhamento de pensamentos. Para isso é necessário
pensar numa estética sonora em que haja identificação sócio-mu-
sical-geográfica. A função social da música é explicada por Sekeff
(2007) através das emoções que culminam num comportamento
motivado. Essa motivação em favor de uma ideia de cunho político

• É bom e agora tem •


• 250 •

é bem tramada por habilidosos profissionais de marketing e trans-


formada em música por compositores, arranjadores e músicos que,
através de performances, objetivam transmitir o “espírito” de uma
campanha de governo pela televisão.
Em 2010, o Governo do Estado da Bahia veiculou uma cam-
panha publicitária2 nas principais emissoras de televisão Essa pro-
dução audiovisual mostrava a recuperação de estradas, aumento de
emprego, educação de qualidade, diminuição da pobreza, saúde com
excelência, moradia, dentre outros benefícios para a Bahia. Nesse
espetáculo televisivo era possível perceber que o discurso principal
estava na canção e as imagens surgiam dentro de uma sequência tra-
mada para dar sentido à letra e aos elementos musicais. O gênero
musical possui características sonoras que remetem ao ritmo deno-
minado ijexá3. Segundo Trotta (2008) a estética sonora é capaz de
identificar o perfil sócio-musical-geográfico e os modelos musicais
e instrumentações denunciam o gênero na canção. Para o espírito
de uma campanha publicitária de governo os criadores geralmente
escolhem modelos musicais pertencentes à cultura do Estado e não
há nenhuma ingenuidade nisso.
O início da música é marcado por um instrumento de percussão
agudo (carrilhão), capaz de remeter o ouvinte a um mundo oníri-
co. Ele é acompanhado por um tambor que denuncia um “rito”.
No segundo compasso, o canto é iniciado e acompanhado por uma
melodia em segundo plano, executada por um timbre agudo que
se assemelha a um acordeom trabalhando em um movimento as-
cendente de apoio às vozes que entoam a canção. Uma nota grave
é soada simultaneamente com a melodia, denunciando um contor-
no para os coloridos melódicos desse timbre agudo. Aqui podemos

2
Campanha intitulada “É bom e agora tem”, criada pela agência de publicidade baiana chamada
Leiaute. A criação da letra da música é de Raul Rabelo e a música de P.C. Fernandes.
3
O Ijexá é um gênero musical de matiz negra e que foi bastante utilizado nas campanhas de Governo
do Estado da Bahia, inclusive em propagandas do antecessor do atual governador.

José Raimundo Rios


• 251 •

trazer o conceito de Athanasius Kircher e Marin Mersenne em rela-


ção à cor branca para as notas agudas, que também podem possuir
outras cores se pensarmos no disco de Newton parado e girando, e
a cor preta que representa as notas graves. (Ver Exemplo 01):

A mesma linha melódica (Exemplo 1) é repetida como back-


ground duma segunda parte cantada com outro discurso verbal. A
estrutura desse modelo melódico se assemelha bastante com forma-
tos musicais utilizados em rituais afro-orientais, em que um instru-
mento é responsável pela melodia e outro pelo apoio usando uma
única nota que os músicos chamam de “nota pedal”.
A canção tem sua primeira parte cantada em tom menor e acom-
panhada por poucos elementos. Em seguida ganha tonalidade maior
e projeção melódica no sentido da motivação através de um movi-
mento ascendente que revela uma construção tramada para dar a
sensação de conquista, vitória e satisfação. No momento do refrão
a música passa por outra alteração tonal e mais elementos musicais
surgem, dando a ideia de mais crescimento. Uma observação em
relação à estética concentra-se no modelo da tessitura da voz, que é

• É bom e agora tem •


• 252 •

remetida a um coral entoando a música e mostrando que todos estão


unidos em torno de algo que, nesse caso, pode ser o dito progresso
do Estado da Bahia. Podemos mais uma vez remeter essa premissa ao
pensamento de Trotta (2008) sobre o canto coletivo com o objetivo
de compartilhamento de um pensamento transmitido em forma de
música. É a busca pela mobilização de sentimentos afetivos.
Um importante elemento da canção situa-se na construção rít-
mica, que pode ser considerada um traço cultural importante na
cultura baiana. O ritmo, segundo Sekeff (2007), propicia a movi-
mentação de imagens que parecem reais, ou seja, dá uma sensação
de estar escutando um movimento que pode estimular a execução de
atividades condicionadas e a extensão de reflexos condicionados. O
ritmo não só conduz a música, mas também ações humanas. Outro
ponto importante dessa canção situa-se na projeção melódica (can-
to) da segunda parte, que tenta projetar o humor do ouvinte atra-
vés da repetição rítmica da melodia que é acompanhada por uma
estrutura de acordes; estes conduzem a canção para um refrão ainda
mais agudo, com o objetivo de envolver ainda mais o telespectador,
tornando-o um vencedor. Vejamos como se dá a repetição rítmica
na melodia da música do governo baiano:

José Raimundo Rios


• 253 •

Aqui não é necessário que o leitor conheça a linguagem musical


para interpretar esses símbolos, basta que siga as setas para perce-
ber que os desenhos musicais se repetem exaustivamente durante
toda a música. Há, porém, alterações de notas musicais (melodias)
e harmonias (acordes) para dar a sensação de satisfação e prazer, ob-
jetivando legitimar a mensagem comunicacional. Essa repetição é
marcada por um objetivo claro de fixar a melodia mais facilmente
na memória coletiva. O refrão, apesar de contar com a mesma di-
visão melódica, é entoado por uma quantidade expressiva de vozes
que cantam uníssono a última melodia ascendente, liberando uma
sensação afetiva de progresso pessoal no ouvinte.
A música pode ser considerada um poder invisível que penetra
em nossos corpos e altera nossos comportamentos, como bem si-
naliza o professor Boccia (2007). Há, porém, toda uma estrutura
em sua construção que envolve uma ordem matemática, conforme
cita Weber (1995) em seu singular trabalho “Os fundamentos ra-
cionais e sociológicos da música”. O autor mostra como os números
estão presentes na música de uma forma racional e técnica. Quan-
do se fala em compassos 2/4, 3/4, 4/4; acordes com terça, quarta,
quinta; as oitavas; as durações das notas, dentre muitos elementos
de natureza pitagórica, se está citando uma ordem de grandeza. Há
também uma construção matemática inconsciente no ouvinte e que

• É bom e agora tem •


• 254 •

varia bastante a depender da cultura. Talvez esse seja um elemento


importante no sentido da escuta, pois o indivíduo aprende a fazer
cálculos mesmo sem ter ido à escola. Por exemplo, uma pessoa está
parada esperando uma oportunidade para atravessar a rua. Certa-
mente ela estará fazendo cálculos entre os carros e o tempo que ela
levará para alcançar o outro lado da via. Na música os cálculos, de
certa forma, estão embutidos e ganham relevância na construção
estrutural de uma canção para conseguir alcançar objetivos e mu-
dar comportamentos.

Conclusões
Aqui concluímos a produção textual desse artigo e não o tema tra-
tado, pois o objeto possui dimensões que não puderam ser con-
templadas nesse momento e certamente serão observadas em outro
trabalho. Nesse estudo é possível perceber a canção (ou jingle) como
um dos elementos principais da campanha televisiva, pois quase
toda narrativa verbal está na música que caminha paralelamente
com as imagens na TV. Percebemos também toda uma construção
estético-musical para apoiar a mensagem melódica e verbal contida
no “canto” e na tessitura das vozes, com o objetivo de manipular e
convencer. Não foi nosso objetivo discutir ética política nem, tam-
pouco, ideologias.
A observação principal desse trabalho concentrou-se em mostrar
que a criação musical para uma campanha publicitária do governo
do Estado da Bahia não acontece de forma ingênua e nem por sim-
ples inspiração do artista, compositor musical e músico. Existe um
“roteiro” que conduz para uma “trama” marcada por um claro ob-
jetivo de educar a população através da música. Essa educação (ou
catequização) é transmitida através de intervalos musicais, que en-
volvem emocionalmente o ouvinte em torno da comunicação que

José Raimundo Rios


• 255 •

libera afetos favoráveis para a legitimação da mensagem. Percebe-


se também a sonoridade como resultado de uma performance e de
timbres (combinação de instrumentos e vozes) enquanto recursos
que remetem o ouvinte para um determinado ambiente.
A retórica musical numa música de cunho político é fundamen-
tal e está ligada diretamente à estética da composição, pois a soma
de elementos musicais é determinante para o colorido de uma can-
ção que pretende divulgar ideias. A repetição melódica auxilia na
assimilação rápida dos ouvintes.
Tratando-se de uma campanha que envolve vídeo e música can-
tada, muitos outros elementos podem ser observados sistematica-
mente. Observações relacionadas à análise do discurso da letra da
canção, das imagens e transições, da composição estética de cena, dos
efeitos sonoros e de vídeo, dentre outros, serão estudadas posterior-
mente. Uma ideia que pode concluir essa primeira etapa do estudo
está na premissa de que todos os elementos do áudio e do vídeo são
interligados com a proposta de convencer o telespectador sem que
ele sequer perceba que está sendo conduzido a uma ação.

REFERÊNCIAS

ADORNO, T.W. O fetichismo da música e a regressão da audição.


In: _____. Textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
BOCCIA, L. V. Compassos chave: música e sons nas mais importantes
emissoras de TV em quatro países. In: _____. Hegemonias visuais:
uma introdução. Trad. Leonardo Boccia. Salvador: Cian, 2007.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São
Paulo: Edusp, 2008.
CAZNOK, Y. B. Música: entre o audível e o visível. 2. ed. São Paulo:
UNESP, 2008.
COOK, Nicholas. Analysing musical multimídia. EUA: Oxford
University Press, 2004

• É bom e agora tem •


• 256 •

ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Trad. Sérgio Góes de


Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music.
EUA: Harvard University Press, 1996.
JOURDAIN, Robert. Música, cérebro e êxtase. Trad. Sônia Coutinho.
Rio de janeiro: Objetiva, 1997.
PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. Expressão e sentido na música
brasileira: retórica e análise musical. In: SIMPÓSIO DE PESQUISA
EM MÚSICA, 3., 2006, Curitiba. Anais..., 3. Curitiba: DeArtes UFPR,
2006. p. 69-74.
AID, E. W. Elaborações musicais. Trad. Hamilton dos Santos. Rio de
janeiro: Imago, 1991.
SEKEFF, M. L. Da música: seus usos e recursos. 2ª ed. São Paulo:
UNESP, 2007.
SQUEFF, Enio. A música na revolução francesa. São Paulo: L&PM,
1989.
TROTTA, Felipe. Gêneros musicais e sonoridade: construindo uma
ferramenta de análise. Pernambuco: UFPE, 2008
WEBER, Max. Os fundamentos racionais e sociológicos da música.
Trad. Leopoldo Waizbort. São Paulo: Edusp, 1995.

José Raimundo Rios


Janos Ian Abreu Schettini

ESTRATÉGIAS AUDIOVISUAIS E HEGEMONIA NAS


MAIORES EMISSORAS DE TV: CBS (EUA) E ARD
(ALEMANHA)

Materiais e métodos
Para chegar às conclusões que serão apresentadas no decorrer do pre-
sente artigo foram selecionadas para análise duas emissoras de TV:
CBS1 nos Estados Unidos e ARD2 na Alemanha. Foram analisados
alguns programas dessas redes, principalmente as Retrospectivas de
Fim de Ano, sendo que três delas foram selecionadas para uma análise
mais aprofundada para, assim, verificarmos os parâmetros de que tipo
de música utilizam, como utilizam, o momento que essas entram e
saem de cena e, principalmente, a função delas. Procuramos mapear
essas estratégias utilizadas por essas emissoras para prender a atenção
do telespectador, e as tendências culturais de cada uma.
Os materiais selecionados foram os programas de retrospectivas
dos anos de 2006 e 2008 da ARD e o programa de 2008 da CBS.
Com esses programas em mãos, foram dadas as repetições necessá-
rias para a análise aprofundada dos dados sonoros usados por essas
emissoras. Após o recolhimento desses dados, realizamos compara-
ções entre os programas para pontuar as diferentes estratégias usadas
por cada emissora.

1
A sigla representa o nome CBS Broadcasting Inc. que é derivado do seu nome original Columbia
Broadcasting System.
2
A sigla representa o nome Arbeitsgemeinschaft der Öffentlich-Rechtlichen Rundfunkanstalten der
Bundesrepublik Deutschland.
• 259 •

Compassos chave
O presente trabalho é baseado na análise da trilha sonora dessas emis-
soras. Qualquer fragmento sonoro manipulado musicalmente – ou
seja, que não seja um som diegético – nos interessa. Para melhor en-
tender o estudo, precisamos esclarecer alguns termos. Leonardo Boc-
cia afirma que:
Adotamos o termo Compassos Chave para definir partes, motivos
e/ou fragmentos de músicas gravadas, utilizadas para acompanhar
as Imagens Chave de programas - entretenimento, telejornais e
vídeos que reportam fatos e acontecimentos para diversas regi-
ões do mundo. Distribuídos maciçamente por influentes com-
panhias transnacionais visando elicitar a atenção da gigantesca
audiência mundial, os produtos audiovisuais são transmitidos
por meio de múltiplas plataformas de mídia de tela. (BOCCIA,
2010, p. 84)3.

Compassos Chave serão os protagonistas da pesquisa. Dentro da


categoria dos Compassos Chave, o autor ainda os divide em dois ti-
pos:
O primeiro se refere a compassos — partes de uma música ou
curtos motivos musicais — extraídos de composições que po-
dem ser de gêneros e épocas diversas, mas em geral, de músicas
gravadas amplamente distribuídas e reconhecidas pela audiên-
cia mundial. Esses trechos musicais serão recortados e mesclados
tecnicamente às Imagens Chave gravadas e também editadas em
processo de pós-produção (BOCCIA, 2010, p. 84)

Conforme observamos, esse primeiro tipo é usado, na maioria das


vezes, para fazerem chamadas importantes à atenção do telespecta-
dor. São aqueles Compassos Chave que, quando aparecem, logo fa-
zem com que o telespectador se remeta a alguma lembrança ativada
pelo som. O segundo tipo,
[...] mais usado por emissoras de TV para reduzir gastos exces-
sivos com conjuntos musicais, instrumentistas e/ou pagamentos

3
A obra de Leonardo Boccia (2010) referida aqui é o artigo “Chaves Audíveis” publicado neste mesmo
volume do ECUS – Cadernos de Pesquisa, v. 2.

• Estratégias audiovisuais e hegemonia nas maiores emissoras de TV •


• 260 •

exorbitantes de direitos autorais para a indústria fonográfica


transnacional — é feito de sequências e motivos musicais, em
sua maioria timbres de sintetizadores e simuladores eletrônicos
de sonidos programados e editados por compositores-arranja-
dores contratados pela emissora. A música ao vivo ou gravada
por ensambles e orquestras para programas televisivos parece
não ter mais o valor de outros tempos (KLÜPPELHOLZ, 2005;
SCHÄTZLEIN, 2005 apud BOCCIA, 2010, p. 84).

O segundo tipo, sem dúvida, é mais encontrado que o primeiro.


E suas características causam algumas dificuldades para reconhecer-
mos a origem desses fragmentos de músicas (Compassos Chave) que
aparecem em larga escala durante os programas. Isso é principalmen-
te observado nas músicas instrumentais, especialmente devido a esse
artifício usado pelas emissoras da composição ser desenvolvido por
músicos contratados. Sendo esse o único meio de distribuição da
música e, devido à falta de créditos no programa, é quase impossível
chegar ao nome da música e do compositor.
Ainda sobre os Compassos Chave, temos três categorias nas quais
estes podem ser classificados de acordo com seu tempo de duração.
Como Boccia (2007) pontua, uma das diferenças entre os Compas-
sos Chave e Imagens Chave é essa duração, pois enquanto as Imagens
Chave têm duração de 6 a 14 segundos, em média (Ludes & Müller),
para os Compassos Chave nota-se uma duração média que vai de 4
segundos até mais de 1 minuto.
As categorias nas quais dividimos os compassos são: curta (até 9
segundos), média (de 10 a 49 segundos) e longa duração (acima de
50 segundos). Para chegarmos a esta divisão foram analisados vários
tipos de Compassos Chave, a fim de definirmos uma função para cada
tipo. A primeira categoria, por exemplo, serve para prender e chamar
a atenção do telespectador mais uma vez para o programa e, geral-
mente, causa mudanças abruptas no contorno sonoro do programa.
O segundo tipo serve para preencher a imagem, trazer um maior en-
tretenimento e aumentar a imagem. Algumas vezes essa categoria é

Janos Ian Abreu Schettini


• 261 •

tão bem editada que passa despercebida por alguns telespectadores,


como se o som e imagem fossem uma coisa só. E por último, os tipos
de longa duração têm o papel de realçar as imagens. Estes são mui-
to utilizados, por exemplo, no bloco de obituário. Em um programa
da ARD, um único Compasso Chave de 103 segundos aparece nes-
se bloco. Esse foi o maior Compasso Chave encontrado em todos os
programas analisados da Alemanha e Estados Unidos.

Análise
Antes de começar esse trabalho, o núcleo de pesquisa se reuniu para
saber quais seriam os parâmetros de análise, criar um padrão e forta-
lecê-lo, buscando as mesmas inquietações. Pavis (2003) diz que:

A análise-reportagem

Ela teria como modelo a reportagem esportiva efetuada ao vivo


pela rádio, comentaria o desenrolar da representação como um
jogo de futebol, indicando o que se passa em cena entre os “jo-
gadores”, esclarecendo as estratégias utilizadas, anotando o re-
sultado, os “gols” marcados, metas atingidas pelas equipes em
conflito. Tratar-se-ia aqui de captar o espetáculo por dentro, no
calor da ação, de restituir o detalhe e a força dos acontecimen-
tos, de ter a experiência concreta daquilo que toca o espectador
no momento da representação, qual é o seu punctum, como o
espectador é interpelado emocional e cognitivamente pela dinâ-
mica da representação, pelas ondas de sensações e sentidos gera-
das pela multiplicidade e a simultaneidade dos signos.[...]

A análise-reconstituição

Trata-se de uma especialidade do Ocidente inclinado a con-


servar e a estocar documentos ou a fazer a manutenção de mo-
numentos históricos. Ela vai ao encontro, nesse sentido, das
reconstituições históricas das encenações do passado. Sempre
efetuada post festum, ela coleciona os indícios, as relíquias ou

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• 262 •

os documentos da representação, assim como os enunciados de


intenção dos artistas escritos durante a preparação do espetáculo
e os registros mecânicos efetuados sob todos os ângulos e todas
as formas possíveis (registro de áudio, vídeo, filme, CD-Rom,
computador). Um tal studium não tem fim, mas a dificuldade
é de explorar o estudo de todos esses documentos de maneira
a restituir uma parte da experiência estética que foi aquela do
público. (PAVIS, 2003, p. 5-6).

Uma preocupação importante foi mapear qual era o gênero das


músicas utilizadas como Compassos Chave. Depois da análise houve
a necessidade de organizá-los em 4 grupos, divididos de acordo com
o gênero. O primeiro seria o Clássico: nesse grupo estão incluídas to-
das as músicas eruditas, de todas as escolas Renascentista, Clássica,
Barroca, até mesmo a música Clássica do século XX, como a de Villa
Lobos. O segundo grupo é o dos Compassos Chave transculturais: en-
globa as músicas que rompem as fronteiras de seu território de origem
e começam a influenciar outros grupos sociais, como por exemplo o
Rock, que chega ao Brasil com estrangeiros e aqui influencia artistas
nacionais a seguirem esse estilo. Inclui também a música importada
maciçamente pelos veículos de informação, como a música pop ame-
ricana. O terceiro grupo é o dos Compassos Chave étnicos: contem-
pla as músicas contrárias às do grupo anterior, pois pertencem a um
grupo específico, de músicas que chegam a representar uma cultura e
história logo que são escutadas, como, por exemplo, um forró de Luiz
Gonzaga, um Raaga da Índia, as músicas com Shamizens do Japão, e
assim sucessivamente. Por último, temos o grupo das Vinhetas, que
engloba as chamadas e vinhetas desses programas.

Janos Ian Abreu Schettini


• 263 •

Em geral, os programas da emissora ARD apresentam uma gran-


de predominância de música clássica. No ano de 2006 o número de
Compassos Chave desse tipo aumentou ainda mais, chegando a atin-
gir pouco mais de 70%. É importante ressaltar que esse foi o ano em
que a Copa do Mundo de Futebol foi realizada na Alemanha e que,
desses 70,65% verificados, mais de 60% são Compassos Chave da
obra de Mozart. Um detalhe importante é que a obra de Mozart já
está em domínio público, portanto não exige pagamento de direi-
tos autorais. Com mais essa vantagem, a emissora pode enfatizar um
sentimento de patriotismo que, principalmente em anos de Copa do
Mundo – especialmente nos países onde o futebol é o primeiro es-
porte do país – vem mais à tona. Assim, a ARD consegue, de uma
só vez, valorizar uma música clássica universal, que é alemã, e ainda
fugir das taxas de direitos autorais.

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• 264 •

Percebe-se, de maneira sutil nesse programa, o uso de Compassos


Chave clássicos e étnicos também para caracterizar outras nações. São
usados, às vezes, estereótipos, como no trecho em que é mostrada a
eliminação da equipe germânica pela equipe italiana e onde, durante
quase todo o vídeo, as imagens são acompanhadas de um Compasso
Chave extraído da obra de Vivaldi. Outro exemplo ocorre quando, ao
mostram atletas árabes, utilizam Compassos Chave clichês de música
árabe, explorando as principais características dessa “escola”.
Esse programa da ARD é também o mais longo dentre os anali-
sados. Raras vezes aparecem Compassos Chave étnicos. As vinhetas
mantêm um padrão de aproximadamente 4 segundos, exceto a pri-
meira – que é a vinheta de abertura – e a vinheta de encerramento
do programa, ambas ultrapassam esse tempo. A seguir, um resumo
com os dados técnicos do programa:

• Tempo total de programa: 1:16:11
• Tempo com Compassos Chave: 19:39
• Clássica: 13:53
• Transculturais: 3:06
• Étnicas: 1:40
• Vinheta: 1:00
• Maior Intervalo sem Compassos Chave: 6:34
• Maior Compassos Chave: 1:43

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• 265 •

O programa da ARD no ano de 2008 mostra mais uma vez a pre-


dominância de música clássica. No entanto, nesse programa o nú-
mero de Compassos Chave transculturais e étnicos ganha um pouco
mais de notoriedade, pois percebemos mais entradas. Os Compassos
Chave étnicos continuam com a função de caracterizar algum povo
durante os programas analisados, o que é observado mais uma vez.
Os transculturais têm uma recorrência maior, por exemplo, no blo-
co onde são abordadas as Olimpíadas de Pequim 2008. As vinhetas
continuam com o mesmo padrão apresentado anteriormente, tendo
normalmente 4 segundos, ou 8 segundos – para as vinhetas de aber-
tura e de encerramento.
Nesses programas, os sound designers parecem não ter tanta pre-
ocupação com a estética musical, pois, às vezes, as colagens musicais
chegam a ter vários cortes abruptos. Isso reflete descaso com uma
apreciação da composição musical, seja de Mozart ou do próprio
sound designer, que compõe Compassos Chave para a valorização do

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• 266 •

vídeo. Os interesses são comerciais e culturais, ou então os Compas-


sos Chave são usados para reafirmar estereótipos. Discutindo estética
musical, Mário de Andrade diz que:
A Estética musical faz parte da própria técnica do músico. Todo
músico sabe estética musical e tem a dele. Senão não é músico.
Dantes ela era de aquisição autodidata, resumida às observações
e reflexões do próprio artista. Porém, com a harmonia se deu o
mesmo e com a instrumentação também. Não tem compositor
sem estética musical. Um estudo preliminar da matéria evita a
porção de tolices que os compositores dizem a respeito dessa
matéria. Vem daí a desconfiança e descrédito com que certos
estetas e cientistas observam os compositores em geral. Aliás
desconfiança e descrédito justificadamente recíproco. (ANDRA-
DE, 1995, p. 10).

Daí vem a necessidade dos sound designers abdicarem de alguns


artifícios para se preocupar, única e exclusivamente, com a sequên-
cia técnica do arquivo. Além disso, eles precisam também observar
a fala, que compete pelo espaço sonoro quase o tempo todo com os
Compassos Chave e que – estando presente – aparece quase sempre
no plano de frente, comentando o que é mostrado pelas Imagens
Chave. Segue o resumo da análise:

• Tempo total de programa: 46:39


• Tempo com Compassos Chave: 16:21
• Clássica: 9:33
• Transculturais: 4:02
• Étnicas: 1:55
• Vinheta: 0:51
• Maior Intervalo sem Compassos Chave: 5:09
• Maior Compasso Chave: 1:42

Janos Ian Abreu Schettini


• 267 •

Nesse vídeo analisado, observamos uma diferença importante dos


programas da ARD. Na emissora CBS, a quantidade de Compassos
Chave transculturais é muito grande, supera os 70% de todo o pro-
grama. É importante destacar também que, nessa emissora, o progra-
ma de retrospectiva aparece de uma forma diferente. Enquanto em
outros países é realizado um único programa para tratar de todos os
principais acontecimentos do ano, na CBS isso acontece de forma
fragmentada. Durante as últimas e as primeiras semanas de cada ano,
no final do principal telejornal da emissora, é exibido um bloco que
consiste na retrospectiva. Outra diferença importante em relação aos
outros programas é a duração. Somando o tempo de transmissão de
todos esses blocos fragmentados, chegamos a um total de programa-
ção de apenas 20 minutos e 26 segundos.
Na CBS, o uso de Compassos Chave característicos para estereo-
tipar as Imagens Chave é muito grande. Um exemplo interessante é

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• 268 •

observado em um bloco onde eles tratam da campanha eleitoral do


atual presidente da república estadunidense, Barack Obama. Enquan-
to ele está discursando, eles usam uma guitarra, um baixo e percus-
são para completar a imagem-chave. Nesse momento eles exploram
a percussão e fazem ritmos e melodias que lembram as sonoridades
africanas mais comuns. No instante em que Obama chama o seu
candidato a vice-presidência, os Compassos Chave continuam com
a mesma formação, transitando de modo quase imperceptível para
um blues bem caricato, explorando bastante as escalas mais usadas
no blues. Abaixo, o resumo dessa análise:

• Tempo total de programa: 20:26


• Tempo com Compassos Chave: 10:42
• Clássica: 2:00
• Transculturais: 7:47
• Étnicas: 0:21
• Vinheta: 0:35
• Maior Intervalo sem Compassos Chave: 2:20
• Maior Compasso Chave: 1:06

Janos Ian Abreu Schettini


• 269 •

Comparação e considerações finais

Percebemos que os programas analisados no presente artigo mantêm


um certo padrão. O mesmo pode ser observado em outros programas
de retrospectivas que não foram analisados diretamente aqui, mas pelo
outro pesquisador do projeto, Tomaz Mota. Verificamos sempre uma
incidência maior de Compassos Chave de categoria média, seguido pelos
de curta duração e, sempre com menos incidência, a categoria longa. A
exceção é observada nos programas da emissora CBS, onde aparecem
mais Compassos Chave da categoria curta. Isso pode ser explicado com
outro dado: o número de inserções correspondentes ao gênero transcul-
tural também é muito superior. Infelizmente não conseguimos contato
direto com a emissora e, portanto, foi impossível contabilizar o núme-
ro de Compassos Chave criados pelos sound designers e o número dos
que foram recortados de peças já existentes. Na CBS eles usam mais

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• 270 •

fragmentos de músicas existentes e esse número de Compassos Chave


curtos pode ser utilizado como forma de driblar os direitos autorais,
uma vez que o artista só receberá os direitos correspondentes à utili-
zação de sua música quando a obra tiver sido executada por mais de 4
compassos. No caso da música, como os Compassos Chave de categoria
curta duram apenas até 10 segundos, dificilmente um fragmento desse
tamanho vai ultrapassar os 4 compassos definidos pela lei.
É importante deixar claro que esse gráfico representa a quantida-
de de entradas dessas categorias de Compassos Chave, e não o tempo
total delas. Por exemplo, os 33,96% de entradas curtas no programa
da emissora ARD no ano de 2006 não chega a um terço da duração
total dos apenas 11,33% de entradas longas.

Nesse gráfico, onde observamos os gêneros de todos os programas


analisados, podemos perceber nitidamente a inversão que acontece
com o programa da CBS. Enquanto esta emissora usa mais Compassos

Janos Ian Abreu Schettini


• 271 •

Chave transculturais e menos do gênero étnico, a ARD usa mais os


do gênero clássico e menos vinhetas. Na verdade, essa diferença se dá
porque a CBS tem uma estratégia diferente da ARD que, ao estereo-
tipar um povo, por exemplo, usa uma música que representa aquele
povo (e que normalmente são Compassos Chave do gênero étnico).
Já a CBS faz uma composição que se enquadra mais em um gênero
transcultural, até mesmo pela instrumentação, e busca uma ou outra
característica da música daquele país que pretende representar.
A queda significativa no gênero clássico entre dois anos analisado
se dá, em minha análise, devido aos acontecimentos importantes do
ano de 2006 que já foram citados: a Copa do Mundo na Alemanha
e o aniversário de 250 anos da morte de Wolfgang Amadeus Mozart.
Esses fatores influenciaram na maior incidência do gênero no pro-
grama de 2006 em relação ao programa de 2008. Nesse ano, a pre-
sença do clássico apresenta-se de forma mais equilibrada em relação
aos demais gêneros, dando espaço, principalmente, ao transcultural
e ao étnico.

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• 272 •

Esse gráfico demonstra um aumento considerável no uso de Com-


passos Chave pela ARD, ao compararmos os programas de 2006 e
2008. É importante ressaltar que o programa da ARD no ano de
2008 tem 30 minutos a menos que o programa da ARD em 2006.
O programa da CBS se mostra equilibrado quando observamos essa
questão. Outro dado importante a ser destacado é o quanto são mi-
nuciosamente editados os programas. No caso da CBS em 2008, o
maior intervalo sem que apareça um único Compasso Chave é ape-
nas de 2 minutos e 20 segundos. No programa da ARD de 2008,
esse mesmo intervalo é de 5 minutos e 9 segundos. O caso mais in-
teressante é o dos números da ARD em 2006: apesar da ausência de
Compassos Chave em 74,2% do programa – o que representa 56
minutos e 32 segundos de sua duração – o maior intervalo sem que
este recurso apareça é de apenas 6 minutos e 34 segundos, o que de-
monstra que os Compassos Chave são muito bem distribuídos por
toda a extensão do programa.
É importante deixar claro que esse gráfico representa o tempo em
que se tem Compassos Chave no vídeo (em vermelho), e o tempo em
que estes não aparecem (em azul), para que não haja confusão com
o número de entradas.
Esse número, que parece ser expressivo, é muito pequeno quando
esses programas são comparados, por exemplo, com os programas de
retrospectivas da Rede Globo, conforme poderemos observar em ou-
tras pesquisas do grupo.

REFERÊNCIAS

ABRAHAM, Gerald. The concise oxford history of music. Oxford:


Oxford Unv. Press, 1979.
ANDRADE, Mario de. Introdução à estética musical. São Paulo:
Editora Huitec, 1995.

Janos Ian Abreu Schettini


• 273 •

BOCCIA, Leonardo. Choros da humanidade: música e farsa cultural.


Salvador: Cian, 2006.
BOCCIA, Leonardo. Compassos chave: música e sons nas mais
importantes estações de TV em quatro países. In: LUDES, Peter;
BOCCIA, Leonardo; KÜHNEN, Ulrich; MAGUIRE, Joseph.
Hegemonias visuais: uma introdução. Salvador: Hexis, 2007.
EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
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GROUT, Donald Jay. A history of western music. 3. ed. com Claude
Palisca. Nova York: W.W. Norton, 1980.
HOLANDA, A. B. Dicionário Aurélio escolar da língua Portuguesa.
1 ed. Ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1988.
KOECHLIN, Charles. Traité de l’Harmonie. Paris: Max Eschig, 1946.
3 v.
KOSTKA, Stefan; PAYNE, Dorothy. Tonal harmony. Nova York: Alfred
A. Knopf, 1989.
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2003.
ZAMACOIS, Joaquin. Tratado de Armonía. Barcelona: Editorial Labor,
1948. 3 v.

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Colofão

Formato 16 x 23 cm
Fontes A Garamond e Handel Gothic BT
Papel Pólem 80 gr
Impressão Setor Reprográfico da EDUFBA
Capa e Acabamento Cian Gráfica
Tiragem 300 exemplares

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