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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
AUTORES VARIADOS

A VIOLÊNCIA, O PODER E O DIREITO:


UM ESTUDO FILOSÓFICO ATRAVÉS DO
CINEMA BRASILEIRO
ORGANIZAÇÃO: MARA REGINA DE OLIVEIRA

SÃO PAULO
PRIMEIRA EDIÇÃO
2016
Copyright 2016 by Mara Regina de Oliveira

A reprodução parcial ou total desta obra, por qualquer meio, somente será
permitida com a autorização por escrito do autor.
(Lei 9.610, 19.02.1998)

OLIVEIRA, Mara Regina. A VIOLÊNCIA, O PODER E O DIREITO: UM


ESTUDO FILOSÓFICO ATRAVÉS DO CINEMA BRASILEIRO. São Paulo:
Edição do Organizador, 2016.

1. Direito 2. Filosofia. 3. Cinema 4. Poder 5. Interdisciplinaridade

ISBN 978-85-919586-2-7
9 788591 958627
“O cinema, como todas as artes, deve ser, antes de mais nada,
transgressor. Ele pode ser um fantástico instrumento de compreensão do
mundo e não de banalização”.
(Walter Salles)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO: A TEMÁTICA DA VIOLÊNCIA E DO PODER RELACIONADA AO
DIREITO E AO SENTIMENTO DE EXÍLIO PERMANENTE – Mara Regina de Oliveira

A VIOLÊNCIA, O PODER E O DIREITO NA VISÃO IMAGÉTICA DE DEUS E O DIABO NA


TERRA DO SOL - Mara Regina de Oliveira

A IRREDUTIBILIDADE DA EXISTÊNCIA AO CONCEITO: UM LIMITE ENTRE


TEMPORALIDADE E LÓGICA, SUBJETIVIDADE E OBJETIVIDADE, PENSAMENTO E
REALIDADE - Fernando Barbin

O CAMPO DE CONCENTRAÇÃO FUGIDIO DO SERTÃO NA CENA IMAGÉTICA DE


CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS - Marco Aurélio Panadés Aranha

REFLEXÕES SOBRE O FILME ÁRIDO MOVIE E O PROBLEMA DA LEGITIDADE JURÍDICA


- Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho

A FORMA POLÍTICA ESTATAL E O DIREITO: UMA PERSPECTIVA JUSFILOSÓFICA


INTERDISCIPLINAR SOBRE A FUGA E A MORAL NO CÉU DE SUELY - Silvio Sandro Soares
Júnior

O LOBO ATRÁS DA PORTA: O LADO PÚBLICO DA VIOLÊNCIA PRIVADA - Gabriela Biazi


Justino da Silva

ESTÔMAGO: UMA FÁBULA NADA INFANTIL SOBRE PODER, SEXO E CULINÁRIA -


Gabriela Werner Oliveira/ Isabelli Carvalho Botazini de Souza

A OPRESSÃO DE GÊNERO NO FILME A CASA DE ALICE - Renata do Vale Elias

UM BRASIL CRONICAMENTE INVIÁVEL: AMBIVALÊNCIA MORAL E A VERTICALIDADE


ESTRUTURAL DAS RELAÇÕES DE PODER NO FILME DE SÉRGIO BIANCHI - Ana Paula
Polacchini de Oliveira

OS INQUILINOS – OS INCOMODADOS QUE SE MUDEM - Maia Aguilera Franklin de Matos

DURVAL DISCOS: O ENCONTRO DA REDENÇÃO NO CUMPRIMENTO DA ORDEM -


Fernanda de Fátima Borges

TRABALHAR CANSA: A LUTA HUMANA PELA SUPERAÇÃO DO MEDO -Olga Regiane Pilegis

JUSTIÇA: VIOLÊNCIA E PODER NO ÂMBITO JUDICIÁRIO - Giovanna Migliori Semeraro


A INTERFACE ENTRE “JUSTIÇA”, “LEI” E “DIREITO”: UMA ANÁLISE DO FILME JUÍZO
DE MARIA AUGUSTA RAMOS - Danjone Regina Meira
APRESENTAÇÃO: A TEMÁTICA DA VIOLÊNCIA E DO PODER RELACIONADA AO
DIREITO E AO SENTIMENTO DE EXÍLIO PERMANENTE

“Como é que vou dizer isso? Sinto os meus poderes


aumentarem. Não. Eu sinto os meus poderes aumentarem.
Eu estou ardendo, bêbado de um novo vinho. Eu sinto a
coragem, o ímpeto de ir ao mundo, de carregar a dor da
Terra e o prazer dela. De lutar contra as tempestades e de
enfrentar a era do trovão. Nuvens se ajuntam sobre mim. A
lua esconde a sua luz, a lâmpada se apaga. A lâmpada se
apaga. Eu devo levantar. Devo levantar. E não era nada
aquilo que me bastava. Agora eu não quero mais a parte.
Eu quero toda a vida... toda a vida”.

A leitura deste pequeno trecho de Fausto (Goethe), feita por um jovem rapaz, na janela de seu
apartamento que beira o Elevado Costa e Silva (Minhocão), em São Paulo, compõe a intrigante abertura
do filme Terra Estrangeira, dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, em 1995. A fotografia em
preto e branco, com o elevado vazio, mostra uma ideia imagética de abandono e decadência de parte da
sociedade paulistana. Na fachada lateral do edifício, um grande outdoor, com o anúncio das calcinhas
“Hope” – esperança - compõe um cenário emblemático em relação ao espírito inicial de seus
personagens. Logo ficamos sabendo que o nome do jovem é Francisco (Paco) Eizaguirre, que não tem pai
e que estuda na Faculdade de Física, mas o seu sonho é fazer um teste, com a citada fala de Fausto, para
tornar-se ator de teatro. Sua mãe Manuela Eizaguirre mostra cansaço em subir as escadas do prédio com
as pesadas sacolas de compra, o elevador permanece quebrado. Trabalha arduamente como costureira e,
com muito esforço, há muitos anos, junta dinheiro na poupança a fim de realizar o seu sonho de vida
maior: voltar ao seu local de origem: San Sebastian, região do “País Basco “na Espanha.
Percebemos que a narrativa do filme fala do problema da fragilização da identidade e do
sentimento de inadequação ao ambiente em que se vive, a terra estrangeira de cada um. Compõe um
interessante cenário onde várias formas de exílio, não necessariamente ligadas a nacionalidade, são
apresentadas e associadas a um forte desejo de constituição de uma identidade pessoal, a qual os
personagens almejam se sentir integrados. Francisco (Paco) busca esta integração na suposta nova
profissão de ator, que se volta para o futuro. Sua mãe, em contrapartida, almeja reencontrar uma
identidade afetiva construída no passado, no retorno ao país de origem. A referência ao País Basco, que
não reconhece a sua identidade espanhola, e clama pela sua independência política, de forma subversiva,
é bem ilustrativa neste contexto. A crise financeira presente no fim do período ditatorial brasileiro e a
recente primeira eleição democrática do Presidente Fernando Collor de Mello, compõe, como veremos
adiante, o cenário político. Mas o filme vai além, ao também traçar um diálogo imagético com nossas
origens portuguesas.
Através do recurso fílmico da simultaneidade, conhecemos um jovem casal – Alex e Miguel - que
puseram em prática o sonho de deixar o Brasil falido, economicamente, para viver em Portugal, como
forma de liberação de um exílio forçado pela inadequação cultural. O que a leitura crítica nos mostra
sobre eles? O sonho de integração não se realizou, pois estão vivendo a margem da sociedade e
agregados a redes informais de imigrantes. Alex trabalha duramente como garçonete de um restaurante
popular, submetida a um chefe grosseiro e Miguel, sem conseguir sucesso na carreira musical de
trompetista, insere-se nas redes mafiosas transacionais de contrabando de diamantes, além de ter o
envolvimento com o consumo de drogas. Sua insatisfação com a degradante vida informal do submundo o
leva a recriar a ter mais um sonho de fuga de Portugal para a “Europa” real.
Voltando à casa de Manuela, chegamos ao clímax dramático do filme, ligado a percepção de
como um ato abusivo, do ponto de vista político-jurídico, praticado pelo governo, pode aniquilar a vida
de uma pessoa humilde. Manuela ouve, pela TV, a recém empossada Ministra da Economia Zélia
Cardoso de Mello, falar sobre o confisco da poupança e percebe que o seu sonho de deixar o exílio no
Brasil foi abortado de forma abrupta e injusta. Ela já demonstrava sinais de dores no peito, e seu ataque
de coração mortal é um grito de dor e desespero diante da injustiça que foi praticada contra vários
brasileiros na época. Além deste pacote econômico ter desafiado vários dispositivos constitucionais
recém aprovados em 1988, ele caracterizou um ato abusivo praticado em relação a muitos sujeitos, que,
mesmo tendo juntado seu dinheiro honestamente, durante muitos anos – naquela época a poupança era um
recurso seguro de investimento – foram “punidos” com o confisco de seu dinheiro por dois anos. O
governo igualou, em termos de punição, o pequeno poupador ao grande especular financeiro, que tirava
muita vantagem dos altos índices inflacionários da época. Temos a situação emblemática do abuso de
poder praticado por um Presidente recém-eleito, por via democrática, depois de vinte e cinco anos de
ditadura. A autoridade que desafia o direito o qual deveria obedecer, punindo o sujeito que o confirma,
acaba por aniquilá-lo. Nesta perspectiva, vemos que Manuela foi morta pelo desgoverno abusivo de
Fernando Collor de Mello.
A solidão e o sentimento de abandono vividas por Francisco (Paco), após a morte de sua mãe,
acentuam a sua inadequação ao ambiente em que vive, fazendo com que ele não consiga fazer o teste para
trabalhar como ator, devido a um bloqueio psicológico. Desesperado e frustrado, ele entrega-se a bebida
e torna-se presa fácil de Igor, de origem portuguesa, num bar, pois este lhe oferece bebida cara e a
oportunidade de realizar o sonho de sua mãe: visitar San Sebastian, com tudo pago, desde que ele leve
uma mercadoria em sua mala. Igor leva Francisco (Paco) para conhecer seu antiquário, que não percebe
que se trata de um negócio de fachada para o contrabando de diamantes. Ele aceita a sua tarefa, sem
saber que será lavado para Lisboa e não para Madri como o combinado. Neste momento, tomamos
ciência de que Miguel faz parte da mesma conexão mafiosa em Lisboa e, numa atitude altamente
arriscada, decide vender os diamantes que chegam, diretamente, e não como intermediário. Esta atitude
lhe custará a vida.
Neste momento, Francisco (Paco) instala-se no decadente hotel combinado, em Lisboa, com a
mala, a espera de Miguel, que iria retirá-la e fazer o pagamento. Como este morreu, tudo dá errado e
Francisco sente-se, mais uma vez, abandonado. Depois de esperar bastante em seu quarto, consegue o
endereço e vai até o apartamento de Miguel, onde vê o corpo sendo retirado pela polícia. Através de um
cartão caído, por acaso, acha o endereço de uma loja de música de Pedro e da localização de Alex. As
locações foram feitas em regiões informais e decadentes de exclusão onde vivem vários imigrantes
africanos. Francisco acaba encontrando Alex e tendo com ela um rápido envolvimento pessoal. O
problema é que Alex, na tentativa equivocada de proteger Francisco da sua entrada no submundo, e, ao
mesmo tempo, se vingar de Igor, acaba providenciando a retirada a mala do hotel, por Pedro, doando o
violino e promovendo a ira das redes mafiosas. Igor vai a Lisboa e marca um encontro com Francisco e
os compradores de diamantes, num restaurante de fado. Ao se dar conta do perigo que corre se não
entregar o violino, ele foge a procura de Alex, na loja de música.
Francisco repreende Alex duramente e tenta reaver o violino a fim de cumprir o seu trato, mas ela
alega que não tem como localizar a pessoa que recebeu a doação do instrumento. Com a ajuda do amigo
Pedro, que lhes empresta o carro, decidem fugir para a Espanha – Francisco ainda pensa em poder
realizar o sonho de chegar a San Sebastian por sua mãe. Como Alex vendeu o seu passaporte, só resta a
eles passar a fronteira por um pequeno vilarejo no norte de Portugal, com menos fiscalização. O filme
assume ares de um Road Movie e, durante o percurso, apesar do sentimento de ameaça de morte que os
acompanha, há entre os dois um encontro amoroso sincero. A cena de amor, na praia, em frente o navio
encalhado é muito romântica e poética. Enquanto isso, percebemos que Igor é um antigo amante de Pedro,
que, sob tortura, acaba revelando o destino de fuga do casal.
O casal em fuga se aproxima da fronteira, mas percebe que ela está vigiada por guardas. Alex e
Francisco (Paco) decidem esperar e comer algo, e, durante a refeição descontraída, são surpreendidos
por Igor e seu comparsa, que exigem, de forma ameaçadora, a devolução do violino. Francisco coordena
a ida ao carro, onde supostamente estaria o violino e planeja uma fuga com o uso da violência. Igor e seu
companheiro são feridos, mas Francisco (Paco) também leva um tiro e parece estar ferido mortalmente.
Alex o põe no carro, em seu colo, dizendo, em prantos: estou te lavando para casa. Em alta velocidade,
Alex passa por cima da barreira policial da fronteira, em ato de absoluta subversão a violência
opressiva. Percebemos que Francisco está morrendo (há sangue saindo de sua boca) e, neste momento,
uma câmara panorâmica mostra o carro em movimento ao som da música Vapor Barato.
Simultaneamente, vemos o irônico destino dos diamantes, inspirado no clássico O Tesouro de Sierra
Madre (John Houston 1948): enquanto um cego toca o violino no metrô, vemos a capa do instrumento
cair no chão e os diamantes sendo pisoteados, sem que as pessoas se deem conta. O final é pessimista
pois, percebemos, no plano da sensibilidade, como o sentimento esperançoso de livrar-se do exílio e
voltar para casa não se realiza nos personagens, no plano fático. Francisco tenta confirmar as regras da
máfia do contrabando, mas acaba sendo aniquilado, mortalmente, pelo uso não razoável (não jurídico) da
violência. Diz a música, de Jards Macalé e Waly Salomão, imortalizada por Gal Costa, em época de
ditadura, em nossa país:
Oh, sim, eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general
Cheio de anéis
Vou descendo por todas as ruas
E vou tomar aquele velho navio
Eu não preciso de muito dinheiro
Graças a Deus
E não me importa, honey
Observamos que o problema do abuso de poder e da violência não jurídica, no filme Terra
Estrangeira, provocam o desconforto do sentimento do exílio permanente no Brasil e em Portugal, nosso
país de origem, o qual permanece não resolvido. Não há lugar para Manuela e Francisco na realidade
abusiva gerada pelo próprio governo brasileiro, mas a saída não está em se agregar a redes informais e
violentas no exterior, igualmente geradoras de abuso de poder mortais. Os filmes nacionais posteriores
de Walter Salles, como Central do Brasil, O Primeiro Dia e Abril Despedaçado vão retomar esta
temática da falta de identidade e o desconforto do exílio permanente, a partir de ângulos distintos, mas
sem desligar deste núcleo de referência central ao problema do abuso de poder. Mas Walter Salles não
está sozinho em suas reflexões. Desde o Cinema Novo, há uma longa tradição de tratamento desta
temática, onde, eventualmente, observamos a dramática e abusiva sobreposição da violência sobre o
direito nas relações sociais.
Pressupomos que o cinema é, precipuamente, uma linguagem imagética capaz de ampliar nosso
raciocínio crítico sobre temas jurídico-filosóficos, a partir da sua profícua associação dialógica com
teorias críticas do direito. Nesta coletânea, vamos mostrar como a temática da violência, do poder e do
direito aparecem relacionados não só na obra de Walter Salles, mas em grandes filmes nacionais como
um todo, ao longo de mais de cinquenta anos. Em sentido amplo, estas relações abusivas são perpetradas
pelos próprio Estado, mas, eventualmente, elas aparecem reproduzidas na esfera privada também.
Revelam, de um ponto de vista crítico, traços de nossa cultura, que acabam por comprometer a
legitimidade jurídico-política, em sentido mais amplo.
Esta temática permanece atual em sua realidade e o problema do abuso de poder e do uso não
razoável da violência ainda estão presentes e vem constantemente sendo reproduzidos pelos governos e
pela sociedade. A linguagem fílmica, por englobar os conceitos-imagem, apreendidos de forma racional e
emocional, ao mesmo tempo, permitem um acesso cognitivo a elementos subjetivos complexos que
passam despercebidos na convivência concreta. Todos os catorze filmes brasileiros analisados nesta
coletânea partem deste elemento de articulação comum, apesar de apresentarem pontos de vista diversos
em termos temáticos. Convidamos o leitor a adentrar na sala escura do pensamento imagético. No
primeiro tema, antes de analisarmos o clássico do Cinema Novo - Deus e o Diabo na terra do sol –
faremos uma discussão teórica mais abrangente sobre esta metodologia interdisciplinar, que servirá de
referência para análise dos demais filmes.
A VIOLÊNCIA, O PODER E O DIREITO NA VISÃO IMAGÉTICA DE DEUS E O DIABO NA
TERRA DO SOL
Mara Regina de Oliveira[*]

São poucas ou simplesmente nenhuma as possibilidades de


vida normal no sertão. Através de um processo de
esquecimento das leis, dos donos do poder e de seu
semelhante em regiões melhores favorecidas do Brasil, o
sertanejo descobriu-se gerado pelo esquecimento. Armou-
se, todavia, de artifícios de autoproteção que, se de
alguma forma, provocaram a explosão de seu drama,
transformaram-no em vítima de um novo processo: O
misticismo dos beatos e o anarquismo do cangaço.[1]

INTRODUÇÃO
ste artigo visa desenvolver a hipótese de que o cinema pode, através dos conceitos-imagem, auxiliar-
E nos a pensar temas da Filosofia do Direito. Nossa delimitação temática nos leva a destacar o
problema filosófico do abuso de poder jurídico, tão presente na realidade brasileira desde a sua
formação, que vem gerando uma histórica crise de legitimidade jurídica, em nossa sociedade. Em
pesquisa de doutorado tivemos a oportunidade demonstrar como o abuso de poder normativo praticado
pela autoridade, quando ela própria ignorar o direito, pode estimular o surgimento de reações
subversivas dos sujeitos. Usamos em nossa tese o exemplo histórico da Guerra de Canudos para expandir
as nossas reflexões. Agora, analisaremos um material cinematográfico que retrate a nossa realidade, no
intento de aprimorar o estudo interdisciplinar. Para tanto, escolhemos nos debruçar sobre o filme Deu e o
diabo na terra do sol, concebido de forma integral por um grande intelectual e artista que refletiu,
através da estética da imagem, sobre as entranhas da relação abusiva de poder no Brasil, o nosso singular
e genial Glauber Rocha.
De acordo com Ismail Xavier, Glauber pertence a uma geração de intelectuais e artistas
brasileiros, marcada por aguda consciência histórica, ligando o cultural ao político. Cada filme pensa as
questões coletivas (lutas de classe, religião, política), através de um teatro de ação e da consciência dos
homens, onde as personagens se colocam como condensações da experiência de grupos, classes, nações.
A relação existente entre direito, poder e violência aparece em vários de seus filmes. Segundo o autor, a
vida social se põe como drama, enfrentamento de crises, rupturas, ascensões e quedas; o espetáculo se
faz de passado e presente de lutas, dominação e resistência, num mundo que se revela sempre
orientado no eixo do tempo, inclinando-se para uma libertação do oprimido inevitável: o seu
imaginário se faz rebelião permanente e promessa de justiça.[2]
Neste sentido, partimos do pressuposto de que é possível desenvolver um diálogo entre teorias
filosófico-jurídicas que estudam a relação autoridade sujeito, do ponto de vista comunicativo, nos seus
momentos de crise e o clássico filme de Glauber. Apesar de a película ter sido concebida em 1964, ainda
espelha a discussão crítica de temas, tanto na forma como no conteúdo, que permanecem atuais e
problemáticos em nosso país. Deus e o diabo na terra do sol fala da crise de legitimidade, que leva a
ruptura da relação autoridade-sujeito estatal abusiva retratada, inicialmente, pelo líder messiânico e pelo
cangaceiro místico, e posteriormente através de uma Revolução ainda mais radical, exposta na canção
final o sertão vai virar mar e o mar virar sertão”.
A forma estética do filme é profundamente integrada ao seu conteúdo político, na medida em que
aparece como uma recusa radical do cinema industrial dominante, que deve assumir a precariedade de
recursos e inventar uma linguagem que, no plano da cultura, seja, ela própria, uma estética revolucionária
tão legítima quanto a violência do oprimido na práxis histórica. [3] Segundo Ismail Xavier:
Estes personagens simbólicos são observados por uma câmera que se
comporta como um documentário. O campo de cena é definido, mas a
imagem é de uma riqueza admirável, pois a câmera não para. Ora se
aproxima, ora se afasta das pessoas e objetos, em planos-sequência,
“apalpando” o que se põe à sua frente. O olhar de Glauber é táctil, sensual,
cheio de contrastes, desequilíbrios, excessos de toda ordem. Há um impulso
totalizador que colide com a interminável acumulação de elementos que
desafia a síntese. Sempre metafórico e distante do naturalismo, inventou a
sua própria linguagem. O seu cinema é barroco (trabalha opostos) na
textura da imagem e do som e também na concepção do poder, com
metáforas extraídas da tradição popular afro-brasileira, do catolicismo
rústico, que não é um artifício retórico. Há um esforço de aliar religião
popular e prática revolucionária. Não podemos negar a tradição dos mitos,
podemos reinterpretá-los em termos de projeto de liberação. As lições sobre
a luta de classes convivem com uma recuperação do sagrado, que é
sincrético.[4]
Antes de iniciarmos propriamente a análise interdisciplinar do filme, desenvolveremos um
panorama mais detalhado sobre o cinema como forma de manifestação linguística imagética do pensar
filosófico jurídico e também sobre a perspectiva pragmática de se pensar a relação autoridade sujeito
sob o ponto de vista comunicativo. A importância cognitiva do contato com a cultura de humanidades
está numa ampliação de nossa vida subjetiva, que permanece até certo ponto inacessível em nossa vida
concreta. No romance ou no espetáculo cinematográfico, a magia do livro ou do filme faz-nos
compreender o que não compreendemos na vida comum, onde percebemos os outros de forma exterior, ao
passo que na tela e nas páginas do livro eles surgem com todas as dimensões, subjetivas e objetivas,
concomitantemente.[5]
Neste campo, torna-se possível o entendimento de como as comunicações normativas abusivas
estimulam a percepção da crise e as manifestações subversivas revolucionárias, tão bem retratadas por
Glauber Rocha, do ponto de vista estético, unindo elementos subjetivos e objetivos. A questão que
visaremos equacionar neste artigo é a seguinte: a busca de uma libertação do dramático abuso de poder
praticado pelas instituições político-jurídico–religiosas em relação ao povo sertanejo, através do
beatismo e do cangaço, significa uma ruptura efetiva ou seria mera reprodução dos padrões de violência
abusivos? É o que veremos a seguir.

A IMPRESSÃO DE REALIDADE CINEMATOGRÁFICA COMO EXPANSÃO DO


PENSAMENTO CRÍTICO
A primeira exibição pública do cinema ocorreu em 28 de dezembro de 1895, na tela do elegante
Grand Café parisiense, por iniciativa dos irmãos Lumière. Vários curtas, em preto e branco e sem som,
foram exibidos, através do então inusitado cinematógrafo. Embora a plateia tivesse a consciência
racional de que as imagens representavam ilusões, reagiram “como se fossem verdadeiras”.[6] Sabemos
que, de fato, do ponto de vista estritamente técnico, não ocorre movimento real na imagem
cinematográfica, com o cinematógrafo apenas produz-se um efeito ótico que constitui esta “ilusão de
movimento”, ao se projetar vinte e quatro fotogramas imóveis por segundo. Esta ilusão ótica se confirma
graças à lentidão de nossa retina, que não consegue perceber as interrupções que existem entre as
imagens imóveis.[7]
Nesta perspectiva, o cinema cria um elemento novo na percepção da imagem, pois, ao introduzir a
experiência do movimento, constrói, em termos psicológicos, a impressão de que é a própria realidade
que está sendo exibida na tela, ainda que o seu conteúdo seja pura fantasia irreal. Como num sonho,
ocorre uma percepção de verdade, por isso, inicialmente, defendia-se a ideia de que esta técnica tornaria
esta arte objetiva e neutra, como se fosso manifesta através de um olho mecânico, que “colocaria, na tela,
pedaços da própria realidade, sem qualquer intervenção humana. ” No entanto, do ponto de vista
semiótico, esta caracterização se mostrou demasiadamente simplista, a imagem, mesmo na imóvel
fotografia, é semelhante ao real, mas não representa o mesmo de forma involuntária e automática. Nas
palavras de Ismail Xavier, ao citar a vanguardista Maya Deren sobre a imagem fotográfica:[8]
O termo imagem (originariamente baseado em imitação) significa
algo visualmente semelhante a um objeto ou pessoa real. Neste
sentido, absolutamente negativo de que a fotografia de um cavalo
não é o próprio cavalo, a fotografia é uma imagem. Uma pintura
não é algo semelhante a um cavalo, é algo semelhante a um
conceito mental, o qual pode parecer um cavalo ou pode, como no
caso da pintura abstrata, não ter nenhuma relação visível com o
objeto real.
O certo é que a linguagem cinematográfica evoluiu ao longo do século XX e XXI. A câmara, aos
poucos, deixa a sua tradicional imobilidade teatral, e passa se movimentar, quer seja através dos
travellings (carrinhos) das panorâmicas (a câmera gira sobre o seu pé, dos lados, ou de baixo para
cima) o zoom e, por fim, a câmara na mão. Hoje, existem câmaras tão leves que podem ser colocadas no
ombro, fazendo, através de um processo de análise, com que haja um deslocamento espacial dentro da
própria imagem, que faz uma espécie de “recorte de ângulos”, que podem ser amplos como uma paisagem
ou restritos como uma mão. Na composição final do filme, através de um processo de síntese, as imagens
são montadas em sequência, que não necessariamente precisa ser linear, do ponto de vista temporal.[9]
Neste sentido, percebe-se que a linguagem cinematográfica, seja na ficção ou no documentário, constitui-
se através de uma manipulação permanente, que, segundo Jean-Claude Bernadet, seria:[10]
Uma sucessão de seleções, de escolhas de como filmar, escolha de
ângulos, depois, de como montar, tendo em vista várias opções de
sequências, que são constituídas de cenas, que por sua vez, são
compostas por planos, entendidos como a extensão do filme
compreendida entre dois cortes, ou seja, como um segmento
contínuo de imagem.
Os elementos que constituem a linguagem cinematográfica não têm um significado a priori, pois
sua significação é construída pelo homem, não apenas na sequência dos planos, mas na manipulação
dentro do próprio plano, que dá significação aos elementos pela sua presença num contexto mais geral.
Existiria uma permanente ambiguidade nesta significação, estabelecida pela operação linguística
seleção/montagem, cujo grau de complexidade, seria variável de um filme para outro.[11] A percepção
desta ambiguidade seria neutralizada pelo efeito psicológico da impressão da realidade no espectador
que deve se lembrar mais do enredo e dos personagens do que da própria movimentação da câmara, os
cortes devem passar despercebidos e a figura do narrador, não deve ser percebida como existente. O
filme é, de fato, uma composição artificial, mas deve ser percebido como uma parte da própria vida real.
[12] Segundo Béla Balazs, no cinema, a câmara carrega o espectador para dentro mesmo do filme, o seu
olho acompanha os movimentos da câmara, muitas vezes s confundindo com os olhares dos personagens.
Ele vê e sente o mesmo que os personagens, há uma identificação psicológica única e poderosa entre os
olhares.[13]
Numa perspectiva semelhante, alguns psicólogos, como Hugo Mauerhofer, falam sobre a
peculiaridade da chamada “situação cinema”, como uma espécie de fuga da realidade quotidiana para o
encontro com o nosso inconsciente. Defendem a tese de que quando o espectador deixa a luz natural do
dia ou a artificial da noite, para isolar-se na sala escura, ocorreria uma mudança psicológica marcante,
tendo em vista o isolamento visual e acústico. Haveria uma sensação de que o tempo passa mais
lentamente, gerando um tédio. A forma dos objetos se tornaria menos definida, ampliando nosso poder de
imaginar e interpretar. E, por último, haveria o alcance do chamado estado passivo voluntário do
espectador, semelhante ao estado do sono. Estes três elementos juntos o levam a chamada “entrega
voluntária e passiva à ação dramática que se desenrola na tela”, levando o inconsciente a se comunicar
com a consciência em maior grau no que na vida quotidiana. Por isso, este pensador defende a ideia de
que a experiência de um filme jamais pode ser idêntica para duas pessoas, ela acaba por ser
profundamente anônima e individual tendo em vista a singularidades das diversas formas de inconsciente.
Ela tornaria suportável a nossa vida moderna, viabilizando o surgir das emoções e também da reflexão.
[14]
Não ignoramos o fato de o cinema, por ser uma cara arte burguesa, na sua origem, reflexo do
desenrolar capitalista e tecnológico do século XX, ter se tornado um tipo de mercadoria abstrata pelo
fato de poder ser copiado inúmeras vezes. Apesar de ter surgido na Europa, entre as duas guerras
mundiais, ele acaba por ser industrializado nos Estados Unidos, através dos poderosos estúdios de
Hollywood, que passam ser vistos como pura alienação, como fábricas de sonhos, que reproduzem
ilusões como se fossem reais, situações de total irrealidade social, econômica e política, contribuindo
indiretamente para a sua manutenção. A chamada montagem linear, com o corte invisível, e o cinema feito
inteiramente nos estúdios dariam vazão a este efeito ilusório. Teríamos, neste sentido, uma manipulação
abusiva da linguagem do cinema, que passa a mostrar como “real” a “irreal” derrota dos “vilões” pelos
“mocinhos”, riqueza para os pobres, amor eterno para os solitários e outra forma de happy end. Como no
brilhante filme de Wood Allen, A Rosa Púrpura do Cairo, teríamos uma espécie de realização ilusória
dos espectadores, através dos personagens. A ilusão da realidade apareceria como meio de fuga da dura
vida concreta, para a realização de uma fantasia maior no plano simbólico das imagens.
No entanto, entendemos ser demasiadamente simplista qualificar o cinema como pura “alienação
do real”, sem dúvida este é um traço característico da indústria que vai ser apropriado, posteriormente,
com mais eficiência pela TV, a partir dos anos 50. Todavia, uma leitura histórica mais profunda e
particular, menos generalista, mostra que nem mesmo este papel ele exerceu de forma uniforme dentro de
Hollywood, sempre houve boas exceções, com diretores que impuseram a sua marca pessoal e crítica no
seu trabalho. (John Ford, Alfred Hitchcock, George Cukor) como alertava o genial cineasta soviético, no
início do século XX, podemos desenvolver uma manipulação construtiva da linguagem do cinema não
apenas no sentido de fazer uma ilusão irreal parecer real, mas de produzir, através da montagem
inteligente, uma reação valorativa e crítica do espectador. O cinema deveria, nesta perspectiva, não
apenas contar histórias, mas instigar a produção de um raciocínio crítico no espectador.[15]
Depois do termino da segunda guerra, temos o renascer desta visão do cinema, como arte crítica,
no Neorrealismo italiano e na famosa Nouvelle Vague francesa, que surgem como crítica expressa ao
cinema de estúdio hollywoodiano, alheio ao social, tanto em termos de forma (abolição das regras de
filmagem rígidas, locação real, atores não profissionais) como de conteúdo (por foco na exclusão social)
No Brasil, estas duas vertentes geraram o nosso combativo Cinema Novo que até hoje influenciam o
cinema brasileiro atua, notadamente, o trabalho de Walter Salles. Glauber Rocha pode ser considerado
com expressão máxima da subversão proposta pelo Cinema Novo.

PENSANDO ATRAVÉS DE CONCEITOS-IMAGEM DO CINEMA: A LOGOPATIA NO PLANO


FILOSÓFICO-JURÍDICO
Na visão do filósofo Julio Cabrera, para que possamos compreender um problema filosófico, não
basta entendê-lo, racionalmente, como conceito teórico/semântico. Temos, de vivê-lo, senti-lo, ser
afetados por ele, como uma experiência emocional, não empírica, que aguce a nossa sensibilidade
cognitiva, próxima de uma dimensão que poderíamos chamar de pragmático-impactante, deve ser
produzido algum tipo de transformação. Embora a forma literária tenha preponderado na história do
pensamento filosófico, nada impediria que se viabilizasse uma problematização filosófica através da
análise de imagens do cinema, da fotografia ou da dança.[16] Mais adiante, ele levanta a polêmica
hipótese de que o cinema seria uma linguagem mais apropriada do que a própria escrita nesta forma de
pensar dos filósofos, que ele chama de logopáticos. Algumas questões humanas não podem apenas ser
ditas e articuladas logicamente, devem ser apresentadas sensivelmente, por meio de uma compreensão
logopática, racional e afetiva, que longe de ser uma mera impressão psicológica, tem pretensão de
verdade universal. Como forma de pensamento, ele é tão aberto como a filosofia dita literária, não existe
uma definição que o alcance de forma absoluta.[17]
Recordamos do pensamento de Jean Epstein sobre a questão. Como Cabrera, ele destaca a grande
proximidade simbólica da imagem com a realidade sensível, que ela representa, em comparação com a
palavra, que apresentaria uma espécie de símbolo indireto, elaborado pela razão, relacionado ao poder
de abstrair, classificar e deduzir. A percepção da imagem em movimento apresenta uma significação
semi-pronta, que alcança, de forma contundente e indutiva, a emotividade do espectador, sem a mediação
do raciocínio abstrato. Já a palavra, para produzir uma emoção, depende de uma prévia decodificação
racional de seu significado, para que represente uma realidade e esteja apta a mexer com sentimentos.
A frase fica como um criptograma incapaz de suscitar um estado
sentimental enquanto a sua fórmula não for traduzida em dados
claros e sensíveis através de operações intelectuais, que
interpretam e reúnem, numa ordem lógica, termos abstratos para
deles deduzir uma síntese mais completa. Por outro lado, a
simplicidade extrema com que se organiza uma sequência
cinematográfica, onde todos os elementos são, acima de tudo,
figuras particulares, requer apenas um esforço mínimo de
decodificação e ajuste, para que os signos da tela adquiram um
efeito pleno de emoção.[18]
Para que a linguagem cinematográfica seja vista, do ponto de vista filosófico, é necessário que
percebamos que ela se constrói a partir dos chamados conceitos-imagem, que não se confundem com as
chamados conceitos-ideia, trabalhados na filosofia escrita. No pensamento de Cabrera, eles não têm um
caráter essencialista e definitivo, mas sim heurístico e crítico. Eles caracterizam uma experiência que se
tem para que possamos entender e trabalhar este conceito, na forma de um “fazer coisa com imagens”.
Nas palavras do autor:
A racionalidade logopática do cinema muda a estrutura
habitualmente aceita do saber, enquanto definido apenas lógica ou
intelectualmente. Saber algo, do ponto de vista logopático, não
consiste somente em ter informações, mas também em estar aberto
a certo tipo de experiência e em aceitar deixar-se afetar por uma
coisa de dentro dela mesma, em uma experiência vivida.[19]
Não se trata de apenas assistir ao filme como uma experiência estética ou social desarticulada do
raciocínio ou ler um comentário sobre a película, mas desenvolver uma interação lógico-afetiva, que
evidencie a presença de conceitos ou ideias nas imagens em movimento. Já vimos como a linguagem do
cinema é poderosa porque produz à famosa “impressão da realidade”, acompanhada pela identificação
com o olhar dos personagens, numa situação dinâmica de espacialidade e temporalidade construídas. Os
conceitos-imagem do cinema produzem um impacto emocional sobre questões que dizem respeito ao
humano, com valor cognitivo, persuasivo, unindo lógica e pática, concomitantemente. Este impacto
emocional não está ligado a um possível efeito dramático de um filme, do tipo melodrama, muitos filmes
considerados “cerebrais” comovem o espectador pela sua “frieza”. Por mais racional que seja um filme,
ele nunca será como um tratado literário filosófico.
Neste sentido, cabe lembrar a didática distinção feita por Hugo Munsterberg a respeito das
emoções provocadas pelo cinema. Em primeiro lugar, teríamos as emoções que os personagens
comunicam de dentro do filme, provocando simpatia pelo sofrimento, compartilhando as alegrias pelo
amor realizado A percepção visual das várias manifestações dessas emoções se funde em nossa mente
com a consciência da emoção manifestada. É como se estivéssemos vendo e observando diretamente a
própria emoção. Reagimos, organicamente, de forma adequada, o horror nos dá arrepios, a felicidade nos
acalma. Há uma experiência viva do reflexo emocional dentro da nossa mente. Nos filmes
melodramáticos, este tipo emoção está muito presente. Mas, haveria, por assim dizer, um segundo tipo de
emoção secundária em que a plateia reage às cenas do filme do ponto de vista da sua vida afetiva
independente, onde pode haver, portanto, uma indignação moral e não uma identificação emotiva com o
personagem. A nosso ver, estas duas formam de emotividade se combinam na experiência do filme, mas a
emoção secundária estaria mais presente nos chamados filmes “cerebrais”.[20]A pretensão de
universalidade da reflexão filosófico-cinematográfica está ligada à ideia de possibilidade e não de
necessidade. Temos a constatação de que, embora não aconteça necessariamente com todos, poderia
acontecer com qualquer um.[21]
Um filme por inteiro pode ser a mais expressão de um conceito-imagem de uma ou múltiplas
noções. Temos, neste caso, um macro conceito imagem que é formado a partir de outros conceitos-
imagem menores, que requerem certo tempo cinematográfico para o seu desenvolvimento temporal, uma
única cena não pode constituir um conceito-imagem.[22] Eles podem ser percebidos, literalmente, nas
imagens exibidas, ou serem captados de forma abstrata e metafórica, tornando plena a sua conceituação
filosófica.[23]
A produção do impacto emocional é fundamental para a eficácia cognitiva do conceito-imagem, a
técnica cinematográfica se vale da pluriperspectiva, da manipulação do tempo e espaço e do corte
cinematográfico para viabilizar este efeito estético. A pluriperspectiva se constitui graças a sua
capacidade de dar “saltos” da primeira (o que vê ou sente o personagem), que é subjetiva para a terceira,
que é objetiva (o que vê a câmera). Neste sentido, a montagem, dentro dos planos, o ângulo aberto ou
fechado da câmera e seu movimento podem tornar intensa a experiência do cinema. Isto se associa à
enorme capacidade de manipular tempo e espaço, avançar e retroceder, inverter ou mesclar a ordem
cronológica do passado e do futuro, mostrar espaços simultâneos, e articular o literal e o metafórico
como só os sonhos podem. Por fim, temos a maneira aberta e plural de conectar os planos, as cenas e as
sequências.[24]
A técnica cinematográfica possibilita a instauração da experiência logopática, que permite a
manifestação dos conceitos-imagem, que só podem ser gerados por ela e não por meios literários ou
fotográficos. Outra característica importante seria a de que eles sempre apresentam desfechos abertos a
novas problematizações filosóficas, mesmo que a intenção do diretor seja a de fechá-las, a linguagem da
imagem tem uma natureza subversiva em termos de estrutura. Neste sentido, as soluções lógicas da
filosofia escrita geralmente têm uma intenção de apresentar conclusões mais conciliadoras,
conservadoras e construtivas, simbolicamente, bem-educada, como uma tentativa de “resolver o mundo
dentro da cabeça”, que o cinema não consegue fazer, mesmo que tente.[25]
Cabrera também levanta o problema da verdade universal filosófica na linguagem do cinema que
se vale de uma “impressão de realidade” e pela possibilidade de apresentar a mais inverossímil fantasia
como aparência de realidade de maneira retórica e até declaradamente mentirosa. Não esqueçamos de
que parte da tradição filosófica reverencia a verdade como algo que pode estar livre de ilusões e
equívocos. Como conciliar esta simulação do real com a pretensão de verdade?[26]
O autor entende que tanto as ciências como as filosofias escritas estão cheias de simulações, de
exemplos fantasiosos para o desenvolver de suas questões. Em todos os filmes, o problema do
universal/particular está presente na própria experiência do cinema, como uma espécie de problemática
intrínseca da imagem, através do impacto emocional que provoca. Este impinge uma noção de verdade,
quase visceral, que passa pelas entranhas até chegar ao cérebro, mais do que poderia fazer um tradicional
texto filosófico escrito. Nestes termos, a leitura filosófica de um filme, ao compor elementos lógicos e
afetivos, está direcionada a particulares que suscitam e que manifestam as emoções, mas “a própria
reflexão logopática que ela gera tem um alcance universal, que nos permite pensar o mundo de forma
geral, muito além do que é simplesmente mostrado no filme”.[27] A leitura filosófica de um filme, ao
compor elementos lógicos e afetivos, está direcionada a particulares que suscitam e que manifestam as
emoções, mas “a própria reflexão logopática que ela gera tem um alcance universal, que nos permite
pensar o mundo de forma geral, muito além do que é simplesmente mostrado no filme. Nas palavras do
autor, “enquanto a filosofia escrita pretende desenvolver um universal sem exceções, o cinema
apresenta uma exceção com características universais”.[28]
Por fim, o autor faz um importante alerta, relativo ao problema da imagem poder, eventualmente,
impingir a sua manipulação retórica emocional de forma abusiva e distorcida, ele cita o exemplo dos
filmes de propaganda nazista, que ajudaram a disseminar a banalidade do mal entre o povo alemão.
Sempre é necessário que haja uma informação exterior racional, que não venha da própria imagem, desse
modo, o que as asserções imagéticas nos mostram não deve ser assumido como verdadeiro, sem maiores
ponderações críticas, de forma similar ao que ocorre nas proposições filosóficas escritas. Na percepção
do filme, o aspecto emocional interage, permanentemente, com o aspecto lógico. Neste sentido, diz o
autor:
Podemos negar a verdade que a imagem cinematográfica nos tenta
impor. A mediação emocional tem a ver com a apresentação da
ideia filosófica e não com a sua aceitação impositiva. Devemos nos
emocionar para entender e não necessariamente para aceitar. Não
é que a emoção da imagem nos mostre imediatamente uma verdade,
ela nos apresenta, impositivamente, um sentido, uma possibilidade.
Mas o sentido de uma imagem, como o sentido de uma proposição,
é anterior à sua verdade ou falsidade.[29]
Partindo desta reflexão de Cabrera, voltada para a filosofia geral, entendemos que, no campo
Filosofia do Direito, existem instigantes linhas filosóficas literárias páticas, que permitem uma
aproximação muito rica com a linguagem imagética na apreensão de temas que envolvem uma delicadeza
sutil da compreensão do humano, ao nível mais profundo. Toda a discussão filosófica sobre a relação
entre direito e poder, no plano real dos fatos e das condutas efetivas, envolve esta aproximação
experiencial emotiva que vai muito além da racional compreensão semântico-lógica de enunciados
escritos. Trata-se de um ramo do direito onde o humano envolve-se, diretamente, nas questões teóricas
primordiais, principalmente quando indagamos a respeito da sua imperatividade concreta. A título de
ilustração, vamos fazer uma aproximação dos conceitos teóricos da pragmática da comunicação
normativa, que, tem, na sua constituição teórico-filosófica, elementos páticos primordiais sobre a relação
existente entre direito, violência e abuso do poder, e a linguagem imagética do filme Deus e o diabo na
terra do sol, dirigido por Glauber Rocha em 1964.

O PROBLEMA DO ABUSO DE PODER DO PONTO DE VISTA COMUNICATIVO E A


RUPTURA DA RELAÇÃO AUTORIDADE-SUJEITO
As teorias dogmáticas tradicionais têm a pretensão de tornar o poder uma “substância ética” que
pertence unicamente ao Estado soberano, desvinculado das relações de força, que transformam a questão
da obediência e da própria legitimidade numa premissa inquestionável, favorecendo a crença nas
instituições políticas para que permaneçam como um símbolo ideal aos olhos da sociedade. Partindo
destes pressupostos, lembramos do pensamento de Tercio Sampaio Ferraz Jr., especialmente no que ele
se refere à chamada “pragmática jurídica”, que, a nosso ver, trata com bastante originalidade e
perspicácia a relação existente entre direito, poder, controle e força, apontando elementos logopáticos
instigantes, no sentido proposto por Cabrera. Toda a esquematização geral proposta pela teoria
pragmática jurídica é tão rica quando associada a um elemento empírico humano, pois ela não é vista
como uma camisa de força racionalista com respostas racionalistas definitivas, ao permitir ser expandida
e enriquecida por esta mesma associação. Se o poder não se confunde com a força física, mas é controle
da ação dos sujeitos, como exercício de influência sobre outros, não há como escapar da análise do
processo comunicativo em que se estabelecem as interações humanas altamente reflexivas.[30]
A chamada “situação comunicativa normativa” é peculiar em relação às demais formas de
comunicação, na medida em que depende de uma “dogmatização contra fática” (inversão do ônus da
prova que ao invés de pertencer ao emissor, passa para o receptor) inicial da supremacia do chamado
“editor normativo”, que se põe como autoridade (cometimento da norma) para exigir certas condutas
(relato ou conteúdo da norma) dos endereçados sociais, visando uma possível decisão de conflitos.
Todavia, a estrutura monológica, não questionadora do discurso que impõe a relação de autoridade, ao
contrário dos demais, não se baseia em axiomas que deixam de ser questionados por serem aceitos como
verdadeiros por aqueles que se comunicam. Ou seja, ela não torna a questão da obediência uma verdade
inquestionável, do ponto de vista semântico, ela apenas a coloca fora de questionamento por uma decisão
arbitrária. Afinal, todo e qualquer dogma “impõe uma verdade sobre algo que, de fato, continua
duvidoso”.[31]
Assim, esta supremacia não se torna, de fato, inquestionável, e dependa de uma
institucionalização a nível social da própria relação de autoridade, que deve neutralizar o dissenso e as
possíveis reações sociais contrárias. É neste ponto que podemos identificar, com clareza, a relação
existente entre direito, poder e comunicação, na medida em que a relação de autoridade não preexiste à
própria interação, pois ela se constitui propriamente durante o processo interativo. Ela existe não só a
partir de uma pretensão do editor normativo de impor uma relação complementar, mas na medida em que
o sujeito também estiver disposto a se colocar nesta condição subalterna. O poder não está unicamente
nas mãos da autoridade, não é uma “coisa” que ele tem, portanto. Ele atravessa e ao mesmo constitui a
própria relação autoridade/sujeito.[32]
Neste sentido, vemos que tanto os relatos, como o cometimento das mensagens normativas,
implicam em relações de poder, entendidas como controle de seletividade do editor normativo em
relação aos endereçados sociais. Neste sentido, a complementaridade do editor normativo é garantida
pela institucionalização do controle da seletividade das reações dos endereçados sociais que identificam
as normas estatais como sendo juridicamente válidas em detrimento das demais. Por isso, é extremamente
importante que ele leve em conta as reações dos chamados endereçados sociais, que, como vimos, podem
confirmar, rejeitar ou desconfirmar a mensagem normativa. Tanto a confirmação (licitude) como a
rejeição (ilicitude) reconhecem o cometimento meta-complementar da norma jurídica.[33]
No entanto, a constante possibilidade de haver reações desconfirmadoras torna inevitável o
confronto entre direito e poder, visto que ela constitui uma situação-limite em que os endereçados sociais
deixam de assumir a relação complementar estabelecida no cometimento das normas jurídicas, não mais
assumindo a condição de sujeitos da relação. Nesta situação, os endereçados sociais eliminam o controle
de seletividade que o editor normativo tenta realizar. Este tem uma expectativa predeterminada de que a
relação de autoridade, que ele estabelece, seja vista como uma estrutura de motivação da seletividade do
endereçado que, de fato, passa a possuir duas alternativas apenas: confirmar ou rejeitar a mensagem. No
entanto, aquele que desconfirma desilude totalmente esta expectativa, pois age como se a autoridade, e os
atos de coação que ela determina, não existissem, como estratégia de desafio ao aspecto cometimento de
suas normas.[34]
O conteúdo das normas jurídicas e a relação complementar que elas estabelecem deixam de
influenciar as opções e deixam de ser uma estrutura de motivação para a seletividade dos endereçados,
que não mais veem a possibilidade de aplicar sanções como uma alternativa a evitar. Aquele que
desconfirma uma mensagem normativa não mais se sente obrigado a se submeter à autoridade porque não
a reconhece como tal, na medida em que ele próprio não mais se assume como sujeito da relação. Neste
sentido, ela faz com que o editor perca, pelo menos momentaneamente, o seu controle sobre os
endereçados. Se for bem-sucedida, ela pode criar uma nova relação de poder, paralela a primeira, em
que o sujeito receptor das mensagens normativas estatais, passa a ser autoridade emissora de novas
mensagens normativas. Assim, como vimos, ela deve ser neutralizada pela autoridade que, a todo custo,
tentará se imunizar contra ela, ao desconfirmar a reação desconfirmadora, transformando-a em uma
simples rejeição, que pode ser enquadrada como comportamento ilícito, que pode ser por ela controlado.
[35]
As reações desconfirmadoras surgem no momento que a legitimidade da relação de poder está
enfraquecida. A legitimidade está ligada, justamente, à imposição de certas significações e ao
desconhecimento, por parte dos endereçados sociais, das relações de força entre grupos que compõem a
sociedade, que constituem a chamada violência simbólica. O poder será considerado legítimo enquanto o
seu exercício de violência simbólica for dissimulado e desconhecido pelos endereçados sociais, de
modo que ele possa influenciar comportamentos através de sua liderança, reputação e autoridade, que
devem se combinar de forma congruente. Uma vez que o arbítrio social, em torno das relações de força,
torna-se evidente, a legitimidade fica comprometida. Nas palavras do autor “esta seleção básica é
arbitrária, porque a sua função e estrutura não podem ser deduzidas de nenhum princípio universal,
mas dependem da complexidade social e não da natureza das coisas ou da natureza humana”.[36]
A influência por autoridade é necessária para a constituição do esquematismo
jurídico/antijurídico e se impõe de modo contra fático e se generaliza apesar da passagem do tempo.
Embora haja desilusão da expectativa, o sujeito ainda a mantém, possibilitando a jurisfação do poder.
Ela sempre dissimula as relações de força, que estão em sua base, agregando sua própria força simbólica
às mesmas relações, através de normas que passam a regular o uso da força. Neste sentido, vimos que ela
só reconhece a confirmação e a rejeição de suas mensagens. Já a influência por reputação atua mais
diretamente no relato das normas, pois neutraliza os conteúdos normativos e possibilita sua assimilação
acrítica pelos sujeitos, em termos de valores ideológicos. Por fim, a influência através da liderança
neutraliza as diferenças entre a autoridade e os sujeitos, manipulando a escassez de consenso e
institucionalizando a relação meta-complementar normativa. Aqui ganham relevo todos os procedimentos
institucionais legislativos, executivos e judiciais, bem como mecanismos midiáticos de
propaganda. Na prática, estas três generalizações devem se combinar a fim de se fortalecerem,
mutuamente, mas, em situações disfuncionais, elas perdem o seu caráter dissimulador. Nas chamadas
situações comunicativas abusivas, a força física passa a ser a base explícita do poder, podendo provocar
a sua destruição, como influência e controle.[37]
O exercício da violência simbólica corre risco de tornar-se transparente, e comprometer a
legitimidade do poder, em situações comunicativas normativas defeituosas onde ocorrem abusos na
comunicação por parte do editor normativo, em que ele elimina a própria possibilidade de seleção do
sujeito, ou seja, nas situações em que ele é coagido pelo sujeito, de certa forma o eliminando enquanto
tal. Neste caso, a percepção da injustiça e a possível “revogação” da autoridade podem ocorrer. Por
quê?
Num ensaio bastante instigante, intitulado “O discurso sobre a justiça”, o problema da justiça, na
comunicação normativa, é recolocado pelo mesmo autor. Partindo de algumas ideias de Austin, afirma
que a comunicação humana implica na existência de comunicações malogradas e defeituosas. O defeito
implica num abuso das condições de uso da língua, onde é possível detectar, por exemplo, a presença da
mentira. Como seria o caso de um mentiroso que afirma: Amanhã direi a verdade. Já o malogro é um
sem-sentido que cria um paradoxo do tipo: Não leia esta placa! Para não lermos placa, temos que lê-la
primeiro. Ele também pode estar presente no cometimento das mensagens, quando se diz: seja livre! Para
sermos livres, precisamos nos vincular ao comando, e não ser livres, portanto.[38]
O problema da justiça, diz o autor, está relacionado com a possibilidade de haver refutação de
mensagens defeituosas, mas não malogradas, que pode ocorrer com os enunciados normativos. A
validade da norma não implica na sua justiça ou injustiça, porém qualificar uma norma de justa ou injusta
constitui uma peculiar forma de refutação da força ilocutiva da norma. Usando a classificação feita por
Austin, o autor afirma, como o fez nos textos anteriores, que as mensagens comunicadas, constituem uma
emissão locutiva (relato), que trazem consigo uma dimensão ilocutiva (cometimento) identificada pelos
modalizadores pragmáticos, como o tom da voz, os modos verbais imperativos, condicionais etc.[39]
Quando um ou mais endereçados sociais afirmam que uma norma é injusta, esta reação implica
em desconhecer ou ignorar a autoridade do emissor normativo. Esta refutação, de fato, implica numa
revogação, ou seja, num outro ato normativo que a “revoga” por declarar a sua autoridade ignorável,
ainda que de uma forma diferente da revogação da validade de uma norma feita através de outra. [40]
Estes defeitos, que implicam em condições de abuso, aparecem no cometimento normativo, ou
seja, ocorrem quando a relação de autoridade também comunica uma perversão do ato de falar. A
emissão de uma mensagem normativa, como vimos, pressupõe certas condições que garantem o exercício
de autoridade do emissor normativo, que não pode eliminar a condição de sujeito do próprio endereçado
social. Desde que exista uma mensagem normativa, onde a autoridade anule o próprio sujeito, de modo a
destruir o sentido unificador de o seu próprio existir, afirmaremos que houve um “abuso das condições de
exercício potestativo da autoridade. ” Esta mensagem será “defeituosa” embora possa ser juridicamente
válida. A identificação de seu defeito, por parte do receptor, está na própria realização do ato de falar,
que “denuncia a carência do poder do emissor pela carência de sentido existencial do sujeito
destinatário. Se alguém for condenado por um crime que não cometeu, esta mensagem normativa torna-se
injusta porque desmascara a situação existencial insuportável em que o sujeito é colocado e não apenas
porque o crime não foi demonstrado”. Assim, neste exemplo, a declaração de injustiça expõe algo mais
grave do que a falta de demonstração da culpa, pois, se assim o fizesse, ainda reconheceria a relação de
autoridade. No entanto, esta declaração acaba por “revogá-la”, através da sua desconfirmação, o que
implica, como vimos, num desequilíbrio nas relações de poder. Não pode haver exercício do poder na
comunicação normativa se houver aniquilamento do sujeito.[41]
A relação complementar, imposta pelo emissor normativo, exige que ela “neutralize”, por assim
dizer, uma possível reação desconfirmadora dos endereçados sociais e nisto consiste a importância do
exercício de violência simbólica. Neste sentido, a relação de autoridade/sujeito torna-se meta-
complementar. Todavia, entre os comunicadores, que estabelecem uma relação desigual, deve haver um
mútuo reconhecimento dos diferentes discursos.[42]
O discurso da autoridade é impositivo e assim se caracteriza a partir do momento em que é
assumido por outro discurso que lhe é submisso. Vimos que a confirmação e a rejeição constituem
discursos de submissão, que fortalecem a força ilocutiva da mensagem. Para que a relação de poder se
constitua, é preciso que haja um espaço de “liberdade” para ambos. Ou seja, é preciso que haja um
espaço para a desobediência por parte do sujeito e um espaço de ameaça para a autoridade, que também
deve poder não a concretizar.[43]
O defeito ocorre na medida em que o discurso da autoridade elimina a complementaridade, ao
substituir os dois discursos distintos (autoridade/sujeito) por único discurso em que só ela comunica. Um
discurso que não chega a ser propriamente homólogo, na medida em que constitui uma perversão da
própria homologia. Como no exemplo citado: “reconheçamos que a autoria do delito não foi provada,
mas deve-se reconhecer que o não acatamento da sentença destruirá a autoridade. ” Esta fórmula não
neutraliza o discurso desconfirmador do sujeito, mas o próprio sujeito, na medida em cometendo ou não o
crime ele será condenado. A relação complementar é rompida porque o emissor age como se o discurso
fosse único. A desconfirmação por parte do editor só pode dirigida como uma resposta a uma reação
desconfirmadora do sujeito, que visa transformá-la em simples rejeição. A desconfirmação da autoridade
não pode alcançar aqueles sujeitos que confirmaram a norma jurídica, porque isto constituiria uma
perversão do discurso normativo, na medida em que a homologia consiste numa imposição unilateral,
onde só um tem competência para falar, sendo que os outros devem apenas obedecer, pelo sim ou pelo
não. Trata-se de uma hipótese limite, pois a possibilidade do sujeito reagir seletivamente desaparece,
pois confirme ou não a mensagem ele será punido.
O emissor age pelo receptor e o aniquila. Neste sentido, a relação complementar desaparece, pois
não há mais o jogo de ação e reação. Existe somente a coação que destrói a relação de poder. É evidente
que esta análise pragmática do problema da justiça, que também leva em conta a sua dimensão semântica,
caracteriza uma situação limite que destrói a relação complementar, por fazer justamente o inverso do
que deveria fazer, através do exercício da violência simbólica: expor as relações de força que estão na
base da relação desigual que estabelece. Isto demonstra o fato de os cometimentos normativos
institucionalizados, no limite, não podem suportar estes relatos que produzem defeitos na relação. Mesmo
que sejam mensagens normativas comunicadas, segundo as regras burocráticas do Estado, gozando,
portanto, de um consenso geral presumido, estas poderiam ser “revogadas” pela sua injustiça.
Embora o referido ensaio não faça uma menção expressa a esta colocação, pensamos que este
aniquilamento do sujeito poderia afetar a própria racionalidade dos discursos. Ele não apenas inverte,
mas elimina a regra do dever de prova já mencionada. Numa situação comunicativa normativa racional
não se elimina o dever de prova, que cabe ao sujeito da relação. A inversão do ônus da prova sustenta-
se, como vimos, na institucionalização da relação de autoridade, que elimina o questionamento do sujeito
em torno da relação, mas não o próprio sujeito. Neste sentido, o discurso defeituoso poderia ser
considerado irracional, na medida em que introduz uma regra estranha à comunicação que é comunicada
ao sujeito: Confirmando ou não as minhas mensagens normativas, você será sancionado! No fundo,
introduz-se uma regra que diz “que não há regra para que o sujeito possa selecionar a sua ação”, pois ele
será arbitrariamente coagido pelo outro.[44]
Num contexto mais amplo, percebemos que este abuso de poder compromete, amplamente, a
institucionalização da autoridade meta-complementar das normas constitucionais protetoras dos Direitos
fundamentais, voltadas para os anseios sociais em torno dos “direitos humanos”, próprios do Estado de
Direito contemporâneo. As reações dos desconfirmadoras dos sujeitos tendem a se expandir, formar
novas cadeias normativas informais, sem que consigam ser neutralizadas e calibradas pela autoridade do
Estado, em virtude do seu próprio comportamento comunicativo defeituoso e irracional. Ainda que haja
uma juridificação, no plano ideal, com aumento da produção normativa estatal protetoras dos direitos,
contra o abuso do Estado, no plano dos fatos, ocorre uma dejuridificação na realidade, no plano do agir,
que significa uma banalização das reações desconfirmadoras por parte das autoridades e dos sujeitos e a
inevitável percepção da injusta subversão destrutiva dos direitos fundamentais, em termos pragmáticos.
O vivenciar normativo da população em geral e dos agentes estatais faz implodir a Constituição como
ordem básica da comunicação jurídica.[45]

A OMISSÃO DO ESTADO, O ABUSO DE PODER PRATICADO PELOS CORONÉIS E A


ÉTICA REVOLUCIONÁRIA DO BEATISMO E DO CANGAÇO
Deus e o diabo na terra do sol representa um trabalho de cunho genuinamente revolucionário, em
termos de conteúdo e técnica de filmagem, desenvolvido na forma de uma fábula de aventuras épicas
nordestinas, tradicionalmente contada nas feiras populares baianas de Canudos, Monte Santo, Jeremoabo,
Paulo Afonso, e Feira de Santana. Com a câmera na mão, utilizando recursos de iluminação natural, sem
a utilização de filtros, rebatedores de refletores, dirigindo de forma livre e interativa com a
dramaticidade dos personagens e sua capacidade de improvisar, o trabalho da equipe de Glauber Rocha
desenvolve um trabalho cinematográfico excepcionalmente “vivo”, que busca “chacoalhar” de uma forma
visceral o nosso comodismo político e nossos valores éticos frente à transgressiva e histórica exclusão
social do Brasil informal do sertão. A inclusão da dramática música de Villa-Lobos, bachianas de fundo
sertanejo, é igualmente exemplar. Glauber chega a afirmar que “o filme foi todo improvisado, pois ele é
literalmente diferente do roteiro que foi feito dentro dos momentos de maior rendimento. Para ele, o
ator pode acrescentar muita coisa ao personagem, tirá-lo do roteiro e dar-lhe uma dimensão maior.
[46]
Os personagens Manuel, Rosa, Sebastião, Corisco, Dadá e Antônio das Mortes evoluem numa
interação dramática limite, ao questionar as tradicionais lideranças sertanejas do beatismo e do cangaço
e seu real poder de liberação das relações de poder abusivas praticadas pelo governo, pelo coronelismo
e pela Igreja Católica. Como pano de fundo, existe uma espécie de “narrador musical”, que destaca as
principais mudanças dramáticas dos personagens. Glauber assumiu, com honestidade, a influência do
teatro de Brecht e de vários cineastas europeus na composição do filme, tais como o tipo de montagem do
cinema revolucionário de Eisenstein, a câmera ágil de Godard e principalmente o forte drama emocional
da obra prima de Visconti, Rocco e seus irmãos (Rocco e i suoi Fratelli, 1962), que segundo as próprias
palavras de Glauber, “soube levar o cinema às últimas consequências, em termos de extroversão
dramática”.
A cidade de Monte Santo tem cunho histórico, pois acolheu as tropas federais de Moreira César
durante o combate com as tropas de Antônio Conselheiro na guerra de Canudos. Antônio Conselheiro fez
reparos numa imensa escadaria de pedras construída originariamente por frei Apolônio de Todi, como
uma via de penitentes, no século XVIII. Até hoje ela atrai penitentes e vários pontos do sertão que sobem
até o alto da Santa Cruz para pagar promessas. Algumas penitências são feitas a partir do martírio de
carregar pedras pesadas na cabeça, como é exibido no próprio filme, através da figura do vaqueiro
Manuel. O Beato Sebastião foi inspirado no Beato Lourenço do Caldeirão que viveu em Monte Santo
depois da morte de Antônio Conselheiro. Corisco, o cangaceiro místico e cruel, sobreviveu ao massacre
dos Angicos que matou Lampião e espalhou terror pelo sertão até que em 1939 foi morto pelo Major José
Rufino, que é representado no filme pela mítica figura do matador/vingador Antônio das Mortes.
O sertão de Cocorocó, coberto de mandacarus, xixiques, favelas e macambiras foi o cenário da
trágica guerra de Canudos, onde a cidade em ruínas foi posteriormente inundada pelas águas de um
açude, confirmando para o humilde povo do Cocorobó, de uma forma cínica, a famosa profecia do
Conselheiro, símbolo de libertação do povo, que norteia toda busca pela identidade libertadora dos
personagens, segunda a qual “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. Penetrar, de forma
crítica, no âmago dramático destas ambíguas relações de poder e violência irracional e suas formas de
reprodução social nas lideranças revolucionárias é a intenção básica de Glauber. Como elas fazem parte
de nossa constituição Antropológica, podem revelar traços importantes da origem histórica de nossas
dificuldades políticas atuais. Retratar um tema regional, datado num período histórico específico, pode
ser uma forma de abrir os nossos olhos para as questões de dominação que afetam o país como um todo,
na atualidade. Será que podemos sustentar a existência maniqueísta de um DEUS e um DIABO, do BEM
em oposição ao MAL na terra do sol? Será que a nossa liberdade será “concedida” pela autoridade de
Deus ou pelo Diabo? A seguir, veremos como o diretor questiona todas estas dicotomias, mostrando que
elas são ambíguas na sua base. Antes de entrarmos na análise específica do filme, desenvolveremos uma
introdução básica sobre a formação Histórico-Antropológica do povo sertanejo no Brasil e a explosão
dramática do misticismo de Antônio Conselheiro, e de seus sucessores, como base geral de entendimento
da linguagem dramática do filme.

UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO DAS RELAÇÕES DE FORÇA, QUE ESTAVAM NA


BASE DE FORMAÇÃO DO CHAMADO BRASIL SERTANEJO
Conforme especifica Darcy Ribeiro, a situação comunicativa normativa que propiciou a formação
do povo brasileiro não foi pacífica, pois resultou de um processo civilizatório conflitivo e opressivo,
baseado no modelo de poder, não interativo, como imposição da vontade soberana, sobre os territórios
conquistados. Os povos ibéricos foram germinais, pois tão logo conseguiram concretizar a unificação e
tornar-se Estados soberanos, ao se livrarem da ocupação árabe e judia, obtiveram pleno domínio
centralizado de seu território, que possibilitou sua expansão pelos mares, para que conquistassem,
saqueassem e evangelizassem povos da África, da Ásia e principalmente das Américas. Segundo suas
próprias palavras “estabeleceram, assim, os fundamentos do primeiro sistema econômico mundial,
interrompendo o desenvolvimento autônomo das grandes civilizações americanas. Exterminaram,
simultaneamente, milhares de povos que antes viviam em prosperidade e alegria, espalhados por toda
terra com suas línguas e com as suas culturas originais”. [47]
Os ingleses também foram germinais, mas criaram uma civilização neo-britânica, através de um
gênero distinto de colonização. Preocuparam-se em reproduzir sua civilização nas novas terras que
ocuparam, como uma burguesia industrial, sem dar muita atenção aos habitantes que lá residiam antes da
sua chegada. Para eles, o importante era ser tolerante e ter consciência de que deveriam evitar a
miscigenação com os povos nativos e preservar a sua natural e distante “paisagem europeia”.
Os iberos, ao contrário, lançaram-se às aventuras marítimas com mais entusiasmo e violência,
buscando extrair riquezas naturais ou produzi-las através do trabalho escravo. Justificavam sua expansão
não apenas em termos mercantis, afirmando, principalmente, que tinham por missão expandir a religião
católica para os povos do além mar. Isto possibilitou o abuso comunicativo na recriação do novo mundo,
ao se mesclarem racialmente com os nativos, mesmo através de uma imposição de vontade opressiva. O
próprio Vaticano, na bula Inter Coetera, de 4 de maio de 1493, determinava que o Novo Mundo estava
sob o poder de mando da Espanha e Portugal, de modo que seus povos poderiam ser escravizados por
quem os subjugasse. Assim, a noção de poder não interativa de poder, como exercício da vontade
soberana dos Iberos, que lhes garantia total poder de mando, e a respectiva submissão dos povos nativos
eram formalmente reconhecidos pela Igreja. Aqui transcrevemos um trecho do documento normativo
imposto pelo Vaticano:
(....) Por nossa mera liberdade, e de ciência certa, e em razão da plenitude do poder Apostólico, todas
as ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas ou por descobrir, para o Ocidente e o Meio-
Dia, fazendo e construindo uma linha desde o pólo Ártico (…) quer sejam terras firmes e ilhas
encontradas e por encontrar em direção à Índia, ou em direção a qualquer outra parte, a qual a linha
diste de qualquer das ilhas que vulgarmente são chamadas dos Açores e Cabo Verde cem léguas para o
Ocidente e ao Meio Dia (....) A Vós e a vossos herdeiros e sucessores (reis de Castelã e Leão) pela
autoridade do Deus onipotente a nós concedida em S. Pedro, assim como o do vicariato de Jesus
Cristo, a qual exercemos na terra, para sempre, no teor dos presentes, vô-las doamos, concedemos e
entregamos com todos os seus domínios, cidades, fortalezas, lugares, vilas, direitos, jurisdição e todas
as pertenças. E a vós e aos sobreditos herdeiros e sucessores, vos fazemos, constituídos e deputamos
por senhores das mesmas, com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e jurisdição. (...) sujeitar a
vós, por favor da Divina Clemência, as terras firmes e ilhas sobreditas, e os moradores e habitantes
delas, e reduzi-los à fé Católica (...)[48]
Esta determinação eclesiástica foi uma espécie de marco na situação interativa social que estava
por se estabelecer na América do Sul, que constituiu as relações de forças que seriam a sua base e que
seriam determinantes no seu próprio desenvolvimento: uma distribuição de forças econômicas
extremamente desigual, na medida em que “justificou o direito do latifundiário à terra que lhe foi
outorgada, bem como o comando de todo o povo como uma mera força de trabalho, sem destino
próprio, cuja função era servir ao senhorio oriundo daquelas lutas”.
Os iberos trataram de se apossar das terras de uma forma exagerada, pois ainda que não pudessem
usá-las inteiramente, era importante obrigar os povos exóticos a trabalhar em terra alheia, para gerar
riquezas em benefício exclusivo de uma elite privilegiada. Os nativos não tinham nenhuma liberdade,
pois eram tratados como hereges que iriam ser catequizados e livrados da perdição eterna. Darcy
Ribeiro afirma: “nada mais natural do que pensar assim para um ibero que acabava de expulsar os
hereges sarracenos e judeus, que haviam dominado por séculos. Ainda com o fervor das cruzadas
gloriosas contra os mouros, eles se assanharam, aqui, contra o gentio americano”. [49]
O “natural” poder de mando absoluto do cristão ibero, ao longo dos séculos que se passaram, deu
ensejo a formação de uma classe dirigente exógena e indiferente ao seu povo, que vem exercendo sua
hegemonia de uma forma interminável e solidária somente com aqueles que a elas pertencem. De fato, a
nossa “elite dominante” nunca se constituiu numa “elite nativa”, sendo fruto direto de uma dominação
colonial portuguesa, que mantinha uma dependência direta com a metrópole, e que, curiosamente, surgiu a
partir do domínio estatal lusitano e só muito mais tarde veio a se constituir como uma elite nacional, que
de fato nuca deixou de se sentir “estrangeira” em relação aos menos favorecidos, não estabelecendo com
eles qualquer compromisso social. Afirma Darcy Ribeiro:
Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo destes cinco
séculos, do que essa classe dirigente exógena e infiel ao seu povo. No afã de
gastar gentes e matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com as florestas
mais portenhosas da terra. Desmontam morrarias incomensuráveis, na
busca de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos
milhões. Tudo, nos séculos, transformou-se incessantemente. Só ela, a
classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminável
hegemonia. Senhorios velhos se sucedem em senhorios novos, super-
homogêneos e solidários entre si, numa férrea união superparada e a tudo
predisposta para manter o povo gemendo e produzindo. Não o que querem e
precisam, mas o que lhes mandam produzir, na forma que impõem,
indiferentes a seu destino.
Neste sentido, inicialmente, o povo propriamente brasileiro só podia fazer parte dos “grupos
sociais dominados” que de fato eram resultado de um conglomerado díspar, composto por índios
trazidos de longe, que apenas podiam entender-se entre si; somados à gente desgarrada de suas
matrizes originais africanas, uns e outros reunidos contra a sua vontade, para se verem convertidos
em mera força de trabalho escravo a ser consumida no trabalho; gente cuja renovação mesma se fazia
mais pela importação de novos contingentes de escravos que por sua própria reprodução”.
De fato, a “ética do aventureiro”, entre nós desenvolvida, sendo própria dos nossos
colonizadores, que não tinham controle sobre os resultados das ações, atrapalhou a implantação de uma
“europeidade adaptada”. Ao contrário dos povos da América do Norte, que, graças ao desenvolvimento
da noção democrática de poder próxima do “agir conjunto”, conforma bem especifica Hannah Arendt,
conseguiram desenvolver as potencialidades da sociedade ocidental, como se fossem uma prolongação
natural dos padrões europeus e não como uma assimilação exógena imposta de cima para baixo. Em
oposição ao que ocorreu na América do Sul, a colonização norte-americana resultou da fundação de um
organismo político original que não precisou utilizar a violência para se impor, de tal forma que a
estruturação da Constituição não foi imposta pelo governo, na medida em que recaía nas cartas e
convenções já existentes e aceitas pelo povo. Conforme as palavras de Darcy Ribeiro:
Essas linhas de formação correspondem, no lado nórdico, à
formação de um povo livre, dono do seu destino, que engloba toda
a cidadania branca. No nosso Sul, o que se engendra é uma elite de
senhores de terra e de mandantes civis e militares, montados sobre
a massa de uma subumanidade oprimida, a que não se reconhece
nenhum direito. A evolução de uma e de outra dessas formações dá
lugar, nas mesmas linhas, de um lado, ao amadurecimento de uma
sociedade democrática, fundada nos direitos de seus cidadãos, que
acaba por englobar também os negros. Do lado oposto, uma
feitoria latifundiária, hostil ao seu povo condenado ao arbítrio, à
ignorância e à pobreza.[50]
O desenvolvimento do chamado “Brasil sertanejo” é, sem dúvida, um dos efeitos mais marcantes
desta assombrosa imposição de vontade ibérica, baseada no estabelecimento de privilégios econômicos
e sociais, que marca o surgimento e desenvolvimento do “povo brasileiro”.
O sertão não pode ser confundido com as terras frescas e férteis do massapé, com rica cobertura
florestal, onde foi possível cultivar cana-de-açúcar. Ao contrário, a cobertura vegetal do agreste é
extremamente pobre na maior parte de seu território, compondo uma paisagem de pastos naturais ralos e
secos, bem como, arbustos com ramos tortuosos. A vegetação da caatinga evidencia uma adaptação ao
clima extremamente seco, pois nela se desenvolvem as cactáceas, os espinhos e as xenófilas, aptas a
condensar a umidade das madrugadas frescas nas suas folhas fibrosas e as águas da estação chuvosa, em
seus tubérculos. [51]
No agreste, depois nas caatingas, a existência destes pastos naturais possibilitou o
desenvolvimento de uma economia pastoril, associada originalmente à produção açucareira como
fornecedora de carne, de couro e de bois de serviço. Com o crescimento de mercado interno e do
externo, voltado para a exportação do couro, ele pode se expandir ao longo dos séculos, fazendo com que
boa parte da população nacional ocupasse extensas áreas na região. Esta população, que passou a ser
denominada de “sertaneja”, sofreu as consequências de seu isolamento espacial, desenvolvendo traços
característicos originais em vários aspectos, mas principalmente na própria forma de ver o mundo. O
gado era trazido das ilhas de Cabo Verde pelos portugueses, sendo que os primeiros lotes se instalaram
no agreste pernambucano e na orla do recôncavo baiano, pois deveriam situar-se longe dos engenhos
para não causar danos aos canaviais. Os lotes foram se expandindo ao longo dos séculos, de modo que,
no fim do século XVI, os criadores baianos e pernambucanos já ocupavam os sertões do rio São
Francisco, até chegar às terras do Piauí e do Maranhão.
Todavia, é preciso ressaltar que a expansão do pastoreio dependia da posse do rebanho e do
domínio das terras de criação. O gado era comprado, mas as terras, que pertenciam nominalmente à
coroa portuguesa, eram concedidas, gratuitamente, na forma de sesmarias, àqueles que fossem dignos de
merecer o favor real. Assim, surgiram os maiores criadores de gado do país, que vieram a constituir os
maiores latifúndios do Brasil. Cada vez que o gado ocupava uma porção de terra nova, esta era
apropriada legalmente em sesmaria. Como os currais só podiam ter a sua sede perto dos poucos rios
permanentes, e também não muito distante dos barreiros naturais, fornecedores de sal para o gado, de
fato, estas sesmarias acabaram abarcando grandes porções de terras, individualmente, utilizando-se dos
vaqueiros para coordenar o movimento do gado.
Os vaqueiros tomavam conta do rebanho, periodicamente, separando uma rês para eles, como
pagamento, para cada três marcadas para o dono, de modo a ir juntando as peças do seu próprio rebanho,
que deviam levar para regiões ainda mais distantes no interior do próprio sertão, ainda não alcançadas
pelas sesmarias. As relações entre o criador e os vaqueiros eram hierarquizadas, baseadas, portanto, no
modelo de poder como imposição da vontade de um sobre outro, mas que se justificava, de forma
aproximada, através da chamada dominação tradicional patrimonialista, exposta por Max Weber. Afirma
Darcy Ribeiro: “o senhor, enquanto presente, se fazia compadre e padrinho, respeitado por seus
homens, mas também respeitador das qualidades funcionais destes, ainda que não de sua dignidade
pessoal. Entretanto, tal como ocorre com os povos pastoris, a própria atividade especializada
destacava o brio e a qualificação dos melhores vaqueiros na dura lida diária com o campo.
Ensejaram-se, assim, comparações de perícia e valor pessoal, fazendo-os mais altivos que o lavrador
ou o empregado serviçal. ” [52]
Todavia, a relação de poder estabelecida fazia com que o proprietário tivesse autoridade plena
sobre os bens e até sobre as vidas de seus servidores. Deste modo, mesmo a convivência próxima e até
mesmo o reconhecimento do valor de lealdade dos serviçais não deram ensejo a uma união entre os
segmentos, que permaneceram sob a égide de uma forte divisão hierárquica, que, muitas vezes, acumulou
arbitrariedades. No entanto, na expectativa de um dia tornarem-se criadores, muitos mestiços dos
vilarejos litorâneos, cansados da rigidez do trabalho nos engenhos de açúcar, dirigiram-se ao pastoreio,
aumentando a oferta de mão-de-obra, tornando desnecessária, portanto, a compra de escravos.
As atividades pastoris, nas condições climáticas dos sertões cobertos de pastos pobres e com
extensas áreas sujeitas às secas periódicas, foram responsáveis pela conformação não só da vida, mas a
própria da própria aparência do homem e do gado. Ambos reduziram a sua estatura, e tornaram-se
ossudos e extremamente magros. O gado e os homens foram se multiplicando e penetrando terra adentro
até ocuparem, ao fim de três séculos, quase todo o sertão interior. As terras mais pobres dos carrascais,
onde o gado não podia crescer, foram dedicadas à criação de bode, cujos couros encontravam amplo
mercado. Esses bodes multiplicaram-se bastante por todo o Nordeste. Crescendo junto ao gado,
transformam-se mais tarde na única carne ao alcance do vaqueiro. Segundo as próprias palavras de
Darcy Ribeiro:
A emigração para o sertão aumentou muito, de modo que os
currais se tornaram criatórios de gado, de bode, e de gente; os
bois para vender, os bodes para consumir, os homens para
emigrar. Contando com força de trabalho excedente, as fazendas
deixaram de pagar os vaqueiros em reses, estabelecendo sistemas
de salários em dinheiro, que, computando o rancho e a
alimentação, pouco saldo asseguravam ao trabalhador. Depois o
Nordeste pastoril começou a dedicar-se ao cultivo de um algodão
arbóreo, o moço, cujo caráter xerófilo lhe permitia sobreviver e
produzir, mesmo nas áreas mais secas do sertão, um casulo de
fibras longas com ampla aceitação no mercado mundial. [53]
O avanço da ocupação desigual no sertão foi incentivado, também, pelo cultivo do moço.
Segundo o autor:
Cada criador procurou cultivar, também, o moço, ocupando nessa tarefa as famílias de seus
vaqueiros, e depois gente que foi atraída para o sertão pelos novos cultivos. Como resultado, temos o
povoamento crescente dos sertões semiáridos. Os cultivadores de algodão recebiam uma quadra de
terra para cultivar o alimento que comeriam e outras para produzir colheitas de moço, de que
deveriam entregar metade para o proprietário. Em cada fazenda, além da casa de fibras do criador,
avarandada e provida de portas e janelas, e das rancharias singelas de seus vaqueiros, se
acrescentavam às palhoças miseráveis que abrigavam os lavradores de moço.
O sertão passa a ser densamente povoado em relação ao baixo nível de tecnologia, que seria
compatível com a exploração pastoril latifundiária. Logo, as lavouras de moço entraram em decadência,
tornando mais difícil as condições de provimento de subsistência. A presença destes excedentes humanos
revelou-se de forma mais dramática por ocasião das secas que assolaram periodicamente a região.
“Levas de flagelados passam a emergir do sertão esturricado pela seca e pelo sol causticante,
enchendo, primeiro, as estradas, depois as vilas e cidades sertanejas com a presença sombria da
miséria. Com o aumento da população, as zonas de pastoreio transformaram-se em criatórios de
gente, que ao logo dos anos serviram para abastecer as demais regiões do país com a mão de obra
barata. ” [54]
Assim, desde a segunda metade do século passado, as secas nordestinas transformaram-se num
problema nacional a exigir do governo medidas de socorro e de amparo. Todavia a relação entre o poder
federal e a população flagelada pela seca sempre foi também controlada através da “poderosa camada
senhorial dos coronéis, que controla a vida do sertão, monopolizando não só as terras e o gado, mas as
posições de mando e as oportunidades de trabalho. A ordem oligárquica, que monopolizara a terra pela
outorga oficial das sesmarias durante a época colonial, continua conduzindo, segundo seus interesses, as
relações com o poder público, conseguindo, por fim, colocar até mesmo as secas a seu serviço e fazer
delas um negócio. Todos os programas de socorro aos flagelados resultaram em iniciativas que
consolidaram o latifúndio pastoril, salvaguardando o gado bovino dos fazendeiros, mas mantendo o
sertanejo nas mesmas condições precárias, cada vez mais indefesos em face de uma exploração
econômica mais danosa do que as secas. Sob estas condições de domínio despótico, o sertanejo ficou
condenado a ser um eterno itinerante, criadores de nichos que devem fatalmente abandonar quando chega
o dono legítimo das terras que desbravam. Esta exclusão econômica e social, de fato, constituiu o arbítrio
social que coordenou as relações de força, que compuseram a base da situação comunicativa normativa
abusiva, presente na sociedade brasileira da época em que ocorreu a Guerra de Canudos.
Ademais, este isolamento das populações sertanejas e sua dispersão em pequenos núcleos
humanos fizeram com que os sertanejos conservassem muitos traços arcaicos, que se manifestam por sua
religiosidade fanática, por seu laconismo e rusticidade, por sua predisposição ao sacrifício e a violência.
Eles alimentam sentimentos, por vezes contraditórios, em relação ao mundo do domínio despótico em que
vivem: têm medo de perder a “proteção” do seu senhor e de serem excluídos do nicho em que vivem, mas
ao mesmo tempo, historicamente, buscaram através do fanatismo religioso e do cangaço, o abandono e a
superação radical desta mesma ordem. O cangaço (termo que define o aparato que ornamenta a
vestimenta do cangaceiro) surgiu como uma espécie de reação desconfirmadora à falta de justiça social
no sertão. Não aceitando viver sob o julgo do coronel, na qualidade de jagunço ou alugado, passou a
formar grupo próprio, vivendo sem lei nem rei, a tomar pelas armas e a extorquir poderosos.
Virgulino Ferreira, o Lampião, foi o mais famoso cangaceiro, que ingressou neste tipo cangaço de
vingança após sua família envolver-se num conflito de terras com Saturnino das Pedreiras, no estado de
Pernambuco. Relata-se que após inúmeros conflitos sua família deixou as terras, mas foi violentamente
perseguida pela polícia, que desferiu um tiro à queima roupa, no seu pai, que já estava desenganado e não
esboçou qualquer reação que justificasse a sua morte. Virgulino passa a agir como uma fera raivosa e
recebe o apelido de Lampião por causa da rapidez com que manuseava o rifle, fazendo um clarão,
parecendo um Lampião. Já Canudos foi um exemplo radical e trágico deste “misticismo militante” onde
os sertanejos, inspirados pela autoridade de Antônio Conselheiro, deixaram de lado sua resignação
tradicional para assumir uma combatividade extrema que ousou desafiar a ordem oligárquica
estabelecida. Com bem afirma Darcy Ribeiro: “em torno desse taumaturgo, que combinava à paixão de
profeta talentos de reformador social, concentra-se em Canudos, no alto sertão são-franciscano, uma
vasta população sertaneja incandescida pelo seu misticismo. Os fazendeiros vizinhos viram
imediatamente o caráter intrinsecamente subversivo daqueles rezadores. O que estava atrás daquele
surto de religiosidade bíblica era o abandono das fazendas pela mão de obra que as servia e que
resultaria, fatalmente, na divisão das terras se o mal não fosse erradicado”. [55]

O CONCEITO-IMAGEM DA ANIQUILAÇÃO DO SUJEITO MANUEL FEITA PELAS FORÇAS


OLIGÁRQUICAS DO SERTÃO
A primeira parte do filme Deus e o diabo na terra do sol retrata, de uma forma naturalista, através
da linguagem visual marcante, a descrição antropológica feita por Darcy Ribeiro, anteriormente
desenvolvida. Conceitos-imagens de grande impacto emocional nos fazem vivenciar o vazio, o
isolamento social do vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey), sua mãe e sua esposa Rosa (Ioná Magalhães),
que vivem num triste e depauperada cabana cedida pelo Coronel Moraes. O close da câmara na carcaça
do boi coberta de moscas representa, de forma imediata, em termos logopáticos, o clima de morte e
abandono que cerca os nossos personagens. A vida no sertão é áspera, o calor sufoca, o esforço físico do
trabalho repetido de preparação do alimento básico, socar a paçoca e ralar da mandioca, faz uma
analogia com a dureza rotineira da exclusão social e econômica do sertanejo sem perspectiva de
progresso e definição de um objetivo humano maior.
Rosa comunica um sentimento de desesperança diante da possibilidade de transformações,
baseado numa racionalidade cética e realista. Manuel, todavia, mostra, desde início, uma crença mística
na possibilidade do “milagre da libertação/salvação” prometido por Santo Sebastião, beato e líder
religioso popular de Monte Santo. Num tom intimista, comenta com Rosa seus planos de progresso dentro
dos limites da ordem instituída pelo coronelismo. Pretende ir até a feira para fazer a partilha do gado
com o Coronel, vender duas vacas, para finalmente comprar um pedaço de terra para plantar uma colheita
própria. Rosa responde com exaustão física e falta de esperança “acho que não adianta”. Manual
afirma, enquanto prepara o seu cigarro de palha: “não sei não, o tempo está ruim, mas pode vir um
milagre do céu”.
Na cena em que Manuel vai à feira para fazer a partilha do gado, vemos uma apresentação
documental e naturalista da população local que vive na região. O encontro com o Coronel Moraes vai
decepcionar os planos otimistas de Manuel e expor com toda crueza a realidade dejuridificante, ou seja,
a sobreposição do código da violência sobre o código do direito. Ao se colocar na condição de sujeito e
justificar, de forma humilde e submissa à autoridade do coronel, que trouxe apenas doze vacas por que
quatro morreram em virtude de terem sido mordidas por cobras, ele propõe a partilha das vacas como
forma de pagamento por seu trabalho de criação dos animais.
Para a sua surpresa e indignação, o Coronel responde: “não tem conta para acertar, pois as
vacas que morreram eram todas suas”. Manuel contra argumenta, com base em dados da realidade:
“Mas seu Moraes, as vacas tinham o ferro do senhor”, não podem ser logo as minhas, sou homem
pobre, foi azar, mas é verdade, as cobras morderam as vacas do senhor”. O Coronel reponde, com
arrogância cínica, ao identificar direito e força: “Já disse e está dito a lei tá comigo”. Imediatamente,
Manuel percebe a atitude abusiva do coronel, que é indiferente à lei do Estado e à lei da tradição, pois só
visa a proteção casuística de seus interesses econômicos privados. Percebe o abuso de poder sendo
praticado, em termos comunicativos, que o condena, de forma injusta e arbitrária, a ficar sem pagamento
efetivo pela criação do gado do coronel Moraes, apesar do trabalho ter sido cumprido. Não há mais
violência simbólica, mas exposição das relações de violência física concreta, que estão na base do
coronelismo.
Neste momento, ele testemunha a sua aniquilação como sujeito da relação de autoridade imposta,
pois, mesmo tendo a seletividade de sua ação controlada pelo coronel, confirmando a legalidade
imposta, e mesmo não sendo responsável pela morte das quatro vacas, não terá direito ao pagamento
previamente estipulado. O Coronel desconfirma a legalidade e reage de forma a tratar a confirmação
normativa de Manuel como se fosse uma rejeição ilícita. Se houve morte do gado já pertencente ao
Coronel, muda-se a regra de forma abusiva, para proteger os interesses do latifundiário em prejuízo total
do vaqueiro.
A contrarreação decepcionada de Manuel é desconfimadora da autoridade da lei casuística
invocada pelo Coronel, que não tem mais autoridade, liderança e reputação. Ele questiona a sua
legitimidade, sua justiça e de certa forma a sua validade quando afirma: “mas que lei é esta”?
Coronel responde em tom de ameaça: “quer discutir”!...Manuel responde: “só to querendo saber que lei
é esta que não protege o que e meu’’. O coronel retruca de forma assertiva: “Já disse e tá dito, você não
tem direito a vaca nenhuma”. Manuel mais uma vez aponta a arbitrariedade da “lei do coronel”,
afirmando: “mas seu Moraes, o senhor não pode tirar o que é meu.” O clímax do confronto que se
anuncia transparece quando o Coronel desafia Manuel ao dizer: “Tá me chamando de ladrão”! …
Manuel expõe com segurança que “é o próprio coronel que esta afirmando este fato”...e a passa a ser
açoitado pelo chicote do Coronel, como punição ao seu ato de rebeldia. Claramente, na comunicação
normativa abusiva, o controle da seletividade da ação de Manuel é substituído pela coação explícita. Isto
enfraquece a o exercício da violência simbólica e aceitação da meta-complementaridade da relação
autoridade/sujeito.
Em consequência, o sentimento de injustiça, de sentir-se aniquilado com sujeito, se amplia na
mente de Manuel e sua reação desconfirmadora explode através dos mesmos códigos de violência
defendidos pelo Coronel: De forma emotiva e alheia a qualquer código jurídico, ele esfaqueia
mortalmente o Coronel e foge para casa, de forma desesperada. É perseguido por jagunços que matam a
sua mãe de forma violenta. A situação existencial limite está caracterizada e a meta-complementaridade
normativa dos poderes oligárquicos esvaziada. Recusando aceitar a legitimidade da opressão político-
econômica habitual de “trabalhar duro para nada conquistar” em total desacordo com as regras legais,
ele não vê mais possibilidade de sobreviver na ordem oligárquica do coronelismo. Não há mais espaço
nem para figurar como o excluído, nesta relação. Ele está aniquilado como “sujeito” desta relação,
cumprindo ou não a legalidade, ele deverá ser punido como praticante a ilicitude.
Diante da cova de sua mãe, só resta a Manuel assumir integralmente a subversão, a reação
desconfirmadora da ordem coronelística, juntando-se ao grupo do beato Santo Sebastião, líder religioso
revolucionário da região de Monte Santo, desconfirmador da Igreja Católica oficial, para pedir
proteção. Sua visão mística conclui que a tragédia foi trazida “pela mão de Deus lhe chamando pelo
caminho da desgraça. ” Nesta parte do filme, veremos o esforço de Manuel para confirmar a cadeia
normativa informal imposta pelo beato.

MANUEL E ROSA ENCONTRAM SANTO SEBASTIÃO, O “DEUS” NA TERRA DO SOL. “O


SERTÃO VAI VIRAR MAR E O MAR VAI VIRAR SERTÃO”
A seguir, enquanto Manuel e Rosa sobem a enorme escadaria de pedra, uma citação clara da
escadaria de Odessa exibida em O Encouraçado Potenkin (Eisenstein) aparece a figura mística do beato
Santo Sebastião (que também aparece na citada obra de Eisenstein) no alto da Santa Cruz fazendo sua
pregação aos fiéis, que não são atores profissionais, mas marcantes figurantes do próprio povo
sertanejo. Os conceitos-imagem dos rostos humanos em close e a sensível música de Vila Lobos causam
impacto humano e valem por muitas palavras. Glauber ousou, literalmente, mostrar a cara do Brasil, na
sua face mais popular e sofrida, com propósitos políticos de humanização claros e não numa perspectiva
que podemos hoje chamar de puramente “espetacular”.
O discurso do beato reproduz uma profecia de transformação da dura realidade do sertanejo. Ele
afirma: “Do outro lado de lá, deste Monte Santo, existe uma terra, onde tudo é verde, os cavalos
comendo as flores e os animais bebendo leite nas águas do rio. Os homens comem o pão feito de pedra
e a poeira da terra vira farinha. Tem água e comida, e a fartura do céu. Todo dia que o sol nasce
aparece Jesus Cristo e Virgem Maria, São Jorge e seu Santo Sebastião. ” O caráter desconfirmador da
ordem oligárquica coronelística abusiva aparece, claramente, quando ele reafirma a antiga pregação
libertadora do Conselheiro, como tentativa clara de exercício de uma violência simbólica discursiva que
fortaleça a sua liderança e sua reputação perante o povo:
É preciso mostrar aos donos da terra, o poder e a força do Santo. Eles
tiraram Dom Pedro do trono e agora querem matar quem ama o imperador.
Mas quem quiser alcançar a salvação fica aqui comigo, até o dia em que
aparecer o sol, o sinal de Deus. O sertão vai virar mar e o mar vai virar
sertão. O homem não pode se escravo do homem, o homem tem de deixar as
terra que não é dele e buscar as terras verdes do céu. Quem é pobre vai
ficar rico do lado de Deus é quem e rico vai ficar pobre nas profunda do
inferno. E nois não vai ficar sozinho, porque meu irmão Jesus Cristo
mandou um anjo guerreiro com sua lança pra cortar a cabeça dos inimigo.
Recusando os apelos de Rosa, para desistir do feito, Manuel a empurra, deixando-a no meio da
escadaria e se entrega à liderança e a reputação normativa informal redentora do beato, afirmando com
fé: “To condenado, mas tenho coragem, entrego minha força ao meu Santo para libertar o meu povo”.
Num ato de entrega total, ele beija os pés do Santo.
A cena seguinte propõe uma surpreendente mudança radical no cenário, expondo, através de
conceitos-imagem de grande impacto emotivo, a visão crítica de Glauber sobre a liderança do beato e
sua real incapacidade de libertação dos padrões de dominação abusiva da época, já que a violência real,
e não apenas simbólica, está na base de sua comunicação normativa informal. Uma violenta cena de
assalto a uma vila, a tortura e morte dos infiéis praticada, mostra que a intenção de “cortar a cabeça do
inimigo” não era apenas uma figura de linguagem retórica, pois era praticada ao pé –da- letra, por
Sebastião e seus seguidores. Depois de terminada a ação caótica e irracional, os combatentes saem em
“procissão”, disparando as armas para alto enquanto cantam a reza “Ave Maria”. Manuel está em êxtase,
pois o poder de matar inocentes de forma arbitraria deixa de ser uma prerrogativa da elite latifundiária e
torna-se algo que está ao seu alcance. De volta ao alto da Santa Cruz, muitos sobem a escadaria de
joelhos, de forma penitente e submissa. Rosa observa, com estranheza, a reza dos fiéis na igreja informal
de Santo Sebastião e depois reclama que Manuel a esqueceu. “Você seguiu Sebastião e foi me
deixando”, diz ela. Manuel afirma que não se lembra de mais nada, nem da noite, nem do dia, ele tem
de ficar sozinho se libertando de mulher e filho. ”
Sebastião prega a profecia para Manuel, como exercício de violência simbólica que tenta
controlar a sua seletividade, em termos de obediência: “Vamos levar um ano em Monte Santo,
esperando uma chuva de ouro, depois nos vamo pro uma ilha no meio do mar e vamo deixar o fogo do
inferno queimar de uma vez toda essa republica da desgraça. A ilha não existe, a gente trás ela dentro
da alma. As ilha não existe, porque andar sofrendo até o fim da vida? Você foi enviado para ser a
minha força no sofrimento e na guerra, Você tem de lutar por mim”. Derruba Manuel, comprime o
cajado contra o seu corpo e o esbofeteia com força. Rosa, em desespero, fala a Manuel: “Ele disse que a
ilha não existe, que nós deveríamos andar no sofrimento! ” Manuel retruca: “Existe sim, mentira, você
e este povo não presta, não vale nada! Mas eu vou ficar vivo e vou ser rei! Vou criar o meu gado num
campo de capim verde. ” Rosa contesta, com veemência: “Isto é sonho Manuel, a terra toda é seca e
ruim. Vamo embora, trabalhar para ganhar a vida da gente,antes que venham as tropas do governo e
faca como fizera em Canudos....matar homem, mulher, degola os meninos”. Manuel contesta a fala de
Rosa: “se vir à guerra, luto contra mil soldados com a minha lança de São Jorge. Se o povo do Santo
morrer, vão recriar na ilha. O destino maior do que a morte. ” Sebastião, ao perceber o perigo da
visão crítica de Rosa, afasta Manuel que está totalmente submisso a sua autoridade.
Neste momento, surge o personagem mítico Antonio das Mortes, matador profissional de
cangaceiros, que recebe dinheiro dos coronéis para o feito. Neste ponto, surge a visão crítica de Glauber,
em torno da situação abusiva e dejuridificante que conduz a situação política brasileira. Dentro da Igreja,
um padre e um coronel, percebendo a ameaça das atitudes subversivas e deconfirmadoras de Sebastião,
em relação à institucionalização da autoridade da igreja católica oficial e da própria instituição do
coronelismo, pretendem contratar os “serviços profissionais” de Antônio das Mortes para assassinar
Sebastião. Oferecem a quantia inicial de 300 contos de reis. Aqui reproduzimos o polêmico e revelador
diálogo travado entre eles. A proposta é claramente combater a rebeldia do beatismo através de
mecanismos normativos abusivos. Não através dos mecanismos jurídicos disponíveis, desconfirmando a
sua desconfirmação, transformando-a em simples rejeição ilícita, mas através de atitudes violentas e
igualmente desconfirmadoras do direito positivo brasileiro, que deveriam confirmar.
Padre: “Depois que ele apareceu, na paróquia não entrou mais nenhum centavo de batismo e de
casamento. ”
Coronel: “Sebastião prejudica a Igreja e o governo nunca que se interessa. Eu sempre disse que aqui
só existem duas leis, a lei do governo e a lei da bala. Eu nunca resolvi a eleição com voto. ”
Padre: “Se os fortes não se unirem, eles acabam com tudo. ”
Antonio das Mortes responde, com um tom de voz profundo e consciente: “Matar cangaceiro
é arriscado, mas é fácil. Todo mundo ainda tá lembrado de Canudos. Veio as tropa do governo pra
brigar com os beatos do Conselheiro, se pensava que era coisa pequena e deu na guerra que deu.

Padre: “Preciso impedir que Sebastião se torne um novo Conselheiro. ”
Antonio das Mortes. “Eu não tenho medo de guerra, vivo nela desde em que nasci. O senhor
bem sabe que é perigoso bulir com as coisas de Deus. Padre: Sebastião é um inimigo da Igreja. O
povo é cristão e segue ele. Muita gente já me contou que acontece milagre no Monte Santo. Ele hesita
em aceitar a proposta afirmando: “O padre pode achar que Sebastião tem parte com o Diabo, mas eu
acho que ele tem parte com Deus também. ”
Todavia, uma conversa em particular com o Padre, que dobra a oferta em 600 contos, o
convence de forma definitiva.
Padre: “Depois você vai embora daqui compra uma fazenda e vive em paz o resto da vida. É
esta sua penitência Antonio. Somente depois que você cometer um crime maior, pode ser perdoado
pelos crimes que cometeu.
Antonio das Mortes. “Seiscentos contos...diz para os coronel que eles pode ficar em paz.
Sebastião acabou”. Uma música sacra e tocada com veemência.
Voltando ao cenário da Santa Cruz, testemunhamos que Manuel já está completamente dominado
pela violência simbólica de Sebastião, que controla a sua seletividade. Ele afirma: “Daqui eu vejo o
mar, depois a terra da salvação”. Com o terço no pescoço e expressão de profundo sofrimento, ele parte
para o seu martírio de fé definitivo. Esta é uma das cenas mais marcantes do filme, do ponto de vista
emotivo, que é toda comunicada através das imagens autênticas, gravadas em um longo plano seqüência,
sem utilizar uma palavra sequer. Em penitência, Sebastião acompanha Manuel no seu penoso martírio
físico, subir de joelhos a longa escadaria, carregando uma enorme pedra na cabeça. Ele a derruba, várias
vezes, mas não desiste. Este costume religioso realmente existiu na região. Rosa chora com falta de
esperança ao ver o fanatismo do marido e do povo rezando ao seu redor. Sebastião percebe o perigo da
visão lúcida e crítica de Rosa e persuade Manuel, já em completo estado de submissão e alienação, de
que ela está possuída pelo demônio. Acrescenta que o único meio de salvá-la seria trazê-la até à Igreja
acompanhada de uma criança bem jovem e inocente. Assim, Manuel esbofeteia Rosa e grita em
desespero completo que “todos terão oportunidade de encontrar a ilha somente se forem lavadas as
almas dos pecadores com sangue dos inocentes”.
Manuel confirma às ordens de Sebastião, ignorando os protestos de Rosa. No interior da Igreja, a
dramaticidade da violência atinge seu ápice. Manuel segura o bebê com as suas mãos para que Sebastião
penetre a sua faca. A seguir, ele utiliza o mesmo punhal para fazer o sinal da cruz na testa de Rosa, com o
sangue da criança. Manuel fica atônito ao ver o bebê morto em seus braços: Após sussurrar a frase “não
posso vingar a morte de Jesus Cristo com sangue dos inocentes”, ele parece tomar a consciência
trágica de que seu Deus salvador é um assassino. Grita de forma dolorida, quando parece perceber que
não está de fato se libertando, nem servindo a Deus, mas reproduzindo as situações abusivas e violentas
do passado de forma invertida, ou seja, na condição de algoz e não mais de vítima. Sebastião se assusta
com o grito, e derruba a faca.
Rosa, que está caída no chão, aproveita a oportunidade, pega a faca e, num ato desconfirmador
violento, desfecha dois golpes mortais em Sebastião, vai até a porta e assiste a violenta matança do povo
feita por Antônio das Mortes. Tiros ecoam por toda parte. Ao entrar na Igreja, Antonio das Mortes
resolve poupar as vidas de Manuel e Rosa, para que possam contar a estória. Descendo a escadaria, ele
encontra o cego Júlio, única testemunha da morte dos beatos que, segundo ele próprio, “morreram felizes
porque estavam rezando”. Inicia-se a terceira e mais mítica parte do filme. Manuel e Rosa caminham
pelo sertão, na companhia do cego Julio até o destino promover o encontro com Corisco, o único
remanescente, vivo, do grupo desconfirmador de Lampião. Após vingar a morte de seu líder, segue com
sua esposa Dadá e mais três cabras, numa desesperada tentativa de resgatar a identidade do cangaço.
MANUEL E ROSA ENCONTRAM CORISCO, O “DIABO” DE LAMPIÃO QUE HABITAVA A
TERRA DO SOL. “VAMOS QUEBRAR TUDO PARA QUE O SERTÃO VIRE MAR E O MAR VIRE
SERTÃO”
Corisco, aquele que andava sempre rodando, (Othon Bastos) é bastante complexo, pois é um
personagem épico que incorpora o papel de ser o último cangaceiro, ex-seguidor de Lampião, que é
violento, mas que ainda guarda qualidades místicas, na sua devoção ao Padre Cícero, a ponto de se
confundir com o próprio beato. Curiosamente, Othon Bastos emprestou sua voz a ambos os personagens.
Mas ele é, ao mesmo tempo, uma figura política, pois ele também fala o que Lampião falaria, tendo a
capacidade crítica de ver a realidade política que não pode ser alcançada pelo simplório vaqueiro
Manuel.
Nesta terceira parte, o filme atinge um tom bem intimista e teatral, bastante diferente do realismo
inicial. A lucidez e objetividade iniciais vão se diluindo com a evolução dialética da dramaticidade da
história, fazendo com que Manuel e Rosa desçam, de forma paradoxal, aos infernos de seu drama de
opressão, na medida em que buscam de forma intensa a liberdade. Nas primeiras cenas, Corisco,
apresenta a sua liderança informal anarquista de cangaceiro, também desconfirmadora da ordem social
coronelística abusiva. “Tô cumprindo a minha promessa padrinho Cícero, não deixo pobre morrer de
fome! ” Grita, girando o seu corpo, “Lampião está vivo”! Ao conversar com Dadá, acrescenta:
Virgulino acabou na carne, mas no espírito está vivo. O espírito
está no meu corpo e agora juntou os dois, o cangaceiro de duas
cabeças, uma por fora, outra por dentro. Uma matando e a outra
pensando. Agora, eu quero ver é este homem de duas cabeças não
pode consertar este sertão. E o gigante da maldade comendo o
povo para engordar o governo da República. Mas São Jorge me
emprestou a lança dele para matar gigante da maldade. Ta aqui o
meu fuzil pra não deixar pobre morrer de fome.
Manuel agarra-se ao pé de Corisco, em prantos, em busca de nova proteção que venha a reforçar
a sua alienação política, que, neste ponto, chegará ao limite. Ao saber da morte de Sebastião e seu beatos
ele afirma: “Governo de uma peste, mataram o beato e mataram Lampião. Rosa e Dada se entreolham
em reconhecimento mútuo. ” Rosa acaricia a face de Dadá.
Numa intrigante cena, que parece revelar, em termos de conceito-imagem, o inconsciente de
Corisco, ele lembra e reproduz o seu último diálogo com Lampião, pouco antes da sua morte, dividindo
sua personalidade em duas metades, como se de fato eles fizessem parte de uma mesma consciência. A
cena é teatral e a criativa pluriperspectiva apresentada, através do mesmo personagem, é influenciada
pelo método de interpretação de Brecht, bem conhecido pelo ator Othon Bastos. Ele fala diretamente com
o espectador do filme para que este tome consciência crítica de sua representação teatral e desenvolva
uma reflexão crítica:
Lampião: “Tem macaco por perto. ”
Corisco: Tava esperando o final, sonhei com o fim, vamos morrer hoje.
Lampião: Morrer como? Tá doido?
Corisco: Eu vi o fuzil do Diabo dar dois tiros, um em cada olho, no teu Virgulino.
Lampião: Bota o teu azar para o lado, quem e que vai acertar no meu olho? Tô fechado com uma
chave de padrinho Cícero.
Corisco: Mas foi um sinal, vai ser na hora do sol nascer.
Lampião: Aqui na toca, só se foi você, se você me traiu eu te mato.
Corisco: Eu não, eles lá, os macacos e o Diabo. Eu vou me embora que a hora não e minha. E tua!
Dada, cabras vamo embora!
Lampião: Maria, Arvoreto, Gavião, todo mundo no papo amarelo. (Tiros ecoam)
Corisco relata a seu ato de rebeldia trágico e solitário: “Daí eu fui na fazenda do sujeito que traiu
Virgulino, e cortei onze cabeças a facão, depois meti tudo num saco e mandei de presente para o
delegado, com um bilhete escrito a sangue. Era o meu troco, para mostrar que eu estava na guerra,
para vingar Lampião. Mas a cabroeira deu para trás, e eu fiquei sozinho, com estes dois cabras para
enfrentar mais de mil macacos armados de matadeira.”
Manuel passa a confirmar a autoridade informal de Corisco como uma espécie de novo líder
protetor, com poder de reputação e faz um pedido: “Capitão Corisco, eu queria entrar para o cangaço.
Podia ser um cabra bom na ajuda desta guerra. Já fui jagunço e já fiz muito assalto para dar de
comer aos beatos. Manuel, é paradoxalmente, batizado, por Corisco, com o nome Sataná! Sua próxima
missão é matar o coronel Calazans, “ele é gente do governo”!
Uma cena decisiva aparece a seguir. A casa do Coronel Calazans é invadida durante uma festa de
casamento. Todo tipo de violência selvagem é praticada, com ódio puro. A noiva é estuprada por
Corisco. Manuel come e bebe e se agarra a um crucifixo, como se estivesse hipnotizado. Rosa veste o
véu da noiva em um estado de sublimação. Corisco manda Manuel “cortar a macheza do noivo corno”,
e ele obedece, de forma submissa. Jóias são roubadas, o piano é destruído. De volta à caatinga, o noivo é
escalpelado vivo por Corisco, numa cena que resultou de atos de improvisação dos atores. Manuel
mostra-se muito perturbado ao presenciar a barbárie.
Dadá faz um pedido a Corisco: “Larga a guerra e vamos embora Cristino, é agora ou nunca.
Corisco responde: “Embora para onde? É preciso ficar para acabar com o que é ruim, vingando meu
sofrimento, fazendo justiça. ”
Manuel tem uma súbita percepção da ilusão de libertação e da violência simbólica discursiva
defendida por Corisco e fala para Rosa: “Vô acabar com ele. ” Rosa o derruba e bate nele. Corisco
interrompe a reação violenta de Rosa, põe a espada no pescoço de Manuel, que, covardemente, pede que
o cangaceiro lhe mate. O diálogo final é muito forte, pois mostra a consciência adquirida por Manuel em
torno da perpetuação das comunicações normativas abusivas nas atitudes de Corisco.
Corisco: “O que você estava procurando quando deixou sua terra e foi para o Monte
Santo?”
Manuel: “Justiça, Sebastião prometia....”
Corisco: “E eu não era a Justiça?”
Manuel: “Eu pensei capitão, mas não se pode fazer justiça, no derrame de sangue!”
Corisco assume a sua tragédia, que parece aglutinar toda a alienação do sertanejo, reconhecendo
que a reprodução de abusos sofridos no passado não liberta, nem produz um senso de justiça
genuinamente humano. Ao mesmo tempo, admite a falência do seu trabalho no cangaço com a morte do
seu grande líder Lampião: Sua fala lembra um sofrido, mas consciente, solilóquio shakespeariano:
Quando eu era menino, fui chutado como um cachorro pelo pai
deste cabra que esta por ai. Esperei vinte anos, esfolei para aliviar
a minha dor, não adianta mais nada, meu destino está tão sujo que
nem todo sangue do mundo pode lavar. Tu é como os anjo, se eu
morrer, vai embora com a tua mulher. Por onde passar pode dizer,
que Corisco estava mais morto do que vivo. Virgulino morreu de
uma vez, Corisco morreu com ele, pois o mesmo precisava ficar de
pé, lutando até o fim, desarrumando o arrumado até que o sertão
vire mar e o mar vire sertão.
O potencial dramático e emocional da cena é bastante intenso. O trabalho de câmera é exemplar,
pois propicia um contato quase epidérmico do espectador com o drama do personagem.
Em seguida, aparece Antônio das Mortes, que conversa com o cego nas ruínas de Canudos,
afirmando que ele se vê como um condenado que tem que cumprir o seu destino sem pena, nem
pensamento. Ele parece assumir, de forma realista e lúcida, existencialmente, o código da violência que
se sobrepõe ao jurídico, ao religioso e ao moral, nas relações sociais brasileiras. Trata-se do
personagem mais forte e consciente de toda a trama, pois vislumbra que uma transformação social mais
profunda no sertão tem de superar os modelos revolucionários tradicionais do beatismo e do cangaço, ou
seja, tem de desenvolver-se sem a presença de Deus e do Diabo. Neste sentido, ao eliminar estas figuras,
ele vai reproduzir mais uma vez o código da violência e pretende morrer com ele, já que dele também faz
parte.
Cego: “É matando Antonio, que você ajuda os seus irmãos?”
Antonio das Mortes: “Eu mato Corisco, perseguindo até o fim. Eu não matei os beatos
pelo dinheiro, matei porque não posso viver descansado com esta miséria.”
Cego grita: “A culpa não é do povo Antonio, a culpa não é do povo.”
Antonio das Mortes: “Um dia vai ter uma guerra maior neste sertão, uma guerra grande
sem a presença de Deus e do Diabo. E pra que essa guerra comece logo, eu que já matei Sebastião vou
matar Corisco e depois morrer de vez, porque nos somos tudo a mesma coisa.”
O cego vai avisar Corisco que ele está sentenciado de morte por Antonio. Dadá sugere que
partam imediatamente, mas Corisco assume o seu destino trágico afirmando: “Aquela paz a gente só
encontra na morte, cercado de anjo. Meu padinho Padre Cícero fechou o meu corpo, me espera,
Antônio das Morte. Vou tomar com ele de homem para homem, de Deus para Diabo. É o capitão
Corisco enfrentando o dragão da riqueza. Se eu morrer nasce outro, quem nunca pode morrer é São
Jorge, o Santo do povo. Eu fico sozinho para enfrentar Antonio das Mortes”. Ao som da belíssima
Bachiana n. 5, Rosa tem uma aproximação amorosa com Corisco. Subentende-se ela fica emocionada
com a coragem do cangaceiro em assumir o seu destino trágico e sua rebeldia total. Rosa matou o Deus
Sebastião, mas amou o Diabo Corisco. Quando corisco pergunta para Satanás se ele vai ou fica, ele
responde que, pela primeira vez, vai seguir a decisão de Rosa e que, caso consigam escapar com vida,
terão um filho para unir mais a vida deles. A resposta de Rosa é positiva e eles seguem com Corisco e
Dadá.
Finalmente, ocorre o encontro entre os quatro com Antonio das Mortes, que pede a Corisco que
ele se renda. Tiros atingem Dadá e Corisco. Reafirmando o seu caráter revolucionário, de não-
submissão, Corisco não se rende e gira o seu corpo em sinal de protesto desconfirmador, antes de cair
morto no chão. Antonio das Mortes corta a sua cabeça.
Na última cena, Rosa e Manuel correm com todas as suas forças para longe. Trata-se de uma cena
alegórica, pois parece representar a final e definitiva tentativa de escapar desta condição cultural da
violência, da comunicação normativa abusiva e da opressão reproduzida no beatismo e no cangaço.
Numa situação de improviso, Rosa cai no meio do caminho, mas Manuel continua a correr com todas as
suas forças. O narrador musical repete a profecia “o sertão mar virar mar”, mas alerta que a lição final
apreendida na fábula é a de que a terra é do homem, não é de Deus e nem do Diabo. A imagem do mar
aberto invade a tela, não mais como alienação mística, mas como uma representação logopatica da
abertura de um possível novo estado de libertação desconfirmadora para o povo sertanejo, desde que
este supere a dominação coronelística, os abusos de poder praticados pelo Estado, bem reproduzidos nas
figuras de Deus (beatismo) e do Diabo (cangaço).

CONSIDERAÇÕES FINAIS: GLAUBER ENFRENTA A FACE OBSCURA E TRÁGICA DE


NOSSO BRASIL INFORMAL
Pelo exposto, ficou clara a importância antropológico-filosófica do filme, para o entendimento de
questões básicas que nortearam a formação do povo brasileiro. De certa forma, elas continuam a afetar a
vida social brasileira como um todo, nos dias atuais e explicam a baixa imperatividade das leis no país,
do ponto de vista da sociedade e do próprio governo. As relações de poder, entendidas em seu sentido
primitivo de imposição da vontade violenta de um sobre o outro, criaram um padrão específico de
interação social no Brasil sertanejo. Glauber foi extremamente brilhante e corajoso ao por o dedo na
ferida das relações abusivas de poder que compõem a base de formação da nossa sociedade sem cair em
simplificações populistas e maniqueístas. O desenvolvimento do filme, como vimos, é bastante didático e
subentende várias questões filosófico-jurídicas primordiais. Seu conceito–imagem central mostra que o
chamado “Brasil informal”, indiferente aos padrões jurídicos e políticos oficiais, é institucionalizado
tanto pelas elites dominantes, ou seja, pelos coronéis, político e padres católicos, como pelos dominados
rebeldes, representados pelos beatos e cangaceiros.
A primeira parte explica como uma situação comunicativa normativa informal e abusiva, que
aniquila Manuel como sujeito, faça o que fizer, mesmo que siga as regras impostas pelas elites, ele será
sempre considerado culpado, o encaminhará para a atitude desconfirmadora desta realidade
dejuridificante. Mas, na segunda parte, o filme mostra a sua complexidade dramática, já que Manuel não
consegue levar a cabo seu ato de rebeldia e libertação sem, paradoxalmente, buscar a manutenção de um
padrão de interação social a que está acostumado, ou seja, a de reverenciar uma autoridade superior, na
condição de sujeito obediente. Deste modo, unindo-se de forma mística e totalmente submissa ao Beato
Sebastião “ele espera submeter-se para libertar-se da opressão”. É evidente que Sebastião é um líder
rebelde que desconfirma as instituições oficiais do Estado e da Igreja. Todavia, ao normatizar as
relações entre os seus fiéis e institucionalizar-se como líder informal, impondo uma nova cadeia
normativa, ele não hesita em reproduzir os padrões de violência simbólica e também física dos modelos
oficiais que contesta. A violência simbólica presente no discurso persuasivo de Sebastião sobre o povo
sofrido é muito forte. Na cena da penitência de Manuel, onde ele sobe a escadaria com a enorme pedra
em sua cabeça, vemos, em termos logopaticos, a transformação desta violência simbólica em violência
física e a exposição de sua irracionalidade básica. Rosa representa a manutenção da consciência crítica
deste processo de dominação e a situação dramática limite do sacrifício do bebê a faz tomar uma atitude
prática decisiva, matar o beato, para libertar Manuel da sua liderança carismática abusiva.
Na terceira parte, o encontro com o cangaceiro e a rápida submissão de Manuel evidencia uma
nova reprodução da manutenção destas relações de poder abusivas. Neste ponto, a irracionalidade do
líder cangaceiro anarquista, ex-seguidor fiel de Lampião é ainda mais acentuada e intimista. O
isolamento do grupo que se forma, com a chegada de Manuel e Rosa, em relação ao mundo exterior é
perturbador. Corisco também é um contestador que desconfirma a ordem coronelística abusiva, mas,
paradoxalmente, acredita numa concepção vertical de justiça, identificada com a vingança irracional,
desenvolvida através do uso ostensivo e sem limites da forca física, que também acaba por reproduzir
padrões de interação social abusivos e semelhantes àqueles praticados pelas elites oligárquicas. A cena
de invasão do casamento, que parece um ritual festivo macabro, exibe todo o irracionalismo bárbaro,
uma espécie de desintegração racional, que toma conta do grupo, na sua sede de assumir a condição de
opressores para se livrar da condição de oprimidos. Mesmo consciente de que sua morte é inevitável,
Corisco assume o seu papel vingativo até as últimas consequências, parecendo enfrentar a morte com
mais coragem até do que Lampião. Com a final morte de Corisco, através das balas de Antônio das
Mortes, Manuel e Rosa têm de escapar outra ordem, fora dos padrões reprodutores de abusos de poder.
O personagem de Antônio das Mortes é o que apresenta maior consciência racional. É um
matador profissional, que recebe dinheiro dos poderes oligárquicos pelos seus serviços prestados.
Todavia, ainda que esteja inserido no mesmo contexto de violência informal, tem consciência crítica de
que a transformação social necessária deve destruir estes falsos modelos revolucionários, incluindo a sua
própria figura.
Uma emoção filosófica secundária, nos termos propostos por Hugo Munsterberg, emana do filme
como um todo. Tanto a figura do Beato Sebastião, como a do cangaceiro Corisco, na sua condição de
líderes rebeldes épicos, lutam contra a opressão, mas acabam por reproduzi-la, num outro nível.
Guardam, a nosso ver, relação com as polêmicas reflexões de Elias Canetti desenvolvidas em seu
instigante livro Massa e Poder. Ao estudar as relações existentes entre poder e ordem, Canetti aponta
para o fato de a ordem ter uma origem biológica, pois, na natureza, a forma mais primitiva de ordem é
dada como uma espécie de sentença de morte proferida por um animal mais forte (predador) a um mais
fraco (presa). A ordem mais antiga apareceu antes do próprio homem, portanto. Nos sistemas de ordens
estruturados pelos homens, existe um processo de domesticação, pois ela não aparece como uma sentença
de morte, mas como um elemento necessário na composição da convivência, social, política e familiar do
homem.
Todavia, segundo Canetti, a relação com esta concepção primitiva de poder, ou seja, com a
ameaça de morte permanece oculta. Ainda que produza o seu efeito esperado, ainda que gere obediência,
ela deixa marcas profundas em cada um de nós, na medida em que passa a ser um veículo de imposição
de relações de poder, que deixa um “aguilhão psicológico”, uma marca de rancor sobre aquele que
cumpriu a ordem. Normalmente, estes “aguilhões” não são percebidos como tal, fazendo com que as
relações humanas mantenham uma aparente tranquilidade. O mais curioso e relevante para a nossa
reflexão é o seguinte: se o ser humano conseguir dar a outro indivíduo uma ordem semelhante a aquela
que ele próprio cumpriu anteriormente, ele consegue livrar-se do aguilhão.
Assim, a reconstrução destas situações primordiais, de maneira inversa, constitui uma das fontes
humanas de energia psíquica, na medida em que ela possibilita aos homens livrar-se das ordens
recebidas no passado. O problema é que a libertação do aguilhão de um, implica na aquisição de um
novo aguilhão por parte do outro. O dominado de hoje, será o dominador de amanhã, de modo que as
relações de poder tendem a se perpetuar e se reproduzir ao longo do tempo. Neste sentido, é fácil
perceber a pertinência destas reflexões para o entendimento do comportamento dos personagens. Tanto
Sebastião, como Corisco, conseguem a libertação de seus aguilhões através da inversão de papéis, ou
seja, assumindo a condição de algozes e propagadores de um modelo de retribuição vertical de justiça. A
pergunta que fica sem resposta refere-se à possibilidade de romper este círculo vicioso da opressão, com
transformação genuína. De certa forma, esta especulação está presente no filme de Glauber, pois a
dramática trajetória de Manuel, em busca da sua liberdade, passa pela dolorida experiência histórica de
vivenciar a necessidade desenvolver uma identidade política própria. Uma identidade calcada na
aceitação sua condição de homem comum independente, fora da submissão a líderes informais
reprodutores dos padrões irracionais, abusivos e injustos dos modelos épicos do beatismo e do cangaço,
que funcionam apenas como mantenedores da mesma violência opressiva, que buscam combater.
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XAVIER, Ismail. A Experiência do cinema: antologia/Ismail Xavier organizador. Rio de Janeiro:
Edições Graal: Embrafilme, 2008.
A IRREDUTIBILIDADE DA EXISTÊNCIA AO CONCEITO: UM LIMITE ENTRE
TEMPORALIDADE E LÓGICA, SUBJETIVIDADE E OBJETIVIDADE, PENSAMENTO E
REALIDADE
Fernando Barbin[*]
Tem filmes que começam e acabam. Este filme não termina
nunca dentro da gente.[56]

INTRODUÇÃO
ste ensaio, pretendemos elaborar uma reflexão sobre a relação entre o homem e o direito a partir do
E filme Limite, de Mário Peixoto[57]. Diante disso, pretendemos: (1) indicar, do ponto de vista formal,
um conceito de “relação” que possa conter o “homem” e o “direito” como termos que se relacionam
entre si; (2) indicar que cada um desses termos constitui perspectivas diferentes através das quais esta
relação pode ser pensada; (3) formalizar, a partir de tais perspectivas, um argumento segundo o qual, na
relação ideal entre o homem e o direito, o homem deve ser objeto para si mesmo através do direito,
sendo a esfera da liberdade humana a determinação pela qual isto pode acontecer; (4) mostrar, entretanto,
que a liberdade apreendida e cristalizada na dicotomia categorial do ser e do dever jurídicos é
diametralmente oposta à liberdade tipicamente humana, e que, nesse sentido, a primeira pertence à
imanência conceitual da lógica e a segunda, à transcendência temporal da existência; (5) demonstrar,
assim, que há uma oponibilidade irredutível entre instâncias como sujeito e objeto, existência e
conceito, temporalidade e lógica, pensamento e realidade, e que qualquer tentativa de passagem
completa de uma destas determinações para o seu par correlato representa uma contradição e uma
impossibilidade, na medida em que pressupõe aquilo que Aristóteles designou por μετάβασις εἰς ἄλλο
γένος [passagem para um outro gênero]; (6) analisar o filme Limite como um substrato para revelar
demonstrativamente toda a exposição precedente, particularmente no que se refere à distinção de gêneros
previamente apontada. Assim, faremos também (a) uma análise objetiva (conceitual) da narrativa de
Limite, à luz da pragmática jurídica; e (b) uma análise subjetiva (existencial) da mesma narrativa, à luz
da temporalidade.
De um modo geral, a fundamentação deste ensaio reside em nossa leitura do projeto filosófico
kierkegaardiano globalmente considerado, e, de modo mais específico, o seu principal ponto de apoio
consiste no seguinte par de obras: Migalhas Filosóficas ou um Bocadinho de Filosofia de João
Clímacus[58] e Pós-Escrito não Científico às Migalhas Filosóficas[59]. Tudo sem prejuízo quanto à
incursão em outras obras de Kierkegaard ou de outros autores, quando necessário e na medida do escopo
desse texto.
O objetivo deste ensaio, por sua vez, consiste em uma articulação temática e interdisciplinar de
temas da filosofia geral e da filosofia do direito (particularmente, da pragmática jurídica) com o referido
filme.
O HOMEM E O DIREITO ENTENDIDOS COMO TERMOS QUE CONSTITUEM UMA RELAÇÃO
O homem e o direito podem ser pensados a partir da relação que constituem. Do ponto de vista
formal, uma relação é constituída por pelo menos dois termos opostos[60] que se relacionam um com o
outro. Por definição, esta oposição entre termos não pode ser nem absoluta nem nula, isto é, os termos de
uma relação não podem ser nem absolutamente diferentes nem absolutamente idênticos, porque tanto a
diferença absoluta quanto a identidade absoluta não permitem que haja um relacionamento entre os
termos: se um termo difere absolutamente do outro, não há nada por meio do que estejam vinculados, e,
com isso, não há nada através do que possam relacionar-se; e, se um termo se assemelha absolutamente
ao outro, temos um caso de identidade absoluta, ou seja, não se trata de dois termos, mas de um só e
mesmo termo, pois, se não há pelo menos uma propriedade ou característica pela qual duas coisas se
distingam uma da outra, então é necessário que elas não sejam duas coisas distintas, mas uma; na falta de
um segundo termo, porém, não pode haver ainda uma relação. Isso também se pode concluir do seguinte
modo: os termos de uma relação constituem polos contrapostos que jamais podem coincidir inteiramente
(pois os polos se anulariam em apenas um termo), e, em virtude disso, é necessário afirmar alguma
diferença entre os termos. Entretanto, considerando que devam se relacionar entre si, os termos jamais
podem divergir inteiramente (pois os polos se anulariam em uma diferença entre si inconciliável), e, em
virtude disso, é necessário afirmar também alguma igualdade entre os termos.
Assim, se a oposição entre os termos de uma relação não pode ser nem absoluta nem nula, é
preciso estabelecer que deve haver uma oposição relativa, isto é, deve haver tanto uma identidade[61]
relativa quanto uma diferença relativa entre tais termos: identidade relativa porque, para se relacionarem,
é necessário que haja alguma coisa através da qual os termos se unam e se vinculem, alguma coisa
através da qual uma relação possa, efetivamente, desenrolar-se a partir destes opostos; e diferença
relativa porque, para se relacionarem, também é necessário que sejam diferentes de algum modo, pois
uma relação só se dá na diferença e só acontece a partir de uma contraposição. Assim, em toda relação,
os termos estão separados, porém também unidos, na medida em que esta oposição relativa é o que
implica o fato de se relacionarem entre si; e este fato, por sua vez, é aquilo que, a um só tempo, afasta,
mas também reúne os termos em uma relação.
Assim, se assumirmos a premissa de que o homem e o direito constituem uma relação, então
“homem” e “direito” devem ser concebidos como os termos desta relação e deve existir,
necessariamente, uma oposição relativa entre eles, de tal modo que uma relação possa desenvolver-se a
partir deles.
Esta relação pode ser pensada sob um duplo aspecto, relativamente a cada um de seus termos: o
homem e o direito. Do ponto de vista do homem, a relação pode ser entendida de acordo com a
proposição (a) “o direito é objeto para o homem”. Neste caso, acentuam-se tanto o homem na qualidade
de sujeito (papel ativo de sujeito) quanto o direito na qualidade de objeto (papel passivo de objeto). Na
qualidade de sujeito, o homem é, ao mesmo tempo, condição necessária e suficiente para a geração do
direito na qualidade objeto, isto é, sem o homem como um sujeito com capacidade de criar não pode
haver direito. Assim, o homem é o sujeito que mobiliza a esfera jurídica, que opera com as
determinações jurídicas que ele mesmo engendrou, e é também aquele para o qual estas determinações
devem se orientar.
Por sua vez, do ponto de vista do direito, a relação pode ser entendida de acordo com a
proposição (b) “o homem é objeto para o direito”. Neste caso, acentuam-se tanto o direito na qualidade
de sujeito (papel ativo de objeto) quanto o homem na qualidade de objeto (papel passivo de sujeito). Não
dizemos que o direito é sujeito da mesma forma que o homem, pois são entes ontologicamente distintos.
Entretanto, na medida em que o homem engendra o direito, estabelecendo como paradigma do âmbito
jurídico ele mesmo (o próprio homem), e, na medida em que o homem lhe confere império e força de
autoridade, o direito assume uma função de ente portador de determinações (jurídicas) que devem
apreender e, ao mesmo tempo, sujeitar o homem. Nesse sentido, na relação entre o homem e o direito,
entendida do ponto de vista da proposição (b) “o homem é objeto para o direito”, há uma curiosa
inversão na qual o homem assume um papel ativo de objeto (análoga a uma posição passiva de sujeito) e
o direito assume um papel passivo de sujeito (análoga a uma posição ativa de objeto), porque o homem
nunca é concebido conforme a complexidade de sua condição constitutiva, mas sempre como um
resultado hermenêutico das determinações jurídicas. Isso significa que o homem não é ele mesmo, não é
aquilo que ele verdadeiramente (realmente, efetivamente) é. Ao contrário, o homem é uma construção
conceitual.
Entretanto, ainda que, sob o aspecto científico, o homem seja considerado objeto, e, portanto, seja
destituído de seu estatuto ontológico específico, a realidade do homem não pode ser desfeita: que ele é
sujeito. Por outro lado, porém, sob o aspecto existencial, ainda que o direito seja considerado sujeito, e,
portanto, igualmente destituído de seu estatuto ontológico específico, a realidade do direito também não
pode ser desfeita: que ele é objeto. O homem e o direito constituem, assim, uma relação entre sujeito e
objeto cuja peculiaridade está em que, de certa maneira, os termos desta relação invertem os papéis de
sujeito e objeto, ou, de outra forma, se se mantêm como realmente são (o homem como sujeito e o direito
como objeto), chegam, porém, a assumir o papel funcional um do outro (o homem com papel passivo de
sujeito e o direito com papel ativo de objeto). Em todo caso, aqui, o fundamental é notar que o homem e o
direito, considerados como termos opostos que constituem uma relação, e, dentro disso, considerados
especificamente do ponto de vista de cada um desses termos no interior desta relação – de acordo com as
proposições (a) e (b) – constituem um cenário em que, no limite, o homem é objeto para si mesmo.
Vejamos isto mais de perto.
Se as proposições (a) e (b) estão corretas, nosso argumento pode ser formalizado da seguinte
maneira: se (a) “o direito é objeto para o homem” e se (b) “o homem é objeto para o direito”, então as
possibilidades de conclusão são as seguintes proposições: (c1) “o homem é objeto para o homem”; (c2)
“o direito é objeto para o direito”, restando ainda saber como estas possibilidades se relacionam entre
si, isto é, se são mutuamente excludentes na forma de um dilema – ou “(c1)” ou “(c2)” – ou se são
complementares na forma de uma adição – “(c1)” e “(c2)”. Mas parece faltar algo a esta formulação das
proposições conclusivas, pois, da forma como as expusemos acima, a relação originária (direito –
homem) não fica devidamente exposta; e, no entanto, ela deve aparecer. Quando se afirma como
conclusão a proposição (c1) “o homem é objeto para o homem”, o termo “direito” da relação originária
se oculta, embora, nem por isso, deixe de influenciar a relação, pois “o homem é objeto para o homem”
através do direito. Da mesma maneira, quando se afirma como conclusão a proposição (c2) “o direito é
objeto para o direito”, o termo “homem” da relação originária também se oculta, embora permaneça
como termo efetivo a todo momento, afinal, “o direito é objeto para o direito” através do homem. Eis
demonstrada a situação real das proposições (c1) e (c2), as quais, a partir de agora, podemos formalizar
de outra maneira: (c1) “através do direito, o homem é objeto para si mesmo”; (c2) “através do homem, o
direito é objeto para si mesmo”.
Isto feito, passemos a verificar se nossas proposições conclusivas se relacionam como um dilema
ou como uma adição. Supondo que (c1) e (c2) se relacionem como uma adição, então as proposições (c1)
e (c2) devem ter um caráter de verdade: uma vez, porém, que existem dois termos que se relacionam
entre si de tal modo que ambos são, a um só tempo, sujeito e objeto um para o outro, há então uma
relação de referência mútua entre eles. Neste caso, ambos devem ser objeto com a mesma determinidade
conceitual, assim como também devem ser sujeito com a mesma especificidade ontológica – mas, isto é
um absurdo. Além disso, já destacamos, na relação originária (homem – direito), quem é o verdadeiro
sujeito da relação e qual é o verdadeiro objeto, e qualquer inversão quanto a isso seria uma confusão
ontológica grave.
Assim, se é impossível que (c1) e (c2) se relacionem aditivamente, é forçoso afirmar que se
relacionam como o seguinte dilema: ou (c1) “através do direito, o homem é objeto para si mesmo” ou
(c2) “através do homem, o direito é objeto para si mesmo”. Entretanto, se considerarmos a anterioridade
lógica do homem em relação ao direito[62] (pois é o homem que engendra o direito), e, sobretudo, se
considerarmos a primazia ontológica do homem sobre o direito (pois o homem é sujeito e o direito é
objeto), o dilema conclusivo é apenas aparente, pois torna-se necessário desconsiderar a conclusão (c2):
seria uma anomalia teórica considerar uma relação entre o homem e o direito na qual o direito fosse
objeto para si mesmo através do homem – anomalia que, no entanto, não deixa de existir em determinadas
realidades jurídicas, mas, neste caso, a crítica já está feita tanto quanto a sua breve apresentação.
Assim, a conclusão para o nosso argumento fica sintetizada na proposição (c1): “através do
direito, o homem é objeto para si mesmo”. Agora, é preciso encontrar aquilo por meio do que, através do
direito, o homem se relaciona consigo mesmo, o que significa encontrar a determinação através da qual o
homem e o direito se relacionam, ou as determinações, caso sejam mais de uma. Com Heidegger, ficou ao
menos indicado algo a esse respeito:

O todo do ente pode se tornar o campo em que se põem-em-liberdade e se


delimitam determinados domínios-de-coisa, segundo seus diversos
âmbitos. Domínios-de-coisa que de sua parte, por exemplo, história,
natureza, espaço, vida, Dasein, linguagem, etc. podem ser tematizados
como objetos (Gegenständen) das correspondentes investigações
científicas (Heidegger, 2014, §3, p. 51-55)[63].

Toda ciência, portanto, sempre e somente diz respeito a determinado âmbito de coisas do homem,
e, dessa forma, só pode ser fundamentada na medida em que receba sua significação e adquira sua
vinculação a partir de tais “domínios-de-coisa” pertencentes ao homem. No caso particular da ciência do
direito, é possível indicar a esfera da liberdade humana como o âmbito de coisas que permite o
engendramento da dimensão tipicamente jurídica, afinal, a existência do direito é imagem da liberdade no
homem. Parece intuitivo, inclusive, que a dicotomia fundamental de toda ordem jurídica (entre ser e
dever) só possa ser pensada no horizonte da liberdade humana, porque ser e dever são, neste caso,
sempre e somente ser do homem e dever do homem. Permanecem, entretanto, coisas distintas a liberdade
verificada no homem que existe como um ente real no mundo e a liberdade juridicamente estabelecida
nas categorias do ser e do dever.
Por um lado, a liberdade tipicamente humana só aparece como um problema subjetivo, isto é,
como um problema do homem ao qual ela pertence e se refere; objetivamente, ou seja, conceitualmente, a
liberdade jamais se coloca, porque liberdade só pode ser liberdade do homem que, existindo no mundo,
age “livremente” (com sua liberdade) a partir de sua história. Nesse sentido, a liberdade do homem só
pode desenrolar-se no horizonte do tempo e na medida em que o tempo desvela o ser do homem para ele
mesmo; mas isso significa também que a liberdade é sempre e cada vez diferente[64], pois o tempo é uma
sucessão de momentos – um desfilar[65] – a partir dos quais fica possibilitada a singularização da
liberdade.

Mesmo que o pesquisador científico trabalhe com zelo infatigável, mesmo


que abrevie sua vida no serviço entusiástico da ciência; mesmo que o
pensador especulativo não poupe tempo nem aplicação; eles não estão, no
entanto, infinitamente, pessoalmente, apaixonadamente interessados [na
verdade da subjetividade como apropriação do tempo]; ao contrário, nem
mesmo querem estar. Sua observação pretende ser objetiva,
desinteressada. No que tange à relação do sujeito com a verdade
reconhecida, aí se supõe que, tão logo a verdade objetiva tenha sido
alcançada, a apropriação fica sendo coisa de pouca monta, segue como
um brinde, e am Ende [em última análise], tudo o que tem a ver com o
indivíduo é indiferente. Nisso se baseia, justamente, a realçada calma do
pesquisador e a cômica irreflexão de quem apenas conversa sobre o que
leu. (Kierkegaard, 2013, p. 27-28)[66]

Por outro lado, a liberdade juridicamente apreendida através da dicotomia entre ser e dever é
sempre o resultado de uma cristalização de determinados estados de coisas em categorias conceituais
(preponderantemente descritivas), que, de maneira imediata ou mediata, dizem respeito a situações
fáticas relativamente à liberdade do homem. Neste caso, porém, só objetivamente a liberdade pode
aparecer, pois a determinação fundamental da liberdade – o movimento – não pode ser capturada
adequadamente por meio da letra fria de uma norma jurídica. Se, pela perspectiva da liberdade humana, a
subjetividade é o essencial, e, com ela, também a interioridade do homem, o essencial, pela perspectiva
da liberdade jurídica, é justamente o oposto a isso, a objetividade, pois somente ela pode responder
normativamente à demanda coletiva da esfera social.

Em primeiro lugar, agora está claro que o problema está sendo tratado
objetivamente. A modesta, espontânea, totalmente irrefletida subjetividade
mantém-se ingenuamente convencida de que tão logo se estabelece a
verdade objetiva, a subjetividade prontamente deseja agarrá-la. Logo em
seguida se vê o caráter juvenil […] que não tem a mínima noção daquele
sutil segredo socrático: que o nó da questão está justamente na relação do
sujeito. Se a verdade é espírito, então a verdade é interiorização, e não uma
relação imediata e totalmente desinibida de um Geist [espírito, mente]
imediato com um conjunto de proposições […]. A irreflexão sempre se
dirige para a exterioridade, rumo a, ao encontro de, empenhando-se para
atingir seu alvo – ao encontro da objetividade; o segredo socrático […]
consiste em que o movimento esteja voltado para o interior, que a verdade
seja a transformação do sujeito em si mesmo. (Kierkegaard, 2013, p. 42-43)

Há, portanto, uma irredutível oponibilidade entre homem e direito, sujeito e objeto, existência e
conceito, pensamento e realidade: enquanto determinações como homem, sujeito e existência pertencem
ao plano do devir[67], determinações como direito, objeto e conceito pertencem ao plano da lógica[68],
mas a impotência deste plano é a passagem do lógico ao devir, onde existência e realidade
aparecem[69]. O devir é o plano fundamental da existência, plano no qual o homem está ontologicamente
aberto, desde sempre, à criação do mundo. Nesse sentido, ele consiste em uma instanciação que escapa à
tentativa e à apreensão conceitual, porque ele é sempre mais do que a objetividade pressuposta para sua
cristalização em uma categoria filosófica própria. O devir corta o tempo e o tempo atravessa o devir, e,
se o tempo é uma sucessão de momentos, o devir é o curso fático dos acontecimentos a partir dos quais
ocorre, na temporalidade, o seu desfilar.

Como é que muda o que vem a ser; ou qual é a mudança (kinesis) própria
do devir? Qualquer outra mudança (alloiosis) pressupõe que exista aquilo
em que se dá o processo da mudança, mesmo quando a mudança consiste
no cessar de existir. Mas com o devir não é assim […]. Esta mudança não
é então mudança na essência, mas no ser, e é mudança do não-existir para
o existir. […] Mas um tal ser, que contudo é não-ser, é a possibilidade; e
um ser que é ser, é o ser real, ou a realidade; e a mudança do devir é a
passagem da possibilidade à realidade. (Kierkegaard, 2008, p. 105)

Já na lógica, a objetividade é a palavra de ordem, pois, na medida em que o movimento lógico é


sempre movimento imanente, o decisivo já está sempre decidido desde o início. Isto porque o movimento
imanente, de certa forma, não é nenhum movimento, uma vez que as determinações lógicas se
movimentam logicamente, o que significa que se movimentam à revelia de uma decisão da vontade
humana; ou, o que é o mesmo: se movimentam sem o consentimento da liberdade histórica, e, portanto,
sem a escolha autônoma de uma consciência livre. Eis, portanto, o motivo pelo qual é patentemente
impossível uma passagem da lógica ao devir – uma tal passagem ensejaria uma fratura na reflexão, pois
representaria, para o pensamento, uma deterioração naquilo que Aristóteles designou por μετάβασις εἰς
ἄλλο γένος [passagem de um gênero a outro][70], o que seria absurdo: Ἀλλ’ ἐκεῖνο μὲν δῆλον, ὡς οὐκ
ἔστιν εἰς ἄλλο γένος μετάβασις, ὥσπερ ἐκ μήκους εἰς ἐπιφάνειαν, εἰς δὲ σῶμα ἐξ ἐπιφαείας [mas,
isto é certo, não se pode passar de um gênero a outro, como se passa de uma linha para uma superfície, e
de uma superfície para um corpo][71].
E, no entanto, o homem e o direito constituem uma relação. Se, como dissemos, há uma diferença
insuperável entre aquilo que se refere à esfera humana e aquilo que diz respeito à esfera jurídica,
permanece, entretanto, válido o fato de que, no caso particular da relação entre o homem e o direito, a
liberdade humana é a determinação por meio da qual ambos podem se relacionar. Assim, a liberdade,
embora só apareça verdadeiramente como um problema subjetivo, nem por isso deixa de ser apreendida
nas categorias do ser e do dever jurídicos. Mas esta apreensão só pode se dar objetivamente, isto é,
conceitualmente, o que parece deslocar o centro da questão do sujeito para o objeto, da existência para o
conceito, da temporalidade para a lógica, e, o que é o principal, do pensamento para a realidade: isto
porque uma é a liberdade pensada através das estruturas jurídicas, onde há uma completa identidade
entre sujeito e objeto, entre pensamento e realidade; outra, porém, é a liberdade verdadeiramente
existente na existência de um sujeito, onde há uma completa ruptura entre sujeito e objeto, entre
pensamento e realidade[72].
A reflexão deve então cindir-se, para pensar a liberdade humana sob as duas perspectivas, uma
objetiva e conceitual, outra subjetiva e existencial: enquanto para a consideração que leva em conta a
temporalidade o essencial é justamente o desvelamento do próprio ser a partir do tempo, para a
consideração lógica o essencial é a especulação filosófica que busca um resultado conceitual[73], e aqui
se pode pelo menos vislumbrar a diferença de gêneros envolvida na questão[74].
Assim, se é patentemente impossível passar completamente do humano para o jurídico, pois o real
não se deixa apreender pelo conceito e sempre escapa a toda tentativa definicional, é preciso, no mínimo,
estabelecer os contornos de cada uma destas determinações tanto quanto o seu limiar: por um lado, trata-
se de um problema que pertence à ciência e que toca diretamente a epistemologia; mas, por outro, abre-
se também o caminho para uma espécie de filosofia da cons-ciência, entendida como a possibilidade de
educação da liberdade a partir de uma reflexividade voltada, fundamentalmente, para a profundidade
interior do eu e os horizontes de sua existência.
Apresentar esta distinção era um dos principais objetivos da introdução. A partir dela, o filme
Limite, de Mário Peixoto, pode nos ajudar a realizar o restante da tarefa.

UMA ANÁLISE OBJETIVA (CONCEITUAL) DE LIMITE À LUZ DA PRAGMÁTICA JURÍDICA


No universo jurídico contemporâneo, as coisas pertencem à ordem do conceito, ou, pelo menos,
dela se aproximam. Falamos em aproximação porque, atualmente, esta objetividade deve ser pensada
como algo equivalente a um caráter preponderantemente tecnológico[75]. Mas, considerar a questão
tecnologicamente já significa, por definição, fazer algo diferente de especular filosoficamente em busca
de um resultado conceitual. O dado tecnológico no interior do pensamento jurídico evidencia, de fato,
uma preocupação com a obtenção de um resultado, mas, neste caso, uma preocupação com um resultado
fundamentalmente prático: resolver os litígios socialmente estabelecidos, ou seja, conferir decidibilidade
para tais conflitos[76].
Aqui, a principal diferença entre a lógica e a tecnologia se deixa ver: enquanto a especulação
filosófica está sempre orientada para a idealidade do conceito, e, com isso, não pode deixar de ter um
compromisso com o paradigma de “verdade”, a consideração tecnológica, por sua vez, está destituída de
qualquer resquício de busca pela “verdade”; ou, antes, o fato de ser necessário resolver os conflitos
sociais – cenário, aliás, que se agrava com a formação da sociedade de massas – leva a um completo
despojamento da idealidade da verdade, com o que, permanece apenas a questão da decidibilidade, mas
não a questão da “verdade” desta decidibilidade relativamente a cada caso concreto de conflito
socialmente verificado.
Assim, a ciência do direito precisa ter como caminho a objetividade, porque, se o direito é
instrumento a serviço da sociedade, então ele deve pensá-la como coletividade, o que só pode ser feito
através das categorias jurídicas do ser e do dever. Mas isto significa também pensar a generalidade de
sujeitos em feixes (ou blocos) uniformes, pois, na medida em que o processo de normatização estabelece
suas categorias de ser e dever, estabelece também, como contra-efeito, uma equivalência relativamente
ao ser de cada indivíduo, e, assim, um nivelamento contranatural quanto a cada liberdade – quase como
se o ser de cada indivíduo fosse um e o mesmo sempre que cada sujeito realizasse alguma ação descrita
no ser ou no dever jurídicos. Na medida, porém, em que o direito ficcionaliza, em previsões legais, o
estatuto ontológico do ser dos sujeitos verdadeiramente existentes no mundo, a normatividade aniquila
todo sujeito verdadeiro, toda liberdade verdadeira e toda subjetividade verdadeira: permanecem somente
as ficções categorialmente estabelecidas, o que é sempre no máximo uma aproximação, nunca, porém, um
dado de verdade relativamente a cada singularidade.
Neste contexto, a pragmática jurídica surge a partir de uma concepção do direito como uma
realidade essencialmente comunicativa, isto é, a pragmática analisa as interações discursivas como
dados de realidade sem caráter de verdade. O fundamento para isso é o chamado “princípio da
interação”, e assim, a pragmática opta por entender o direito sob o viés das relações de comunicação
estabelecidas entre emissores e receptores a partir de signos linguísticos[77]. Com isso, porém, não se
afirma que o direito seja reduzido à simples linguagem, como se toda a sua complexidade estivesse
contida em aspectos meramente linguísticos[78].
Dentro deste contexto, a pragmática jurídica entende que o estado, em seu papel de autoridade,
funciona como o emissor da norma jurídica, a qual tem como destinatários os endereçados sociais, isto é,
as pessoas que estão sob a tutela desta autoridade e que compõem, portanto, este Estado. Mas, na medida
em que a autoridade comunica uma norma jurídica, esta norma traz consigo determinadas expectativas em
relação ao seu recebimento por parte dos endereçados sociais. Há, assim, na interatividade entre emissor
(autoridade) e receptor (endereçados sociais), algumas possibilidades comunicativas quanto à recepção
da norma pelos sujeitos.

A relação autoridade/sujeito ou relação de autoridade pode ser descrita


de vários modos. Propomos esclarecê-la tomando como critério as reações
e contra-reações possíveis entre emissores e receptores de uma
comunicação. No âmbito do cometimento, a mensagem emitida por alguém
sobre o modo como a relação entre ele e seu receptor deve ser por este
encarada admite três possibilidades: a relação ou é confirmada, ou é
rejeitada, ou é desconfirmada. (Junior, 2000, p. 107)

Primeiramente, é preciso estabelecer que a autoridade, pelo menos a princípio, mantém a


expectativa de que a norma que ela comunica seja acatada pelas pessoas e integralmente cumprida. Se
isto ocorrer, então há a “confirmação” da norma, isto é, a autoridade comunica certa norma jurídica e o
seu endereçado social confirma esta norma, ou seja, obedece tanto ao relato quanto ao cometimento da
mesma, o que evidencia, naturalmente, que o endereçado reconhece a autoridade enquanto tal.

Suponhamos um comando dirigido pelo professor aos alunos: ‘não fumem


na sala de aula’. O relato ou conteúdo da comunicação é a abstenção de
fumar na sala. O cometimento se percebe, digamos, no tom da voz ou no
uso da forma imperativa, cuja mensagem é: ‘aqui mando eu, vocês
obedecem’. Essa mensagem sobre a relação é confirmada quando os
alunos, abstendo-se de fumar, não manifestam, por exemplo, nenhum
protesto. (Junior, 2000, p. 107)

Entretanto, é possível que alguém frustre a expectativa da autoridade, não obedecendo à norma
por ela emanada. Isto, porém, pode acontecer de duas formas: é possível desobedecer à norma emanada
tanto por não aceitação do relato da norma, mas apenas do seu cometimento, quanto por não aceitação de
ambos (relato e cometimento). No primeiro caso, aquele que desobedece (que conhece o relato da norma,
mas age contrariamente a ele), embora saiba que a sua desobediência é um caso de ilicitude (pois ainda
reconhece o cometimento da norma), mostra que aceita a autoridade enquanto tal, embora opte
deliberadamente por desobedecê-la. No segundo caso, porém, aquele que nem mesmo reconhece a
autoridade enquanto tal (que desrespeita o cometimento), a princípio também não deve julgar que esteja
praticando um ato ilícito, pois não aceita submeter-se à autoridade (e, assim, não aceita que a autoridade
lhe impute o ato que está cometendo como ato ilícito). Este último é o cenário mais ameaçador para
qualquer autoridade institucionalizada[79].

Ela [a norma] será rejeitada se os alunos fumam, mas o fazem escondidos


(o que significa que os alunos, porque se escondem, reconhecem a posição
de mando, mas a negam). Ela será desconfirmada se os alunos,
ostensivamente, põem-se a fumar, como se nenhuma ordem tivesse sido
dada. A confirmação, portanto, é uma reação de reconhecimento da
relação. A rejeição é uma reação de negação da relação. A
desconfirmação é uma reação de desconhecimento da relação. Ora, a
relação de autoridade é aquele em que o emissor aceita a confirmação,
rejeita a rejeição, isto é, a reconhece para negá-la, e desconfirma a
desconfirmação, isto é, não a reconhece como tal, mas a toma como mera
negação. (Junior, 2000, p. 107)

Isto posto, podemos passar a analisar as três histórias de Limite à luz da pragmática jurídica, a
partir da dicotomia por meio da qual o homem e o direito relacionam-se: o ser e o dever. Podemos,
portanto, articular as histórias das personagens de Limite com o arcabouço conceitual brevemente
exposto. Vejamos como isto pode ser feito.
Em Limite, há três náufragos em uma canoa à deriva, duas mulheres e um homem. Os três estão
severamente abatidos, extenuados, ao que tudo indica, não propriamente com a situação que enfrentam,
mas com algo além, talvez algo mais íntimo na profundidade subjetiva de cada um. Uma das mulheres
conta sua história: com a ajuda do carcereiro, ela fugiu da prisão e foi para um lugar distante tentar a vida
como costureira. Mas ela então se deparou com a monotonia, e, novamente, uma grave angústia recaiu
sobre ela. Quando é descoberta a sua fuga da prisão, os jornais noticiam o fato e ela tem que se mudar
novamente.
Em seguida ao relato da primeira mulher, a segunda mulher conta como chegou até aquela
situação: casada com um pianista ébrio que tocava em cinemas, em um determinado dia ela chega em
casa com um cesto de alimentos e se depara com o marido sentado na escada, junto com algumas
partituras de música, dormindo porque bebera muito. Ao perceber o ponto degradante em que seu
casamento se encontra, ela decide abandonar o marido e fugir.
Por fim, o homem conta sua história: ele foi amante de uma mulher casada, mas esta mulher
acabou falecendo. No cemitério, ele encontra o marido de sua amante, que lhe diz que a mulher falecida
era leprosa. Com a possibilidade real da castração, o homem desespera.
Os detalhes narrados são escassos e não sabemos muita coisa sobre as vidas das personagens e as
circunstâncias em que procederam de tal ou tal forma. Isto certamente não é por acaso. A explicitação
detalhada de um personagem relativamente ao seu enredo, isto é, o esclarecimento sobre as razões de sua
ação de modo discriminado, é sempre recebida, por quem presencia a obra, como um dado objetivo. Pelo
contrário, quando não há indício do porque e do como do personagem em relação à narrativa, então as
coisas se invertem e a objetividade ali contida é recebida subjetivamente, isto é, a vacuidade de sentido
pede nossa interferência subjetiva para que o sentido se complete; ou, antes, o sentido é produzido a
partir de uma ausência de referências a que se possa agarrar-se. Se nos fossem, assim, reveladas, mais
detalhadamente, as circunstâncias nas quais os três náufragos agiram da forma como o filme narra, eles
estariam passíveis a um juízo de reflexão de nossa parte; mas, em virtude de uma tal inexistência de
informação, só o que podemos reter é o acontecido tal como descrito.
No caso da história da primeira mulher, não é possível saber o motivo pelo qual ela foi presa,
pois ela rememora sua história já a partir da fuga. Mas podemos afirmar que o ato de fugir do
estabelecimento prisional consiste em uma rejeição da autoridade, o que fica evidente na medida em que
ela segue se escondendo da mesma no desenrolar posterior à fuga. Vale dizer, esta mulher não questiona o
estatuto da autoridade enquanto tal em momento algum, ela simplesmente comete o ilícito, mas toma o
cuidado de se ocultar para não ser capturada novamente. Assim, fica caracterizada a reação de rejeição
relativamente à sua interação comunicativa com a autoridade.
Aqui, porém, aparece o problema do limiar entre o subjetivo e o objetivo, ou entre a verdade da
existência e a decidibilidade de conflitos. Podemos vislumbrar este limiar a partir justamente do
desconhecimento, no filme, do motivo pelo qual ela foi presa. Poderíamos supor que ela tenha sido presa
justamente, mas também poderíamos supor que ela tenha sido presa por algum equívoco. Já aqui a
reflexão precisa deter-se, pois é intuitiva a dificuldade na definição do que seria uma “prisão justa” ou
“injusta”. Suponhamos, em todo caso, que ela tenha sido presa porque cometeu um ato ilícito: então ela
rejeitou a autoridade em dois momentos, quando cometeu o ilícito que fez com que ficasse retida na
prisão, e, depois, quando fugiu da prisão. Mas, pelo contrário, se supusermos que ela tenha sido presa
por um ato ilícito que não cometeu, ou por qualquer outro equívoco ou engano, então parece ao menos
razoável pensar que a sua fuga tenha sido um ato de reparação necessário, e que o próprio direito é que
deveria tê-la colocado em liberdade (ou, antes, jamais tê-la prendido).
Já no caso da segunda mulher, a que abandona o marido alcoolista, uma coisa é certa: ela
abandona o marido sem maiores explicações e sem nem mesmo comunicar a ele tal abandono.
Precisamos pensar este fato à luz do Código Civil de 1916, o qual já previa o instituto do desquite[80].
Por um lado, considerando que a segunda mulher tenha efetivamente formalizado o desquite, o que, de
fato, poderia ocorrer com base no inciso IV do artigo 317 do Código Civil de 1916 (“a ação de desquite
só se pode fundar em algum dos seguintes motivos: IV. Abandono voluntário do lar conjugal, durante dois
anos contínuos”) é possível dizer que ela pode ter confirmado a autoridade na medida em que exerceu um
direito a ela atribuído pela própria autoridade[81].
Mas, como não sabemos se ela chegou a formalizar o desquite, se considerarmos somente que ela
abandonou o seu marido para nunca mais voltar – o que não seria injustificado, haja vista a angústia com
que o filme retrata sua partida –, neste caso, poderíamos estar diante tanto de um ato de rejeição quanto
de um ato de desconfirmação da autoridade. Considerando o elevado valor atribuído à família
matrimonial no início do século passado, contexto em que o filme se passa, é possível sustentar que a
segunda mulher, caso não tenha formalizado juridicamente o desquite, tenha agido de forma
deliberadamente ilícita ao não respeitar o ordenamento jurídico. Esta ilicitude, no entanto, poderia ser
uma rejeição: embora ela não tivesse agido de acordo com os preceitos legais relativamente à sua
situação matrimonial (desrespeito ao relato), ela pode ter continuado a reconhecer a autoridade enquanto
tal (respeito ao cometimento), o que significaria que ela sabia que estava em uma situação juridicamente
irregular, e, no entanto, manifestamente desejou assim permanecer.
Mas também pode ser que ela tenha agido de maneira mais subversiva, a ponto de nem mesmo
aceitar aquilo que a autoridade preceituou a ela (desrespeito ao relato e ao cometimento da norma), até
porque, o desquite significava que as pessoas entravam em débito com a sociedade (desquites – não
quites com a sociedade). Assim, no caso de rejeição da segunda mulher, precisaríamos concebê-la como
agindo com uma espécie de indiferença em relação ao direito, e, no caso de desconfirmação, esta
indiferença em sua ação seria algo mais grave, algo como um ímpeto de subversão – talvez até mesmo no
sentido da condição que a cultura da época concebia institucionalmente o seu gênero – em detrimento da
autoridade.
Por fim, no caso do homem cuja amante era casada e faleceu de lepra, seria preciso levar em
conta, novamente, o Código Civil de 1916[82] para nossa análise. Mas, exclusivamente do seu ponto de
vista, pode-se dizer que não parece haver, propriamente, nenhum ilícito jurídico, uma vez que, ao que
tudo indica, algum eventual ilícito recairia sobre a falecida que, no pleno curso do regime regular de seu
matrimônio, cometeu o adultério.
Entretanto, se considerarmos que o homem sabia da situação matrimonial da falecida, então se
torna possível sustentar que ele tenha agido de maneira a rejeitar a autoridade, na medida em que esta
mesma autoridade havia estabelecido a família matrimonial institucional como figura privilegiada do
ordenamento jurídico, o que era também uma imagem dos valores sociais tradicionais da época.
Nessa direção, a análise pragmática da história pregressa do homem náufrago parece também
permitir estabelecer que ele tenha agido de maneira desconfirmadora: seria este o caso se, em sua
conduta de envolver-se com a mulher casada, ele tivesse agido contra a autoridade enquanto tal, isto é,
tivesse agido deliberadamente em desacordo com a proteção jurídica do vínculo matrimonial, por nem
mesmo reconhecer-se como sujeito subordinado àquela ordem de direito. São possibilidades,
evidentemente, que podemos apenas conjecturar, na medida em que o filme não nos fornece material mais
detalhado, e nem é esta a sua proposta; entretanto, são possibilidades exaustivas de análise, isto é, por
mais que suponhamos uma série de circunstâncias para as três pessoas à deriva no barco, a leitura
jurídica de cada uma, do ponto de vista da pragmática, resultaria sempre na categorização da liberdade
em uma das três categorias expostas: confirmação, rejeição e desconfirmação.
De qualquer maneira, o fundamental é observar, nas três narrativas, a discrepância entre a
subjetividade que efetivamente vive uma história singular no mundo e a leitura jurídica de cada situação.
A questão aqui é que não se trata de verdade, mas de decidibilidade de conflitos, e, uma vez que há uma
diferença insuperável de gêneros entre a liberdade tipicamente humana e a liberdade cristalizada no ser e
no dever jurídicos, então, do ponto de vista do direito, a decidibilidade deve preponderar. Com isso, fica
claro também o papel da tecnologia no universo jurídico contemporâneo e a sua relação íntima com a
decidibilidade. Do ponto de vista da verdadeira história de cada personagem, não podemos saber a
realidade subjetiva de cada um no momento em que cometeram os atos ilícitos, se é que os cometeram. E,
se assim foi, seria preciso ainda garantir psicologicamente a sua medida de envolvimento com as
situações fáticas que tenham porventura cometido e que tenham sido subsumidas às tipificações nas
normas jurídicas, o que é impossível.
Devemos, porém, observar a profundidade psicológica na situação real de cada personagem
enquanto sujeito existente, e, com isso, também a angústia, a desilusão e o desespero de cada um, em
virtude de cada história. É preciso, assim, reparar na diferença abissal que há a partir do momento em
que se faz uma leitura jurídica da existência. O direito nunca apreende – e, enquanto sistema conceitual,
nunca poderia apreender – a subjetividade em sua real profundidade, pois só o sujeito existente pode
assim proceder – se é que a psicanálise já não mitigou uma tal possibilidade. As leituras jurídicas das
situações fáticas previstas nas categorias do ser e do dever não podem, portanto, condizer com a
realidade, pois são sempre e somente aproximações, isto é, construções lógicas aproximativas com algum
grau de fundamentação em estruturas jurídicas previamente estabelecidas; nunca, porém, verdades
efetivamente verdadeiras, ou seja, subjetivas.

UMA ANÁLISE SUBJETIVA (EXISTENCIAL) DE LIMITE À LUZ DA TEMPORALIDADE


Em Limite, uma metáfora parece bastante evidente: o barco que abriga os três náufragos, como
imagem daquilo que representa a vida – e que confina a existência humana em uma casca frágil e
oscilante, enferrujada e corroída pelo tempo –, e o mar, como imagem da morte – mar diante do qual a
incerteza da imensidão e da força das águas se funde à certeza de uma existência finita fadada a perecer
com a chegada da tormenta.
Por esta perspectiva, eleva-se a temática da vida e da morte; mas vida e morte estão sempre
relacionadas com o tempo, motivo pelo qual, também nós precisamos, agora, refletir sobre a
temporalidade; não, porém, a temporalidade cronológica dos acontecimentos, o que, de certa forma,
fizemos na análise anterior, mas a temporalidade psicológica das personagens. Isto, porém, nada mais é
do que considerar o tempo como o horizonte a partir do qual o ser se desvela e deve ser pensado. Do
ponto de vista do indivíduo como ente por excelência relacionável com o ser, ou seja, como ente
exclusivo para o qual, como diz Heidegger, “o ser se abre na clareira da existência”, o decisivo é que,
se este ente é humano, então ele é um existente; eis a sua condição constitutiva fundamental[83]. Neste
caso, porém, a vida ética só pode se expressar como um esforço continuado que tem como pano de fundo
a temporalidade, um esforço do eu relativamente a si mesmo, o que nada mais é, no Limite, do que a
consciência de ser um sujeito existente: é esta também a máxima realização da liberdade.
Com Kierkegaard[84], podemos adicionar alguma metafísica em nossa reflexão sobre o tempo.
Em geral, aceitamos a divisão do tempo em passado, presente e futuro, na medida em que tal divisão
parece bastante intuitiva. Mas esta divisão é patentemente incorreta, pois o passado de um sujeito é
também o futuro de outro, assim como o meu futuro será o passado de alguém que ainda não tenha nascido
e será até mesmo o meu passado quando o meu próprio futuro chegar. Com isso, porém, nada se resolve
com relação ao tempo propriamente dito, pois a divisão permanece fundamentada na diferença
cronológica da geração e da corrupção de cada indivíduo. Do ponto de vista do tempo em si mesmo, não
pode haver passado, nem presente, nem futuro, mas somente a determinação de um imediato que não
cessa de passar, e, assim, o tempo é somente um ir passando[85]. Só é possível dividir o tempo em
passado, presente e futuro a partir de um referencial fixo; mas o único referencial fixo com esta
capacidade é a eternidade[86].

Se, com efeito, se pudesse encontrar uma base de apoio na sucessão


infinita do tempo, ou seja, um presente que servisse de divisor de águas,
essa divisão seria inteiramente correta. Mas justamente porque todo e
qualquer momento, assim como o é a soma dos momentos, é processo (um
desfilar), então nenhum momento é um presente e, neste sentido, não há no
tempo nem um presente, nem um passado, nem um futuro. Se acreditamos
que somos capazes de sustentar essa divisão, isto ocorre porque
espacializamos um momento – mas com isso paralisamos a sucessão
infinita – isto ocorre porque introduzimos a representação, fizemos do
tempo algo para a representação, em vez de o pensarmos. Contudo, mesmo
assim não nos comportamos corretamente, porque, mesmo para a
imaginação, a sucessão infinita do tempo é um presente infinitamente
vazio. (Kierkegaard, 2014, p. 91)

O único referencial fixo capaz de dividir o tempo em passado, presente e futuro é, então, a
eternidade. Mas, se a eternidade existe, ela deve necessariamente equivaler ao ser, isto é, ela deve ser
uma eternidade de ser, caso contrário, ela seria uma eternidade nadificada (uma eternidade de não-ser),
o que seria uma contradição, pois seria uma eternidade inexistente. Mas, se a eternidade existe e é
eternidade de ser, ela também não pode apartar-se do tempo, pois o plano do ser é também o plano do
devir, e o devir pressupõe o tempo para a realização de seu movimento; pelo contrário, é de uma
eternidade de ser que deve necessariamente ter derivado o tempo[87]. A este ponto, parece
razoavelmente garantida uma eternidade de ser no sentido em que Parmênides a formulara. Mas há aqui
uma diferença essencial entre o a eternidade de ser de Parmênides e a eternidade de ser kierkegaardiano.
Para Parmênides, todo movimento era uma ilusão, pois o ser não poderia jamais perecer. Mas, se o
movimento era uma ilusão, segue-se disso que o tempo também era uma ilusão, na medida em que era
considerado como uma determinação quantitativa que apenas ofuscava a realidade essencial e eterna de
ser. Se, porém, a eternidade existe, o presente não é mais este plano infinitamente vazio do devir onde o
presente é sempre o imediato e o imediato nunca é efetivamente algo, porque justamente corresponde a
um desaparecer infinito. Pelo contrário, se as coisas se passam desta maneira, então é necessário que o
eterno seja o sempre presente, pois ele deve existir já agora e sempre; mas, se é assim, também é
possível conceber este presente não como o imediato que escoa (e, portanto, como determinação
quantitativa, assim como Parmênides o concebia), mas como uma determinação qualitativa: nesse caso,
toda a concepção de devir precisa ser reparadigmatizada.

No instante, o homem torna-se consciente de que nasceu, pois seu estado


precedente, ao qual não deve reportar-se, era o de não-ser. No instante ele
se torna consciente de seu renascimento, pois seu estado precedente era o
de não-ser. Se seu estado precedente tivesse sido o de ser, em nenhum dos
casos o instante teria tido para ele uma significação decisiva […].
Enquanto, pois, todo o pathos grego se concentra sobre a recordação, o
pathos de nosso projeto concentra-se sobre o instante, e que maravilha!
Ou não é uma coisa altamente patética [no sentido do “pathos”
mencionado] passar do não-ser à existência? (Kierkegaard, 2008, p. 41).

Assim, uma vez posta a eternidade, devemos deixar de entender o tempo como a determinação
quantitativa do “imediato” que não cessa de fluir, para entendê-lo como a determinação qualitativa do
instante decisivo. Agora, o pensador subjetivo existente está continuamente em processo de vir-a-ser, isto
é, está esforçando-se, e aqui está o fundamento e a possibilidade da vida ética. Na medida em que
adquiriu, a partir de sua história, consciência de sua condição constitutiva como sujeito realmente
(efetivamente) existente, descobriu também sua liberdade e descobriu que esta liberdade é, desde
sempre, um vaso que pode tornar-se prenhe de conteúdo eterno, bastando que a sua vontade a isso se
dirija. Isso significa, porém, que o devir não se dá mais como na Física aristotélica, enquanto passagem
de não-ser a ser (geração), de ser a não-ser (corrupção) e de ser a ser (movimento quantitativo,
qualitativo e locomoção). Com isso, pelo contrário, o devir deve sofrer uma transposição definitiva da
objetividade para a subjetividade, da física da natureza para a metafísica do espírito: estará dada a
possibilidade do instante existencial decisivo[88] para cada liberdade histórica concreta, isto é, a
oportunidade de preenchimento do instante com o conteúdo do eterno no tempo[89].

Pensado, o eterno é o presente como sucessão abolida (o tempo era a


sucessão que passa). Para a representação, ele é uma progressão, porém
progressão que não sai do lugar, porque o eterno para a imaginação é o
presente infinitamente pleno de conteúdo. No eterno, por sua vez, não se
encontra a separação do passado e do futuro, porque o presente é posto
como sucessão abolida. (Kierkegaard, 2014, p. 91-92)

Assim, a categoria filosófica do instante aparece como o único modo de tempo possível, isto é, o
instante aparece como uma imagem da eternidade no tempo. A única forma de superação da própria
finitude, e, junto com ela, da angústia e do desespero das vicissitudes e idiossincrasias de uma existência
finita, é o preenchimento do instante com o conteúdo da eternidade. Este preenchimento deve ser capaz de
fazer com que o sujeito, ele mesmo, também venha-a-ser em sentido ontológico pleno: enquanto existe
como uma simples permanência angustiada no mundo, o sujeito ainda não está devidamente constituído
em sua liberdade, pois existe de forma a meramente sobreviver em desespero: “Angústia tem aqui o
mesmo significado que melancolia, num momento bem posterior, quando a liberdade, depois de ter
percorrido as formas imperfeitas de sua história, deve chegar a ser ela mesma, no sentido mais
profundo da palavra” (Kierkegaard, 2013, p. 46).

Angústia pode-se comparar com vertigem. Aquele, cujos olhos se


debruçam a mirar uma profundeza escancarada, sente tontura. Mas qual é
a razão? Está tanto no olho quanto no abismo. Não tivesse ele encarado a
fundura…! Deste modo, a angústia é a vertigem da liberdade, que surge
quando o espírito quer estabelecer a síntese [entre corpo e alma], e a
liberdade olha para baixo, para sua própria possibilidade, e então agarra
a finitude para nela firmar-se. Nesta vertigem, a liberdade desfalece.
(Kierkegaard, 2013, p. 66)

Se, em Limite, a angústia é apresentada como um dado inerente à condição constitutiva do


humano, de tal modo que, assim como os três náufragos aprisionados no barco por suas próprias
histórias, também cada um de nós esteja da mesma forma sujeito a uma tal encruzilhada, é certo que
também está dada a forma de superação desta angústia: o infinitizar-se no tempo presente, o tornar-se um
eu prenhe de conteúdo do eterno no momento decisivo. Se está colocada a finitude como o inferior da
condição humana, então também está dada a meta, como o superior relativamente à infinitude, onde o
instante e o eterno aparecem.
Assim, na medida em que o indivíduo adquire consciência de ser um eu, e de que este eu é
constitutivamente uma existência finita que se relaciona com o tempo e com o ser, então ele deve
descobrir que a eternidade já está a seu dispor. Isso significa, porém, uma reparadigmatização da noção
de liberdade, que invariavelmente deve deixar de ser pensada como força ou potência de agir, para se
transformar em beatitude – o que traz à superfície uma dimensão axiológica da existência humana que
aqui simplesmente deixaremos indicado.
A via objetiva da reflexão faz com que o indivíduo seja sempre uma ficção, um dado casual, e,
com isso, a sua existência está sempre e cada vez mais inexistente, indiferente, e, porque não,
evanescente. Assim, a verdade objetiva se afasta do indivíduo, e, enquanto isto acontece, assim também a
verdade, concebida como apropriação, vai se deixando esquecer. Se a distinção que apontamos entre
subjetividade e objetividade assume o caráter de uma aporia insolúvel, então não se trata de optar por
uma delas, mas de entender que ambas se completam e de refletir como é que cada uma pode assumir uma
importância decisiva a partir de seu universo próprio: do ponto de vista do conceito, a situação parece
relativamente bem encaminhada, e a ciência do direito, de certa forma, parece andar a passos largos em
direção a sempre novas teorizações, novas possibilidades.
Do ponto de vista da existência, o mesmo talvez não possa ser afirmado; mas, se estamos corretos,
pelo menos deixamos indicado uma possibilidade real de engendramento e abertura para uma educação
complementar no sentido de um “estudo do espírito”, o que certamente não tem o rigor técnico de uma
ciência, mas, em contrapartida, possui a principal determinação da realidade (a subjetividade) a seu
favor: se o real é a liberdade como imagem da interioridade refletida no mundo, é possível fazer de um
instante de liberdade, um instante existencialmente decisivo – um instante cairológico no tempo presente.
A via objetiva da reflexão faz com que o indivíduo seja sempre uma ficção, um dado casual, e,
com isso, a sua existência está sempre e cada vez mais inexistente, indiferente, e, porque não,
evanescente. Assim, a verdade objetiva se afasta do indivíduo, e, enquanto isto acontece, assim também a
verdade, concebida como apropriação, vai se deixando esquecer. Se a distinção que apontamos entre
subjetividade e objetividade assume o caráter de uma aporia insolúvel, então não se trata de optar por
uma delas, mas de entender que ambas se completam e de refletir como é que cada uma pode assumir uma
importância decisiva a partir de seu universo próprio: do ponto de vista do conceito, a situação parece
relativamente bem encaminhada, e a ciência do direito, de certa forma, parece andar a passos largos em
direção a sempre novas teorizações, novas possibilidades.
Do ponto de vista da existência, o mesmo talvez não possa ser afirmado; mas, se estamos corretos,
pelo menos deixamos indicado uma possibilidade real de engendramento e abertura para uma educação
complementar no sentido de um “estudo do espírito”, o que certamente não tem o rigor técnico de uma
ciência, mas, em contrapartida, possui a principal determinação da realidade (a subjetividade) a seu
favor: se o real é a liberdade como imagem da interioridade refletida no mundo, é possível fazer de um
instante de liberdade, um instante existencialmente decisivo – um instante cairológico no tempo presente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGOSTINHO. Confissões. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
ARISTÓTELES. De Caelo. Trad. Por J. L. Stocks e H. H. Joachin. Oxford: The Clarendon Press, 1932.
________ Physics. Loeb Classical, London: Harvard University Press, Vols. IV e V, 1933. (Edição
bilíngue grego-inglês)
________ Posterior Analytics, Topica. Loeb Classical, London: Harvard University Press, Vols. IV e V,
1933. (Edição bilíngue grego-inglês)
________ Metaphysics. Loeb Classical, London: Harvard University Press, Vols. XVII e XVIII, 1933.
(Edição bilíngue grego-inglês)
Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Trad. Fausto Castilho. Rio de Janeiro: Vozes, 2014. (Edição bilíngue
alemão-português)
Kierkegaard, Søren Aabye. Migalhas Filosóficas ou um Bocadinho de Filosofia de João Clímacus.
Trad. Álvaro Luiz Montenegro Valls. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
________ O Conceito de Angústia. Trad. Álvaro Luiz Montenegro Valls. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.
________ Pós-Escrito não Científico às Migalhas Filosóficas. Trad. Álvaro Luiz Montenegro Valls.
São Paulo: Vozes, 2013.
OLIVEIRA, Mara Regina. O Desafio à Autoridade da Lei na Perspectiva do Discurso Jurídico: uma
Interação Comunicativa que Envolve um Conflito entre Luta e Submissão. Doutorado em Direito.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1999.
PEIXOTO, Mário. Limite (RJ, 1931, pb, LM). Cia produtora: Mario Peixoto (produtor);
Direção/argumento/roteiro: Mario Peixoto; Montagem: Edgar Brasil, Mario Peixoto; Dir. fotografia:
Edgar Brasil; Elenco: Raul Schnoor, Olga Breno, Taciana Rei, D. G. Pedrera, Mario Peixoto
O CAMPO DE CONCENTRAÇÃO FUGIDIO DO SERTÃO NA CENA IMAGÉTICA DE
CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS
Marco Aurélio Panadés Aranha[*]

INTRODUÇÃO

M uitas obras artísticas nacionais buscaram retratar, traduzir, figurar, discutir, compor, problematizar,
investigar, desvendar, alumiar e rememorar o sertão, em razão da contribuição inequívoca desse
espaço humano-geográfico para a composição e afirmação da cultura e da identidade popular.
Como frisado por ISMAIL XAVIER[90], “no Brasil, o sertão é um lugar mítico dentro do
processo de construção de identidade nacional, com forte presença nas formulações do século XIX e
da primeira metade do século XX: a vasta região do semi-árido do interior brasileiro (centro-oeste e
nordeste) é a região emblemática da seca e da miséria ligada à concentração da propriedade da terra,
herança dos tempos coloniais”.
Diversos meios de representação cuidaram do tema. Na literatura, para citar algumas poucas
obras, assim o fizeram Vidas Secas de Graciliano Ramos, Grande Sertão: veredas de Guimarães Rosa,
Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto e Fogo Morto de José Lins do Rego. Na música,
entre tantos, cantaram o sertão nordestino Luis Gonzaga, Zé Ramalho, Dominguinhos, Silvio Caldas e
Elba Ramalho. Na pintura e na gravura, Cândido Portinari, Di Cavalcanti e Lasar Segall retrataram como
poucos o sertanejo e seu espaço.
No cinema não foi diferente. No intuito de “descobrir” o Brasil por meio da imagem com a
“câmera na mão”, o Cinema Novo constituiu um dos grandes movimentos culturais do século passado
que, entre outros assuntos, extraiu do sertão matéria-prima essencial de sua produção. Assim, foram
filmados Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha e
Os Fuzis de Ruy Guerra, todos do ano de 1963.
Em meio ao diálogo entre essas obras fílmicas, há discussões em torno do fenômeno da migração
geográfica, da peregrinação messiânica, da perpetuação dos ciclos de violência social e familiar, do
coronelismo, do cangaço, do sofrimento do povo sertanejo em virtude do abandono e do desinteresse
estatal pela região, da repetição de atos comunicativo-abusivos formais e informais, da seca e do vazio
existencial.
Essas três obras cinematográficas do Cinema Novo inauguraram uma venturosa tradição de tratar
de todos esses assuntos em conjunto, de falar, expor e mostrar a vida severina de tantos anônimos sem
voz, sem rosto e sem vez.
Cinema, aspirinas e urubus, filme (2005) dirigido por Marcelo Gomes, mostrou-se um dos
melhores filmes a retomar, nos últimos dez anos, essa tradição de olhar para o sertão brasileiro,
ensejando a possibilidade de rediscussão das relações existentes entre direito, poder e violência no
Brasil sob o aspecto histórico-filosófico.
Ao longo de cerca de 100 minutos, ao espectador é contada a história de Johan, alemão que fugiu
da 2ª Guerra Mundial e chegou ao Brasil por acaso após trabalhar como garçom em navios saídos da
Europa, e de Ranulfo, sertanejo típico, cuja vida é marcada pela miséria material, pela tragédia pessoal,
pelo sentimento de abandono estatal e econômico da região e que sonha em chegar no Rio de Janeiro e
conseguir um emprego com carteira assinada, sob o argumento de que “cansou desse lugar aqui, esse
buraco”.O povo sertanejo, de forma sensível e velada, ao ser representado por várias personagens
anônimas, sem nome ou identificação, encerra o quadro de protagonistas, refletindo a própria realidade
histórico-social de esquecimento dos que sobrevivem no sertão.
Um dos primeiros elementos que chama a atenção no filme é a música “Serra da Boa Esperança”,
cantada por Silvio Caldas, com destaque para o seguinte trecho: “Serra da Boa Esperança meu último
bem; Parto levando saudades, saudades deixando; Murchas caídas na serra lá perto de Deus; Oh,
minha serra, eis a hora do adeus vou me embora; Deixo a luz do olhar no teu luar; Adeus; Os nossos
olhos nos olhos de alguém que não vem ; Serra da Boa Esperança, não tenhas receio ; Hei de guardar
tua imagem com a graça de Deus ; Oh, minha serra, eis a hora do adeus, vou-me embora ; Deixo a luz
do olhar no teu luar ; Adeus”.
Emerge desde essa canção inaugural o aspecto da migração como central na discussão
problematizadora em torno do sertão, o que marcará a trajetória das principais personagens dessa obra
fílmica. Todavia, não se trata de uma migração voluntariosa, benfazeja e venturosa; antes, cuida-se de
uma migração imposta, inevitável, ensejadora da falta de opção do sertanejo diante de um cenário de
absoluta escassez, dor e esquecimento.Cinema, aspirinas e urubus é um filme com uma fotografia
maravilhosa e forte ao mesmo tempo. Passado no contexto do Estado Novo de Getúlio Vargas, as cenas
contemplam um período curto de tempo (de 18 de agosto a 2 de setembro do ano de 1942) e concentram
sua dramaticidade no Sertão de Cariri, onde simbolicamente localiza-se Canudos.
Não custa lembrar que o Estado Novo (1937-1945), período mais duro do regime Vargas (1930-
1945), foi marcado pelo autoritarismo nacionalista, pela centralização do poder estatal, pela perseguição
aos comunistas e pela supressão de direitos fundamentais, incluindo a suspensão dos trabalhos do Poder
Legislativo e a outorga da Constituição “Polaca” de 1937, escrita por Francisco Campos.
Nas palavras de RAYMUNDO FAORO[91], “Getúlio Vargas evitaria o comunismo, conciliando
o operariado, e se afastaria do fascismo, oficializando os grupos de pressão capitalistas. O centro de
equilíbrio, igualmente afastado dos extremismos, não se situa na democracia, nem no liberalismo”.
Atentar para esse contexto histórico é ponto chave para a compreensão do filme, seja para
entender a fuga involuntária de Johan para a Amazônia, seja para captar os motivos do encantamento de
Ranulfo sobre o Rio de Janeiro, lugar que, mesmo escurecido pelas sombras de um Estado opressor, é
melhor do que o “buraco” do sertão.

SERTÃO: ESPAÇO DE EXCLUSÃO HISTÓRICO-SOCIAL


Na primeira cena do filme, uma luz intensa e brilhante invade a tela de cinema para,
gradativamente, diminuir até surgirem as primeiras imagens do sertão e de Johan dirigindo o caminhão da
Companhia Bayer, para a qual trabalha. Percebe-se desde logo que o uso desse recurso imagético de
excesso de luminosidade – a repetir-se em outros momentos – intenta reproduzir a sensação do sol
escaldante da região e do calor permanente e intenso.
Com o visual nítido, a câmera de gravação – situada no banco do passageiro (ao lado do
motorista) – expõe desde o princípio imagens da seca e da ausência de infraestrutura local, retratando o
caminho do rio sem água debaixo da ponte, cactos, pedras, galhos retorcidos de árvore e a terra batida.
O filme explora cenas chocantes, mas de forma muito sutil, de modo que é preciso estar atento aos
detalhes mostrados, a fim de absorver toda a profundidade dos conceitos-imagem estampados na tela. A
esse respeito, ensina JÚLIO CABRERA[92]:
“(...) certas dimensões fundamentais da realidade (ou talvez toda
ela) não podem simplesmente ser ditas e articuladas logicamente para que
sejam plenamente entendidas, mas devem ser apresentadas sensivelmente,
por meio de uma compreensão “logopática”, racional e afetiva ao mesmo
tempo.
(...) Mediante esta experiência instauradora e emocionalmente
impactante, os conceitos-imagem afirmam algo sobre o mundo com
pretensões de verdade e de universalidade”.

Observa-se ao longo do drama a concretude da afirmação de MARA REGINA DE OLIVEIRA, no


sentido de que “a expressão emocional, forte, mas, ao mesmo tempo, contida dos personagens, bem
como a bela, mas dura e seca, paisagem do sertão comunicam muito mais, em termos de conceitos-
imagem, do que a econômica fala verbal de todos”[93].
Johan contrasta com o cenário sertanejo até em seu trajar, o que se evidencia com o correr do
filme: usa sapatos, meias, calças compridas, camisa de manga longa e relógio, peças de vestimenta
tipicamente urbanas e “estranhas” naquele contexto. Outrossim, toma banho no meio da estrada com um
galão-recipiente, em ato de despreocupação com a possível dificuldade de acesso à água no lugar hostil e
desconhecido por onde vagueia.
Dirigindo o caminhão pela aridez das estradas, o alemão dá carona a diversos sertanejos. O
primeiro a aparecer é um senhor que entra no veículo de espingarda em punho e, depois de algum tempo,
salta e atira não se sabe no que ou em quem. O segundo sertanejo a surgir é um rapaz à beira da estrada, a
quem o motorista alemão pede informação sobre como chegar a Triunfo, uma cidade local. O transeunte
diz que não pode ajudá-lo. No terceiro encontro, o “galego” pára o caminhão e pede água a uma
paupérrima família sertaneja, formada por pai, mãe, avô e dois filhos, a qual pronta e generosamente é
fornecida a ele. Os sertanejos anônimos que surgem em cena dialogam com as figuras imagéticas do filme
Os Fuzis de Ruy Guerra, formatando a linha de continuidade na discussão acerca dos temas vinculados
ao sertão desde o Cinema Novo.
Esses primeiros minutos da obra fílmica demonstram a carência de perspectiva do povo sertanejo
diante da vida e do permanente ciclo de violência social de miséria e abandono a que é submetido desde
a infância, ao mesmo tempo em que fica latente seu conformismo pacífico ante uma situação de
incapacidade do Direito para dar solução a esse contexto de aniquilamento social, político e econômico.
Fica claro que, antes e acima de tudo, o sertanejo é marcado pelo esquecimento decorrente do Estado
omissivo e pela opressão das forças político-sociais e econômicas comissivas do sertão, como o
cangaço e coronelismo.
Em análise perspicaz, DARCY RIBEIRO[94] discorre sobre o sertanejo, sua relação com o sertão
e as formas de dominação abusivas aí instaladas:

“Apesar da penúria em que vivem, tanto o sertanejo engajado como


vaqueiro, quanto o agregado ou o parceiro que cultiva terras alheias em
regime de meação sentem-se permanentemente ameaçados desse verem
enxotados com suas famílias e de caírem na condição ainda mais
miserável dos deslocados rurais. Abaixo de cada pessoa que consegue
situar-se no sistema produtivo existe toda uma massa marginalizada,
ainda mais miserável, onde qualquer um pode mergulhar.
Essas condições dificultam ao extremo a organização política das
populações sertanejas, perdidas no deserto das terras devolutas ou
engolfadas no latifúndio. Elas nascem, vivem e morrem confinadas em
terras alheias, cuidando do gado, de casas, de cercados e de lavouras que
têm donos ciosos. O próprio rancho miserável em que vivem com suas
famílias, construído por eles próprios com barros e palhas do campo, não
lhes pertence. Nada os estimula a melhorá-lo e o proprietário não os
autoriza a enriquecê-lo com o plantio de fruteiras ou com a criação de
animais de terreiro, para que não faça jus à indenização no momento em
que devam ser despedidos”[95].

O trecho acima transcrito explica com sensibilidade os motivos que levam o sertanejo a uma
pacificidade verdadeiramente involuntária.

A ORDEM DE FUGA DO SERTÃO


O contato de Johan com o mundo dá-se por meio do rádio portátil que leva na cabine do caminhão
e que normalmente veicula músicas e notícias sobre a 2ª Guerra Mundial. Até então, meados de agosto de
1942, o Brasil não tinha tomado parte de nenhum dos lados em conflito. De alguma forma, a aparelho
radiofônico indica algum traço de modernidade que pode chegar ao sertão, o que mitiga o isolacionismo
clássico explorado nas obras cinematográficas da década de 1960.
Se, por um lado, a rádio conecta o estrangeiro alemão ao mundo – mais propriamente à Europa e à
Grande Guerra –, por outro, o contato de Johan com o sertão ocorre mais intensamente por intermédio da
figura de Ranulfo, que surge em cena como caronista e funciona como espécie de mediador cultural para
com os costumes e a realidade local[96].Durante a conversa entre ambos, o motorista-viajante revela sua
origem alemã e diz ter iniciado sua viagem há três meses partindo do Rio de Janeiro, local para onde o
sertanejo confessa pretender ir.
Essa cena, a partir do contexto e das feições de Ranulfo, evidencia que este enxerga em Johan uma
possibilidade real de conseguir “fugir” da miséria do sertão, motivo pelo qual ele propõe ajudar o
estrangeiro a chegar à cidade de Triunfo em troca de dinheiro. Surpreendido inicialmente, Johan acaba
por aceitar a oferta depois de acertarem um valor pelo “serviço”. Nesse ponto do filme surge pela
primeira vez, de forma implícita e sutil, a ideia de fuga como característica marcante da realidade do
sertanejo.
A respeito desse tema, aplicam-se com precisão as reflexões de ELIAS CANETTI sobre a questão
da “ordem”. Aduz o estudioso[97]:

“(...) a mais antiga forma de atuação da ordem é a fuga. Ela é ditada ao


animal por algo mais forte, por uma criatura exterior a ele. A fuga é
espontânea somente em aparência; o perigo sempre possui uma forma, e,
sem que a tenha vislumbrado, animal algum foge. A ordem de fuga é tão
forte e direta quanto o olhar (...) A “ordem” obriga o animal mais fraco a
pôr-se em movimento, sendo indiferente que este venha ou não a ser
realmente perseguido”.
É fácil perceber a partir desse arcabouço teórica que, para além do abandono estatal e de um
dilaceramento das relações sociais, oprimidas pelo coronelismo local e por outras formas de
autoritarismo, o sertão possui uma ordem, uma série normativa informal disciplinadora das relações
sociais, políticas e econômicas locais, sendo a fuga permanente do sertanejo (concretizada pelas
constantes migrações para centros urbanos próximos e distantes) a expressão e consequência maior dessa
ordem.
MARA REGINA DE OLIVEIRA[98], dissecando as relações de poder e dominação existentes no
sertão, aduz que “o chamado Brasil informal, indiferente aos padrões jurídicos e políticos oficiais, é
institucionalizado tanto pelas elites dominantes, ou seja, pelos coronéis, políticos e padres católicos,
como pelos dominados rebeldes, representados pelos beatos e cangaceiros”.
Por isso que são as relações abusivo-comunicativas – decorrentes do cangaço, da liderança
religiosa fanática, do coronelismo – a “criatura exterior” que ameaça o sertanejo e coloca em xeque sua
própria vida, impondo-lhe a fuga para garantia de sua própria sobrevivência.
Ainda no correr do diálogo, Johan diz a Ranulfo que trabalha com medicamentos e que vende
aspirina, o que este retruca dizendo – ilustrativamente – que se esse remédio “ajudar a matar a fome
desse povo aí, o moço vai fazer dinheiro”. Nesse momento, outro sertanejo anônimo aparece em cena
andando sozinho pela estrada, o que demonstra a falta de direção (perspectiva) do povo local, porquanto
Ranulfo e Johan pararam para comer e descansar, aparentemente, em meio ao nada.
Enquanto o empregado da Bayer dorme um pouco depois do almoço, o sertanejo Ranulfo
contempla o caminhão e o slogan publicitário “Aspirina: o fim de todos os males” sem entender muito
bem o que tal frase poderia significar.No fim do dia, ao chegarem a um vilarejo – nada mais que duas
fileiras de casas geminadas separadas por uma rua de terra e uma igreja ao fundo –, a câmera “passeia”
pelos rostos dos habitantes locais, enchendo a tela com as marcas visíveis do sofrimento do povo.
Ao montarem a estrutura onde será exibida a propaganda da aspirina, Ranulfo pede ajuda de um
morador local e reclama, dirigindo-se a Johan: “Viu? Esse povo é cismado, pirangueiro, mesquinho, do
tempo do ronco... como é que o moço vai convencer eles a comprar um remédio novo, com esse povo
atraso?”. Essa fala demonstra que Ranulfo não se sente integrante daquela gente, em clara negação de sua
própria identidade, ao mesmo tempo em que repete com seus conterrâneos a violência social sofrida por
ele durante toda a vida.
Embora não seja esse o tema principal do filme, as trajetórias de Johan e Ranulfo trazem à tona
reflexões em torno da dimensão existencial do humano. Johan, um alemão desterrado pela guerra, e
Ranulfo, um sertanejo esquecido em sua terra. A despeito de viverem situações completamente distintas,
nenhum dos dois encontra amparo ou conciliação consigo mesmo nessas condições.
Em termos lúdicos, o ponto alto do filme situa-se na projeção de cinema (propaganda da aspirina).
Os moradores do vilarejo, ao assistirem às cenas, relaxam, sorriem, divertem-se. Ranulfo, também, fica
encantado e comenta: “Pelo que diz aqui, isso faz vender Bíblia para Satanás, menino!”. Após a
exibição, os moradores todos fazem fila para comprar o medicamento.
Com sutileza, essa cena de enfileirados revela que a compra da aspirina representa uma busca
alienante – e não desconfirmadora – das pessoas locais na tentativa de “superação” da realidade
comunicativo-abusiva do sertão. Interessante observar que o quadro de opressão presente é tamanho que
sequer estimula qualquer revolta. Antes, instala-se a completa resignação por ausência completa de
opções melhores àquela dura realidade, sendo a alienação pelo uso da aspirina o caminho mais “óbvio”
para afastar o sofrimento.
O contexto da cena denota ainda a confirmação do capitalismo como mecanismo regulador das
relações econômicas, na medida em que não há limites para a expansão mercadológica de venda de
medicamentos (ou de qualquer outro produto, a bem dizer), mesmo em lugares esquecidos pelo Estado e
de absoluta carência social.
Pela manhã, Johan escuta pelo rádio: “os horários de partida dos navios do governo para a
Amazônia foram mudados. Agora são dois cargueiros saindo do porto do Recife nas quartas e sextas e
de Fortaleza nas quintas e sábados. Os interessados podem se inscrever nas Prefeituras. Avante,
soldados da borracha! E o Brasil sempre em marcha!”. Sem entender o que se passa, pergunta a Ranulfo
o significado da mensagem, o qual explica que “o governo pega os retirantes, os miseráveis e manda
tudo para a Amazônia. Chega lá, você tem que ficar trabalhando no seringal, fazendo borracha pra
americano usar na guerra”. E completa, perguntando se ele nunca viu “os trens empesteados de
gente”... porque “pra Amazônia é de graça”.
Dessa vez reaparece o tema da fuga de maneira explícita, reafirmando a ordem abusiva do sertão
e sua cadeia informal de relações de dominação. Salienta ELIAS CANETTI que “a ação que é
executada sob uma ordem é diferente de todas as demais ações. Ela é percebida como algo alheio (...)
A ordem provém, pois, de algo estranho àquele que a recebe, mas algo que tem também de ser
reconhecido como mais forte. Obedece-se porque uma luta não teria nenhuma perspectiva de êxito; o
vencedor seria aquele que deu a ordem”.
Essa é a tradução teórica da falta de perspectiva de vida do sertanejo. Ele não se reconhece como
possível vencedor de uma contraordem. Por isso não há alternativa senão a de assumir as poucas
imposições da realidade. No caso, entre a realidade inexorável do sertão e a possibilidade de algo
incerto na hostil região da Amazônia, muitos preferem esta imposição àquela. Ao contrário da assumida
“violência razoável” perpetrada pelo Direito institucionalizado, o sertanejo é objeto de uma complexa
trama de violência não-razoável do Estado, dos poderes locais e da própria geografia desfavorável.
Tratando da “violência razoável’, TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR.[99] afirma que:

“a violência não entra no direito pela porta da lei, nem da


instituição nem dos valores. Ela pressupõe os três fatores numa só
correlação. O ato legal que viola a instituição por medida violenta, ou o
ato violento amparado nas instituições criminosas que desrespeitam os
valores socialmente aceitos são, todos eles, antijurídicos. Como são,
também, os atos de força que se amparam em valores sem respaldo legal.
Todos correm o risco de entrar na escalada da violência, à medida que
seja baixa sua quota de legitimidade legal, institucional e valorativa”.

A lei do sertão não é, pois, a do Direito formal institucionalizado. Como se demonstrará à frente,
há muitos elementos para se equiparar a situação do sertanejo à de um prisioneiro de um campo de
concentração, ainda mais se considerado o contexto da 2ª Guerra Mundial, época histórica da narrativa
(1942).
Retomando a viagem para Triunfo, Ranulfo e Johan param para almoçar em um bar-restaurante na
estrada. Em conversa com o dono do estabelecimento, em que o tema Amazônia é tratado, o senhor
afirma que nunca quis ir para aquela região porque “lá é perigoso” e que no Brasil a guerra “chega, não.
Nosso Brasil é bom demais. Calmo”, o que motiva um olhar inconformado de Ranulfo. O filme
demonstrará que a opinião do dono da venda está equivocada.
A viagem segue com outros caronas sertanejos. A certa altura, na estrada, motorista pára o
caminhão e tenta entender uma “cena” no meio do caminho: vê um sertanejo alterando a cerca (feita de
madeira seca torcida) de lugar. Ranulfo desce para saber o que estava ocorrendo e, ao voltar, explica que
“o rio estava tão seco que as vacas estavam tudo fugindo pro lado. Aí, ele teve que cercar”. Johan acha
“interessante” e Ranulfo pergunta: “o que que o moço acha de interessante num lugar tão miserável
como esse? Aqui é seco e pobre”. O alemão responde, bastante incomodado e com a sensação de quem já
viveu a guerra: “mas pelo menos não caem bombas do céu”.
Com apenas Johan e Ranulfo no carro, este reclama: “se o moço parar na estrada pra toda essa
corriola que pede condução, a gente vai chegar no Rio de Janeiro no ano que vem”. Ao ouvir isso,
Johan fala: “mas o senhor não pediu uma condução também?”. Ranulfo: “mas esse povo só faz sujar
seu carro”. Johan: “esse povo que o senhor está falando... o senhor também faz parte dele, não é?”.
Ranulfo gesticula com a mão em sinal de mais ou menos. Johan, então, pergunta: “como mais ou
menos?”. Sem nenhuma resposta de Ranulfo, sobe outro caronista.
Na manhã do dia seguinte, a rádio alardeia que os primeiros sobreviventes do navio brasileiro
bombardeado pelos Nazistas chegam ao litoral de Pernambuco e que o barco estava perto de Sergipe.
Ranulfo exclama: “Vixe... Sergipe é aqui perto”. O noticiário da rádio anuncia ainda que “as reações aos
ataques já começam em todo o Brasil”, o que deixa Johan levemente apreensivo.
Gradativamente a “guerra” vai aproximando-se de ambos.
Ao pararem o caminhão novamente para pedirem água a uma família sertaneja pobre e isolada,
Johan grita ao ser picado por uma cobra. Ranulfo, então “sangra a ferida” com uma faca e chupa o local
para extrair o veneno, em total conhecimento da aspereza da situação. Após esse ocorrido, cuida do
alemão por dois dias até sua melhora.
Após o incidente, já curado e como compensação por ter salvado sua vida, Johan ensina Ranulfo a
dirigir o caminhão, para viabilizar o sonho do sertanejo de, quem sabe um dia, ser contratado pela
Companhia Bayer. Após algum treino de direção, retornam à estrada e o alemão decide “celebrar” a vida
ao chegarem em Triunfo ao perceber que tudo pode acabar em um segundo, seja ou não pela Guerra,
convidando Ranulfo para acompanhá-lo.
No caminho para o destino urbano, enquanto Ranulfo dirige, a rádio anuncia: “Notícias da
Paraíba. Outra pirataria nazista. Foi preso nesta manhã na Paraíba um alemão que supostamente
enviava mensagens de localização de navios na costa brasileira. Dentro da casa do referido alemão,
foram encontradas suásticas... o alemão foi levado ao campo de concentração em Aldeia, perto de
Recife, onde ficará preso”. Ranulfo tenta tranquilizar Johan dizendo que não há bomba que chegue nesse
fim-de-mundo.
Já em Triunfo, o estrangeiro diverte as crianças “desenhando” o voo dos urubus com as sombras
projetadas de suas mãos em frente à luz do farol do caminhão, enquanto Ranulfo vende aspirinas aos
locais. Um homem (espécie de coronel local) dirige-se ao alemão e diz que pode comprar todo o estoque
de aspirina e anunciar por toda a região. Enquanto acompanha essa conversa, Ranulfo olha desconfiado,
com medo de “ser trocado” e perder a oportunidade de sair daquela realidade de miséria.
Na negociação com Johan, o homem diz que venderá mais caro o medicamento para compensar os
custos. Johan concorda. O homem de nome Claudionor José Pereira Carneiro de Assis, o que inspira
alguma ascensão social, fala: “Aspirinas e cinema na minha Triunfo... quanta honra”, denotando a ideia
de posse sobre a região. Claudionor leva Johan e Ranulfo para sua casa e os apresentam à sua esposa,
Adelina. Todos brindam desejando o fim da Guerra.
Ranulfo e Johan saem da casa de Claudionor, após venderem todo o estoque da mercadoria, e o
alemão fala: “amanhã já é nosso caminho de volta. Você vai ser meu ajudante, já é contratado, viu”.
Para comemorarem o sucesso da empreitada e o iminente retorno ao Rio de Janeiro, dirigem-se ao
puteiro da cidade. Chegando lá, reencontram Claudionor, que discursa (na presença de Johan): “Meus
prezados, Triunfo vai ser a nova capital de todo o sertão. Estamos inaugurando uma nova Era. E, por
isso, eu quero brindar a proeza desse alemão autêntico, que veio lá do outro lado do mundo para
trazer o futuro para a nossa cidade...”. Brindam. Ranulfo brinca com Johan dizendo: “todo mundo
admirado com tu, parece até que nunca viram um estrangeiro antes”, denotando a clara valorização da
cultura nacional de que o que vem de “fora” é tido sempre como melhor.
Claudionor gaba-se do sucesso que será representar a Aspirina por todo o sertão: a cena não
deixa dúvida de que a comercialização da aspirina não passa de um projeto de poder local em total
desconexão com a necessidade dos sertanejos.
Revelando essa intenção cênica, o “coronel” discursa novamente: “Meu nome vai estar escrito
em cada rua e antes de cada filme vai aparecer: Aspirina, uma organização Dr. Claudionor”. Ranulfo,
nesse momento, retruca: “o senhor vai ganhar é dinheiro”. Johan ameniza: “os filmes são muito bem
feitos. Eles impressionam todo o mundo. Uma pessoa que nunca tem dor de cabeça vai começar a ter
somente para tomar remédio”. Ante tal comentário, Claudionor brinca ao dizer “principalmente os
cornos, né, seu Edivaldo”. Ranulfo provoca Claudionor e fala, rindo: “Arretou-se. Esse é o sertão:
miséria, coronel e piada de corno”. Então, Claudionor dirige-se a Ranulfo retrucando: “eu não sou
coronel, eu sou empresário”. Ranulfo: “é a mesma coisa”. Claudionor: “não é”. Ranulfo: “qual é a
diferença?”. Claudionor: “A diferença é que se eu fosse coronel, eu já tinha mandado meu capanga te
pegar. Mas como eu sou empresário, eu mesmo posso fazer isso... não preciso mandar ninguém” Johan
tenta amenizar o” clima” da conversa entre Ranulfo e Claudionor dizendo que aquele está bêbado, que
todos estão bêbados. Ranulfo e Johan passam a noite no puteiro se divertindo-se.
É evidente que o “empresário” Claudionor é uma releitura da figura do coronelismo nos tempos
modernos, ficando claro que as relações de poder e dominação no sertão pouco mudaram de fato em
relação às últimas décadas. Assumem hoje uma nova roupagem, mas com a mesma essência.

A EXCEÇÃO COMO REGRA E OS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO NO BRASIL:


DO SERTÃO À AMAZÔNIA
Cinema, aspirinas e urubus é um filme sutil e pouco óbvio. Johan, Ranulfo e os sertanejos
anônimos – as três personagens principais – interagem a cada instante em meio às mazelas do sertão, de
modo que sequer a venda de todo o estoque das aspirinas enseja um final feliz.
Isso porque no dia seguinte, quando Johan voltaria para o Rio de Janeiro acompanhado de
Ranulfo, o que constituiria para este a redenção com a concretização de sua fuga do sertão e para aquele
um retorno triunfal, o estrangeiro dirige-se ao uma repartição local dos Correios (que possui uma foto do
presidente de Getúlio Vargas estampada na parede) e recebe um telegrama. Ao dar para Ranulfo lê-lo, o
qual o faz com extrema dificuldade, ouve o seguinte: “Senhor Johan (...), Decreto 2132 de 31 de agosto
de 1942. O governo brasileiro decidiu declarar guerra à Alemanha e seus aliados. Nesse processo, a
Cia. Aspirina fica, a partir de agora, sob intervenção federal. Seus principais Diretores e Gerentes
presos e levados para campos de concentração no interior de São Paulo. Senhor Johan, deve voltar à
capital e partir imediatamente para seu país de origem, a Alemanha, ou se dirigir a algum campo de
concentração a ser determinado”.
Johan introjeta o teor da mensagem com uma mistura de inconformismo e descrédito, ficando triste
e um tanto perdido, sem saber o que fazer. Essa cena, em particular, contrasta diretamente com a cena
(anterior) em que o dono da venda onde Johan e Ranulfo almoçaram dizia que o Brasil é um país bom
demais, calmo, sem guerra. Pois bem, a Guerra acabara de chegar ao Brasil e atingia diretamente as
vidas dos protagonistas.
Surge a certeza para ambos de que não há como se esquivar das grandes tragédias humanas.
De volta para a estrada, Johan pára o caminhão e desce em meio a um ataque de raiva, proferindo
palavrões em alemão. Ao presenciar tal reação, Ranulfo fala consigo mesmo: “êta exagero da gota”,
com a “frieza” de estar acostumado com as adversidades cotidianas.
À noite, no mesmo dia, ouvem pela rádio notícias de que uma multidão incontrolável havia
invadido a fábrica italiana de refrigerantes Frateliti em Recife e depredado lojas cujos donos teriam a
nacionalidade dos países do Eixo. Curiosamente, o patrocinador da rádio é uma empresa italiana, o que
novamente traz a ideia de confirmação do capitalismo independentemente do conflito armado. Irritado,
Johan lança o aparelho de rádio à distância, destruindo-o, por se perceber sem saída: não poderia voltar
para o Rio de Janeiro, nem regressar para a Alemanha e tampouco desejava ir para um campo de
concentração no Brasil.
Na manhã seguinte, Johan olha atento com um quê de melancolia suas fotos antigas e seu
passaporte alemão (com a suástica nazista), pois sabe que seu passado terá de ser esquecido e escondido
a partir daquele momento. No meio dessa cena, vira a última página do passaporte, sem carimbo, o que
demonstra angústia na dúvida incutida sobre qual será o seu próximo destino. Pega todos os documentos
e, sem Ranulfo por perto, sai caminhando em meio à vegetação árida para escondê-los. Começa a
vasculhar um bom lugar e, ao levantar uma pedra, depara-se com uma cobra cascavel. Assustado, pega
um pau para matá-la, mas não o faz... Apesar de toda a situação, seu senso de justiça e humanidade não
foram perdidos.
À noite, em uma cena tocante, acendem uma tocha (“faixeiro”) e brincam de estarem no campo de
batalha. Johan reflete que se ele e Ranulfo tivessem ido para a Guerra, seriam inimigos. Bebem. Um
começa a falar o que pensa efetivamente do outro. Johan fala que Ranulfo é chato, reclama de tudo e não
passa de um “ladrãozinho de aspirina”. Ranulfo fala que Johan é um “galego que acha tudo
interessante” e que salvou sua vida da picada de cobra.
Então, Johan anuncia que decidiu ir para a Amazônia e convida Ranulfo: “você pode ser meu
ajudante...”. O sertanejo pergunta sobre o caminhão, o que Johan responde que “não precisamos dele
para pegar um trem para a Amazônia”, deixando Ranulfo triste, pois o caminhão sempre representou a
viabilidade de sua fuga concreta do sertão.
No dia seguinte, ambos caminham em direção à estação de trem mais próxima. Johan veste roupas
locais. Depois de atravessarem uma cerca de arames farpados, chegam à estação de trem, lotada de
sertanejos anônimos, e observam urubus voando no céu. A câmera enfoca famílias inteiras chegando com
malas à estação, numa aparente voluntariedade. Esse cenário e os arames farpados que margeiam os
trilhos inferem a angustiante e precisa alusão ao “recrutamento” de judeus enviados para os campos de
concentração na Europa.
É nesse ponto que se fazem presentes os ensinamentos de GIORGIO AGAMBEN[100] sobre os
paradoxos da soberania, incluindo a ideia de exceção como regra:
“(...) A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso
singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza
propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa
disto, absolutamente fora da relação com a norma; ao contrário, esta se
mantém em relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica
à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é,
portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua
suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo,
capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída.
(...) A situação, que vem a ser criada na exceção, possui,
portanto, este particular, o de não poder ser definida nem como uma
situação de fato, nem como uma situação de direito, mas institui entre
estas um paradoxal liminar de indiferença. Não é um fato, porque é criado
apenas pela suspensão da norma; mas, pela mesma razão, não é nem ao
menos um caso jurídico, ainda que abra a possibilidade de vigência da
lei.
(...) a soberania não é, então, nem um conceito exclusivamente
político, nem uma categoria exclusivamente jurídica, nem uma potência
externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema do ordenamento
jurídico (Kelsen): ela é a estrutura originária na qual o direito se refere à
vida e a inclui em si através da própria suspensão. Retomando uma
sugestão de Jean-Luc Nancy, chamemos bando (do antigo termo
germânico que designa tanto a exclusão da comunidade quanto o
comando e a insígnia do soberano) a esta potência (no sentido próprio da
dýnamis aristotélica, que é sempre também dýnamis mè energeîn, potência
de não passar ao ato) da lei manter-se na própria privação, de aplicar-se
desaplicando-se. A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele
que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e
indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado
em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno, se confundem
(...)”.

Esse cenário trágico motiva a seguinte fala sóbria e consciente de Ranulfo: “Que situação desse
povo... perdeu tudo e ainda é obrigado a ir para aquele fim de mundo. Eu não quero isso pra mim, não,
viu”. Johan retruca: “a gente chega lá em outra condição”. Ranulfo argumenta: “Eu sei, mas eu tenho
que lhe dizer uma coisa. Eu vou ficar até o trem chegar. Depois eu vou-me embora”. Johan pergunta:
“Como isso? Desistiu?”, o que Ranulfo responde: “Desisti não. Eu vou enfrentar. Vou fazer o que você
vai fazer lá na Amazônia. Vou fazer meu destino...”. Johan pergunta: “E por que não pode ser lá?”.
Ranulfo responde: “Porque meu destino é outro. Mas pra tu é melhor ficar lá mesmo e só sair quando a
Guerra acabar”.
Urubus sobrevoam a região. Aparece um mensageiro da estação e diz, com rispidez, a todos os
presentes: “Vocês vão até Fortaleza de trem e de lá tomam um navio até a Amazônia. Só entram no
trem quando eu mandar e lá em Fortaleza só sai quando eu mandar e ensinar o caminho até o vapor...
estão me ouvindo?!?”. Ao ouvir esse discurso, Ranulfo reclama: “O país tá cheio de filha-da-puta. Bota
uma farda e, pronto, sai gritando com todo o mundo. Isso é jeito de tratar gente?”, o que Johan retruca:
“Você tratava as pessoas às vezes assim no caminho...”. Ranulfo responde: “Eu fiz o que fizeram
comigo... agora mudei... posso não, é?!?”. Eis a repetição do ciclo de abuso-comunicativo e violência
estampado na fala do sertanejo.
O mensageiro manda que todos fiquem sentados porque “a polícia vai fazer uma vistoria”. Nesse
momento, Johan se esconde no banheiro da estação. Chega o trem da companhia inglesa Great Western of
Brazil Railway (GWBR). O povo amontoa-se para subir nos vagões, sem assentos, feito gado. Ranulfo
chama Johan (escondido no banheiro) apenas quando o trem está para partir. Em agradecimento, o alemão
entrega ao sertanejo a chave de ignição do caminhão. Aparecem imagens das famílias nos vagões... com
total desesperança e dor...o trem parte.
Na última cena do filme, Ranulfo aparece próximo ao caminhão; entra, liga o motor e dirige...
feliz. A iluminação aumenta até toda a tela ficar branca. O final é poético e de alguma forma esperançoso,
mas sem destino certo para as personagens principais, pois não se sabe se qualquer deles conseguirá
chegar no destino traçado.

REFLEXÕES FINAIS
O filme Cinema, aspirinas e urubus expõe a situação trágica do sertão vivida por três
personagens: Johan, alemão desterrado pela guerra, Ranulfo, sertanejo que tenta fugir da situação de
penúria em busca de algo melhor para si, e o sertanejo anônimo, sofrido, esquecido, manipulado pelas
relações de força política, social e econômica.
É uma película com um roteiro de ficção, mas que estabelece permanente diálogo com a realidade.
Nas palavras de ISMAIL XAVIER, “a deriva de Johan o torna um retirante sem nome que partilha o
destino de brasileiros pobres ironicamente enredados na Guerra. Seu gesto de desterritorialização
implica em escolher uma das alternativas postas pela malha dos poderes nacionais que sempre
rejeitou em nome de uma disposição humanista ao diálogo sem fronteira”.
De certa forma a história de empregado alemão revela que a condição de retirante – a ele também
imposta ao final da obra cinematográfica – é sempre decorrente de circunstâncias alheias e por motivos
de natureza política, econômica e social, nunca optativa, o que aproxima as críticas vinculadas às
circunstâncias do sertão à crítica universal em torno da miséria e do esquecimento.
A situação de completo abandono desse espaço humano-geográfico aparece ao longo de toda a
narrativa como regra vivida, apesar de o sertão constituir um lugar de inequívoca exceção à ordem
jurídica formal do Estado. Os conceitos-imagem extraídos da obra trazem a força que poucos argumentos
teóricos poderiam alcançar, haja vista a imanente “impressão de realidade”[101] estampada na tela de
cinema, que se impõe com força à realidade[102].
Se, por um lado, o motorista alemão surge em Cinema, aspirinas e urubus como detentor de uma
posição social e econômica privilegiada em relação ao sertanejo, ao longo da trama sua condição vai
gradativamente igualando-se à de um retirante comum, de modo que também passa a ser destinatário da
ordem de fuga que aflige todos que compartilham daquele contexto social.
Essa “virada” da personagem estrangeira pode ser bem explicada pela teoria da norma-
comunicação, visto que as relações existentes entre direito, poder e violência no Brasil são dinâmicas e
podem ser alteradas a partir da interação entre os diferentes contextos e personagens.
Leciona MARA REGINA DE OLIVEIRA que a legitimidade das autoridades aparentes tem por
base a dissimulação das relações de poder pretéritas existentes. É justamente o caso do sertão, que
apresenta uma histórica cadeia de poder informal encabeçada por coronéis, líderes religiosos, líderes
cangaceiros, figuras essas que, em algum sentido, foram e continuando sendo “encorajadas” por um
Estado omissivo. Todavia, nenhum desses atores cultiva um efetivo interesse na região sob o aspecto
humano e social.
Ranulfo é uma personagem emblemática e vivencia bem os efeitos desse “desinteresse”. O filme
nem ao menos mostra o sertanejo deixando a aridez do sertão. Na melhor das hipóteses, ele aparece feliz,
dirigindo o caminhão na última cena, mas nada indica que tenha conseguido realmente fugir do “campo de
concentração” sertanejo.
Na verdade, Ranulfo protagoniza uma releitura dos falsos voluntarismos e opções de caminhar do
sertanejo, pois sequer tem dinheiro para encher o tanque de combustível do caminhão, a fim de chegar ao
Rio de Janeiro.
O final da película é sutil e reimprime todas as críticas colocadas ao longo do roteiro percorrido
pelas personagens. O próprio caminhão reforça o ar fugidio da região, pois o veículo que seria um
mecanismo de liberdade do humano, viabilizando o alcance de longas distâncias em pouco tempo,
representa de fato uma possibilidade de fuga naquele contexto do interior nordestino.
Incumbe salientar que Ranulfo é um entre tantos sertanejos sem nome que aparecem na tela, o que
revela que, mesmo a chance de sair daquelas condições miseráveis de vida, não passa de uma simples e
improvável possibilidade.
Cinema, aspirinas e urubus, para além de cinema, aspirinas e urubus, constitui uma crítica
veemente aos abusos decorrente da violência não-razoável inscrita pelas relações de poder e autoridade
que historicamente insistem em repetir seu ciclo na formação da cultura brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino. 5ª ed. São Paulo:
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BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006.
CABRERA, Júlio. O cinema pensa: uma introdução à Filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro:
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FILMOGRAFIA
CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS. 2005. Diretor: Marcelo Gomes.
DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL. 1963. Diretor: Glauber Rocha.
OS FUZIS. 1963. Diretor: Ruy Guerra.
VIDAS SECAS. 1963. Diretor: Nelson Pereira dos Santos.
REFLEXÕES SOBRE O FILME ÁRIDO MOVIE E O PROBLEMA DA LEGITIDADE
JURÍDICA
Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho[*]

INTRODUÇÃO
O estudo a ser empreendido a seguir parte da premissa de que toda forma de expressão artística,
independentemente de seu estilo e/ou da escola a que se filie, consiste em nada menos que um esforço
humano voltado à realização da tarefa de valorar e reconstruir o mundo/realidade e alguns – ou muitos –
de seus problemas, a partir de certas posições e pontos de vista, que podem ou não ser intencionais.
Daí por que o Cinema, da mesma forma que a música, a literatura, a arquitetura, enfim, como todas
as manifestações da “linguagem artística”, consiste em uma interpretação que se faz do mundo a partir de
um conjunto de escolhas adotadas pelos envolvidos no processo de (re)criação, objetivando exprimir
certas sensações e/ou ideias a respeito de uma história ou “estória” e de uma infinidade de temas que
lhes são subjacentes.
Realmente, a chamada “linguagem cinematográfica” vale-se de uma série de recursos – câmeras,
lentes, movimentos, angulações, recortes etc. – para a captação de cenas, mais tarde utilizadas, não
necessariamente de modo linear, para a composição final da peça-filme, sendo certo que, “na ficção ou
no documentário, [ela] constitui-se através de uma manipulação permanente”[103] e que conduz a um
resultado.
É nesse sentido que Jean-Claude Bernadet afirma, com toda propriedade, afirma que o Cinema
seria:
“Uma sucessão de seleções, de escolhas de como filmar, escolha de
ângulos, depois, de como montar, tendo em vista várias opções de
sequências, que são constituídas de cenas, que por sua vez são compostas
por planos, entendidos como a extensão do filme compreendida entre dois
cortes, ou seja, como um segmento contínuo de imagem”[104]
É certo, como observa Mara Regina de Oliveira, que todos esses elementos constituintes da
“linguagem cinematográfica” não podem ser encarados como tendo “um sentido a priori, pois sua
significação é construída pelo homem, não apenas na sequência de planos, mas na manipulação
dentro do próprio plano”, que lhes confere consistência “pela sua presença num contexto mais
geral”[105]
Porque um filme não é outra coisa senão uma particular interpretação que se faz do
mundo/realidade, há nela uma constante ambiguidade decorrente da “operação linguística
seleção/montagem” que se busca neutralizar pela “impressão de realidade no expectador, que deve se
lembrar mais do enredo e dos personagens” do que dos elementos e recursos utilizados[106] na
construção do conceito-imagem que se procura transmitir.
Nessa conformidade, uma peça de Cinema é, a um só tempo, fruto de interpretação (aquela
adotada pelos seus criadores) e objeto de interpretações (aquelas leituras a serem feitas pelos seus
espectadores), residindo justamente nisso o fato de que, não raramente, o resultado pretendido pelo (s)
artista(s) não coincide com as impressões efetivamente deixadas pela obra em seus destinatários.
É que a chamada “situação cinema”, marcada por isolamento visual e acústico, pela sensação de
lentidão/tédio e pela sensação de indefinição, aliada ao “estado passivo voluntário do espectador”,
conduz a uma entrega que permite ao consciente e ao inconsciente que se comuniquem entre si, fazendo
com que duas pessoas jamais possam vivenciar de modo idêntico a experiência de um filme, que, por
isso, termina, em termos coletivos, sendo altamente anônima e individual[107] [108].
Bem se vê, portanto, que a busca pelo sentido de uma obra de Cinema suscita problemas
semelhantes aos que surgem quando se busca o sentido de uma lei: em ambas as situações aparecer a
permanente tensão, situada em nível linguístico-interpretativo, entre o que se quis dizer e o que
efetivamente se disse com determinada mensagem transmitida.
No plano das mensagens normativas (leis), de fato, a tensão aparece sob a forma da clássica – e
inútil – disputa comparativa entre o “valor” da vontade do legislador (mens legislatoris) e o “valor” da
vontade da lei (mens legis), para os fins e efeitos de solucionar conflitos decorrentes da vagueza e
ambiguidade dos termos empregados por certos textos normativos[109].
No plano das mensagens cinematográficas (filmes), semelhantemente, a tensão aparece sob a
forma de possíveis discrepâncias entre a vontade do criador (mens creatoris) e a vontade da criatura
(mens creatura), no sentido de que, não raro, o filme é realizado para transmitir mensagem X, porém
termina sendo “lido” pelo auditório como arauto da mensagem Y, como comumente se diz ter ocorrido
com Tropa de Elite (José Padilha).
Sem desprezar a importância de se buscar a interpretação do criador que se materializa por
intermédio da composição final de Árido Movie, o que poderia render farto material investigativo e
riquíssimas discussões, optamos por privilegiar o “lado auditório” do filme, isto é, a busca pelas
interpretações passíveis de serem feitas do filme de modo independente do mens creatoris.
Assim, optamos por encarar o filme como um catálogo involuntário de problemas de elevada
importância no campo da Filosofia do Direito, que serão abordados nas linhas que se seguem sem
qualquer intenção de solucioná-los, mas, apenas e tão somente, com ímpeto provocativo, na esperança de
contribuir para que nosso leitor lance “novos” olhares sobre as velhas estruturas de poder e abusos de
nossa sociedade.
Nesse mister, trataremos de selecionar algumas dessas problemáticas e utilizá-las como focos ou
portas de acesso para as questões filosóficas relacionadas, não sem antes esboçarmos um resumo da
trama e tecermos breves considerações sobre nossas impressões gerais sobre o filme.

BREVE SÍNTESE DA TRAMA (SEM SPOILERS)


Jonas (Guilherme Weber) é homem do tempo em São Paulo e tem de retornar, após longos anos, a
sua cidade natal – Braga/PE –, por ocasião do assassinato de seu pai, uma figura poderosa no sertão
pernambucano, cujo funeral aguarda a sua chegada, por determinação de sua avó, verdadeira matriarca
daquela família tradicional da região.
Em sua viagem, Jonas conhece Soledad (Giulia Gam), documentarista interessada em retratar, por
meio de seu trabalho, a problemática envolvendo a falta d’água no sertão nordestino, com quem termina
se relacionando sexualmente e se envolvendo afetivamente, havendo indícios, inclusive, de que os
personagens vêm a ter filho juntos ao final da trama.
Paralelamente à difícil jornada de redescoberta das origens por que passa Jonas, seus amigos Vera
(Mariana Lima), Bob (Selton Mello) e Falcão (Gustavo Falcão), a pretexto de prestarem apoio ao
protagonista em um momento difícil, o seguem até Braga/PE. Porém, desviam-se de seu objetivo
principal ao conhecerem o bar onde trabalham Zé Elétrico (José Dumont) e Wedja (Suyane Moreira),
onde, inicialmente, bebem, cantam e dançam e, após, seguem em busca de uma plantação de maconha
existente na região, na qual terminam tendo uma “grande viagem” e são surpreendidos pelos “donos” da
maconha, que os agridem violentamente, em termos físicos e morais.
Em Braga/PE, Jonas é confrontado por sua família, na pessoa de sua avó, a vingar a morte de seu
pai e, com isso, restaurar e preservar a “honra” de seu “clã” e, assim, afirmar a posição de superioridade
dessa oligarquia patriarcal na região que ocupa, explora e domina.

IMPRESSÕES GERAIS SOBRE O FILME


Árido Movie, dirigido por Lírio Ferreira, em 2006, é um filme que congrega um grande número de
personagens e também um grande número de estórias paralelas, todos interagindo em um ritmo muito
próprio, quase que de confusão e psicodelia, o que o torna tremendamente hermético, no sentido de
causar o espectador a sensação de dificuldade em entrar na trama e em posicionar-se em relação a ela.
De modo aparentemente intencional, ao imprimir no expectador o tom de confusão/psicodelia, a
produção trabalha com noções não convencionais de unidade, poder e foco imagéticos, promovendo um
corajoso abandono do “linear”, tão presente no cinema tradicional e com o qual estamos habituados. Com
êxito, o filme força o espectador a uma outra estética, mais arrojada, causando duradoura perplexidade
quanto à abordagem proposta.
Incessantemente, a obra procura trabalhar com a impressão de secura, porém, nesse aspecto,
termina sendo recorrente e muitas vezes explícito, o que, a nosso ver, reduz o seu poder persuasivo, na
medida em que sequestra o espectador de sua capacidade de sentir e de intuir a questão da água a partir
de elementos outros que não os textuais, sendo excessivo em didatismo.
É o que se nota a partir das cenas iniciais, em que aparece o mar de Recife, dos diversos diálogos
sobre a falta d’água, das torneiras secas, dos caminhões-pipa, da figura do “achador de água” e da figura
de “Meu Velho” – uma espécie de guru da água – retratados por Soledad, bem como pela frase “Excesso
de informação, falta d’água” que aparece ao final do filme...
Ainda, a trama contém uma série de intertextualidades, algumas bem sucedidas, sendo
emblemática a aula que Bob dá sobre como se deve apertar um “baseado”, estabelecendo um sutil
diálogo com cena de sobre como montar uma arma presente em Baile Perfumado, obra de suma
importância na carreira de Lírio Ferreira (diretor). Outras referências, contudo, acabam sendo
exageradamente explícitas, como o diálogo em que Jonas pergunta a Soledad “Você leu O Estrangeiro do
Camus?” (de certa forma explicando o modo reticente e de certo modo anônimo com que se porta o
protagonista a todo momento) e o trocadilho “ ‘Bocas Secas’, de Graciliano Ramos” que Bob faz com a
obra desse autor, comprometendo, novamente, o poder persuasivo do não textual no cinema.
Por outro lado, o filme mostra a habilidade dos seus produtores do uso da câmera, tornando-o rico
em termos estéticos. Há uma série de cortes e ondulações muitíssimo bem pensados e que certamente
contribuem para o tom confuso e psicodélico com que o filme trabalha. A esse respeito, vale referir a
cena em que uma cigana faz adivinhações em meio a uma praça repleta de pessoas, com intercalações
entre as figuras de Jonas, Soledad, da cigana e dos anônimos ali presentes. Também é emblemática a cena
em que Jonas tem alucinações em plena vegetação do sertão, após provar de um “chá” psicotrópico.
Por fim, o filme trabalha de modo bastante criativo e exitoso a sensação de um “enquanto isso”
peculiar, que, longe da monotonia tradicional, é intenso e frenético, a partir de intercalações frequentes e
abruptas entre as estórias vivenciadas pelos diversos núcleos da trama.
QUESTÕES LEVANTADAS POR ÁRIDO MOVIE
experimentado, pela globalização que também àquelas bandas chegou, enfim, que busca retratar o
Nordeste brasileiro do fim do século XX e início do século XXI, isto é, da atualidade.
Algumas críticas informais (não institucionais ou especializadas), em parte, acostumadas com as
abordagens fornecidas pelo Cinema Novo, têm sido veementes ao afirmar que Árido Movie fornece um
panorama fantasioso da região, ou seja, um Nordeste americanizado, sampaulizado, “bonitinho” ou “para
inglês ver”, e não o verdadeiro Nordeste, com seus problemas e contradições próprios e sedimentados.
Tais críticas, a nosso ver, não se sustentam, pois deixam de captar um dos grandes méritos da
obra, qual seja, a capacidade de descortinar um Nordeste modificado pelo parco desenvolvimento que
ali chegou, mas que é o mesmo em seus mais radicais modos Como se sabe, o cinema nacional de há
muito encontrou no Nordeste uma fonte quase que inesgotável de temas, histórias e/ou estórias passíveis
de serem ricamente exploradas com o intuito de se esboçar um retrato de certos modos de ser, de certas
estruturas sociais e de certas práticas abusivas muito típicas de nosso País, que se acentuam à medida em
que o olhar é deslocado do Brasil Central – regiões mais desenvolvidas e “viáveis” economicamente –
para o Brasil Periférico, onde são muito mais explícitas.
Nesse rol de obras cinematográficas ambientadas no Nordeste do País encontram-se alguns
clássicos, como Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha), Vidas Secas (Nelson Pereira dos
Santos), Terra em Transe (Glauber Rocha), dentre outros filmes que focalizam nos problemas e modos de
ser de um Nordeste “tradicional”, marcado pelas figuras do coronéis, dos jagunços, dos cangaceiros, das
autoridades públicas que se valem de sua posição para praticar abusos e prevaricações de toda espécie,
o que certamente constitui material riquíssimo em termos artísticos, históricos e de identidade nacional.
Ocorre, todavia, que, na história recente, todo o País sofreu grandes transformações, decorrentes
de um certo desenvolvimento econômico capengamente alcançado, com as reestruturações das relações
sociais – para melhor e para pior – que se desdobram da decorrente modernização por que temos
passado, sendo certo que o Nordeste não ficou alheio a esses profundos processos.
Árido Movie insere-se num movimento cinematográfico que, partindo de um vasto material
sociológico, busca marcar esse Nordeste modificado pelas transformações recentes do País, pelo
fenômeno da industrialização recentemente ali de ser, estruturas e abusos, embora repaginados e
reinventados em virtude justamente da nova fase pela qual a região passou. O que o filme mostra é a
perenidade de problemas os mais sérios e dejuridificantes, apesar de qualquer desenvolvimento que se
tenha por ali experimentado.
Não é por outra razão que os eixos temáticos abordados pelo filme não destoam do repertório dos
referidos “clássicos” do cinema nordestino, valendo recordar que as principais questões suscitadas são:
a) A exploração política da falta d’água no sertão, com os problemas daí
decorrentes;
b) Os conflitos de interesses entre indígenas e os brancos que ali se instalaram;
c) A questão do assassinato, da vingança hereditária e da truculência como
elementos de uma omerta da oligarquia patriarcal nordestina, ainda que “renovada”; e
d) Religiosidade e misticismo como elementos marcantes da cultura local.
Outros problemas, mais próprios da pós-moderninade, também surgem, e para confirmar o
processo de intensas modificações acima referido, como o problema do tédio e do hedonismo numa
classe média ser perspectivas e do uso recreativo de drogas como algo a ser tematizado e discutido
socialmente.
Nas linhas a seguir trataremos de relacionar algumas das questões suscitadas pelo filme com
problemas que reputamos de elevada importância para uma Filosofia do Direito que se pretenda, a um só
tempo, realista e efetiva, no sentido de capaz de captar com propriedade realidades dejuridificantes e de
contribuir para a superação desses quadros de crise.

O PROBLEMA DA CRISE DE LEGITIMIDADE ESTATAL, DO PONTO DE VISTA DA


PRAGMÁTICA JURÍDICA
Uma concepção tida por “clássica” de sociedade a define como um conjunto relativamente
complexo de indivíduos, permanentemente associados e equipados de padrões comuns, destinados a
garantir a continuidade do todo e a realização de seus ideais (cf. Michaelis On-line, por exemplo). Trata-
se de uma concepção nitidamente calcada nas teorias de soberania e na ideia de contrato, vistas acima.
Concepção essa que, ainda hoje, é a mais difundida de todas as definições existentes, embora existam
teorias que entendam a sociedade de modo diverso.
É exatamente o caso de uma “teoria pragmática” que adote a comunicação como código de análise
da sociedade. Os adeptos dessa corrente, grosso modo, partem de uma concepção altamente radical de
comunicação, considerando-a como um axioma, segundo o qual as relações entre os seres humanos
somente são possíveis porque precedidas pela própria comunicação. Ou seja, a sociedade em si mesma é
considerada como uma situação comunicacional, ou uma estrutura comunicacional, que permite aos
indivíduos que entrem em contato entre si. Logo, eles se valem da sociedade para entrar em contato, mas
não a constituem. São na realidade, constituídos por ela. No campo do Direito, o que a pragmática
jurídica analisa são os discursos normativos, as relações autoridade/sujeição por trás deles e, de modo
geral, a questão da obediência às leis.

FUNDAMENTOS DA PRAGMÁTICA JURÍDICA


A premissa básica da pragmática jurídica é que os sistemas sociais se formam pela via da
comunicação, i.e., a comunicação envolve uma seleção de possibilidades de ação que, como processo,
podem ser antecipadas. Comunicação equivale, assim, a “estar em situação”, num sentido amplo. Seu
caráter axiomático é decorrência pura e simples do fato de que a comunicação não tem contrários, já que
“quem está em situação transmite mensagens, queira ou não” (o ato de não falar, por exemplo, comunica a
ausência da vontade de comunicar-se).
A dinâmica comunicacional pode ocorrer de modo digital (linguagem) ou analógico (gestos, tom
da voz, formas de portar-se em geral). Por isso, possui um caráter altamente interacional (princípio da
interação) e reflexivo. Estabelece-se, grosso modo, um sistema em que a ação de quem fala provoca no
outro uma reação, que, por sua vez, influencia o próprio orador. Esta dinâmica, estruturalmente, pode se
dar de forma dialógica ou monológica.
Dialógico é o discurso em que o ônus da prova recai sobre aquele que se coloca como emissor de
uma mensagem, estado aberto à crítica pelo receptor e demandando fundamentação permanente (p.ex.,
discursos racionais em geral, como o científico, em que as mensagens aparecem sempre sob a forma de
dúvidas). Monológico é o discurso em que o receptor se porta de modo mais ou menos passivo diante da
mensagem, dado o princípio de que nem toda mensagem pode ser questionada, se verdadeira ou evidente.
A estrutura do discurso, que só existe em ato, não apresenta aprioristicamente esta ou aquela estrutura – o
tônus do discurso e identificado no seu “desenrolar”.
Por outro lado, a comunicação dá-se em dois níveis: o do conteúdo/relato e o da
relação/cometimento. O primeiro é a mensagem que emanamos; o segundo a relação que transmitimos.
Quando se diz, v.g., “sente-se!”, o conteúdo é o ato de sentar-se. Já o cometimento é transmitido de modo
não verbal ou analógico (tom de voz, modo de vestir-se, expressão facial), determinando relações de
subordinação ou coordenação.
A comunicação, nesse espírito, necessariamente implica expectativas mútuas de comportamento,
que podem, aliás, ser objeto de expectativas prévias. Quem diz “sentese!” não apenas espera um
movimento (sentar-se) e um acatamento (subordinação), mas também pode ter expectativas de qual seja a
expectativa do outro (aguardar uma ordem, enxergar o emissor da mensagem como um superior, por
exemplo), que podem ou não confirmar-se. É dizer: quem fala “sente-se” espera pelo menos quatro
possibilidades: sentar-se ou não, com ou sem subordinação.
Por isso se diz que a comunicação estabelece um conjunto altamente instável de relacionamentos
de relações de expectativas, que criam situações complexas, que se confirmam ou se desiludem, em que
os homens mascaram suas verdadeiras intenções ou agem de maneira irrefletida ou descuidada etc..
Daí ser a comunicação complexa, seletiva e duplamente contingente. A complexidade liga-se ao
fato se sempre existir um número de possibilidades de ação maior do que o das possibilidades
atualizáveis (passíveis de concretizar-se). Desdobra-se a seletividade, segundo a qual nenhuma troca de
mensagens ocorre sem que a possibilidade maior de mensagens trocadas sofra uma delimitação, ou seja,
toda troca de mensagens implica uma redução nas possibilidades de escolha de parte a parte. A dupla
contingência refere-se à possibilidade de seletividades não congruentes, de seleções diversas nas trocas
efetivadas (rejeições), i.e., a comunicação sempre admite frustração ou decepção de expectativas dos
interlocutores.
A possibilidade de seleções “de parte a parte” não é passível de eliminação, portanto, já que faz
parte da estrutura comunicacional. No âmbito da situação comunicativa, a rejeição, a comunicação dela
feita de uma parte a outra e a sua tematização implica conflito. Logo, todo sistema social é
potencialmente conflitivo, sempre havendo a possibilidade de um não concordar com o conteúdo (relato)
ou com a relação estabelecida (cometimento) pelo outro. Estabelece-se um jogo que vincula e influencia
comportamentos e que é, em última análise, expressão do poder entendido como controle ou exercício
social (vide Foucault), a permear a sociedade como um todo, que a conduz e é por ela reconduzido. E
que pode, por assim dizer, ser considerado um meio (medium) de comunicação.
Face à decepção (contingência), duas são as posturas interacionais básicas do sujeito: a cognitiva
(o indivíduo adapta-se à realidade decepcionante) ou a normativa (o indivíduo não se adapta à
frustração, estando a sua “expectativa” respaldada por algum tipo de norma, seja jurídica, moral, de
etiqueta etc., e, por isso mesmo, considerada normativa). As posturas normativas instauram um conflito
social que precisa ser controlado.
Este controle é exercido por um terceiro comunicador (nas sociedades ocidentais, o Estado), a
quem incumbe dizer qual das expectativas deve prevalecer e ser institucionalizada (pela criação de uma
norma geral e abstrata, ou de uma norma individual e concreta). A Legitimidade do Estado e a Crise de
Legitimidade são questões inerentes à dinâmica da chamada “situação comunicativa normativa”.
LEGITIMIDADE DO ESTADO E SEUS CICLOS
Três são as conclusões que se extraem do tópico antecedente: (1ª) a interação comunicativa pode
ser conflitiva e envolver relações de poder, dado o seu caráter de jogo, estratégico e tático, de influência
recíproca entre interlocutores; (2ª) na relação comunicacional, o emissor espera que a seletividade que
tenta promover nas possibilidades de ação do receptor, ao emitir a mensagem, seja compreendida e
acatada, ou seja, assumida como ponto de partida para a seleção que o receptor irá promover; e (3ª) a
possiblidade de desilusão é sempre presente, podendo ser objeto de posturas adaptativas ou normativas.
Bem, as posturas normativas relacionam-se a expectativas que se manifestam por meio de normas,
prescrições de dever ser, que se impõem “contrafaticamente”. Ao se verificarem expectativas normativas
divergentes, há um conflito social a ser resolvido. Um terceiro comunicador (Estado, nas sociedades
ocidentais) assume a posição de autoridade perante as partes em conflito – sujeitos, portanto – e é
chamado a dizer qual das expectativas irá prevalecer e institucionalizar-se na forma de uma norma
jurídica qualquer. O terceiro comunicador, através do cometimento da mensagem normativa transmitida,
assume uma posição (meta)complementar em relação aos receptores sociais.
Esta autoridade decorre do fato de ele entrar “fortalecido” na situação comunicativa, por, apesar
de encontrar-se na situação de emissor, estar isento de qualquer dever de prova. Invertido o ônus da
prova, as mensagens do terceiro comunicador assumem o caráter de decisões, visando não eliminar, mas
encerrar (neutralizar) o conflito, prevalecendo ainda que de fato os receptores sociais não as acatem
enquanto tal. Deles, espera-se que observem as decisões, ainda que discordem de seu conteúdo. Esse o
núcleo pragmático da legitimidade.
Do ponto de vista comunicacional, a legitimidade se coloca como um problema não moral, mas
fático. É uma questão, em última instância, de reconhecimento das decisões do Estado-comunicador. Elas
são legítimas na medida em que obtêm uma prontidão generalizada de aceitação, ainda que
indeterminadas quanto ao seu conteúdo, dentro de certa margem de tolerância, por motivos que se situam
entre o medo e o consenso.
Esquematicamente, as mensagens prevalecem (devem prevalecer) sobre qualquer norma feita
pelos indivíduos entre si, mesmo que tentem desconsiderar ou se sobrepor às normas estatais, justamente
porque gozam de um consenso suposto e anônimo de terceiros, obtido por intermédio de procedimentos
institucionais, de ordem eleitoral, política, legislativa, administrativa ou judicial (“legitimação pelo
procedimento”).
Assim, o Estado “se legitima” quando seus procedimentos e mecanismos são capazes de absorver
e reconduzir os conflitos sociais, intermediando-os a partir da produção de decisões, que devem gerar
consenso e apoio que realimentam a opção selecionada (expectativa institucionalizada) e recanalizar
eventuais dissensos para o interior desses mesmos procedimentos. Legítimo é o Estado que não precisa
tomar medidas adicionais (força, por exemplo) para a neutralização de conflitos, pois a decisão é aceita
mesmo quando não haja concordância quanto ao seu conteúdo.
Nesses termos, seria possível pensar-se em um “ciclo de legitimidade”, descrito abaixo:
QUANDO OCORRE A CRISE DE LEGITIMIDADE DO ESTADO E O QUE ELA É?

A legitimidade do Estado, como visto, é a medida do reconhecimento de suas decisões (que


veiculam relações de autoridade/sujeição, mando/obediência) pelos receptores sociais. O exame
comunicacional da legitimidade do estado deve, assim, partir da postura destes perante as decisões
estatais, no que se refere ao seu aspecto relato (que admite argumentação) e no que concerne ao aspecto
comunicação (que não admite argumentação e que deve ser prontamente acatado).
Diante de uma mensagem (decisão) estatal, os receptores sociais podem: confirmá-la, rejeitá-la ou
desconfirmá-la. Pela confirmação, o receptor obedece ao conteúdo/relato e ao cometimento/relação
(autoridade), o que corresponde à conduta lícita. Pela rejeição, o receptor desobedece ao
conteúdo/relato, mas acata o cometimento/relação (autoridade), o que corresponde à conduta ilícita,
sorrateira, fugitiva. Já a desconfirmação da mensagem normativa equivale à negação tanto do
conteúdo/relato quanto do cometimento/relação (autoridade), implicando em desobediência explícita e
ostensiva.
Se a confirmação e a rejeição afirmam/confirmam a autoridade do Estado e do Direito, a
desconfirmação, por outro lado, é altamente incômoda e perigosa, porque “derrota” a ficção do consenso
geral presumido, mostrando que nem todos reconhecem a autoridade e que nem todos, de fato, se colocam
na posição de sujeitos, deixando às claras a impossibilidade de uma “jurisfação total do poder”, tomada
como verdadeira pela dogmática, e a existência de poderes informais.
Consequentemente, ao eliminarem o controle de seletividade que o editor normativo tenta realizar,
as ações desconfirmadoras podem, no limite, causar um desequilíbrio ou mesmo uma brusca tentativa de
reorganização das relações de poder, em termos individuais ou sociais. Aquele que desconfirma a
mensagem normativa desilude as expectativas a ela ligadas, agindo como se a autoridade e os atos que
coação que determina sequer existissem. Por isso é que ações desconfirmadoras são operacionalizadas
ostensivamente como se vê em casos de revolução, desobediência civil, terrorismo etc..
Por isso é que, como observa Mara Regina de Oliveira, “quanto mais segmentada, em termos
econômicos, políticos e culturais, for uma sociedade, maior será a contingência de suas leis e maior a
chance de suas normas jurídicas não serem mais reconhecidas como legítimas”[110]. Pode ocorrer a
desconfirmação quando, a níveis crônicos, as instituições deixam de funcionar adequadamente, tornando
explícito o exercício da “violência simbólica”, que está no cerne das relações entre Estado e cidadãos.
Diante de ações desconfirmadoras, o Estado deve ser consistente, ou seja, capaz de recanalizar os
conflitos e “desconfirmar a desconfirmação”, reduzindo-a a uma rejeição (atitude ilícita) e a ela
respondendo como tal, sob pena de ser aniquilado enquanto emissor normativo e dar margem ao
surgimento de uma nova ordem de poder, na qual o sujeito passa a figurar como emissor de normas,
podendo transformar a relação de poder em relação de pura força, em função da qual um ganha e outro
perde, com a instauração, a partir daí, uma nova série normativa.
Quando isso chega efetivamente a ocorrer, está-se diante do que Kelsen chama de ineficácia da
ordem jurídica, que lhe retira a validade, pondo em xeque a própria “norma hipotética
fundamental”[111], que passa a estar sujeita a modificações ou, até mesmo, a substituição total.
Postas as premissas acima, vejamos como o filme em análise, apesar de seu tom propositalmente
confuso, psicodélico e frenético, esboça um retrato fiel e bastante realista de uma situação de permanente
crise de legitimidade estatal na parte do Brasil em que se ambienta.
O PROBLEMA DA EXPLORAÇÃO POLÍTICA DA FALTA D’ÁGUA NO SERTÃO
NORDESTINO
Conforme referido, a falta d’água é tema recorrente no filme, permeando a trama do começo ao
fim, inúmeras vezes de modo ostensivamente explícito, problema que denota, dentre outros pontos, uma
situação de completa ausência do Estado no sertão, plasmada pura e simples falta de um serviço público
de primeira necessidade.
Esse eixo temático evidencia, dentro daquele microcosmos específico, o problema enfrentado
acima em termos teóricos, de que a ausência de mecanismos estatais que sejam minimamente condignos e
consistentes no efetivo atendimento das necessidades dos seus “clientes” sociais, em determinada
localidade, dá ensejo a toda forma de estruturas e discursos abusivos. Dentre essas formas de abuso,
duas são as mais marcantes na trama de Árido Movie.
A primeira diz respeito às autoridades estatais, da mais baixa à mais elevada hierarquia, que se
portam com extremo cinismo perante a população, em flagrante abuso de poder, figura que, paras os
efeitos de uma pragmática jurídica, equivale à desconfirmação da ordem jurídica praticada pela própria
autoridade, em detrimento do interesse público que justifica a competência que lhe é legalmente atribuída
(para, e somente para, satisfazer às necessidades dos cidadãos).
A segunda, que se desdobra da primeira, relaciona-se às figuras nos “notáveis” regionais, que,
possuindo poder econômico, terminam fornecendo os bens que o Estado – obrigado legal – deixa de
garantir à população e, por meio disso, passam a deter um poderosíssimo status de emissor normativo
informal, com base, no caso, no monopólio “de fato” exercido sobre a pouca água existente na região e
nos meios necessários para que essa mesma água chegue às pessoas.
Portanto, no filme, a falta d’água é um índice, de muitos, da crise de legitimidade estatal presente
no cenário brasileiro de modo intensamente perene e, o que é pior, com a contribuição de autoridades que
deveriam zelar pelo bom funcionamento das coisas públicas, mas que, paradoxalmente, se beneficiam, de
modo descarado, da inanição do Estado brasileiro.
Há, aqui, um diálogo evidente entre Árido Movie e uma série de outros filmes nacionais que,
ambientados em outras localidades e em outras formas de apresentação da vida em sociedade (em
grandes metrópoles, por exemplo), registram a vergonhosa realidade verificada de parte a parte no País,
em que agentes públicos se valem de prerrogativas posicionais para a satisfação de interesses próprios,
em detrimento do interesse público, ou, no bom português, retratam o uso particular da coisa pública
por parte de agentes do Estado e de pessoas a eles ligadas.
De fato, a figura dos agentes estatais que, em Árido Movie, se utilizam de suas prerrogativas
funcionais para explorar a falta d’água que acomete a população pode, de modo mais que perfeito, ser
colocada ao lado de certos personagens de Tropa de Elite e Tropa de Elite II, por exemplo, os políticos e
policiais corruptos, bem como ao lado do delegado corrupto que aparece em O Invasor.
Árido Movie, juntamente com os demais filmes do rol em que se insere, retrata a disseminação de
uma cultura de corrupção que, a par de ser vista de modo passivo e de certo modo determinista pela
população, contribui para a consolidação e para a expansão de uma crise de legitimidade estatal que,
infelizmente, não se sabe quando irá acabar.
AS PRÁTICAS DE PODER DA OLIGARQUIA PATRIARCAL NORDESTINA
Dissemos, alhures, que Árido Movie nos mostra um Nordeste diverso, quanto às formas, daquele
retratado em Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, Vidas Secas etc., mas muito
essencialmente o mesmo quanto ao conteúdo das relações sociais que ali se instauram.
Isso porque a figura do nordestino não é mais retratada com os trajes típicos de antes, seu meio de
locomoção não mais é a mula, e sua arma não é mais do facão e instrumentos afins. Agora, defrontado
com a urbanização e o desenvolvimento regional, ele aparece de calça jeans, óculos escuros, motos e
automóveis potentes, e as suas armas são armas de fogo modernas.
Porém, apesar de toda essa reestruturação, isto é, dessa mudança quanto às formas, o filme retrata
a permanência da centralidade da estrutura familiar oligárquica e patriarcal nordestina no âmbito das
relações de poder ali existentes. Em outras palavras, o filme mostra que ainda é a família que conta para
fins de determinar quem é quem.
Trata-se de um retrato muito semelhante ao que é esboçado em O Som ao Redor (Kleber
Mendonça), que também mostra uma “família tradicional nordestina” repaginada e urbanizada, em que o
coronel agora é o “dono da rua” e seus descendentes e agregados gozam de toda sorte de privilégios –
sendo, muitas vezes, inalcançáveis para a lei –, enquanto os demais integrantes daquela estrutura social
são importantes e considerados apenas e na medida em que servem para dar sustentação a essa relação
em que o poder é ostensivamente distribuído de modo desigual entre os agentes sociais.
No âmbito do quem é quem habilidosamente descortinado pela trama, o modo com que dois
assassinatos são distintamente tratados em Braga/PE ilustram como, de fato, a oligarquia patriarcal
nordestina, da qual Jonas é – ainda que sem querer – parte, ocupa o espaço de verdadeiro emissor de
normas que têm força de lei, embora efetivamente, ou oficialmente, não o sejam.
O primeiro assassinato é o do pai de Jonas, homem notável e poderoso na região, e que acarreta
um tremendo alvoroço no dia a dia local, seja por conta de um funeral com todas as pompas possíveis,
seja por conta das ostensivas buscas que os “capangas” da família fazem para encontrar o executor do
defunto, muitas vezes fazendo batidas em residências, locais públicos e estabelecimentos comerciais,
como se detivessem um poder jurídico, e não meramente “de fato”, para tanto.
O segundo assassinato é o do irmão de Wedja (executor do pai de Jonas), que, após encontrado, é
executado, porém a sua morte é silenciosa e indiferente na trama, sendo certo que nem mesmo a cena ou o
cadáver aparecem propriamente, havendo apenas as marcas posteriores para noticiar o acontecido.
Diferentemente do primeiro assassinato, o segundo passa despercebido, não havendo quem procurasse
e/ou punisse o culpado e, o que é pior, não havendo sequer um funeral digno para o morto.
O modo com que um e outro assassinato são tratados de modo diverso pelas pessoas daquela
região mostra como, na trama, a família notável de Jonas exerce soberanamente um poder de deixar viver
e fazer morrer quase que medieval naquela localidade, evidenciando mais ainda que essa estrutura
familiar exerce, na estória, verdadeira autoridade com roupagem de estatal.
Mais ainda, esses assassinatos levam às reflexões do filósofo italiano Giorgio Agamben.
A partir do conceito de soberania de Carl Schmitt, no qual o soberano, ao decidir sobre a
normalidade ou não no convívio social e instaurar o estado de exceção (com a suspensão de todo o
ordenamento), ocupa uma paradoxal posição, ao mesmo tempo “dentro e fora” do direito (estado de
exceção como, em termos lógicos, uma inclusão exclusiva), o autor levanta a questão de que o grande
problema da soberania não seria quem a atualiza, mas sobre o que ela se exerce: a vida, despida de toda
e qualquer sacralidade que lhe tenha sido conferida pela lei, agora suspensa, que o autor denomina vida
nua, no sentido de uma existência meramente biológica e sem valor em termos jurídicos[112].
Para o autor, a mais emblemática ilustração de que a chamada “vida política” e a chamada “vida
nua” incidem sobre o mesmo objeto é a controversa figura do Direito Romano, o Homo Sacer. Este,
sagrado em um sentido negativo (profano) por conta de malfeitos praticados, é, a um só tempo, excluído
de toda sorte de direitos civis e “insacrificável” ritualisticamente aos deuses, porém “matável” por
qualquer pessoa sem que se lhe imputasse as penas de um homicídio, marcando a tênue fronteira entre o
direito divino e o terreno[113]. O autor afirma que, “se hoje não existe mais uma figura
pretederminável do homem sacro, é, talvez, porque somos todos virtualmente homines sacri” e, nessa
condição, estamos todos em posição de exercer poder de vida e de morte uns sobre os outros[114].
Nesse sentido, o autor afirma existir um traço comum a unir as diversas comunidades que, apesar
de todas as diferenças de cunho histórico-geográfico, jurídico, político, religioso etc., se encontram em
situação de “anomia”: elas se constituem em permanentes estados de exceção (campos de concentração),
aonde o qualquer lei é incapaz de chegar, e no âmbito dos quais todos são homines sacri, detentores
potenciais de uma “vida que não merece ser vivida”. Insacrificáveis, pois sem quaisquer direitos (alheias
ao ordenamento), porém matáveis (existência em um sentido meramente biológico e não captado pelo
Estado)[115].
Realmente, os assassinatos retratados no filme conduzem à pergunta: quem é o Homo Sacer na
relação, o Pai de Jonas ou o Irmão de Wedja? Desenganadamente, a resposta é o irmão de Wedja, tratado
como uma vida desprezível / supérflua, e nessa medida matável, mas sem direito a uma morte
institucionalizada pelas autoridades oficiais (certidão de óbido, abertura de herança etc.) e sem direito a
um funeral.
Há, nesse aspecto, relação com o filme Central do Brasil (Walter Salles), especificamente com o
personagem de Ana, cuja morte, decorrente de atropelamento por veículo de transporte público, também
é tratada com indiferença e não chega a ser institucionalizada pelo Estado, tanto que seu filho, na trama,
termina em situação de abandono em plena estação central, sem que qualquer autoridade lhe prestasse o
devido auxílio.
Retomando os problemas jurídicos e filosóficos que, a nosso ver, são centrais em Árido Movie,
certo é que os diálogos entre Jonas e a avó (matriarca), em que há a repetida afirmação, por parte desta,
de que seria dever do filho vingar a morte do pai, dentro de uma aparente lei interna da família, revelam
algo como uma “omerta” da oligarquia patriarcal nordestina, isto é, um código de ética que lhe é
próprio, digno de organizações que se pretendem emissores normativos paralelos ao Estado nas bases
territoriais em que atuam.
Nesse sentido, seria possível afirmar que, guardadas as devidas peculiaridades, o personagem de
Jonas ocupa, na trama, posição análoga àquela ocupada por Michael Corleone em O Poderoso Chefão
(Ford Copolla), já que ambos são como que “chamados” a fazer valer as normas internas das
organizações “paraestatais” das quais, de início, involuntariamente fazem parte.
Ademais, as diversas cenas de truculência por parte dos “protegidos” da família de Jonas, seja
junto aos membros da comunidade de Braga/PE, durante as buscas pelo irmão de Wedja, seja junto aos
forasteiros Vera, Bob e Falcão, denotam a atuação da organização, que, a par de não admitidas pelo
ordenamento jurídico, são ostensivas e despreocupadas, revelando não se tratar de simples ilicitude, mas
de efetiva desconfirmação de qualquer fonte normativa que não a própria família (desafio à autoridade da
lei e do Estado).
Aqui, a organização ocupa posição análoga àquelas ocupadas pelo tráfico de drogas em Tropa de
Elite (José Padilha) e pelas milícias em Tropa de Elite II (José Padilha), já que nas três tramas as
organizações paraestatais retratadas ignoram de modo completamente despreocupado as normas jurídicas
e a figura do Estado como ente que, em teoria, poderia – e deveria – refrear as suas práticas
antijurídicas.
Por fim, Márcio Greick (Aramis Trindade), afilhado, filho adotivo da avó de Jonas (matriarca),
representa, na trama, a figura do excluído social por excelência que, apesar disso, deseja estar no
comando e, no caso, através de sua habilidade no trato dos negócios da família, obtêm êxito por
intermédio de um astuto controle indireto que exerce sobre os principais membros do clã, nitidamente
desconfirmando a derrota determinista a que estaria “predestinado”.
Esse personagem, em específico, pode ser posto ao lado de Anísio (Paulo Miklos), matador de
aluguel que aparece em O Invasor (Beto Brant) e que, através de astutas e desconfirmadoras
manipulações exercidas sobre Ivan (Marco Ricca) e Gilberto (Alexandre Borges) efetuadas ao nível de
um instável jogo de poder/controle comunicacional, invade a vida e a empresa desses últimos, que o
haviam contratado apenas e tão somente para executar um assassinato encomendado. Árido Movie, ao
retratar um Nordeste brasileiro renovado quanto às formas, mas o mesmo quanto ao conteúdo abusivo das
relações ali instauradas, constitui um vasto manancial de questões de elevada importância jurídica e
filosófica, sobressaindo, ao longo da trama, os problemas de uma crise de legitimidade estatal que de há
muito deixou de ser ocasional e excepcional, para tornar-se perene e normal, como se fosse “a” regra de
ouro da sociedade brasileira (rule of Law).
O filme relaciona-se com uma série de outras obras que se dedicam a retratar um Brasil diverso
daquele que é vendido como o País da alegria, do carnaval, do futebol e da festa, mas nem por isso, a um
só tempo, menos real, menos “belo” ou menos poético, já que a contradição, elemento que aparece muito
marcante no filme, é foco de uma sensibilidade incomum e muito mais pungente do que aquela que vem
embalada sob a forma de finais felizes e previsíveis

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006.
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CANNETI, Elias. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a
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_________________________. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decio, dominação. 3a Ed.
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OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book kindle. Amazon, 2015.
________________________. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre Poder,
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RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
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_____________. Da violência justiceira à violência ressentida. Endereço eletrônico
https://periodicos.ufsc.br/index.php/desterro/article/view/2175-8026.2006n51p55 (acessado em
05/11/2015).
A FORMA POLÍTICA ESTATAL E O DIREITO: UMA PERSPECTIVA
JUSFILOSÓFICA INTERDISCIPLINAR SOBRE A FUGA E A MORAL NO CÉU
DE SUELY
Silvio Sandro Soares Júnior[*]

INTRODUÇÃO

F ilmado em 2005 pelo diretor Karim Aïnouz, O Céu de Suely constitui uma importante obra do cinema
nacional e, sobretudo, importante aos temas relacionados à visão crítica de cunho interdisciplinar que
envolvem as relações existentes entre direito, poder e violência no Brasil.
Antes de entrar propriamente no que seria a situação da obra, é necessário fazer alguns
apontamentos sobre a relevância do estudo interdisciplinar – utilizando-se o cinema – para a filosofia do
direito.
Pensar as grandes questões filosóficas envolvendo a sociedade e, de forma mais ampla, o
fenômeno jurídico-social, é tarefa que demanda esforço intelectual e dedicação na forma de leituras, na
maioria das vezes. No entanto, a estratégia interdisciplinar é capaz de revolucionar as formas
consagradas de enxergar e lidar com a filosofia do direito.
Por estratégia interdisciplinar devemos compreender, aqui, o uso do cinema; segundo Jean-Claude
Bernadet, o cinema, forma de criação artística burguesa[116], é arte capaz de causar impressão[117] de
realidade e até mesmo de constituir realidades[118]. Mais modernamente, o Cinema Novo se ocupou de
fazer as vezes da voz das classes sociais menos abastadas[119] e, através da exploração das temáticas
sociais, retratar o proletariado[120] e as inquietudes da burguesia – fator pelo qual as camadas mais
privilegiadas da sociedade não se interessariam tanto pela arte em questão[121].
Desta forma, podemos concluir que o cinema é importantíssimo meio de retratação social em
forma de arte. A cena em movimento, a trilha sonora, a imagem – sobretudo colorida – conseguem fazer
papel de sensibilização que a literatura não é capaz de proporcionar e que, portanto, pode ser meio eficaz
de pensar filosoficamente as questões sociais.
Julio Cabrera, em sua obra O Cinema Pensa, traz conceitos de alta relevância para a linha de
raciocínio que ora se explora. De acordo com o autor, para se apropriar de um problema filosófico, não
é suficiente entendê-lo: também é preciso vive-lo, senti-lo na pele, dramatiza-lo, sofrê-lo, padecê-lo,
sentir-se ameaçado por ele, sentir que nossas bases habituais são afetadas radicalmente[122].
Avançando na compreensão interdisciplinar, é de se citar a forma Conceito-imagem, através da
qual Cabrera aduz que a sensibilidade cinematográfica pode ser percebida como apreensão filosófica do
cinema por meio da leitura filosófica fílmica.[123]
Assim, a relevância das análises de filmes como ferramenta filosófica interdisciplinar está
diretamente relacionada ao conceito de cinema, que é capaz de constituir realidades em forma de imagens
em movimento, e também ao conceito-imagem, através do qual o olhar filosófico pode repousar sobre o
cinema de modo a contribuir para uma análise sensível dos problemas conceituais enfrentados.
Explicada a pertinência da análise cinematográfica para o presente ensaio, cumpre agora situar o
filme de modo a expor as bases de conceito-imagem sobre as quais a análise se sustentará.
O filme narra, de forma muito sensível, a trajetória de Hermila; que teria saído fugida da cidade
de Igatú, no interior do Ceará, com seu então namorado, Mateus, rumo a São Paulo para viver uma paixão
e em busca de melhores condições de vida.
A primeira cena do filme retrata um casal aparentemente feliz, com imagem em formato que dá a
entender que a cena que se vê jaz no passado, característica que se acentua com a narração quase
melancólica feita por Hermila sobre a situação do casal. Em seguida o expectador é apresentado a outra
Hermila, que regressa ao Ceará com um filho, Mateuzinho, a tiracolo e sozinha – o companheiro lha
tinha prometido retornar em seguida para viver junto dela e do filho, no entanto Mateus some.
Recebida na casa avó, onde também mora uma tia, Maria, Hermila passa a se reinserir no ritmo da
cidade aos poucos. O plano era montar uma banca de vender CDs e DVDs com Mateus no centro da
cidade, mas como o companheiro a deixou, Hermila teve de procurar se arranjar sozinha para ajudar no
sustento da casa, já que as situações financeiras da avó – cozinheira – e da tia – moto taxista – estavam
apertadas.
Hermila começa a vender rifas de bebidas no centro da cidade, aceita trabalhar lavando carros no
posto de gasolina onde tudo acontece e faz contato com uma amiga prostituta, que lhe diz que nunca antes
tinha visto mulher lavando carro naquela cidade.
Mais adiante, com a situação financeira já bem crítica, Hermila especula com a amiga prostituta
qual a margem de rendimentos financeiros na atividade da prostituição e se sente compelida a fazer
programa. No entanto, Hermila tem uma ideia diferente, resolve rifar uma noite no paraíso consigo, ou
seja, uma noite de programa. Antes de tomar a decisão o assunto foi comentado com sua tia Maria e com
seu ex-namorado João (com quem Hermila, aparentemente, começa a resgatar um relacionamento), sendo
que ambos reprovaram a ideia e até avaliaram como loucura.
A despeito das opiniões divergentes da sua, Hermila vende as rifas e cumpre seu plano aderindo
ao nome de Suely – não sem transtornos, visto que foi posta fora de casa pela avó e sofreu discriminação
por parte da população da cidadela onde morava, chegando até a ser agredida.
A rifa de si foi idealizada por Hermila para conseguir dinheiro suficiente para poder comprar uma
passagem de ônibus rumo ao Sul do país, onde tentaria a vida novamente e, talvez, até chegasse a levar
sua tia, sua avó e seu filho, o qual deixou sob os cuidados da avó quando embarcou de ônibus rumo ao
Sul.
A riqueza dos detalhes do filme reside, em parte, nas escolhas do diretor Karim, que optou por
produzir a película com roteiro aberto, ou seja, havia ideias principais, pontos que norteariam a trajetória
de Hermila, mas os detalhes das cenas não foram todos idealizados, como costumeiramente se faz em
obras de cinema. Desta forma, houve espaço para improvisação, participações espontâneas do público
local da cidade que estavam de fato interagindo naturalmente nas cenas (não eram atores – figurantes). Os
nomes dos personagens são os mesmos nomes dos atores e todo o elenco morou junto numa casa do local
onde a trama se desenvolve na etapa de preparação do elenco[124].
Outra peculiaridade do filme que merece destaque é o enfoque na figura do feminino. A trama toda
é conduzida quase que exclusivamente por mulheres que, batalhadoras, têm de tomar as rédeas de suas
vidas e resolver seus dilemas em prol de suas próprias trajetórias.
Já situado o filme, este ensaio agora se direciona à análise da trama à luz de conceitos da filosofia
do direito interdisciplinar para compreender a complexidade filosófica envolvida na obra
cinematográfica.
TRAJETÓRIA E FUGA
A primeira característica que merece destaque é a trajetória de Hermila que, apaixonada, foge de
Igatú. Ironicamente, a saída de São Paulo se dá quase na mesma situação, uma vez que a justificativa
apresentada à tia sobre o regresso ao Ceará foi que lá – em São Paulo – a vida é muito cara. O motivo
que levou a personagem a São Paulo desaparece quando confirmadamente Mateus não retorna. O filme
termina com a partida de Hermila para o Sul, de novo em busca de uma vida melhor, quase que fugida
das circunstâncias duras de realidade que a cercam. Sua trajetória se define na busca por algo que não se
concretiza – sempre fugindo em busca de melhoria.
Sobre esta fuga, é possível identificar o binômio Ordem x Fuga, da teoria de Canetti[125],
segundo a qual a Ordem figuraria como forma primitiva de conquistar comportamentos, já que até mesmo
entre os animais há relação de ordem. Para Canetti, a ameaça de morte criaria, para o animal mais fraco,
uma ordem de fuga imposta pelo animal mais forte. Ou seja, a ameaça figuraria como uma ordem que
determinasse ou a fuga, ou a morte do mais fraco.
Utilizando a lógica contida na teoria invocada, Hermila, apaixonada, se viu compelida a fugir de
Igatú para viver seu amor com vistas a uma vida melhor na Capital – a realidade sertaneja não lhe dava
perspectivas de vida boa quando comparada com o que poderia, em seu ponto de vista, ser a vida em São
Paulo.
Em seguida, nova fuga: a vida em São Paulo se tornou perigosa, posto que cara, fato que culminou
no retorno ao Ceará. Desiludida e novamente a perigo, Hermila não viu saída senão na fuga mais uma vez
– para o Sul.
É claro que a teoria de Canetti não foi idealizada com vistas a esta situação, mas, de forma a
trabalhar conceitos-imagem, é possível caracterizar uma constante necessidade de fuga do ser mais fraco
(indivíduo - Hermila) frente ao ente mais forte e ameaçador (o Estado – o Capital). Neste sentido,
Hermila figura como a metonímia da população miserável que foge do sertão ou dos interiores do país
para as Capitais e que, já nas Capitais, se vê obrigada a fugir novamente, quer seja da fome, do frio, do
desemprego, da polícia abusiva de autoridade e violenta por legitimação; e tudo em prol de permanecer
viva.
Assim, a ameaça de morte compeliu Hermila a sempre fugir, materializando o comando de Ordem
contido na teoria de Canetti. Avançando na teoria proposta, é possível dizer que Hermila sofre com o
Aguilhão que lhe foi posto.
Para Canetti, a Ordem é fruto da conjugação existente entre Impulso e Aguilhão[126]; Impulso
seria o fator que induz o destinatário da ordem a cumpri-la e o Aguilhão seria a marca da Ordem, o fator
que condiciona o sujeito a agir segundo a ordem em situações para as quais a ordem já foi dada.
Ou seja, as ameaças de morte e má vida feitas à Hermila constituem o Impulso e o Aguilhão é a
reação já instalada no interior do sujeito, a saída de sempre; a fuga.
Neste sentido, o Céu de Suely figura a saída, a fuga, a busca pela vida que vale a pena, a
segurança ante a ameaça. Fato que contrasta curiosamente com a concepção mais comum de céu, a qual,
sob a influência religiosa – sobretudo cristã – identifica o céu como lugar de paraíso, livre de pecados e
de falhas de caráter, o que se opõe completamente ao paraíso rifado por Hermila (Suely), visto que
esteve associado ao prazer da carne, ao profano e ao campo semântico da prostituição.
Muito embora o Céu do filme possa significar a fuga, não é de se pensar que representou uma
saída harmônica e naturalmente indicada pelo Aguilhão posto em Hermila, pois a despeito da vantagem
pecuniária que a rifa de seu corpo lhe proporcionou, a noite do paraíso foi retratada no filme com muita
tensão e com um peso tal que transparecesse na feição de Hermila a profunda crise em que se encontrava
(em outras cenas parecidas, dos encontros de Hermila com João, vê-se uma personagem mais leve e,
aparentemente, sem crise).
O movimento de fuga, conforme suscitado, também pode ser percebido em outras obras da
literatura e do cinema nacionais. No romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, publicado em 1938 –
bem como no filme homônimo dirigido por Nelson Pereira dos Santos em 1963 – é retratada realidade de
família nordestina que, açoitada pelas constantes ameaças de morte feitas pelas circunstâncias de extrema
vulnerabilidade social, adota a fuga como meio de vida, ou seja, mais do que um recurso escapista e
esporádico, a fuga materializa a própria história de vida dessas pessoas. A cada novo período de seca,
uma nova fuga.
No caso de Vidas Secas o próprio enredo da fuga culmina em morte, uma vez que o papagaio da
família acaba servindo de refeição aos retirantes e que a cachorra Baleia – que muitas vezes conduz a
trama através do recurso da antropomorfização – também não resiste às ameaças impostas pela dureza
social.
Ainda no campo da literatura é possível citar também a obra O Quinze, de Rachel de Queiroz, na
qual toda uma comunidade tem seus destinos fatalmente alterados pela situação de fuga em prol da
sobrevivência com prejuízos vitais.
Por fim, é possível citar também o filme Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, no qual
as trajetórias dos personagens Johann e Ranulfo tem início a partir da fuga (Johann foge da Segunda
Guerra Mundial e Ranulfo segue a regra de vida do nordestino socialmente vulnerável) e atravessam o
fim do filme também com o movimento de fuga em prol da sobrevivência.
Os exemplos citados, mais do que confirmar a teoria de Canetti, denunciam um problema crônico
brasileiro que surge a partir da ausência do Estado. Em outros filmes e em outras obras literárias é
possível verificar o contrário, ou seja, situações em que o Estado, através de seus agentes, acaba tendo
atuação abusiva na construção da realidade social das personagens.
O Céu de Suely, Vidas Secas, Cinema, Aspirinas e Urubus e O Quinze são, portanto, obras de
suma importância para a compreensão da realidade social daqueles que padecem da presença
providencial do Estado. Em O Céu de Suely sequer há a presença de qualquer agente do Estado, mesmo
em situações de degradação social em que, geralmente, o Estado promoveria intervenção (problemas de
Saúde Pública, escolaridade, emprego e assistência social).

O PROBLEMA JUSFILOSÓFICO DA MORAL


A decisão de Hermila de rifar seu corpo para arrecadar dinheiro enfrenta uma questão moral, pois
assim como no filme O Segredo de Vera Drake, há uma questão posta em debate que leva diretamente em
conta o problema do relativismo moral que esbarra nas obras de Kelsen e Hart[127].
A problemática surge quando a população da cidade valora o ato de Hermila. O curioso é que,
conforme fica explícito através da fala de sua tia Maria, de fato ocorre um reboliço na cidade; as
mulheres condenam a prática de Suely, dizendo inclusive que se trata de um crime que Suely pode ser
presa. Já os homens ficam atormentados com a proposta da rifa e com sentimento de atração por Suely.
Há dois episódios em que Hermila experimenta a violência decorrente do julgamento moral de sua
decisão; o primeiro ocorre quando Hermila vai a uma loja e é reconhecida por uma mulher cujo cunhado
teria comprado uma rifa de Suely. Alterada, a mulher agride Hermila dando a entender que a conduta da
personagem é reprovável. Um segundo episódio de violência acontece quando Hermila vai ao mercado e
conversa com o proprietário de um comércio popular, o qual, ao perceber que a mulher com quem está
lidando é Suely, a enxota das dependências de seu comércio.
Situação parecida é vivenciada também por Hermila dentro de sua própria casa, quando sua avó
lhe diz que a cidade inteira já está sabendo da situação de Hermila (ou Suely) e que, por isso, sua
permanência naquela casa estava comprometida, fato que culminou na expulsão de Hermila de casa.
Como se percebe, para além do tratamento jurídico da questão (caráter criminoso ou não da rifa),
há um julgamento feito pelas pessoas. E mais, um julgamento acompanhado de uma pena, que, no mais
das vezes, é a violência.
O tratamento jurídico da questão nem chega a ser suscitado competentemente, sendo que a única
vez em que a norma é suscitada, quem o faz é a tia, mas de maneira absolutamente informal e sem
qualquer respaldo de autoridade juridicamente constituída. Assim, a esfera sobre a qual paira de fato a
análise da conduta é puramente moral.
Ao contrário do que acontece no filme O Segredo de Vera Drake, nO Céu de Suely temos uma
personagem que não passa por crises pessoais sobre a certeza da atitude. Hermila se questiona somente
num breve momento se um ato de prostituição poderia considerá-la uma prostituta (já que ela se
prostituiria somente por uma noite), após esse curto questionamento Hermila demonstra muita certeza
sobre o que pretende com a rifa e não parece cindida entre o fazer e o não fazer, tanto que suporta com
firmeza o julgamento da população da cidade (e de sua própria avó) e leva até o fim seu propósito.
Desta forma, diferente da análise esposada por Oliveira sobre a questão moral dO Segredo de
Vera Drake[128], nO Céu de Suely não há expansão do problema do relativismo moral nos termos
teóricos de Kelsen e Hart. O que há é o paradoxo ético-moral vivido na cidade de Igatú – tão somente na
esfera social.
Os populares, em sua maioria, usam uma regra moral específica e julgam Hermila, que, por sua
vez, não compartilhando da regra social utilizada pela população, age em desconformidade com a tal
norma moral e conclui seu propósito com vistas à vantagem que perseguia. O filme em si não demonstra
posicionamento sobre se a conduta de Hermila é reprovável ou não; o que fica é uma sugestão de
reflexão, aberta, uma vez que não há menção ou previsão de dispositivo legal ou autoridade que levasse a
cabo a análise jurídica do fato.
Do ponto de vista da moral em Kelsen e Hart, Hermila teria agido de modo a descumprir uma
convenção moral socialmente considerada, já que é sabido que a prostituição é ofício marginalizado no
Brasil, sobretudo nos locais onde a ordem patriarcal é mais acentuada e a profissional da prostituição
ainda é vista como uma afronta à família, uma vez que o papel do homem-indivíduo não é moralmente
valorado do ponto de vista do impulso (ou instinto) sexual – fato que, aliás, denuncia traços firmes de
machismo contidos na responsabilização única da mulher pela “degradação social” que seria a
prostituição.
O episódio em que Hermila é afrontada pela cunhada de um potencial comprador da rifa de Suely
demonstra claramente que a atuação do homem na dinâmica em questão é quase que passiva, enquanto
que a de Hermila é vorazmente criticada.
À medida em que conhecemos a trajetória de Hermila, nos tornamos capazes de valorar
diferentemente sua decisão, como se usássemos os olhos de Hermila para enxergar a situação e, ao final
conseguíssemos compreender os motivos que a levaram àquela atitude e o fim perseguido com a rifa.
Assim, ao mesmo tempo em que Hermila é indivíduo causador de desordem social, é também
indivíduo que tenta dar rumo a sua própria trajetória social, ou seja, Hermila não é a mocinha do enredo,
mas também não é uma vilã; coabitam na personagem duas faces: Hermila (que talvez não admitisse ser
prostituta como desempenho de ofício, por excelência) e Suely (que admite a prostituição como forma de
tentativa de virada social).
Neste ponto, em certa medida, é possível dizer que Hermila admite a forma de outra metonímia, a
da população excluída socialmente, que se vê em situação de fragilidade e risco (até aqui pintada como
coitada), mas que rompe com regras, às vezes morais e às vezes jurídicas, para tentar impor sua
existência – algumas vezes em detrimento do funcionamento harmônico da estrutura social.

REFLEXÕES FINAIS
A partir da análise do filme em confronto com as teorias invocadas, é possível concluir que
Hermila é personagem delicada, de finalidade imbricada.
É fruto de uma sociedade contraditória e cindida, que vive sempre à margem do certo e do errado
na construção de sua própria trajetória, que reúne fugas, recomeços, traços de vilania e de heroísmo em
sua constituição. Não à toa o filme de Karim pode ser considerado uma importante ferramenta de análise
interdisciplinar jusfilosófica da sociedade brasileira.
São retratadas situações e realidades reincidentes nas obras de arte brasileiras do último Século,
fato que aponta para uma alarmante característica do Estado brasileiro: sua participação negativa, ou
não-participação, na construção de realidades extremadas, que dizem respeito a direitos fundamentais de
indivíduos que precisam fugir para sobreviver ou então que precisam se submeter aos julgamentos moral
e jurídico de uma sociedade contraditória para poderem ter seus anseios de vida supridos.
Alguns questionamentos pairam na consciência do expectador dO Céu de Suely: estaria Hermila
correta? Estaria errada? Qual seria a alternativa? E todas as questões estão diretamente ligadas, em
cadeia, com necessários questionamentos acerca do sucesso da constituição do Estado como forma
política e do Direito como estrutura basilar – e ideológica, de violência organizada – deste Estado
forjado no pós-revolução burguesa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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https://www.youtube.com/watch?v=5hoSyp89MM4
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RUA, UFSCAR. Disponível em <http://www.rua.ufscar.br/caracterizacao-e-analise-de-o-ceu-de-suely-de-karim-ainouz-como-uma-narrativa-
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OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book Kindle, Amazon, 2015.

PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo. Coimbra: Centelha, 1977.


O LOBO ATRÁS DA PORTA: O LADO PÚBLICO DA VIOLÊNCIA PRIVADA
Gabriela Biazi Justino da Silva[*]

Mulher, tua apatia te mata


Não queria de graça
O que nem você dá pra você, mulher
Hoje eu não quero falar de beleza
Ouvir você me chamar de princesa
Eu sou um monstro
Mulher, tua apatia te mata
Não queira de graça
O que nem você dá pra você, mulher
Tua apatia te mata
O que você vai fazer
Vai dizer
O que vai acontecer com você
(Karina Buhr, Eu Sou Um Monstro)

INTRODUÇÃO

M onstruoso: criança de 4 anos raptada e assassinada na Penha”[129]. Esse fragmento jornalístico


representa simbolicamente a narrativa estabelecida pela imprensa brasileira em torno de um crime
famoso que ocorreu no Rio de Janeiro na década de 1960, apelidado de “a fera da Penha”. No centro
dessa narrativa midiática, figurava a criminosa, retratada como uma mulher manipuladora, cínica, fria e
cruel. Atuando como ponto centrípeto narrativo, a sublinhada crueldade da autora do crime ofuscava o
papel e a ação das demais pessoas envolvidas na situação, bem como as relações de poder a ela
subjacentes. Assim, nos típicos moldes da cobertura midiática sensacionalista, cristalizava-se uma
história de lobo mal, afastando qualquer possibilidade de leitura dos fatos que incorporasse nuances,
tensões e ambivalências.
Foi esse o crime que inspirou “O Lobo atrás da Porta” (2014), filme roteirizado e dirigido por
Fernando Coimbra e lançado décadas depois. Reconstituição artística e livre dos fatos citados, o filme,
nas palavras do diretor, é um “drama com pitada de thriller” que humaniza os personagens, contrapondo-
se à narrativa de cunho maniqueísta enraizada na mídia e no senso comum.
O objetivo de Coimbra, ainda em suas palavras, era retratar personagens “com o máximo de
camadas possível” e contar uma história na qual todos “têm seu momento de vilão e de mocinho, de
carrasco e de vítima”[130] - ou seja, contar uma história na qual todas as personagens têm algo de
lobo[131].
É essa a disputa narrativa de fundo inscrita no contexto de criação do filme em questão. Não
obstante, essa concorrência ou dualidade de versões não se esgota na relação que estabelecemos entre
narrativa midiática e narrativa fílmica. Ainda podemos identificá-la como um elemento interno ao filme:
ela se reproduz na própria forma narrativa, na medida em que o enredo se desdobra como um jogo ou
disputa de versões estabelecida entre os personagens Rosa e Bernardo a partir das respostas concedidas
à autoridade policial na delegacia.
O desaparecimento da filha do casal Bernardo e Sylvia dá início à narrativa, seguido por uma
sucessão de “flashbacks” que reconstroem os fatos cujos desdobramentos culminam nesse acontecimento.
O desenvolvimento da trama é circular; ao final, chega-se ao ponto de início, que é também o desfecho
(ainda que com o acréscimo de uma nova revelação).
O espectador, a quem cabe costurar os retalhos, perde-se no processo de reconstrução da verdade,
já que, em dado momento, se dissolve a fronteira entre “flashbacks” que ilustram versões particulares de
cada um dos personagens e aqueles que constituem a história conduzida pelo narrador externo (a “história
real”), tornando impossível a exata distinção entre tais camadas narrativas. A cognição pelo espectador,
dessa forma, só alcança plenamente os fatos do desfecho. O filme, assim, utiliza a pluriperspectiva e a
manipulação de tempos e espaços para estabelecer um jogo narrativo com o espectador[132].
São diversas as temáticas abordadas por “O Lobo atrás da Porta”, entre as quais figuram questões
relativas à moral nas relações familiares, às relações de gênero e violência no cenário urbano
contemporâneo, à divisão entre público e privado e também à intervenção do Estado nesse contexto. Esse
capítulo pretende discutir determinados aspectos do filme à luz de um repertório conceitual específico
que informa o estudo das relações entre direito, poder e violência no Brasil.
Organizadas e desenvolvidas a partir do quadro conceitual a seguir descrito, as reflexões aqui
desenvolvidas não tem a pretensão de exaurir todos os temas suscitados pela obra. A fim de facilitar a
exposição, foram organizadas em três eixos: (i) relações de poder no contexto contemporâneo (relações
sociais de gênero); (ii) os significados múltiplos da violência; (iii) direito (abuso do poder no espaço
urbano contemporâneo e a revogação da norma).
A análise desenvolvida assume o pressuposto da importância do cinema como ferramenta útil para
a análise filosófica e ampliação do olhar crítico[133], nos termos propostos por Mara Regina de
Oliveira:
“A análise de filmes proporciona um alargamento cognitivo
extraordinário de conceitos habitualmente trabalhados na filosofia escrita,
porque vai além da mera exposição conceitual e nos faz vivenciar, em
termos emocionais, a complexidade do tema, sem cair em simplificações
maniqueístas em torno do certo e do errado, sem considerar como sendo
universal aquilo que é apenas dominante. É quase impossível que um texto
teórico possa mostrar as tensões morais, da mesma forma que o cinema é
capaz de fazer”[134].
Trata-se, assim, conforme discorre Julio Cabrera, de “ler o filme filosoficamente” e, como o
verso da moeda, de incorporar ao conhecimento filosófico a racionalidade logopática, que permite
acessar dimensões afetivas ou emocionais do saber, aproximando-se das experiências humanas vividas
ou vivíveis (caráter “experiencial”), sem negar a possibilidade de articulação racional das ideias[135].
A adoção dessa racionalidade bidimensional evita a formulação de soluções fechadas e estáticas
ou de superficiais condenações morais, em prol da produção de um estado permanente de “assombro
diante da realidade” e da compreensão profunda de fenômenos sociais, em especial sobre como esses se
expressam na constituição, sujeição e poder de agência dos sujeitos. Dessa forma, a abordagem por meio
dos conceitos-imagem, linguagem típica do cinema, permite tematizar questões dificilmente articuladas
pelos conceitos-ideia da filosofia escrita[136].

RELAÇÕES DE PODER NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO: RELAÇÕES SOCIAIS


DE GÊNERO
Como dissemos, é impossível apontar com completa convicção quais fatos exatos conduziram ao
assassinato da criança, filha do casal Bernardo e Sylvia. Embora a autoria do crime seja elucidada ao
fim, permanecem dúvidas sobre aspectos referentes ao relacionamento de Rosa e Bernardo. Podemos
afirmar que essa incerteza não só contamina esse plano mais palpável e superficial, como também atinge
uma camada mais profunda, qual seja a da significação contextual de cada um desses atos e posturas no
desenrolar da história, embaraçando a percepção do espectador no que se refere ao julgamento moral dos
personagens.
A produção dessa incerteza não consubstancia uma legitimação ou justificação da violência
perpetrada por Rosa contra a criança, mas tem uma funcionalidade expressiva e filosófica, pois ressalta a
complexidade subjetiva das personagens e as ambiguidades morais presentes na trama, promovendo
alargamento cognitivo. Assim, a compreensão da motivação dos atos dessa personagem nos conduz a uma
percepção mais aguçada e profunda da situação-problema narrada e das relações de poder que a
produziram. Nesse sentido, o filme evita uma condenação moralista das relações extraconjungais, por
exemplo, ou mesmo uma condenação desinteressada de Rosa.
Desvinculando-se desse tipo de abordagem, o filme ressalta os aspectos complexos das relações
sociais de gênero na sociedade contemporânea, tematizando a problemática dos padrões abusivos de
comportamento. Sem negar a existência de um sistema de dominação-exploração[137], o filme não
reforça estereótipos socialmente construídos em torno das mulheres, traduzidos em torno de diversas
dicotomias, como, por exemplo, passiva ou vingativa; santa ou bruxa. Esses estereótipos,
caracteristicamente planificados, são facilmente e recorrentemente representados em películas e na mídia
em geral, inclusive na forma de forçada e irreal vitimização, que, em última análise, consubstancia uma
imagem controladora das mulheres.
A abordagem adotada pelo diretor, nesse sentido, nos parece uma exceção: ambas as personagens
(Rosa e Bernardo) são retratadas com profundidade psicológica e moral. Rosa sofre diversas violências
psicológicas e físicas impostas por Bernardo, mas também é capaz de reagir. É essa a certeza que o filme
parece conferir: a violência não pode ser compreendida a partir de um modelo simplificado e estático -
resultante de derivações automáticas das estruturas de dominação-exploração -, sob o risco de redundar
em incompreensão da realidade e, consequentemente, de incapacidade para desenhar estratégias de
superação e/ou identificar possibilidades de mudança nas relações de poder.
Dessa forma, o filme é um jogo de narrativas que também ativa estereótipos em torno das
mulheres, seja para reafirmá-los através de alguns personagens (como o delegado, que julga Rosa por ter
um relacionamento com um homem casado), garantindo a verossimilhança - já que esses estereótipos
circulam na vida social e atuam como dispositivos de controle -, seja para desconstruí-los (ao revelar
que Rosa não é uma vítima apática e, tampouco, um monstro, mas tem a complexidade característica da
experiência humana). Assim, a narrativa parece refletir a ideia descrita por Oliveira, que afirma que a
“existência de uma situação moral isenta de ambiguidade é utópica. Raramente, atos morais podem trazer
completa satisfação”[138].
Ao narrar uma história na qual gênero - compreendido como a construção social dos papéis de
homens e mulheres - é um marcador relevante, o autor joga luz sobre o funcionamento das estruturas
sociais. Ainda que tenha contado uma história particular, o filme não deixou de trazer à tona o tema da
desigualdade social de gênero e suas expressões – afinal, como afirma o slogan feminista, “o pessoal é
político”. Compreender experiências particulares, dessa forma, é compreender, em alguma medida, como
operam as normas sociais de gênero – no caso do filme, o modo de circulação social dos afetos e das
violências no âmbito das relações interpessoais de gênero. A violência em “O Lobo atrás da Porta” se
articula em torno de tensões e contradições derivadas das noções de público e privado. A placa de
“perigo, não ultrapasse” da estação de trem onde Rosa e Bernardo se encontram parece simbolizar e
prenunciar essas tensões. A reclamação da personagem do delegado, “tô virando terapeuta de casal, não
entrei na polícia pra isso”, também enuncia a temática. Por fim, a questão da autonomia do corpo
feminino também tem relevância quando discutimos essa chave de análise.
Além disso, a relação entre controle e normalização da sexualidade feminina, modelo da relação
conjugal e monogamia (imposta às mulheres) converge para a discussão sobre as possibilidades de
padrões diversos de comportamento das mulheres baseados na autonomia. Nesse sentido, ao aprofundar
psicologicamente a personagem de Rosa, o filme traça um deslocamento significativo, por focar nos
processos de subjetivação das mulheres. Conforme discorre Michèle Riot-Sarcey:
“A mulher só pode aceder à autonomia transgredindo as normas do grupo,
por definição coercivas. A identificação de uma às outras passa
infalivelmente pelo modelo dominante e, portanto, pela heteronomia dos
valores. Entre o “indivíduo que é dito” e “o sujeito responsável que se diz”
(Ricoeur, 1987, p.55-56), abre-se o caminho da liberdade que autoriza a
existência do sujeito pelo poder dizer eu. A passagem do sujeito submisso a
sujeito livre supõe o questionamento das formas do poder que se exerce
sobre cada indivíduo. O poder de dizer eu é também uma luta contra as
formas de sujeição – contra a submissão da subjetividade – de que as
mulheres são especialmente vítimas. Alcançar o estatuto de sujeito livre faz
parte da aprendizagem do poder, no respeito por si e pelo outro”[139].
Nesse sentido, o filme trabalha o tema com sensibilidade política, sem cair em fórmulas óbvias,
abrindo espaço para pensar às situações de opressão a que as mulheres estão sujeitas. Ainda que o final
seja pessimista quanto às possibilidades individuais de resistência, promove esse alargamento da
compressão sobre a realidade das mulheres, já que
“(...) o poder não é somente algo a que simplesmente nos opomos, e sim
algo do qual depende a nossa existência, porque somos sujeitos formados
nas reações de poder e nelas vinculamos e nos preservamos como seres
humanos inteligíveis. Como sujeitos, inscrevemo-nos nessa dependência dos
discursos que nos formam, já que o poder assume uma forma psíquica e
constitui a nossa identidade de sujeito (...).” [140]

OS SIGNIFICADOS MÚLTIPLOS DA VIOLÊNCIA


O assassinato cometido por Rosa é um dos fatos mais chocantes do filme, embora os indícios que
o prenunciem ou, ao menos, o tornem verossímil, estejam presentes em momentos anteriores da narrativa.
Muito possivelmente, é um ato que parece infinitamente mais brutal ao espectador do que a relação
abusiva e o aborto forçado aos quais Rosa é submetida, já que essa violência é naturalizada em razão da
banalização da violência contra as mulheres e da desconsideração da autonomia reprodutiva como
direito das mulheres no Brasil[141].
Dessa forma, em comparação com a violência final perpetrada por Rosa, os atos violentos
anteriores podem, aos olhos do espectador, desaparecerem ou terem sua gravidade relevada. No entanto,
uma das virtudes do filme reside justamente em explorar as conexões entre tais violências. Aqui,
discorremos sobre duas perspectivas possíveis de leitura, com seus respectivos conceitos-chave,
testando seus limites e potencialidades para investigar essa questão[142].
A primeira delas recorre aos conceitos desenvolvidos pelo psicanalista Jurandir Freire Costa.
Costa analisa o abuso de poder ou a “invasão desestruturante de uma ordem desejável” a partir da
experiência e comportamentos das elites, relacionando comportamentos privados com fenômenos
públicos. Para o autor, a violência pode ser compreendida a partir das ideias de “alheamento em relação
ao outro” e de “irresponsabilidade em relação a si”, que constituem um modelo social de subjetivação ou
individualização[143].
O alheamento, nas palavras do autor, “consiste numa atitude de distanciamento, na qual a
hostilidade ou o vivido persecutório são substituídos pela desqualificação do sujeito como ser moral”.
Exemplificando, Costa aponta que esse desqualificar pode se expressar em não ver o outro como sujeito
autônomo, capaz de criar seu próprio comportamento ético, ou, ainda, de não respeitá-lo em sua
integridade física e moral. Trata-se de uma indiferença com o destino, vontades e as dores do outro. O
outro, em suma, é anulado em sua humanidade, porque seu valor para o violentador se resume em “ser
suporte dos objetos ou predicados desejados”[144].
Conclui o autor que as elites, absortas nessa visão de mundo, apostam com facilidade que a
sociedade como um todo compartilha dessa visão, “sem consciência dos riscos que correm”. Ao mesmo
tempo, permanecem em uma “busca desesperada que dê sentido à vida” que, em síntese, é orientada por
um projeto estéril baseado em um ideal de vida liberal e no mito da salvação individual, reflexo da
irresponsabilidade em relação a si[145].
Ainda que a personagem de Bernardo pertença à classe média, que mora no subúrbio carioca, a
ideia de alheamento em relação a outro parece ter força explicativa para traduzir sua postura em relação
à Rosa, em razão da desigualdade de gênero que estrutura a relação entre ambos. Nesse sentido, vale
recordar que a personagem já está em um polo fragilizado, na medida em que sofre com estigma da
traição que recaí de forma específica sobre as mulheres e também com outras expressões da opressão de
gênero. Trata-se, assim, de uma relação desigual em razão dessa violência simbólica que a precede.
Afinal, é Bernardo quem detém o poder na relação, já que, em última instância, dita os termos em que
pode ser negociada.
O relacionamento de Rosa e Bernardo é fruto de um acaso, mas igualmente é, para ambos, a
concretização de uma via de escape do cotidiano massacrante e monótono. No entanto, o relacionamento,
para Bernardo, é somente uma fuga em busca de satisfação pessoal, sem pretensões de que futuramente
tivesse um significado ou um espaço maior em sua vida. Esse valor que dá ao relacionamento, a
princípio, não é um problema em si.
O desajuste, que produz a tensão e os conflitos da trama, se refere especialmente ao modo e os
termos nos quais a relação é construída. Rosa, em diversos momentos, aponta que sua intenção é ter um
relacionamento duradouro, ainda que como “amante”, e construí-lo com base em cumplicidade e respeito
(a personagem pede, por exemplo, que Bernardo nunca minta para ela).
A interpelação de Rosa parece não se tratar apenas de reivindicar um status de relação, mas um
apelo para considerá-la como sujeito. Bernardo, em resposta, dissimula e sugere que tem uma ligação
afetiva com Rosa e se compromete a corresponder a suas expectativas. No entanto, Bernardo passa a
tratá-la de forma diversa: permite que Rosa partilhe de momentos com ele, desde que a fuga dela fique
circunscrita a uma dimensão muito específica e sob seu controle, sem romper certos limites da sua esfera
protegida (na qual se inclui sua família).
Essa postura se manifesta, por exemplo, na reação de Bernardo às ligações de Rosa para seu
celular no meio da noite, quando ele estava no ambiente familiar. Como “punição”, ele deixa de atender
suas ligações posteriores e não comparece a um encontro. Outro exemplo, bastante simbólico, é o
momento no qual Bernardo compartilha, de forma despretensiosa, um sonho ingênuo de liberdade com
Rosa – um plano de viagem de dois meses pelo litoral brasileiro, “sem se preocupar com nada”. Rosa, ao
tentar entrar no exercício de fantasia, é tolhida por Bernardo. Só ele pode sonhar e se afirmar dessa
forma. Por fim, um terceiro exemplo é o abandono de Rosa em uma rua deserta após essa noticiar a
gravidez.
Esses exemplos demonstram como Bernardo promove a desqualificação de Rosa como sujeito e
ser moral, controlando seus sonhos e ações e impondo sofrimentos físicos e psicológicos. Os mais
terríveis deles se expressam nas agressões físicas à Rosa. A gravidez que Rosa quer manter é
interrompida violentamente por Bernardo, que a viola fisicamente ao submetê-la a um criminoso aborto
forçado. Simbolicamente, a reprodução da vida, representada pela gravidez, é abruptamente atravessada.
Esse é o ápice do processo de alheamento em relação ao outro, de desumanização, que Bernardo conduz,
rompendo definitivamente qualquer real possibilidade de negociação dos termos da relação.
Rosa é vítima de tais violências, mas as ações de sua personagem não podem ser descritas
somente pela sujeição, já que ela não tem uma postura passiva perante a situação. Pelo contrário, Rosa
tem um comportamento de enfrentamento, considerado transgressor se tomamos como parâmetro os ideais
de feminilidade impostos às mulheres (em especial, às brancas). Sua personagem adentra no espaço
doméstico no qual se dá o relacionamento conjugal de Bernardo, aproximando-se de Sylvia, de quem se
torna amiga[146].
Nesse sentido, deflagra-se na trama um jogo de máscaras, “onde um tenta combater a dissimulação
do inimigo com a própria dissimulação” e no qual “o “detentor do poder”, bem consciente da sua
constante simulação, somente pode esperar a mesma coisa por parte de seus semelhantes”, conforme
descrito por Oliveira[147].
O crime de Rosa, por sua vez, pode ser lido a partir das reflexões tecidas por Elias Canetti sobre
as dinâmicas das relações de poder. Sobre tais reflexões do autor, explica Oliveira:
Como bem disse ELIAS CANETTI, as relações de poder, reduzidas à ordem
imposta de forma violenta, mantém uma espécie de círculo vicioso. A vítima
de hoje, será o algoz de amanhã a fim de se libertar do aguilhão psicológico
criado na sua condição de sujeito da relação de poder anterior[148].
Para Canetti, o poder expresso por meio da violência é internalizado por seu destinatário, que
“conserva em si, na qualidade de um aguilhão, sua resistência contra ela - um duro cristal de rancor”. O
aguilhão é, assim, um “reflexo idêntico e oculto” da violência recebida que não foi passada adiante[149].
A possibilidade de dissolução do aguilhão - ou de libertar-se - se encerra na imposição da mesma
violência a outrem. Para o autor, a violência é frequentemente suportada – e, de certa forma, naturalizada
- em razão da domesticação da ordem. Assim, em determinadas relações, como aqueles nas quais há
vínculo afetivo, por exemplo, configura-se uma espécie de “prisão voluntária” que, no entanto, não está
livre da formação de aguilhões[150].
Considerando a relação abusiva a qual Rosa estava sujeita, marcada pela sistemática e crescente
reafirmação de sua desconsideração como sujeito, podemos interpretar a violência perpetrada pela
personagem contra a criança como a liberação de um aguilhão. Aniquilada pelo alheamento de Bernardo
levado até as últimas fronteiras da violência, essa era sua única possibilidade de afirmar-se como ser
moral e de libertar-se.
Essa libertação, antecipadamente representada na simbólica passagem da personagem pela
lavagem das escadas da Igreja da Penha, parecia ser a única possibilidade que Rosa vislumbrava de
construir sua própria narrativa. Rosa, assim, repete a violência praticada por Bernardo contra ela. A
personagem rompe com a posição subjugada que marca o imaginário sobre o feminino nas relações
privadas, afirmando-se como sujeito por meio da violência.

DIREITO: ABUSO DO PODER NO ESPAÇO URBANO CONTEMPORÂNEO E


DESCONFIRMAÇÃO DA NORMA

"... afirmou que não está interessada em saber o que lhe vai
acontecer, que não quer advogado e nenhum meio de defesa, pois tem
consciência da responsabilidade de seus atos e não deseja o perdão de -
absolutamente – ninguém; perguntada da origem do revólver, respondeu
apenas que é mais fácil comprar um do que se imagina".
O direito é um tema evidente na narrativa desde o início do filme, já que a presença da
personagem da autoridade policial, que personifica o Estado, é quem dita o desenrolar da narrativa. É
por meio da ação dessa personagem que articularemos a análise do direito.
O primeiro ponto que destacamos é a insuficiência da dogmática normativa e das instituições
formais para lidar com conflitos morais complexos. O descompasso entre a realidade apreendida pelo
delegado por meio da cognição jurídica dos fatos e a complexidade do drama instalado é evidente. A
sanção imposta pelo direito pode ser moralmente justa, mas não responde ao drama moral em todas suas
dimensões.
Além disso, podemos notar insuficiências relativas à eficácia social do direito, associada a
situações de abuso de poder. A primeira pessoa a ser ouvida pelo delegado é a professora da creche, que
é moralmente julgada por esse por ser incapaz de administrar de modo eficiente e seguro a segurança das
crianças atendidas. Contraditoriamente, o Estado se faz ausente nos locais periféricos no que diz respeito
à garantia de serviços públicos básicos e, posteriormente, responsabiliza os indivíduos que participam
de soluções informais e precárias pela via do direito.
Essa contradição se repete no fato de que o crime perpetrado (aborto forçado) por Bernardo
sequer aparece como um ilícito, que deve ser objeto de persecução penal. Essa omissão representa a
ausência da autoridade do Estado, que opera uma seletividade negativa. Em conclusão, o “Direito é
apresentando como mecanismo burocrático de poder, não, necessariamente, de justiça em sentido
humano”[151].
Em outra situação, durante o interrogatório de Rosa, o delegado profere ameaças para constrangê-
la a confessar o crime, afirmando que ninguém se importa que criminosos como ela sofram tortura nas
delegacias. Embora não apareçam explicitamente como uma questão para a personagem, representam
“(...) a histórica indiferença e omissão social do Estado em relação a estas
comunidades, a não prestação dos devidos serviços básicos, o abuso de
poder, em termos comunicativos, praticado por muitos policiais, que
confundem a noção de autoridade com autoritarismo, ou seja, que agem de
forma violenta e desconfirmadora, sem respeitar os limites da lei(...)”[152].
Dessa forma, os referidos pontos da narrativa podem agudizar o sentimento de injustiça, por
caracterizam situações de abuso de poder. Considerando tais reflexões, a postura cínica (ou cética?) de
Rosa na delegacia pode ser compreendida como uma ação desconfirmadora, que “surgem no momento em
que a legitimidade da relação de poder está enfraquecida”[153].
A personagem se torna consciente sua vivência em um contexto de “desqualificação cínica de
padrões etico-jurídicos”, consubstanciadas em esvaziamento moral e comportamentos abusivos[154],
uma vez que o controle social informal e o direito não foram aptos a conter seu aniquilamento enquanto
sujeito.
Destarte, a percepção da injustiça da norma implica na sua revogação por Rosa, que refuta a
autoridade do emissor normativo. A personagem, ao afirmar que aceita a responsabilização e que não
deseja defesa não o faz por estar convencida sobre a justiça da imputação da pena, mas antes por
ceticismo ante a realidade social, incluindo aí as formas de resolução de conflitos impostas pelo direito.
Não se trata, portanto, de um discurso de submissão. Ocorre, em verdade, “a carência do poder do
emissor pela carência de sentido existencial do sujeito destinatário”, nas palavras de Tercio Sampaio
Ferraz Jr[155].

REFLEXÕES FINAIS
Conforme explica Cabrera, a linguagem do cinema permite “soluções lógicas, epistêmicas e
moralmente abertas e problemáticas (...) para as questões filosóficas que aborda”. Em consonância com
as reflexões aqui expostas, julgamos que essa assertiva se aplica ao filme “O Lobo atrás da Porta”.
Ainda que Rosa, que cometeu o assassinato, seja punida de acordos com os parâmetros legais – conforme
prescreve a fórmula cinematográfica do happy end -, a narrativa, dotada de complexidade, se sustenta e
não é ameaçada por esse desenlace[156].
Embora seja inspirado em um crime datado da década de 1960, o filme é extremamente atual e
tematiza uma série de questões que estão em efervescente debate na esfera pública, alinhando-se a outros
títulos cinematográficos brasileiros que impulsionam a discussão sobre aspectos importantes da
sociedade contemporânea do país. Um dos poucos suspenses nacionais, sua forma dramática não se
impõe de forma artificial, mas tem funcionalidade na armação do conceito-imagem veiculado.
Em conclusão, “O Lobo atrás da Porta” contribui para o desenvolvimento do estudo das relações
entre direito, poder e violência no Brasil a partir do cinema, propiciando um alargamento cognitivo no
que diz respeito à atualidade e pertinência da reflexão sobre as intersecções entre violência, relações de
gênero e direito. A obra expõe como a violência vista como restrita ao âmbito privado, em verdade, é
fenômeno público, por perpassar de forma transversal as relações sociais em sua totalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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O LOBO atrás da porta. Direção: Fernando Coimbra. Imagem Filmes, 2014. DVD, 1 filme, 102 min.
OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e filosofia do direito em diálogo. E-book Kindle, Amazon, 2015.
OLIVEIRA, Mara Regina de. O Desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Rio de Janeiro: Corifeu, 2006.
RIOT-SARCEY, Michèle. Poder(es). In: HIRATA, Helena…[et al.] (orgs.). Dicionário Crítico do
Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 187.
SAFFIOTI, Heleieth I.B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/cpa/n16/n16a07.pdf>. Acesso em em 24 de novembro de 2015.
SAFFIOTI, Heleieth I.B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.
ESTÔMAGO: UMA FÁBULA NADA INFANTIL SOBRE PODER, SEXO E CULINÁRIA
Gabriela Werner Oliveira[*]
Isabelli Carvalho Botazini de Souza[*]✽

INTRODUÇÃO

E stômago, filme lançado em 2007 sob a direção de Marcos Jorge, foi inspirado no conto “Presos pelo
Estômago”, do livro Pólvora, Gorgonzola e Alecrim, escrito por Lusa Silvestre, e narra a história do
personagem central do filme, Raimundo Nonato. Tal narrativa é feita em primeira pessoa, ou seja,
todos os acontecimentos revelados ao espectador o são a partir da perspectiva de Nonato.
Assim, a narrativa assume a forma digressiva e o espectador só tem certeza do que realmente
aconteceu ao final do filme. Essa abordagem, pela qual a verdade vai sendo construída ao longo do filme,
guarda proximidade com a produção das verdades dentro do sistema judiciário, conforme analisado por
Foucault.[157]
O filme inicia com Nonato contando uma parábola de como o queijo gorgonzola foi inventado,
visando convencer outras pessoas a deixa-lo ficar com o queijo gorgonzola, de cheiro forte, no local
onde se encontravam. Contudo, sua pretensão é rapidamente rejeitada, de forma ríspida e autoritária. A
partir desse momento, a narrativa se dá de forma retrospectiva, de modo a revelar ao espectador os fatos
que levaram Nonato a estar inserido naquele contexto.
Descobre-se que Nonato saiu de sua terra natal, a Paraíba, em direção à cidade grande[158], sem
que se esclareça o porquê, uma vez que sua história anterior não é contada. Aqui, tem-se a ideia de fuga
de uma situação que se tornou insuportável, da ordem, e busca por um recomeço. Essa mesma ideia de
fuga pode ser encontrada nos filmes “A casa de Alice” e “O lobo atrás da porta”, embora ocorra de
maneira diferente. Nestes, a fuga dos personagens não é territorial, mas puramente emocional.
Ao chegar na cidade, Nonato perambula pelas ruas, tal qual estivesse perdido em sua busca, até
entrar em um bar, onde pede um copo de água e duas coxinhas. O aspecto precário do bar e das coxinhas
demonstra a situação de miserabilidade de Nonato naquele momento. Apenas uma pessoa fisicamente
extenuada e faminta, sem outra opção, entraria naquele bar e comeria as coxinhas gordurosas e de aspecto
repulsivo. Nonato, por sua vez, come as coxinhas com ferocidade, demonstrando sua necessidade por
suprir a fome, e adormece no balcão, em função de sua necessidade por descanso.
Na sequência, Nonato é acordado pelo dono do bar, que já se encontra vazio e quase todo
fechado. Nonato faz menção de sair, mas é cobrado pelas coxinhas. Ao responder que não tinha dinheiro,
Nonato é intimidado pelo dono do bar com um pedaço de madeira[159]. Atemorizado, pergunta o que ele
pode fazer para saldar a dívida, ao passo que o dono do bar responde que ele poderia lavar a louça.
Ainda, em troca de dormir em um quartinho no local, Nonato também deveria lavar o chão da cozinha. É
apenas depois disso que os dois se apresentam e que o espectador fica sabendo o nome de Raimundo
Nonato, e do dono do bar, Zulmiro. Tal cena termina com Zulmiro apagando a luz e baixando a grade de
ferro do bar. Nonato permanece no escuro e trancado no bar.
A cena seguinte mostra Nonato sendo conduzido a uma cela de prisão. A partir desse momento, a
narrativa começa a ser desenvolvida em paralelo com a história de Nonato fora da prisão, embora, como
será evidenciado, não livre, e dentro da prisão, até que o espectador descubra o porquê ele foi preso e as
mutações pelas quais o personagem passa, até o final da narrativa.
Com base nisso, os tópicos seguintes têm por objetivo demonstrar as relações de poder existentes
no filme e como elas afetam a trajetória de Raimundo Nonato, analisando o papel desempenhado pela
culinária, pelo sexo e pelas necessidades biológicas nesse contexto.

A ORGANICIDADE DO PODER E A SATISFAÇÃO DE NECESSIDADES


FISIOLÓGICAS
A palavra ‘estômago’ remete à ideia de digestão, local onde a comida é armazenada e pré-
digerida. Não à toa, diversas expressões usuais fazem uso dessa palavra, tais como: “não tenho estômago
para isso”, “soco no estômago”, “borboleta no estômago”. Tal palavra acaba por adquirir o significado
de âmago, do órgão no qual se manifestam as nossas emoções. Ainda, pode-se dizer que há quem
‘devore’, há quem seja ‘devorado’, e, no caso do filme, há quem cozinhe.
De fato, as sensações, necessidades e paixões humanas, são os motores das ações de todos os
indivíduos. Para a satisfação daquelas, se assim for exigido, a razão ou o intelecto são derrotados, cedo
ou tarde, de forma consciente ou não. Assim, conforme o filme demonstra, não há moralidade que resista
ao desejo de comida e de sexo, tomados enquanto necessidades fisiológicas que estão diretamente
ligadas à sobrevivência. Nessa conjuntura, as relações de poder ficam evidenciadas e possuem especial
relevância.
Sob esse viés, Canetti afirma que as relações de poder têm origem biológica. Nesse sentido, o
autor observa que até mesmo o processo digestivo implica em uma relação de poder implícita – oculta -,
ultimada quando o ‘engolido’ perder as suas características e passa a ser uma parte daquele que ‘engole’.
Não obstante, é um processo a que todos se submetem a fim de assegurar a sua própria sobrevivência. O
que torna esse processo visível são os excrementos que dele resultam, “carregados com todas as nossas
culpas de sangue. Por eles podemos reconhecer que cometemos assassinatos”.[160] Em razão disso, a
excreção é um momento privado. Nesse contexto, o estômago é órgão fundamental para o processo.[161]
Foucault analisa o poder enquanto prática social, que “permeia, produz coisas, induz ao prazer,
forma saber, produz discurso. Deve-se considera-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo
social [...]”. O poder possui forma capilar e se encontra no nível dos indivíduos, atingindo seus corpos.
Assim, não há que se pensar na existência de um poder, mas de múltiplos micro poderes, que são mais
que mera repressão.[162]
Por conseguinte, pode-se afirmar que as relações humanas são estruturadas com base em relações
de poder. No filme, é possível detectar a existência de diversas relações de poder, formais ou não. A
primeira relação de poder identificável é da Zulmiro e Nonato. Após este ter lavado os pratos e limpado
o chão da cozinha, Zulmiro, satisfeito com o trabalho apresentado, pergunta se Nonato quer ajudar na
cozinha e dormir no quartinho. Nonato pergunta quanto vai ganhar e é severamente repreendido por
Zulmiro, que apenas lhe oferece “rango e teto”, já que ele tem onde dormir e Nonato não tem onde cair
morto. Nonato aceita a oferta, colocando-se como cumpridor da ordem que lhe foi imposta.
Essa situação demonstra a lógica capitalista pós-industrial da relação de emprego, questionada na
pós-modernidade. O filme é certeiro em mostrar a porta do bar sendo fechada por Zulmiro e, logo após, a
porta do pavilhão do presídio sendo aberta pelo carcereiro, ambas aprisionando Nonato. De fato, embora
considerado homem livre à luz do direito penal, Nonato encontrava-se preso em função de sua condição
econômica e social, tolhido de sua dignidade e direitos. Além disso, Nonato está sob a constante
vigilância e controle de Zulmiro, que dorme na parte de cima do bar.
De acordo com Canetti, “Somente a ordem cumprida crava seu aguilhão naquele que a ela
obedeceu. Quem se esquiva das ordens não precisa armazená-las. ‘Livre’ é apenas o homem que soube
esquivar-se das ordens, e não aquele que delas se liberta somente a posteriori”.[163] Percebe-se,
portanto, que Nonato perdeu sua liberdade muito antes de ser preso formalmente por mecanismos
jurídicos.
Sem embargo, o talento culinário de Nonato faz com que ele se destaque, ganhando a atenção de
Íria, uma prostituta com grande apreço pela gastronomia. Os dois começam um relacionamento baseado
na satisfação mútua de apetites: os dele sexuais e os dela gastronômicos. Com o passar do tempo, Nonato
se apaixona por Íria e o fato dela ser prostituta não parece ser um óbice para a relação. Entretanto, o
amor dele não é correspondido por ela, que enxerga a relação como profissional. Tal fato fica claro
quando ele tenta beija-la na boca e ela recusa, afirmando ser antiético. Nonato insiste no relacionamento
e pede-a em casamento, e ela acaba por aceitar o pedido.
Mas os talentos culinários não chamaram a atenção apenas de Íria. Giovanni, dono de um
restaurante italiano, percebe os dotes de Nonato e convida-o para trabalhar com ele. Já no novo emprego,
tem-se a segunda relação de poder exposta no filme: Giovanni é o dono do restaurante, amparado pelo
primeiro cozinheiro Francesco, sendo Nonato o auxiliar de cozinha. Giovanni é um verdadeiro mentor
para Nonato, ensinando-o a cozinhar pratos mais sofisticados e a lógica de funcionamento da cozinha.
Percebe-se que, enquanto Nonato cozinha, tem-se uma trilha sonora diferenciada, como que
sublimando aquele momento. Nesse contexto, a culinária representa um meio pelo qual Nonato consegue
ganhar espaço e reconhecimento. Assim, a culinária está para Nonato, como a fotografia estava para
Buscapé, no filme Cidade de Deus.
Além disso, observa-se que diversas metáforas entre a culinária e a mulher, entre comida e sexo,
são feitas ao longo do filme. Dessa maneira, Zulmiro ensina Nonato a fazer pastel, instruindo-o a amassar
a massa “como se fosse bunda de mulher”. Giovanni, por sua vez, afirma que a melhor parte da carne do
boi é o filet mignon, que é “que nem na mulher, a bunda”. Separar a carne do boi “é a arte da arte”. Já
uma prostituta, colega de Íria nas ruas, pergunta a Nonato se ele “não estava a fim de mudar o cardápio”.
Isso sugere que comer adquire dupla conotação: uma ligada à alimentação e outra ao sexo, ambas
ocultando relações de poder.
Nesse cenário, destaque especial deve ser dado para a questão da antropofagia, presente quase ao
final do filme. Como visto, Íria não nutria amor por Nonato. Entretanto, por ocasião de um jantar
enquanto o restaurante de Giovanni estava fechado, este cozinha para Íria, a qual, em retorno, beija-o na
boca e, após a refeição, sobem para a parte de cima do restaurante. Toda a cena é presenciada por
Nonato, que observa escondido e percebe que Íria trata Giovanni de forma diferenciada. Eis aqui o
motivo de Nonato estar na prisão: não aguentando a rejeição e a traição de Íria e Giovanni, decide mata-
los. Mas não só. Nonato ainda corta um pedaço da nádega de Íria, em referência ao filet mignon, a melhor
parte dela, tempera-o e prepara como se fosse um prato refinado.
Da mesma forma que Freud faz referência aos filhos que odeiam o pai tirano, matam-no e o
comem, de modo a apropriar-se de seu poder e força, mas, ao mesmo tempo nutrem profundo amor e
admiração por ele[164], essa ambiguidade também está presente em Nonato. Ao comer a melhor parte da
carne de Íria, ele se apodera do melhor dela, já que não correspondido de outra forma, vingando-se pela
traição, mas ao mesmo tempo honrando os ensinamentos de Giovanni e demonstrando respeito por
Íria[165]. Esse acontecimento pode ser visto como um ritual de passagem na vida de Nonato, que vai ser
aperfeiçoado na prisão.
Nesses termos, o filme afasta qualquer maniqueísmo com relação aos personagens. Nesse tocante,
ao explicar a complexidade do ser humano, Morin afirma ser o indivíduo unidual: ao mesmo tempo em
que é plenamente biológico, também o é plenamente cultural; ao mesmo tempo que é sapiens, é também
demens.[166]
De se observar que a temática em torno da rejeição e da traição também é abordado nos filmes “A
casa de Alice” e “O lobo atrás da porta”. No primeiro, Alice é oprimida pelo seu marido, que além de
rejeita-la sexualmente, a trai com mulheres mais jovens. Tal fato faz com que Alice busque no seu antigo
namorado uma espécie de esperança. Contudo, suas expectativas não se concretizam. Com respeito a “O
lobo atrás da porta”, as pretensões românticas de Rosa são rejeitadas por Bernardo, que a enxerga
apenas como um objeto de satisfação sexual e fuga da rotina, traindo sua esposa Sylvia, em um cenário de
constante opressão.
Feitas essas considerações acerca do caráter orgânico do poder, evidenciado de forma mais
veemente pela análise feita em torno do significado de estômago e comida, o próximo tópico se destina a
fazer breves considerações sobre a pragmática jurídica existente no filme.

BREVE ANÁLISE SOBRE A PRAGMÁTICA JURÍDICA EM ‘ESTÔMAGO’


Primeiramente, observa-se que Raimundo Nonato faz questão de esclarecer a origem de seu nome,
explicando como no Nordeste o mesmo é extremamente comum e faz referência a um homem santo na
crendice popular. Logo depois, Nonato volta a fazer referência a seu nome, dizendo que “depois daquilo
que ele fez” ele vai ter que mudar de nome, “nome de homem do cangaço”, “nome de bandido” e se
define como Nonato Canivete – seu nome de bandido para sobreviver na cadeia.
Nesse momento, há a preocupação de Nonato em passar através de um signo (seu nome) uma
relação de poder. Ele tenta através da linguagem direcionar ao receptor que ele também é um homem
perigoso e merece respeito. Tal qual a pragmática jurídica, que se preocupa com o estudo da
comunicação utilizando o chamado Princípio da Interação, visando estabelecer a relação existente entre
emissores e receptores por meio dos signos linguísticos utilizados por estes, o mesmo acontece com
Nonato por meio da utilização da linguagem[167].
Enquanto os signos são utilizados para mediar a comunicação entre emissores e receptores, a
língua é o conjunto de signos convencionados pelo homem, com significados diversos, construídos ao
longo da interação comunicativa visando o entendimento do outro. Para Oliveira, “a comunicação está
intimamente relacionada com o comportamento humano, pois este é sempre uma ação dirigida ao
entendimento de outrem”.[168] Contudo, como visto, não foi através da comunicação verbal que Nonato
consegue respeito, mas sim em função de seu talento culinário.
As interações entre os participantes da comunicação estabelecem relações de igualdade e
diferença, refletindo o comportamento do outro nos casos de igualdade e complementando nos casos de
diferença. Tal premissa é notada quando Raimundo Nonato passa a trabalhar no bar de Zulmiro, não por
escolha própria, mas como resposta a uma forma de opressão por ele sofrida. Assim, como receptor,
Nonato confirma a mensagem normativa do emissor, Zulmiro, acatando suas ordens. Importante observar
que de acordo com Ferraz Junior,

Se o poder deve produzir a combinação de alternativas escolhidas e se


outras possibilidades (de escolha) continuam presentes, então a
possibilidade dessa combinação exige a coordenação paralela de
exclusão de alternativas. Ambos os comunicadores têm de ver as
alternativas, cuja realização eles querem evitar.[169]

A pragmática admite que a língua possua um caráter mutante, já que seus significados são
convencionados a partir do uso de cada comunidade. A tal característica dá-se o nome de concepção
convencionalista da língua. Assim sendo, “a língua está em perene mutação, na medida em que é
constantemente alterada pelo seu uso pragmático”[170]. Como dito anteriormente, a comunicação sempre
será uma ação direcionada ao entendimento alheio, assim ela está visceralmente ligada ao
comportamento humano não podendo ser separada deste.[171]
O ato de se comunicar constitui uma ação linguística que apela ao mútuo entendimento e que
somente pode ser definido na própria situação comunicativa, nunca fora dela. A comunicação é
direcionada ao entendimento do outro; visa à compreensão da ação – o emissor apela ao entendimento do
receptor. Se houver compreensão entre ambos pode-se dizer que há discurso. Os “fatos do discurso” não
são apenas simples fatos linguísticos, mas jogos estratégicos de ação e reação que envolvem relações de
poder. A pragmática tem por objetivo relacionar num modelo teórico direito e linguagem, relacionando-
os de forma que “todo o universo jurídico só pode ter existência se for expresso numa linguagem”.[172]
Os próprios sistemas sociais são formados através da interação comunicativa coexistindo
relações de poder e controle entre emissor e receptor. Tal premissa é notada também quando Seu
Giovanni, no primeiro dia de Nonato em seu restaurante, diz a ele “ainda bem que você não vai ter
contato com o público”, reforçando a ideia de superioridade, elitismo e segregação assim como já havia
ocorrido no primeiro encontro de Nonato com Zulmiro.
Todo direito é composto a partir de um discurso jurídico que não pode ser visto exclusivamente
“como simples fatos linguísticos, mas como jogos estratégicos de ação e reação que envolvem relações
de poder”.[173] Nonato começa a perceber que pode conquistar mais coisas do que somente “salário e
benefícios” por meio de sua culinária. Atentando para o discurso de Seu Giovanni no quesito conquistar
mulheres com comida e convivendo com Íria, ele percebe que pode conquistar mais cozinhando do que
de qualquer outra forma.
Nonato ganha prestígio tanto no trabalho, como no meio em que vive através da sua evolução na
cozinha. Tal cena fica evidente quando o mesmo passa a ser reconhecido no mercado municipal e também
pelas companheiras de trabalho de Íria. Aqui é perceptível a força do segundo axioma conjectural da
comunicação: a comunicação não é apenas digital – voluntária, feita através dos signos e da língua, mas
também analógica – involuntária, feita através de gestos, movimentos e ações[174]. Fica clara a
impossibilidade da não comunicação em sociedade, como reza o primeiro axioma, sendo tal
comunicação possibilitada inclusive pelo silêncio[175].
Como qualquer comunicação transmite um conteúdo e impõe um comportamento de modo a definir
a relação entre emissor e receptor, terceiro axioma conjectural da comunicação[176], a personalidade de
Nonato começa a se transformar: de homem simplório a homem que percebe uma forma de poder em suas
mãos.
Ao ser preso pelos homicídios de Giovanni e Íria, Nonato é inserido em uma nova realidade.
Como dito alhures, para se adaptar à nova situação, tenta mudar seu nome, já que o poder dentro da
prisão está intimamente ligado com o tipo de crime cometido. Contudo, não obtém sucesso nesse
caminho, vindo a se destacar, novamente, pelos seus dotes gastronômicos. Com base nisso, o próximo
tópico visa analisar a questão da desconfirmação da norma nos presídios, com o surgimento do poder
paralelo, e também analisar o alheamento em relação ao outro e a consequência da manifestação do
aguilhão em Nonato.

A DESCONFIRMAÇÃO DA NORMA NOS PRESÍDIOS E O SURGIMENTO DO PODER


INFORMAL
Quando Nonato chega ao presídio, ele é colocado em uma cela comandada por Bujiú, um dos
presos mais temidos do presídio, juntamente com outros encarcerados. Nonato observa que não há
espaço, nem físico, nem em comando, para ele ali no momento em que não consegue um lugar para
dormir, tendo que se ajeitar num cantinho improvisado da cela.
Contudo, com o passar do tempo Nonato percebe que aquela cela é melhor do que as outras do
presídio: eles estão em menor número de detentos lá dentro e eles ainda possuem alguns tipos de
regalias, como um pequenino fogareiro para cozinhar, tudo graças ao grande poder que Bujiú possui
dentro do cárcere. Então, Nonato compreende o tipo de relação que precisa manter com Bujiú se quiser
sobreviver na prisão.
Nonato se mantém em silêncio, no seu canto, de modo a se tornar o mais invisível possível, até
que, durante uma das refeições, Bujiú reclama da comida e Nonato vê aí uma oportunidade de
reconhecimento, comentando, de forma quase displicente, que a comida poderia ser melhorada se ele
tivesse em mãos alguns temperos, como alecrim. Bujiú, atentando para o comentário de Nonato, quer ver
o que o novato é capaz de fazer e o desafia a melhorar a comida do dia seguinte. Para tanto, ele consegue
para Nonato os temperos por ele requeridos.
No dia seguinte, Bujiú se surpreende com a comida preparada por Nonato, ele então passa a
dormir no beliche de baixo, que era de Magrão, e a ser chamado de “Alecrim” – seu novo nome na
cadeia. É o princípio da ascensão de Nonato no presídio. Nonato consegue então um pouco de
visibilidade e confiança entre os presidiários que com ele dividiam a cela e passa a fazer parte de uma
rede de corrupção que possibilita conseguir alguns privilégios para os detentos. Contudo, tais regalias só
são oferecidas aos que podem pagar por elas, uma supremacia do mais forte sobre o mais fraco.
Assim, em pouco tempo, ele entende a lógica do funcionamento da prisão e se destaca ao
transformar a comida ruim e estragada, em uma comida saborosa, utilizando seus conhecimentos sobre
temperos. Ele internaliza seu poder, que se manifesta em sua forma mais perfeita, uma vez que permanece
oculto.
Ademais, importante ressaltar que a cena que mostra o prato de comida cheio de larvas, transmite
a ideia de Costa sobre o alheamento (das elites do Brasil) em relação ao outro (pobres e miseráveis):

Ao contrário do ódio, da rivalidade explícita ou do temor diante do


adversário que ameaça privar-nos do que julgamos fundamental para
nossas vidas, o alheamento consiste numa atitude de distanciamento, na
qual a hostilidade ou o vivido persecutório são substituídos pela
desqualificação do sujeito como ser moral. Desqualificar moralmente o
outro significa não vê-lo como um agente autônomo e criador potencial de
normas éticas, ou como um parceiro na obediência a leis partilhadas e
consentidas, ou, por fim, como alguém que deve ser respeitado em sua
integridade física ou moral.[177]

No contexto da sociedade pós-moderna, na qual se busca por segurança em função de medos


inventados ou construídos, Bauman ressalta que o estranho passa a ser considerado como uma ameaça.
As pessoas se fecham em comunidades seguras, com sistemas de diversos de proteção. Vê-se uma
mudança do modelo panóptico de dominação, que agora “e dá lugar à autovigilância e automonitoramento
por parte dos dominados, tão eficiente em obter o tipo correto (funcional para o sistema) de
comportamento quanto o antigo método de dominação — apenas bem mais barato”.[178]
O preso, portanto, deixa de ser visto como pessoa humana/moral, não importando seu sofrimento,
uma vez que nada tem a oferecer. É tido como um “resíduo social inabsorvível, com o qual se deve
aprender a conviver, à condição de poder puni-lo ou controla-lo em caso de insubordinação”.[179] Ao
segregar essas pessoas tidas como indesejáveis pela sociedade, procura-se esconder a sobra do projeto
malsucedido da modernidade, que não atentou ao fato de que o progresso implica também em ônus. Este
acaba por recair sobre a parcela mais vulnerável da sociedade, que acaba por refletir os problemas da
desigualdade do progresso, sendo, então, culpabilizada por isso.
No momento em que o detento ingressa no sistema penitenciário, ele deve adaptar-se rapidamente
às regras da prisão. Estimulado pela necessidade de se manter vivo e, se possível, ser aceito no grupo, o
preso vê-se diante de uma situação em que não lhe restam muitas alternativas. Longe de ser
ressocializado para a vida livre, ele é, na verdade, socializado para viver na prisão. [180] Sob esse viés,
Foucault aponta que “As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-
las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta
(...)”.[181] Ademais, Azevedo afirma que

enquanto aparelho de penalidade corretiva, a prisão visa moldar


os gestos e atividades dos criminosos. A prisão volta-se não para o
sujeito de direito, mas para o sujeito obediente, submetendo-o,
diuturnamente, às ordens, às regras e à autoridade.[182]

As regras de funcionamento da prisão são impostas ao preso com rigor e coerção. Este, por sua
vez, também dispõe de um conjunto de regras, chamado "código dos presos" e que tem vigência entre eles
e é aplicado por alguns sobre os demais. Esse regime disciplinar possui aspectos bastante antagônicos,
pois de um lado há “o policiamento tático, meticuloso, que controla uma possível insubordinação,
impondo ao preso o mecanismo de disciplina individualizante”; em contrapartida, existe toda a
universalidade do controle disciplinar que permite o conhecimento de um protótipo ideal, assim como a
fabricação de novos mecanismos de poder. [183]
Assim sendo, há a criação de uma situação comunicativa normativa nos presídios peculiar por
conta da existência do dogma, que coloca fora de questão qualquer premissa, não porque demonstrada a
sua veracidade, mas sim porque ela não é passível de contestação. Ela é colocada fora da discussão. A
relação é baseada no fato de alguma premissa estar fora de contestação.
Quando nem todas as mensagens emitidas pelo emissor do discurso podem ser questionadas pelo
receptor, mas têm de ser aceitas como evidentes, tem-se um discurso monológico. Tal discurso não está
aberto a novos questionamentos, ele simplesmente deve ser aceito como certo pelo receptor. Com isso,
há uma possibilidade constante de haver reações desconfirmadoras, tornando assim inevitável o
confronto entre direito e poder onde os endereçados sociais deixam de assumir a relação emanada pela
norma não mais assumindo a condição de sujeitos da relação.[184]
Consequentemente, “aquele que desconfirma uma mensagem normativa não mais se ente obrigado
a se submeter à autoridade porque não a reconhece como tal, na medida em que ele próprio não mais se
vê como sujeito da relação”.[185] Para Oliveira,

Isto faz com que esta supremacia não seja, de fato, inquestionável, e
dependa de uma institucionalização a nível social da própria relação de
autoridade, que deve neutralizar o dissenso e as possíveis reações sociais
contrárias. É neste ponto que pudemos identificar, com clareza, a relação
existente entre direito, poder e comunicação na medida em que a relação
de autoridade não preexiste à própria interação, pois ela se constitui
propriamente durante o processo interativo. Ela existe não só a partir de
uma pretensão do editor normativo de impor uma relação complementar,
mas na medida em que o sujeito estiver disposto a se colocar nesta
condição. O poder não está unicamente nas mãos da autoridade, portanto.
Ele atravessa e, ao mesmo, constitui a própria relação autoridade/sujeito.
[186]

Tal premissa pode ser notada pelas cenas de “tráfico de comida”, como por exemplo, na troca de
queijos por cigarros entre Nonato e o agente penitenciário deixando evidente a ausência do Estado e a
pluriformação do poder. Esta, segundo Oliveira, consiste na formação de um contra poder, que venha por
parte do subordinado, em direção ao superior caracterizando um código informal, paralelo, que em
épocas de crises sócio-políticas podem assumir uma máscara legitimadora sendo reconhecido como
legítimo. São as reações desconfirmadoras.[187] Ainda de acordo com Oliveira,

A constante possibilidade de haver reações desconfirmadoras torna


inevitável o confronto entre direito e poder, visto que ela constitui uma
situação-limite em que os endereçados sociais deixam de assumir a
relação complementar estabelecida no cometimento das normas jurídicas,
não mais assumindo a condição de sujeitos da relação.[188]

Aquele que desconfirma a mensagem normativa não reconhece a autoridade do emissor e nem se
sente obrigado a se submeter a ela. Dentro dos presídios essa desconfirmação pode ser vista tanto no
comportamento dos presidiários, como dos próprios agentes estatais, incumbidos de aplicar as normas.
Quando essa desconfirmação é trazida para o mundo da comunicação jurídica, o que se tem é a rejeição
do que é lícito ou ilícito; inclusive pelos próprios agentes estatais, que passam a ignorar a própria
legalidade e a substituem por procedimentos informais. Esse aspecto pode ser visualizado em outros
filmes, como “O primeiro dia”, “Tropa de Elite” e “Tropa de Elite 2”.
Outrossim, o confinamento e a vigilância a que os presos estão submetidos é estrategicamente
ordenado por mecanismos de opressão, fazendo que o Estado pareça um Estado forte, contudo não é o
que se nota quando se adentra a fundo na realidade prisional. Descrentes da legislação vigente, e
desconfirmando por completo as normas, o preso vê com ceticismo e desconfiança todo o sistema
prisional. Assim sendo, a relativa tranquilidade que existe na prisão só existe se houver “disposição dos
presos em submeterem-se e cooperar espontaneamente com os regulamentos de disciplina e segurança”.
[189]
Como afirma Azevedo, “neste momento o jogo do poder começa a ser definido, os compromissos
tácitos desafiam as regras oficiais e a resistência dos presos em obedecer as normas instituídas exige
uma negociação. Esse é o ponto estratégico do sistema prisional.”[190]
No momento em que se faz a análise das prisões, observa-se que essas são objetos históricos
significativos no que diz respeito aos limites instituídos que governam o exercício do poder. O poder não
é propriedade do Estado, nem está somente nas mãos dos presidiários, não é atributo, mas relação de
forças que passam tanto pelos dominados, quanto pelos dominadores constituindo singularidades.[191]
Nessa conjuntura, sem outra alternativa, Nonato acaba por se adequar ao ambiente prisional.
Visualiza-se então, a terceira relação de poder do filme: Bujiú, detentor da cama de cima da cela, local
privilegiado, o detento da cama do meio, o da cama de baixo, os que dormem no chão e aqueles que
dormem no chão sem possuir colchão. Conforme ganha a confiança de Bujiú, Nonato ascende à cama do
meio.
Eis que se chega a outro momento-chave na narrativa: a pedido de Bujiú, Nonato fica encarregado
de fazer “uma comida que dá tesão de comer”, em um banquete que seria prepara a Etecétera, detento
mais poderoso e perigoso que Bujiú, que seria transferido para o presídio. Nonato, então, prepara um
banquete para a comemoração, porém, ele faz uma comida requintada e ninguém conhece os pratos,
considerando-os estranhos e, por consequência, rejeitando-os. Fica evidente uma falha na comunicação
entre Nonato e Bujiú.
Contudo, o último prato agrada a todos, inclusive aos agentes penitenciários que também estão, de
canto, participando do banquete. Todos se fartam da comida preparada por Nonato.
Pouco depois do término do banquete, quando todos já estão em suas celas, Bujiú começa a passar
mal e é levado para enfermaria do presídio onde acaba falecendo. No atestado de óbito, é descrito como
causa mortis indigestão. Logo, Nonato presenteia o espectador com a mais pura definição de que poder
nem sempre é compreendido somente como força física, mas também como astúcia e perspicácia, já que a
verdadeira causa da morte de Bujiú foi o veneno que Nonato colocou no feijão preparado especialmente
por Bujiú comeu.
Dessa forma, Nonato passa a ocupar o lugar de Bujiú na cama de cima, sendo, então, o novo chefe
da cela e, ao mesmo tempo, ganha a simpatia de Etecétera, já que o mesmo aprovou sua comida. Não
obstante, Nonato já pensa no próximo grau de poder: ocupar o lugar de Etecétera, que possui uma cela
individual. Para tanto, começa a elaborar um plano que envolve comida e sexo. Assim, Nonato expele o
aguilhão que permanecia cravado em sua psique, reproduzindo os padrões de ordens que o colocaram ali
em primeiro lugar. Como consequência, crava novos aguilhões nos indivíduos que acatam suas ordens,
dando continuidade a esse processo cíclico.[192] Nesse sentido, interessante se faz a observação de
Foucault, de que
[...] O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como
algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca
está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um
bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os
indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer esse
poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do
poder, são sempre centros de transmissão.[193]
Assim sendo, o poder que hoje está sendo exercido por um, amanhã pode estar no comando de
outro. Em outras palavras, aquele que hoje devora, pode ser o devorado de amanhã. Verifica-se, por fim,
que Raimundo Nonato internaliza a máscara de criminoso, a lógica de funcionamento autoritária dos
presídios, com a existência do poder paralelo, que consumiu sua subjetividade e instrumentalizou seu
dom culinário para o exercício do poder.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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graduandos da PUC-SP. São Paulo, Ano VIII, n.º18, p. 29-35, 1999.
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THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
A OPRESSÃO DE GÊNERO NO FILME A CASA DE ALICE
Renata do Vale Elias[*]

INTRODUÇÃO
Casa de Alice é um filme brasileiro, dirigido por Chico Teixeira e lançado em 2007. O roteiro é de
A Chico Teixeira e Marcelo Gomes. O filme retrata a vida familiar na casa de Alice, personagem
interpretada por Carla Ribas. Alice mora com sua mãe, Jacira, interpretada por Berta Zemel, além de
seus três filhos – Lucas, Edinho e Junior, interpretados, respectivamente, por Vinícius Zinn, Ricardo
Vilaça e Felipe Massuia, e seu marido, Lindomar, interpretado por Zé Carlos Machado.
O filme retrata uma série de violências entre as pessoas da família, perpetradas e sofridas por
muitos de seus personagens. Importante notar que nenhuma dessas personagens é somente boa ou má, o
filme apresenta-as enquanto seres complexos, que sofrem e praticam violências ao mesmo tempo, nem
sempre contra quem as violentou. O filme não é, portanto, maniqueísta de forma alguma. Essa é uma
característica importante a ser notada, tendo em vista o interesse de se pensar o cinema e a filosofia do
direito. Conforme ensina a Professora Mara Regina de Oliveira, em seu livro “Cinema e Filosofia do
Direito em Diálogo”, busca-se, com a reflexão entre cinema e filosofia do direito, encontrar um novo
paradigma epistemológico, que possa ampliar a percepção sobre a realidade e a consequente crítica a
ela, de modo que as discussões sobre temas importantes, como os direitos humanos, possam compreender
a existência desses espaços de incertezas, de modo não idealizado e assim, levem a compreender o
mundo de um modo não maniqueísta. Ela diz:

As discussões em torno de temas que envolvem os direitos


humanos precisam partir desta aceitação de espaços de incerteza e não de
idealizações construídas em torno de nossa natureza, que nos levam a
buscar sempre no outro a causa dos malefícios, sem perceber que, muitas
vezes, fazemos parte do mesmo processo. As idealizações teóricas podem
expandir, na medida em que as camuflam, nossas imperfeições humanas,
não propriamente remediá-las ou transformá-las de fato. (OLIVEIRA,
2015, Capítulo 1, Seção 1 – Cinema e ampliação da consciência subjetiva:
algumas reflexões propostas pelo filme O Leitor, “posição 567)
Desse modo, pensar a filosofia do direito com base no cinema permitiria uma ampliação da visão
sobre a sociedade e encará-la de forma mais crítica, compreendendo problemas de um modo complexo.
Nesse sentido, é importante desde já trazer um segundo conceito apresentado pela professora, qual seja,
o de “conceito-imagem”, que ela traz de Júlio Cabrera. Segundo esse autor, para que possamos
compreender um problema filosófico, não basta que o entendamos teórica e conceitualmente: é
necessário vivê-lo, senti-lo, sermos afetados por ele de modo emocional: o “conceito-imagem” seria
aquilo que permitiria essa compreensão emotiva das questões filosóficas (CABRERA apud OLIVEIRA,
2015, Capitulo 1, Seção A logopatia do cinema: a filosofia jurídica no filme Amor, posições 862 e 888).
Desse modo, o cinema se apresentaria como um elemento importante para a reflexão de filosofia
do direito: por meio dele, poderíamos compreender de modo mais complexo diversos problemas que
encaramos atualmente, inclusive percebendo a inexistência de uma dicotomia bem delineada entre bem e
mal. A meu ver, a compreensão mais complexa dos problemas filosóficos não impede que, em um
momento posterior, após fazermos essa análise da realidade, proponhamos caminhos e soluções e nem
implica em um relativismo exacerbado ou em uma apatia que considerasse que “tudo está errado, então
tudo está certo”.
Apesar de serem muitas as possibilidades de análise do filme “A Casa de Alice”, nesse artigo o
meu foco será apresentar as questões de gênero contidas na obra para pensar na temática da justiça de
gênero. Gostaria de pensar aqui como as instituições sociais contribuem para que determinados grupos
sociais – e, no caso em análise, as mulheres – sofram com questões de injustiça. Para possibilitar essa
análise, usarei uma concepção alargada de justiça, proposta por Iris Marion Young em seu livro “Justice
and the Politics of Difference”, de 1990. Segundo essa autora, as abordagens tradicionais de justiça
pensadas até então partiam da ideia de pessoas como consumidoras de bens, o que as levava a considerar
apenas aspectos distributivos da justiça. Essas abordagens pensavam nas pessoas como pontos estáticos,
aos quais se agregam ou não bens materiais, oportunidades, poder. Para Young, todavia, essas abordagens
desconsideram as dimensões institucionais das relações e tratariam de questões relacionais enquanto
bens. Por exemplo, para ela parece absurdo pensar em oportunidades como bens materiais, as
oportunidades seriam algo bastante mais amplo: a autora cita James Nickel que diz que oportunidades
seriam “estados de coisas que combinam a ausência de obstáculos insuperáveis com a presença de meios
– internos e externos – que dão a alguém a chance de superar os obstáculos que permanecem”[194]
(NICKEL, 1988, p. 110 apud YOUNG, 1990, p. 26. Traduzi.). E essas abordagens não observam os
problemas institucionais que geram as questões distributivas, por exemplo, o fato de a população de uma
cidade não querer que uma determinada fábrica se mude dela porque muitas pessoas ficarão sem
trabalho, ou a demanda de participação dos trabalhadores nos conselhos das empresas. Essas questões
não seriam demandas por justiça distributiva primeiramente, mas envolveriam a representatividade da
decisão dos cidadãos na gestão da fábrica, por exemplo. Young afirma que
esse foco na posse de bens tende a evitar que se pense no que as pessoas
estão fazendo, de acordo com quais regras institucionalizadas, como as
coisas que elas fazem e têm são estruturadas pelas relações
institucionalizadas que constituem suas posições, e como o efeito
combinado de seus fazeres tem efeitos reflexivos nas suas vidas. (YOUNG,
1990, p. 25) (Traduzi.[195])

Diante desse diagnóstico, e considerando que questões distributivas são importantes para se
pensar a justiça, mas não são o seu único escopo, Iris Young propõe uma concepção alargada de justiça,
que consideraria as pessoas não mais como meras consumidoras, mas como agentes (“actors and doers”)
(YOUNG, 1990, p. 37).
Young propõe uma concepção de justiça segundo a qual as instituições sociais permitam (1) o
desenvolvimento e exercício das capacidades de alguém e a expressão de suas experiências, bem como
(2) a participação das pessoas na determinação de suas ações a nas condições de suas ações (YOUNG,
1990, P. 37).
Young reitera expressamente que essa concepção de justiça diz respeito às instituições sociais e
não que cada um desses valores se exerça efetivamente na vida de cada indivíduo. Segundo ela, a justiça
social diz respeito ao quanto uma sociedade contem e promove as condições institucionais necessárias
para a realização desses valores.
Pensando tanto na proposta de análise do cinema como meio de se pensar problemas filosóficos
de forma alargada, quanto nessa concepção de justiça de Iris Young, acredito ser possível pensar nas
questões de gênero trazidas pelo filme “A Casa de Alice” não como problemas individuais de cada
personagem (problemas que seriam concernentes a questões de boa vida), mas sim como questões de
grupos e de justiça, como questões institucionais da sociedade que afetam as mulheres enquanto um grupo
social. Tenho em mente, em especial, a ideia de que determinados grupos sociais não têm a possibilidade
de expressar suas experiências, de desenvolver suas capacidades e serem reconhecidas em ambientes
sociais (aspectos que, quando ausentes, Young denomina de opressão), bem como de tomar decisões
sobre suas próprias vidas (aspecto que, quando ausente, Young denomina de dominação). Aqui me
furtarei da discussão sobre o que vem a ser um grupo social, por conta do objetivo do artigo, mas
gostaria de deixar registrado que tal conceito não é, de forma alguma, pacífico na teoria social atual.
À luz dessas considerações, passarei a analisar algumas passagens do filme “A Casa de Alice”,
em especial sobre duas de suas personagens: Alice e Jacira.

ALICE: RELAÇÕES CORDIAIS, A ESPERANÇA DE SALVAÇÃO INDIVIDUAL E SUA


IMPOSSIBILIDADE
Alice é uma mulher, trabalha como manicure em um salão de beleza, mora na casa de sua mãe,
juntamente com seus três filhos e seu marido. A relação mais próxima que Alice tem em sua casa é com a
sua mãe. Alice também é amiga de Thaís, uma vizinha adolescente – que tem a idade de seu filho
Junior. No início do filme, Thaís vai até a casa de Alice e pede para ela conselhos porque está
apaixonada por um homem mais velho e casado. Alice dá a ela uma loção para que o homem separe-se
da esposa e fique com ela. Mais tarde, sentindo o aroma da loção na roupa do marido, Alice perceberá
que é ele o amante de Thaís.
No salão de beleza, Alice atende Carmen. A relação entre as duas é cheia de nuances: ao mesmo
tempo em que parece haver algum tipo de amizade entre elas, há também alguma competitividade. Bem
no início da trama, Alice conta uma história para Carmen sobre como um homem que ela considera muito
bonito abordou-a no ônibus a caminho do salão. Carmen responde dizendo “homem é tudo igual, tudo
cachorro”. Logo em seguida, Carmen pergunta a Alice se quer uma saia que foi dela e que, segundo ela,
não serve mais, porque ela emagreceu muito e poderia servir para Alice, porque Alice “é mais cheinha”.
Alice pergunta se a saia é da loja de Carmen e ela responde que não, que é do exterior. Aqui, parece
haver uma espécie de jogo de competição entre elas: Alice se gaba de ter um homem bonito paquerando-
a, Carmen tenta diminuir essa espécie de autovalorização dizendo que todos os homens são iguais: se
todos os homens são iguais e paqueram indiscriminadamente, então não há mérito algum de Alice.
Carmen também diz que Alice está “cheinha” e que ela própria emagreceu muito, o que revela a
valorização do estereótipo de beleza amplamente divulgado em nossa sociedade de que mulher bonita é
mulher magra (mais para frente, quando descobre que está sendo traída, Alice pergunta para sua colega
de salão se está gorda), que Carmen usa para maltratar Alice. Carmen ainda diz que a saia é do exterior,
em uma demonstração de que tem dinheiro.
Ao mesmo tempo, há uma certa gentileza de Carmen com Alice, porque ela diz a forma como
usava a saia – com uma blusa vermelha - e que ficava muito bonita. Inclusive, é com uma blusa vermelha
que Alice usa a saia no filme.
Na continuidade da cena, Alice diz para Carmen que ela deveria parar de roer as unhas, e Carmen
a elogia, chamando-a de “Pintaguy das unhas” (em referência ao famoso cirurgião-plástico brasileiro) e
diz que adorou o esmalte japonês que Alice tem usado. Alice então pergunta se o marido de Carmen tem
uma loja de revenda de carros, ao que ela responde que é uma “Mega revenda de carros, show de bola.”
e continua a conversa dizendo que se cuida, que não dá chance para que o marido traia-a. Ela conta a
Alice que depila totalmente sua virilha e que o marido gosta muito. Alice diz então “Ah, eu também,
graças a Deus, lá em casa não tem problema nem de cama, nem de grana.”, o que saberemos mais adiante,
não é verdade, tanto porque ela sempre reclama da falta de dinheiro para o marido, quanto porque ele
comete muitas traições e ela fica desolada quando descobre. Em seguida, Carmen sai do salão, e Alice e
sua colega Rose comentam sobre o carro de Carmen. Alice diz “Essa mulher tem tudo.”.
Essa cena é muito importante para a compreensão do filme. As duas mulheres que participam dela
constroem imagens uma para a outra de que conseguiram o que é geralmente considerado como sucesso:
dizem que têm bons casamentos, maridos com quem têm boas relações, tanto sexuais quanto em termos
financeiros – o filme mostrará na sequencia que muito pouco dessas imagens é real. É importante notar
que há uma relação de prestação de serviço entre Alice e Carmen e que as duas não se encontram em pé
de igualdade na relação: aquele é o trabalho de Alice, meio pelo qual ela ganha seu salário. Desse modo,
não pode contestar abertamente Carmen como Carmen faz com ela: em momento algum Alice contesta
qualquer uma das vantagens que Carmen diz ter.
Essa relação entre as duas, que é ambígua, porque tanto mantém a relação desigual e de prestação
de serviços, quanto, em certos momentos, parece de amizade, lembra muito a ideia de cordialidade
definida por Sérgio Buarque de Holanda como traço constitutivo do Brasil: a indistinção entre o espaço
privado do indivíduo e o espaço público, onde se dão as trocas econômicas e a consequente falta de
separação entre a esfera íntima e a pública. Diz o autor:
A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão
gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um
traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que
permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio
humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que
essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de
tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e
transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode
exprimir-se em mandamentos e em sentenças. (HOLANDA, 1936, p. 146-7)

Essa “cordialidade” apresenta um profundo desprezo com tudo quanto é regrado, regras essas que
são uma forma de proteção para as pessoas envolvidas no trato social. Carmen trata Alice com
cordialidade, no sentido de que a trata conforme suas emoções: isso significa tratá-la bem em alguns
momentos e, simultaneamente, não hesitar em tratá-la mal – sempre com ares de intimidade e franqueza -
em outros.
Inclusive, mais no final do filme, quando está com problemas conjugais, Carmen passa a tratar
Alice cada vez pior. Em uma cena, Alice diz que não está encontrando o esmalte japonês que comprara
para Carmen – aquele mesmo que Carmen elogia no começo do filme – e Carmen fica muito brava, diz
que só vai naquele salão para dar uma força para Alice, que é melhor ela encontrar o esmalte. Fica
patente que a cordialidade no trato social é cordial somente no sentido de não ser regrado, e não no de
ser civilizado: Carmen trata Alice da forma que quer, sem se preocupar com qualquer regra e sem
considerá-la como um ser que merece respeito.
Ao mesmo tempo, é na conversa com Carmen que Alice passa a ter algumas ambições. Alice se
reconhece enquanto igual à Carmen e passa a ter vontade de ter as coisas que ela tem. Em um primeiro
momento, Alice se depila como Carmen disse que se depilava para agradar o marido. Quando seu
marido, Lindomar, percebe, ele ridiculariza seu comportamento. Alice se depila dessa forma
aparentemente para agradá-lo e sentir-se desejada, mas ele repreende seu comportamento de forma muito
agressiva. Ao conversar com Carmen, todavia, Alice mente, dizendo que o marido está tratando-a super
bem, e que foi por conta da depilação que aprendeu com ela. Isso parece mostrar o desejo de Alice de
que o marido gostasse da depilação. Além dessa reação quanto à depilação, o marido constantemente trai
Alice com adolescentes da idade de seu filho mais novo, Junior, inclusive com Thaís, que Alice
considerava sua amiga.
Em um segundo momento, Alice conhece o marido de Carmen, Nilson, e descobre que ele foi seu
namorado na adolescência. A partir daí, os dois começam a se paquerar. Nilson dá a Alice um colar de
presente e ela fica encantada, inclusive, mostra para seu marido. Esse ato parece uma tentativa de que o
marido enxergue-a, nem que seja para ficar com ciúmes, o que não ocorre mesmo com ela pedindo essa
atenção.
Nilson passa a representar a possibilidade de Alice ter uma vida diferente da que ela tem. Ele
representa tanto a possibilidade de afeto, porque a trata bem, quanto a de uma vida materialmente mais
confortável: Nilson é dono de uma grande revendedora de carros, dá um presente a ela, e, pelo que
Carmen conta e demonstra, tem bastante dinheiro.
Jurandir Costa (1997, p. 68) apresenta uma ferramenta bastante interessante para analisar essa
passagem do filme: ele traz a ideia de um horizonte desejável, de uma ordem desejável. Essa ordem
desejável que está no horizonte de Alice é representada por Nilson, como já expus: seria uma ordem na
qual ela pudesse ser mais reconhecida, mais valorizada, na qual ela acha que poderia ser mais feliz.
Nilson passa a representar uma possibilidade de fuga da própria vida de Alice, dos seus
problemas e frustrações. Enquanto a relação entre eles se desenvolve, todavia, Carmen passa por um
processo de definhamento: cada dia que ela aparece no salão está mais abatida, mas ela própria continua
dizendo que é porque dormiu pouco, por ter tido relações sexuais muito prazerosas com o seu marido até
altas horas da noite. Logo depois, aparece uma cena de Alice e Nilson na cama, e Nilson diz que ele e
Carmen não transam mais, que ficaram até de madrugada discutindo. Carmen aparece cada dia mais
nervosa, e passa a tratar Alice cada vez pior. Esse dissabor de Carmen chega às ultimas consequências:
um dia, após sair do salão, ela distrai-se no volante e acaba morrendo por conta de um acidente de
trânsito.
Nilson representa uma fuga e um horizonte desejável tão importantes na vida de Alice que, quando
ele diz que eles terão que ficar sem se ver por conta da pressão de Carmen, Alice se descontrola ao
chegar em casa e ver uma briga entre seus filhos e joga diversos objetos no chão.
Com a morte de Carmen, Alice fica esperançosa de que Nilson vá ficar com ela, de que eles se
casarão e que, portanto, ela alcançará esse horizonte ideal. Todavia, isso não acontece: já no final do
filme, quando telefona para Nilson, Alice descobre que ele foi viajar, sem data para retornar.
A história de Alice com Nilson parece representar a impossibilidade de salvação individual. Por
um lado, a própria Alice é traída por seu marido e sente uma dor muito profunda quando sabe dessa
traição – chora à noite, dorme na sala de sua casa, chora no ônibus a caminho do trabalho; por outro, ela
é amante do marido de Carmen, que também passa a sofrer muito com a suspeita da traição, de modo que
a própria salvação individual de Alice representa um sofrimento muito grande para uma outra mulher, que
a própria Alice reconhece estar na mesma posição que a sua (tanto é que o filme inicia-se com essa
comparação de Alice em relação à Carmen). E essa ideia de que Alice poderia ser salva por meio de
uma relação individual com Nilson desvanece-se com a morte de Carmen e o posterior sumiço dele. O
que o filme parece mostrar é que o casamento de Alice com Lindomar não é tão diferente assim do
casamento de Carmen com Nilson. Parece ficar claro que as frustrações e insatisfações talvez estejam
mais no modelo de relação, nos papéis destinados a cada gênero dentro da sociedade e dentro de uma
relação heterossexual de matrimônio do que em contingências de cada situação, isto é, as questões são
estruturais e não individuais e pessoais.
Uma cena importante para a compreensão da dinâmica de naturalização desse tipo de situação nas
relações entre casais é quando Junior pergunta a Lucas se ele sabe que o pai está saindo com Thaís, e
Lucas responde que sim. Questionado sobre se deveriam contar para sua mãe, Lucas responde de pronto
que é assunto do casal, que eles não têm que se intrometer. Isso parece mostrar a ideia de que as mulheres
têm de suportar as traições dos maridos.
Um ponto muito importante nessa dinâmica é que as duas mulheres traídas parecem sentir como se
a culpa da traição fosse delas. Como já expus, as mulheres conversam de estratégias para que seus
maridos não as traiam, e quando Alice descobre que isso aconteceu, pergunta à colega de trabalho se está
gorda, querendo encontrar um motivo em si mesma para explicar a traição. Em primeiro lugar, é
importante notar a enorme opressão trazida por essa ideia de que existe apenas um tipo de beleza e que
essa beleza exige que as mulheres sejam magras. Tal ideia é extremamente opressora para as mulheres,
que muitas vezes ficam insatisfeitas com seus corpos e infelizes, com a autoestima muito baixa por conta
desse tipo de colocação amplamente divulgada. Em segundo lugar, é muito significativo que as mulheres
culpem-se a si mesmas pelas traições perpetradas pelos seus companheiros. Na verdade, quem
descumpre o pacto feito com elas são eles, mas mesmo assim elas procuram em si mesmas a
responsabilidade por isso.
Essas duas ideias culturais, amplamente disseminadas, revelam uma estrutura em que
determinados grupos podem desenvolver mais suas habilidades, tomar mais decisões sobre suas vidas,
ter mais liberdade para suas escolhas do que outros. Isso se reflete no âmbito distributivo, pois uma vez
que podem se desenvolver mais, as pessoas desses grupos tendem a ganhar mais dinheiro – os homens do
filme estão em profissões que ganham mais dinheiro do que suas mulheres – mas não se limita a este
âmbito. Os homens do filme parecem estar mais livres e ter posições mais móveis do que as mulheres,
que ficam grande parte do tempo esperando a aprovação deles. É claro que as mulheres não decidem por
livre e espontânea vontade esperar a aceitação deles, sendo esta uma outra ideia amplamente difundida
de que uma mulher completa é uma mulher com um marido, que as mulheres devem se arrumar para serem
aprovadas pelos homens. Não quero aqui dizer que todas as mulheres pensem assim, mas que essas
ideias são difundidas socialmente, como podemos perceber no cinema de massas, nas telenovelas, nos
contos infantis, nas propagandas de produtos de beleza, dentre outros.
Em nenhum momento do filme, todavia, as mulheres aparecem como vítimas exclusivamente e os
homens como seus algozes. As mulheres têm relações complexas tanto umas com as outras como com os
homens com quem se relacionam. Desse modo, a própria problemática de gênero aparece de uma forma
complexa no filme, o que reflete o que já expus na introdução, sobre o cinema como forma de se pensar
questões complexas de filosofia do direito.
Desse modo, o filme parece mostrar o que Jurandir Costa em seu texto “A ética democrática e
seus inimigos” chama de “mito da salvação individual em universo vizinho de bancarrota” (p. 77): as
relações de gênero entre esposas e maridos é extremamente perversa, porque as mulheres sempre ficam à
espera da aprovação de seus companheiros e inseguras caso eles traiam-nas, ou seja, o universo geral
está à beira da bancarrota, e as soluções individuais são incapazes de serem libertadoras para essas
mulheres. A ideia de Alice de que Nilson poderia salvá-la de seu casamento, de suas frustrações
familiares e pessoais mostra-se uma ilusão, na medida em que estruturalmente, a relação deles tenderia a
se tornar igual a que ela tem com Lindomar e ele com Carmen. A ideia desenvolvida por Jurandir Costa é
de que há todo um mal-estar cultural e geral reduzido a questões de competência e incompetência (1997,
p. 80), o que se mostra claro aqui, ao se pensar que ambos os maridos traem as esposas, mas elas são
ensinadas a ver tais traições como questões de incompetência delas mesmas e não como um problema
geral.

JACIRA: AS MULHERES QUE SERVEM AOS HOMENS


Uma das cenas mais importantes do filme é a em que Jacira, avó de Lucas, Edinho e Junior, está
servindo o jantar a eles. Jacira é a dona do apartamento onde a família mora e realiza todo o trabalho
doméstico da casa: lava roupa, cozinha, lava louça, limpa a casa, faz compras de supermercado, passa a
roupa, organiza a casa – faz tudo quanto é necessário em termos de trabalho doméstico. Certo dia, Jacira
está servindo o jantar para os netos e pergunta ao mais velho “Quer que eu te sirva um pouco de cada
coisa, ô Luca?”, ao que ele responde rispidamente “Meu nome é Lucas, é Lucas, tem um s no final, Vó.
Luca é nome de cachorro.”, a avó repete “Lucas, você quer que eu te sirva um pouco de cada coisa?” e
ele aceita. A avó faz seu prato, e em seguida, serve Junior, a essa altura, Edinho tinha se retirado da
mesa. Ela senta para comer. Alice chega logo em seguida, senta-se à mesa e pede para Lucas colocar um
pouco de salada para ela, ao que ele responde “Apaga o cigarro primeiro que eu ponho. Todo mundo
comendo e você tá fumando?”, Alice apaga o cigarro e ela mesma se serve. Após algum tempo, Lindomar
chega, depois uma conversa sobre o esquecimento de sua carteira (que Jacira sempre acha com fotos de
adolescentes nuas), ele diz para Alice sobre reclamar da falta de dinheiro “Para de reclamar, serve uma
saladinha aí pro seu querido.”.
Logo em uma das primeiras cenas do filme, Jacira aparece vendo um rato e colocando veneno
para que ele morra. Essa cena mostra como, na casa, é Jacira quem lida com toda a sujeira, com aquilo
que precisa ser retirado, e com o cuidado com todos na residência. Lindomar não dá qualquer valor ao
trabalho realizado por sua sogra. Ela realiza todo o trabalho doméstico, e ele só reclama dela. Em duas
passagens reclama especificamente do trabalho por ela realizado: em um primeiro momento, diz que já
pediu para ela lavar suas meias nas mãos, e em um segundo, diz que ela está ficando caduca, porque
salgou demais o macarrão. Ele tenta em vários momentos fazer com que ela vá morar em um asilo e a
única cena do filma em que Lindomar a trata bem é quando quer convencê-la que ela faça isso de livre e
espontânea vontade. Jacira relembra-o que o apartamento é dela e que, portanto, ela continuará morando
nele.
Os netos de Jacira também a tratam mal em grande parte do filme. Como já expus acima, o neto
mais velho, Lucas, responde rispidamente para a avó quando ela pergunta a ele se quer que faça seu
prato. A relação entre ela e o neto Junior não aparece tanto, e a relação com o neto Edinho é a mais
interessante. Jacira e Edinho têm uma relação próxima, ele até a ajuda a carregar as compras de
supermercado. Todavia, em um dado momento, Edinho pega dinheiro da carteira dela, que acha que
perdeu o que tinha. Posteriormente, o rapaz devolve o dinheiro. No final do filme, quando sua mãe sai de
casa dizendo que viajaria, Lindomar conversa com Edinho para que ele ajude-o a levar a avó para uma
casa de repouso. Em um primeiro momento, ele recusa a proposta do pai, mas cede quando este afirma
que, caso a avó se mude, ele poderia ficar com o quarto dela. Eles então levam Jacira para um asilo, e a
imagem da casa que é mostrada em seguida é suja e desorganizada, como revelação de todo o trabalho
que Jacira fazia.
Jacira observa tudo o que acontece na casa: quando está lavando roupa, a carteira de Lindomar
cai do bolso de uma de suas calças e ela vê uma sequencia de fotografias de Thaís com os seios à mostra,
em uma outra cena, quando a traição foi descoberta e a família de Thaís se mudou de cidade, ela vê uma
nova sequencia de fotos, em que outra adolescente aparece nas mesmas poses que Thaís, também com os
seios à mostra; Jacira observa quando o neto Lucas chega de carro com um homem, que lhe dá dinheiro e
está com a mão em sua coxa; ela observa também o comportamento de Junior, quando ele está no quarto
com uma amiga do colégio. Apesar de saber de tudo o que se passa na casa, Jacira não verbaliza
absolutamente nada. Ela não diz nada para Alice sobre as traições do seu marido, nem sobre a situação
de seus filhos. Ela não fala nem sobre a insistência de Lindomar para que ela vá para um asilo. Também
não faz nenhum comentário para o neto Lucas sobre a cena que viu, nem para Lindomar sobre as fotos que
caíram de sua carteira.
Mesmo sem verbalizar, todavia, Jacira se comunica por meio do olhar e da expressão facial. Ela
deixa que percebam que ela está observando – tanto Lucas quanto Lindomar podem ao menos desconfiar
que ela sabe das coisas que eles estão fazendo e há algum traço de reprovação em seu olhar.
Os homens da casa, todavia, tratam-na apenas como alguém que lhes serve e que provê a eles
alguns bens materiais, como o apartamento em si e o dinheiro, mas não como uma pessoa com quem eles
teriam uma efetiva relação emocional. Ao ser seduzido pelo pai com a proposta de ficar com o quarto de
Jacira, Edinho cede ao pedido dele para que o ajude a levá-la para o asilo. Lindomar também a enxerga
apenas enquanto dona do apartamento onde moram. Ou seja, eles enxergam-na apenas de forma
instrumental, como meio de conseguir coisas que eles querem.
Desse modo, na relação dos homens da casa com Jacira é possível perceber a situação descrita
por Jurandir Costa como de alheamento em relação ao outro (1997, p.70): eles não a percebem enquanto
um ser moral e não percebem a qualidade violenta de seus atos em relação a ela, por meio da
invisibilidade de seu trabalho. Jurandir explica o alheamento em relação ao outro da seguinte forma:
(...) o alheamento consiste numa atitude de distanciamento, na qual a
hostilidade ou o vivido persecutório são substituídos pela desqualificação
do sujeito como ser moral. Desqualificar moralmente o outro significa
não vê-lo como um agente autônomo e criador potencial de normas éticas,
ou como um parceiro na obediência às leis partilhadas e consentidas, ou,
por fim, como alguém que deve ser respeitado em sua integridade física e
moral.
(...)
No estado de alheamento, o sujeito não tem consciência da qualidade
violenta dos seus atos. Se o possível objeto da violência nada tem a
oferecer-lhe, então não conta como pessoa humana e pouco importa o que
venha a sofrer; se, ao contrário, tem algo que interessa ao violentador,
sua única qualidade relevante é a de ser suporte dos objetos ou
predicados desejados, e o que quer que lhe aconteça é igualmente
irrelevante para quem deseja apenas apropriar-se daquilo que cobiça.
(COSTA, 1997, p. 70 e 71)
Nesse sentido, Lindomar trata Jacira com alheamento na medida em que apenas a trata bem
quando quer convencê-la a sair de casa e ir para um asilo, também uma vez que exige que as tarefas da
casa sejam cumpridas – inclusive exigindo que suas meias sejam lavadas à mão – mas nunca
reconhecendo quando esse trabalho é feito. Edinho trata-a com alheamento quando a vê apenas como um
suporte dos objetivos ou predicados desejados, quais sejam, o dinheiro que ele pega da bolsa dela, e o
quarto que ele pretende ter depois que ela for para o asilo. Lucas também trata a avó com alheamento, na
medida em que a trata rispidamente quando ela deixa de pronunciar o último “s” de seu nome, mas
permite que ela faça o seu prato, com a comida que ela cozinhou.
Todos eles ignoram o trabalho feito por Jacira dentro de casa, as tarefas domésticas e tratam-na
como uma pessoa dispensável. Nenhum deles é capaz de reconhecer que ela cozinha, lava roupa, passa
roupa, organiza e limpa a casa, faz compras de supermercado e todas as outras tarefas domésticas
necessárias para a saúde e bem-estar de todos os familiares. E, além de ignorá-la, eles tratam-na de
forma ríspida, desprezando seu trabalho e desprezando-a enquanto ser moral, merecedor de respeito.
Aqui parece ser importante considerar que, no Brasil, em grande medida ainda são as mulheres as
responsáveis pela execução do trabalho doméstico e que não há qualquer tipo de reconhecimento por
esse trabalho. Como reflexo disso, apenas muito recentemente os direitos trabalhistas comuns passaram a
ser aplicados também para as trabalhadoras domésticas. O interessante relatório “Por ser menina no
Brasil” mostra como as meninas, desde pequenas, são ensinadas a realizar diversas tarefas domésticas,
enquanto seus irmãos não são[196].
Há uma questão de justiça aqui, no sentido usado por Iris Young, de condições institucionais para
o desenvolvimento de determinadas habilidades e reconhecimento delas em espaços socialmente
relevantes (a injustiça atrelada à inexistência dessas condições institucionais seria a que ela chama de
opressão). As mulheres exercem um trabalho muito grande sem serem reconhecidas por isso, e nem
sequer pagas. Grande parte de sua energia vital é utilizada como trabalho para outras pessoas, sem que
elas sequer tenham podido escolher isso e como fazê-lo, e essas outras pessoas nada oferecem em troca.
No mesmo livro “Justice and the politics of difference”, tratando da injustiça por opressão, Young se
referirá a esse tipo de situação como exploração: segundo ela, a exploração significa um processo
sistemático no qual as energias de alguns grupos são continuamente despendidas para manter e aumentar
o poder, status e bem-estar de outros grupos (YOUNG, 1990, p. 50). Isso significa que, conforme expus
na inicial, uma pessoa não pode exercer suas habilidades em ambientes reconhecidos socialmente e não
pode expressar suas vivências. Aqui, Young não está tratando exclusivamente da questão econômica, mas
sim da questão institucional, na medida em que determinadas estruturas sociais são mantidas para que
alguns grupos continuem a trabalhar e despender suas energias em prol de outros.
Acredito que pensando o filme conjuntamente com as pesquisas que mostram ser essa uma questão
de gênero no país, fica claro o quanto as mulheres continuamente trabalham dentro de suas casas, para
garantir o bem-estar dos homens, que fazem muito menos tarefas de trabalho doméstico, trabalho esse
necessário, por óbvio, para a própria manutenção da vida. Dessa forma, eles ficam livres para exercer
outros tipos de atividades e habilidades e o trabalho das mulheres nem sequer recebe reconhecimento e
valorização.
Desse modo, há uma dupla chave de análise para a situação de Jacira: tanto há um processo de
alheamento na medida em que ela não é tratada por Lindomar, Edinho e Lucas como um ser moral
(COSTA, 1997), a quem se deve respeito enquanto ser moral, ao ser tratada por eles apenas como meio
para se conseguir bens materiais, quanto um processo de exploração, porque ela trabalha continuamente
para aumentar o bem estar deles, sem que eles deem qualquer retorno a ela, nem mesmo reconheçam seu
trabalho.
A única pessoa da casa que reconhece Jacira enquanto ser-moral e que também é reconhecida por
ela enquanto tal é Alice. Elas têm uma forte de relação de cumplicidade e amizade entre si. As duas
passam bastante tempo na cozinha conversando, Alice leva Jacira ao médico para resolver problemas de
catarata, conforta a mãe quando ela descobre que terá que fazer uma cirurgia. Inclusive, é quando Alice
diz que vai viajar que Lindomar leva Jacira para o asilo.
A saída da casa, do ambiente doméstico, para o asilo pode ser interpretada no filme como uma
espécie de libertação para Jacira. Uma das cenas iniciais do filme é de Jacira ouvindo rádio enquanto
lava roupa e tenta ligar para o programa. Alice chega e pergunta se ela conseguiu daquela vez, o que não
aconteceu. Somente quando está no asilo ela consegue falar no programa de rádio. Quando o radialista
atende, ela diz
Nem acredito! A vida inteira eu tentei te ligar.
Que voz linda! Você manda aqui no programa.
Olha, tô toda tremendo de nervoso.
Se acalma.
Meu coração disparou.
Se acalma, mulher. Com quem eu to falando, quem é a minha ouvinte?
É Jacira, Carlinho. Jacira Gomes.
Essa é a última cena em que Jacira aparece, e uma das finais do filme. É interessante notar que o
radialista pergunta quem é a ouvinte com quem ele fala, e ela responde o seu primeiro nome, e depois seu
nome completo. É como se com aquela pergunta, Jacira tivesse sido finalmente reconhecida, enxergada,
notada. É esse processo de aparecimento dá-se quando ela sai do espaço doméstico e privado e vai para
um espaço que, de certa forma, é público.
De algum modo, a invisibilidade de Jacira é, de algum modo, rompida quando ela sai daquele
espaço doméstico, consegue atingir o seu objetivo de falar com o radialista e ele enxerga-a, perguntando
seu nome. Desse modo, há um rompimento com a situação anterior.

REFLEXÕES FINAIS
O filme permite refletir, de forma complexa, sobre as questões de gênero na família, que é também
parte da sociedade. A reflexão é rica por se dar por meio do cinema, permitindo que não façamos
idealizações que permitiriam colocar o mal apenas no outro, sem perceber a característica estrutural da
maior parte das opressões, ou seja, sem perceber que não são questões individuais e problemas de uma
determinada pessoa ou conjunto de pessoas, mas sim questões que perpassam toda a nossa sociedade.
Conforme analisei nas seções anteriores, o filme mostra como as mulheres são muitas vezes
tornadas invisíveis, tolhidas desde logo em qualquer esforço por reconhecimento, e tratadas como meios
instrumentais para a obtenção de finalidades, e não enquanto seres morais. Por outro lado, também fica
claro que não são questões de uma ou outra mulher, mas sim que estruturam toda a nossa sociedade.
Dessa forma, não há possibilidade de salvação individual.
Desse modo, o filme permite pensar questões de justiça, na medida em que trata de temas gerais
da sociedade e como socialmente produzimos estruturas que fazem com que alguns grupos sejam
privilegiados em relação a outros, que trabalham e são tornados invisíveis para a promoção dos
primeiros. O filme não propõe uma solução, um final feliz que resolveria todos os problemas postos por
ele, e não é o meu objetivo nesse artigo sugerir sobre essa possível solução, mas apenas refletir sobre as
questões trazidas pela obra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, Jurandir Freire. “A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência pública” in
Ética. Rio de Janeiro: Garamond, 1997.
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica: ensaio da pragmática da comunicação
normativa. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1997.
______. Introdução ao Estudo do Direito, Técnica, Decisão e Dominação. São Paulo, Editora Atlas,
2003.
______. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 2ª
ed. São Paulo: Atlas, 2003.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, 26ª edição.
OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book Kindle, Amazon, 2015.
YOUNG, Iris Marion. Justice and the politics of difference. Princenton: Princenton University Press,
1990
TEIXEIRA, Chico. A Casa de Alice, 2007. Disponível no site Youtube em
https://www.youtube.com/watch?v=avEgMgdb084
UM BRASIL CRONICAMENTE INVIÁVEL: AMBIVALÊNCIA MORAL E A VERTICALIDADE
ESTRUTURAL DAS RELAÇÕES DE PODER NO FILME DE SÉRGIO BIANCHI
Ana Paula Polacchini de Oliveira[*]

INTRODUÇÃO

I sso é coisa do Brasil é fala recorrente em Cronicamente Inviável[197], um filme de Sérgio Bianchi
que, mesmo contando com quinze anos de seu lançamento, ainda confere contornos realistas à
conjuntura atual.
Cronicamente Inviável é a exposição explícita de um cotidiano nacional de caráter contraditório,
mesquinho, de humilhação resignada estrutural em que não há qualquer redenção humana. Ao promover
essa exposição explícita, o filme pensa o Brasil, mas pensa junto com o espectador e dele também se
distancia: é obra de arte aberta. Trata-se de uma arte que opera o feio diante do belo, que expõe sem dar
contornos nítidos, causa perplexidade, e que talvez provoque a sensação de dor e o sentimento de revolta
ou impotência do público para o qual se dirige à quem também dirige uma crítica. Aquele que se submete
ao processo imagético proporcionado pelas imagens em movimento que correm a tela por uma hora e
quarenta e dois minutos é conduzido para uma leitura do Brasil, realizada por um brasileiro de seu tempo
e também apresentada para brasileiros, sem manipulações. Aqui o público não é plateia. Tem destaque
nos filmes de Bianchi[198] uma narrativa da realidade social, política e econômica brasileira, do Brasil
de muitos momentos, da brasilidade e da formação cultural nacional.
A mencionada proposta aberta à reflexão é intensificada ao lançar uso de imagens e um discurso
irônico que contorna o Brasil e seu povo. Trata-se de um processo que exige do espectador uma atitude
reflexiva. São imagens e discursos que presenciamos, mas que se inibem no cotidiano. “A linguagem
imagética do cinema e da arte tem o poder de penetração profunda em nossa consciência subjetiva,
expondo, com maestria, esta composição dialógica, que foge a qualquer tratamento maniqueísta em torno
do certo e do errado. Ela produz pensamento crítico”[199].
A abertura reflexiva proposta por Bianchi assume contornos morais e éticos, mas inseridas
imageticamente em um contexto de questionamento que supera dicotomias totalizantes e faz imperar a
incerteza sobre juízos morais imperativos ou totalizantes.
Cronicamente Inviável foi produzido na década de 90, e entoava um modelo à época ainda
rejeitado pelo público de cinema ao expor temáticas nacionais ocultadas pelo sistema tradicional. O
lançamento, previsto para 1996[200], deu-se apenas em maio de 2000. Entre roteiro, produção e
exibição, a obra de Bianchi levou quase dez anos.
Integrado ao processo de democratização brasileira e de abertura econômica, o ano de lançamento
assume caráter simbólico ante a proposta de Bianchi, serve-lhe de metáfora. Os filmes são também
documento de um tempo, mesmo diante da raiva de seu diretor, da ficção do roteiro e das imagens, e
Cronicamente Inviável aponta para a composição de mentalidades e a configuração de comportamentos
nacionais. O filme foi de fato exibido quando se comemoravam os quinhentos anos do descobrimento do
Brasil, ou segundo diria Darcy Ribeiro, quinhentos anos do início do fazimento do povo brasileiro.
Ao que parece aos planos fílmicos de Bianchi presentes em Cronicamente Inviável, esse processo
de fazimento continua em curso, residindo na película, e nas mentalidades nacionais uma indagação quase
imperativa na resposta a ela subjacente: diante da aparência e busca de unidade nacional e de
uniformidade cultural, quem somos nós e o que estaríamos a comemorar?
Cronicamente Inviável aborda relações, sejam de amizade, de trabalho, familiares ou entre
estranhos. Discute olhares, especialmente àqueles já absorvidos pelo senso comum, sobre as instituições,
sobre os movimentos sociais, sobre o povo brasileiro e sua cultura; sobre as relações de poder e de
dominação condicionadas estruturalmente em razão da história desse povo.
Bianchi exibe em imagem o país e unifica os acontecimentos em uma trama que se centraliza entre
as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, e mais especificamente no cotidiano, nas relações e
reflexões de um grupo de pessoas cujas estórias se entrecruzam. Por intermédio da saga de suas
personagens, lança uma leitura totalizante de um Brasil com muitos povos, muitas culturas, ideologias.
Aponta para diversidade e também para uma só busca de unidade, transfigurada e que segrega sem
necessariamente separar.

ABERTURA IMAGÉTICA E REFLEXIVA DA ANTÍTESE DA SÍNTESE: A DESCRIÇÃO DA


POLIFONIA NA TRAMA E ENREDO DE CRONICAMENTE INVIÁVEL QUE LANÇA E
RENOVA VIOLENTAMENTE AS INDAGAÇÕES DE UM BRASIL EM CONSTRUÇÃO
O filme produzido com seis cópias, foi exibido em dois cinemas de São Paulo e obteve um público
de sessenta e oito mil pessoas[201]. Trata-se de um filme com repercussão nacional, saído de um gueto
paulista, de postura reflexiva acentuada e jovem, conforme comentou o professor e cineasta Carlos
Augusto Calil[202]. A obra causou, segundo a fala da professora de filosofia Iná Camargo Costa, “um
frisson de reações analíticas extremamente interessantes”[203].
Os comentários de Costa e Calil se aproximam para considerar a proposta de Bianchi pelo menos
passível de discussão e debate. Essa condição reflexiva é provocada no espectador. Nele se despertam
reações díspares e análises variadas: teria o filme uma dimensão política, apolítica, moral, imoral,
conformada, incorformada...[204]
A cena de abertura do filme se dá com o zumbido do vôo de um inseto, seguido do barulho dos sons
urbanos de uma grande cidade. Defronte ao número 81[205] de uma rua qualquer, a sonoridade do inseto
dá movimento à cena e conduz o espectador para um homem que traz junto de si uma tocha. Diante do
galho de uma árvore, ornada com um enxame de insetos, a tocha oferece-lhe solução. Basta tocar fogo,
que o enxame não incomodará.
Com efeito, admitir a convivência entre os diferentes é quase uma possibilidade intolerável e é
melhor se precaver e aniquilar aquele que representa uma ameaça, tolher sua natureza, antes que seu
ferrão se manifeste e se torne de fato o agente da força, uma violência irracional, não controlada e que
destrói.
No filme, as cenas se compõem e as personagens são identificadas gradualmente ao longo de uma
história muitas vezes confusa, poluída de cenários, pessoas e sons. As falas das personagens, lentas e
cadenciadas conferem uma certa harmonia ao caos dos demais elementos fílmicos atirados diante do
espectador. A convivência das personagens configura menos um elemento central do enredo e mais o
ponto de conexão entre os diversos planos dimensionais, não lineares, que cruzam a crônica de um país.
São personagens do filme Maria Alice e Carlos, casados entre si e pais de Gabriel. Josilene,
empregada na residência do mencionado casal, namora Oswaldo. Maria Alice e Carlos são amigos de
Luís, proprietário do Pellegrino’s, restaurante situado em São Paulo onde Amanda, que também é amiga
do grupo, trabalha como gerente.
Amanda mantém negócios com Alfredo Buhr, escritor, autor do livro ‘Brasil ilegal’, obra que serve
de referência para as reflexões que Alfredo compartilha continuadamente com o espectador. Adam, que
migra da região Sul para o Sudeste, é contratado como garçom no restaurante de Luís, onde também
trabalham Ceará, o cozinheiro e Valdir, ajudante de cozinha e irmão de Josilene.
Aparecem no filme, ainda, alguns entrevistados de um programa de TV, ambiente este em que se
discute e se analisa o livro de Alfredo, recentemente lançado no mercado. Os entrevistados e
comentadores convidados do programa são: Clara Bauer, o índio Riparandi e Marcos Rezende, cada um
representando simbolicamente a afirmação de um elemento da cultura regional e que invoca para si (os
sulistas, os índios e os cariocas) a responsabilidade de garantir a unidade nacional em oposição às
formas de dominação propostas por Alfredo no livro.
Outras pessoas aparecem, interagem ou negociam no cotidiano de cada uma das personagens
nominadas, servindo-lhe de coisa para pensar. São sem nome, assim como toda a condição humana
exposta no filme, independente da quantidade de personagens com quem o público cria a ilusão de se
aproximar.
O grupo de amigos, que frequentemente se encontra no restaurante de Luís, a cada drink ou
refeição, discute os problemas do país com repulsa, superioridade e distanciamento. As questões
nacionais também são expostas e pensadas no filme, seja durante as viagens de Alfredo, a migração de
Adam ou ao longo da rotina das demais personagens.
Aos poucos, uma parte da trajetória, da estória e da mentalidade de cada personagem é exposta no
filme. O espectador, na medida em que se dá a conhecer as personagens, também vai se afetando por elas
e sobre elas nada podendo falar. Adam representa o imigrante sulista alfabetizado e crítico e que, em
busca de melhores condições de vida, se desloca para o sudeste desenvolvido. Alfredo viaja para
aparentemente compreender a unidade nacional e as formas de dominação aqui impostas e sobre elas
refletir. Luís, o patrão, faz uso desse papel para obter o que quer. Carlos reclama do país durante todo o
filme, expõe sua ideologia corrupta e impõe suas ideias. Maria Luísa, que se mostra preocupada com a
exploração, argumenta com o marido sobre as questões nacionais. Amanda se reveza entre administrar o
restaurante, socializar com o grupo de amigos que o frequenta e administrar a exploração da
desigualdade nos diversos negócios que conduz. Lusilene é a empregada que mantem boa convivência e
uma aparente amizade com a patroa, diverte-se no carnaval e mantem a sua raiva contida.
O passado das mulheres do filme também é retratado e serve de justificativa para os
desdobramentos do filme, expondo as contradições da cultura nacional e conferindo à obra uma possível
intepretação de continuidade histórica. Amanda, vem do Mato Grosso, de uma infância que poderia ter
sido feliz mas que fora profundamente pobre e triste. Maria Alice e Josilene desde pequenas conviviam:
a família de Josilene trabalhava para a família de Amanda.
Os conceitos-imagem propostos a partir do cenário brasileiro, dos pontos mais remotos, da
natureza e do cotidiano urbano das grandes cidades dão o tom de contraste sensorial e reflexivo.
Fecundam ou poluem o filme, questões tais quais a pobreza do Centro-oeste e do Norte e Nordeste.
Também passam pelo filme as festividades de carnaval deste último e a alegria por elas representada; as
elites, a violência e a situação do trabalhador são expostas no Sudeste; ainda exibe-se a disputa pela
propriedade da terra no sul ante um cenário europeu e pitoresco.
A discriminação, a violência racial, indígena e infanto-juvenil, a exploração do trabalho, a fome, a
desigualdade e humilhação de classe constituem elementos que aproximam todas as regiões. Seriam seus
elementos de conexão, os encontros da corda de 81 nós. A obra de Bianchi compara formas de
exploração e estratégias de sobrevivência nas cinco regiões do país e expõe tons da desigualdade social
e dos abusos praticados em todos os cantos do território.
Alfredo e Adam, além de personagens são narradores. Enquanto travam seu cotidiano, seus
pensamentos conduzem o espectador reflexivamente enquanto os conceitos-imagem afetam violentamente
o público, seja para ratificar as palavras de seus narradores, seja nega-las.
Adam parte de Santa Catarina para São Paulo, em busca de emprego e assume a função de garçom
no restaurante de Luís. Adam é consciente da condição de imigrante polonês e de trabalhador. Tem
ciência efetiva das explorações sofridas diariamente e do cotidiano do empregado, e que são
intensificadas pelo comportamento abusivo de Amanda. Apesar da consciência, Adam apenas as
denuncia e, ao final, por elas é aniquilado.
Além de narrador e personagem, Alfredo tem seu livro analisado em um programa de TV. A obra
trata das formas de dominação nacionais. Alfredo, ao narrar suas reflexões sobre o país, aquelas que
seriam as suas palavras no livro, tem, durante sua jornada, escancaradas em imagens as suas diferentes
máscaras sociais. Ele se propõe ser um escritor crítico da ironia brasileira e da desigualdade social, e
viaja o país para conhecê-lo e descrevê-lo; quando, na verdade, percorre quilômetros para transportar
órgãos para os destinatários de uma rede de tráfico. Alfredo, em troca de dinheiro, serve de mula para
Amanda. Ao final, mesmo diante das dificuldades que enfrenta, do estado de necrose a que se submete,
ele sobrevive e continua seu trabalho.
O mesmo se sucede com todas as personagens do filme. Ninguém sai inerte da crítica,
especialmente por serem entorpecidos diante das possibilidades de intervenção e de mudança do estado
das coisas, o que de fato não ocorre
Amanda assume o papel de competente e autoritária gerente do restaurante de Luís. Também
controla uma casa de acolhimento para crianças órfãs e uma agência de emprego para índios. Faz destes
locais o abrigo formal de órfãos e o intermediário para mão de obra indígena, mas na realidade, tais
ambientes são fonte para o comércio ilegal de crianças e de órgãos e para a captação (e desvio) de
recursos para “investir” no país.
Carlos é rude e convicto de sua condição de ser superior. Ele representa uma classe média
hipócrita e corrupta e conduz a sua rotina reclamando do estado das coisas ou brigando com as pessoas,
quando na verdade ele é fonte para as brigas e para a configuração do estado das coisas que tanto
justifica. Carlos não se vela, é irresponsável. Maria Alice, a esposa, é frágil e superficial. Ensaia
comportamentos humanistas, tais quais se preocupar com a empregada ou com crianças de rua, mas suas
ações são incipientes diante da problemática envolvida. Maria Alice, mantém um bom relacionamento
com Josilene e entoa ser sua amiga. Mas a relação de submissão se faz presente continuadamente.
Josilene é a empregada prestativa e que dialoga com a patroa, conduz sua rotina de forma estável até que
não mais consegue comprimir a sua fúria diante de Maria Alice.
O que se expõe é o suficiente para demonstrar a complexidade na leitura de cada personagem que
oscila entre um ser, um fazer e um parecer. Esta complexidade não está na densidade da subjetividade de
cada qual. Pelo contrário, Bianchi em nada explora essa perspectiva. A complexidade está na condição
de coisa que cada um assume, mesmo nominadas, figuram na existência.
Os encontros e desencontros do filme, em sua grande maioria, se dão Pellegrino’s. Apesar do
ponto fixo de encontro, comprimido entre as quatro paredes de um elegante e movimentado restaurante
paulistano, o filme faz um retrato do Brasil. Muitos, na verdade. As regiões do país são expostas, em
episódios do passado ou do presente que se dão em alguns dos estados que o integram. Bianchi aproveita
ainda o ‘tempo’ do cinema para, em muitas ocasiões, retratar um acontecimento, em duas versões
diferentes: uma com reflexões humanistas, críticas e que expõe as contradições sociais. Outra, em que,
simplifica os problemas à partir de comportamentos individualistas cotidianos da classe média brasileira
em que ficam evidenciadas a presença do egoísmo ético e da crueldade humana.
Bianchi expõe a sua fúria e a apresenta “sensivelmente, por meio de uma compreensão ‘logopática’
racional e afetiva ao mesmo tempo” [206]. A partir da linguagem imagética o cinema potencializa a
compreensão que vai além do racional (lógos), integrando o elemento pático (afetivo-emocional)[207]. O
pa/qov (phátos) é “estado, movimento ou condição que provoque no animal ou no homem a percepção do
valor (alcance ou importância) que determinada situação tem para sua vida, suas necessidades, seus
interesses”[208]. A plateia é provocada de forma recorrente a se mobilizar ante as mensagens propostas.
O filme penetra no estado emocional do espectador, integrando a sua condição humana.
Em Cronicamente Inviável Bianchi discute a identidade nacional, aponta as linhas do fazimento de
sua geografia humana, política e ambiental. Expõe conceitos imagem em que os modos de ser do
brasileiro e de suas relações são questionadas. O diretor promove uma exposição clara da ambivalência
moral das personagens e de uma cadeia normativa informal explícita presente nas relações de poder.
Nesse processo, a elite é cúmplice de um processo de irresponsabilidade, de indiferenciação, onde a
realidade é conflituosa, abusiva e dejuridificante e a humilhação social e política dos dominados não é
exclusiva, mas se impõe de forma flagrante.
Essa polifonia só tende a incomodar, senão pelo menos afetar de algum modo o phátos dos
espectadores que se vê instigado a valorar a obra, compreender o seu alcance. Analisar um filme não é
concordar com ele, gostar ou não gostar. A arte produz mal-entendidos e esse risco é necessário,
especialmente nos filmes de Bianchi. A questão é “gerar perplexidade e instigar reflexão”[209]. A função
da arte não é buscar soluções e dar receitas[210]. Na arte e na estética é mais importante formular
perguntas do que exigir respostas conclusivas.
Com efeito, em Cronicamente Inviável fica difícil identificar a discussão de primeiro plano, seja
pela quantidade inumerável de discursos e imagens ali presentes, seja pela trama sem contornos ou
conclusões. Trata-se de um filme difícil de sintetizar. A multidimensionalidade do filme deixa claro a
obscuridade de um país de muitos interesses. Uma palavra para descrever o filme poderia ser aquela que
diz o antônimo da síntese, ou talvez a acronicidade de um país.
Como significado do filme sugere-se algo como uma expansão imagética e reflexiva que incomoda,
confunde, e faz demonstrar um Brasil polifônico, vale dizer, complexo e denso de problemas e conflitos
que se descrevem pela sucessão do tempo mas que não se explicam. Esse processo tende a não agradar o
espectador. Muitas são as perguntas no Cronicamente Inviável. Poucas são as soluções.

O ELEMENTO PÁTICO DE SÉRGIO BIANCHI QUE REVERBERA UMA CONDIÇÃO


ESTRUTURAL BRASILEIRA: A IRRESPONSABILIDADE OU A INDIFERENCIAÇÃO SOCIAL
DAS ELITES E OS FIOS DA VIOLÊNCIA
O desenvolvimento do cinema nacional passou e passa por debates sobre identidades. Mesmo
sendo de ordem ficcional, ressalvada a discussão em torno da verdade e da realidade retratada no
ficcional e no não-ficcional, questões políticas, sociais e jurídicas, relacionadas à essa manifestação
artística, produzem conhecimento.
Silvia Caiuby Novaes bem afirma que o cinema é também “campo de expressão imagética de
valores, categorias e contradições da nossa realidade social. O cinema que reconstrói o real, seja no
documentário, seja na ficção”[211]. Essa reconstrução pode trazer muitas vozes e é o que ocorre na
abertura provocada pelo cinema de Bianchi. E essa condição interessa à pensadores sociais. Bianchi
assim o faz, articula um pouco do real, eleva o nível de realidade a tal ponto que propõe quase o absurdo
e evidencia o que dele integra, ou seja, um pouco daquilo que já foi normalizado e assumiu-se como
condição natural do país.
Bianchi promove aquilo que, na fala de Ismail Xavier, se dá “com o sentido dos formalistas russos,
como a gente diz em teoria, que é a criação de uma percepção singular do fato e nesta singularidade
provocar uma postura de interromper os fluxos naturais de comunicação, de percepção das coisas. Trata-
se de um laboratório, com fundamento no drama, para colocar todos os grupos em debate”[212]. Nesse
laboratório todos são cobaia e exprimindo a realidade, todos são agressores e agredidos.
Esse cinema autoral de Bianchi integra o cinema moderno brasileiro, com um estilo peculiar, libera
a discussão, a querela, e também quase as inviabiliza. Ao comentar o cinema de Bianchi, Ismail Xavier
associa o diretor ao cinema que se concilia com as questões do país e afirma que “em sua variedade de
estilos e inspirações, o cinema moderno brasileiro acertou o passo do país com os movimentos de ponta
de seu tempo (...), implicando em um horizonte de liberação nacional, (...) e deu uma resposta crítica a
um processo, peculiar de modernização conservadora[213]. Mesmo marcado por polêmicas e rupturas,
constituiu uma unidade e desenvolveu sua estética, talvez marcado pelo Cinema Novo, mas que buscou
retomada na atualidade.
A partir do núcleo representado por àqueles que se sentam à mesa do restaurante de Luís, Bianchi
expõe a elite conservadora brasileira que, mesmo intelectualizada e formadora de comportamento e do
pensamento nacional, produz apenas falatório e é de fato irresponsável ou indiferente à questão ou ao
destino nacional.
Carlos, Maria Luísa, Luís e também Amanda refletem um mundo insensato e agonizante, em que as
elites não se preocupam em legitimar os valores de sua visão de mundo porque admitem para si e para
outros que tais axiomas já são verdadeiros. Esse comportamento apenas intensifica a crise de
legitimidade que condiciona a conjuntura atual. Há um consenso imaginário que a sociedade se converteu
ao seu modo de viver.
Amanda é exemplo disso ao conquistar um lugar à mesa, possivelmente em razão de seu
empreendedorismo comercial. Trata-se, inclusive, conforme afirmara Jurandir Costa, de um modo de
subjetivação que despolitiza radicalmente o mundo e que simplifica as questões da sociedade, reduzindo-
as à questões de competência e incompetência, individualismo e indiferença diante de si e dos outros.
Essa condição não é sintoma, mas fonte das situações que contribuem para o abuso de poder. Essa
condição é fundamento e também efeito de um alheamento do mundo e uma incapacidade de olhar para
si[214].
O grupo de amigos, a cada encontro travado no restaurante dialoga sobre o Brasil, sobre a
identidade e sobre os problemas nacionais. Luís é empregador manso, mas que explora seus
empregados. Carlos já assumiu com naturalidade aquele que denomina o jeitinho brasileiro e à ele dá
continuidade afirmando não haver saída.
“Esqueci de deixar dinheiro da faxineira”. Enquanto o grupo de amigos faz sua refeição no salão,
os empregados do restaurante limpam os pratos. Aquela que seria a construção imagética da cena em que
se dá a oferta de restos de alimentos cuidadosamente separados para moradores de rua, e que se alterna
com outra, composta pela reflexão crítica de Maria Alice, que sentada junto à mesa com os amigos,
discursa sobre o a condição difícil da faxineira e a necessidade de paga-la pelo trabalho contratado é
imediatamente substituída pela fala irônica do narrador que resolve reconstruir a cena em tons mais
realistas. A cena “correta”, diz o narrador, seria a da patroa que é indiferente ao fato de não ter deixado o
dinheiro da faxineira e que afirma: "esqueci o dinheiro da faxineira, coitada! Tudo bem né, semana que
vem eu pago"; e que se mistura com as imagens dos restos de comida do restaurante sendo de fato
oferecidos aos cachorros, enquanto os moradores de rua famintos são enxotados do local.
Maria Alice critica a injustiça social ao longo do filme, distribui roupas e brinquedos para algumas
crianças pobres na rua. Mas é completamente indiferente à situação ou àquilo que comumente diz para o
marido ou pratica: Maria Alice deixa as crianças se digladiarem por roupas e brinquedos. A pratica de
‘boas’ ações alcança acalento subjetivo, salvação ante seus comportamentos. Maria Alice é puro
falatório e também sobre a violência cuja crise de legitimidade contribui para manter. Da sequência
fílmica que prepondera entre duas encenações possíveis, a de que tudo bem pagar a faxineira na semana
seguinte, a protagonista é a mesma que fica incomodada com crianças na rua, não pela condição destas,
mas pelo aborrecimento que provoca naquela que nada quer ver de feio e de real por aí. Essa Maria
Alice é a aquela que, na cena final, retoma o tom do início do filme e que dá cadência à toda a obra de
Bianchi. No jantar entre amigos, em que se brinda por Nova York, onde as coisas são diferentes, Maria
Alice se vê inconformada, e reclama para os amigos diante da petulância do subordinado: enquanto o
garçom, que recolhe os cacos de vidro do chão junto à mesa, interrompe a conversa entre os amigos,
sussurrando aos presentes que “tenham a dignidade de assumir que o ressentimento é de quem oprime e
não de quem é oprimido”.
Maria Alice assume um papel e se absorve nele. Este se torna imperceptível aos seus olhos, mas
não passa desapercebido pelo espectador. Tampouco a superficialidade com que se refere às questões
nacionais e a irresponsabilidade em relação ao outro e aos problemas do país.
Amanda, a convidada à mesa, representa a ideia de que a elite pode ser qualquer um e que todos
almejam ser superiores dando continuidade à uma ordem de violência estrutural e naturalizada. No
entanto é também retrato, ainda, da informalidade tão comum no Brasil. Canetti pode ser utilizado para
retratar a condição de Amanda ao afirmar que

os homens, no momento em que almejam serem superiores, conscientemente,


não hesitam em rebaixar seus semelhantes, surrupiando-lhes os direitos e a
capacidade de resistir a fim de torna-los impotentes, como se eles realmente
fossem suas ‘presas’. Este ‘consumo’ muitas vezes é feito de forma sutil, de
modo que a ‘incorporação’ não é percebida enquanto tal”. Todavia, no
momento em que estas ‘presas’ não tiverem uma utilidade, elas serão
facilmente postas de lado. Estas relações de poder, que degradam os homens
a condição de ‘animais criados para serem abatidos’, na maioria das vezes,
permanecem ocultas aos olhos da sociedade, que pode, ingenuamente,
pensar que está sendo alimentada[215].

A utilidade das presas enseja a sua não percepção ou o seu ocultamento e máscaras são utilizadas
para dissimular a relação estabelecida entre presa e predador. Amanda dissimula para si mesma a sua
máscara ao justificar seus comportamentos para as pessoas com quem interage. Amanda protagoniza o
ocultamento de uma cadeia normativa informal de corrupção que serve de referência ao explorar grupos
sob o aparente manto da formalidade: são índios, crianças, órgãos. Diante dos amigos mantem uma
aparente retidão, a de que integra uma rede formal de negócios. O papel de coadjuvante gerente na
aparência é também o de uma situação comunicativa abusiva e dejuridificante: ela submete os
empregados do restaurante à humilhações contínuas. Amanda, como reta gerente e empreendedora de
novos negócios, faz questão de se impor aos subordinados. Com Adam, recém-contratado justifica a
importância da colocação da mesa segundo as regras de etiqueta.
Realmente, tudo se resume à uma mesa de jantar: que nela pode se sentar e como as coisas são ali
resolvidas.
Em Cronicamente Inviável todos são brasileiros, formalmente. Nenhum se questiona à esse
respeito. Mas a referência ao Brasil é feita em terceira pessoa em todas as ocasiões que as personagens
precisam justificar um comportamento depreciativo do país, especialmente nos comportamentos das
elites e dos intelectuais representados no filme.
A etiqueta de uma mesa bem posta para os amigos que dela compartilham exibe algumas faces da
prosperidade nacional e o ruído que esse teatro provoca diante daqueles que servem a mesa institui e
mantem uma ordem de humilhação que configura uma modalidade de relação simbólica do poder
abusivo.
Tem-se ali a exposição da penúria generalizada da população, um conglomerado multiétnico
coexistindo com a prosperidade empresarial conforme dissera Darcy Ribeiro ao tratar da configuração
do povo brasileiro[216]. São interesses materiais e uma luta de classes presentes no processo histórico
nacional.
O cinema expõe um tempo histórico e essa condição se faz presente em Cronicamente Inviável.
Com efeito, assim pontuou Ismail Xavier, entendendo que a questão vai além do Cinema Novo, que tem
continuidade a partir de uma tradição por ele erigida:

é comum se observar no filme brasileiro uma esquematização dos


conflitos que articula, de forma bem peculiar, uma dimensão política de
lutas de classe e interesses materiais, e uma dimensão alegórica pela qual
se dá ênfase, no jogo de determinações, à presença decisiva de
mentalidades formadas em processos de longo prazo; mentalidades que,
numa ótica psicologista já muitas vezes questionada, porém persistente no
senso comum, definem certos traços de um suposto ‘caráter
nacional’[217].

Trata-se de um movimento de duplo questionamento: tanto da estabilidade do estado das coisas;


como do movimento da crítica. Opera-se um desmascaramento. O filme observa clichês naturalizados e o
estranhamento que eles provocam. O movimento das imagens vai além a impressão de uma realidade
vivida no momento da exibição de um filme. Mostra o que poderia realmente acontecer e isso causa
sensações. No âmbito destas e dos sentimentos que elas provocam podemos supor que a dor se faz
presente de forma permanente.
Enquanto Jean-Claude Bernardet[218] entende que Cronicamente Inviável tem um objetivo
moralista claro, Roberto Schwarz[219] teve a sensação de que o ponto de vista do autor não era
explícito. Seguindo a perspectiva de Schwarz sobre o Cronicamente Inviável, a obra não diz ao
espectador o que ele ou ela devem pensar à seu respeito. Está aberto para análise.
Esse foi também o entendimento de Marcelo Soler ao afirmar que “ o espectador fica com a
iniciativa intelectual totalmente ao seu lado, ou com a batata quente nas mãos. Nesse sentido, é um filme
completamente aberto” [220]. Permite uma leitura também conservadora, mas não apenas isso, permite
qualquer leitura.

AS RELAÇÕES DE PODER E DE DOMINAÇÃO EXIBIDAS NO FILME – HUMILHAÇÃO E


DOMINAÇÃO: REBAIXAMENTO E ANIQUILAÇÃO DOS SUJEITOS
Dentre os conceitos-imagem propostos está o de um Brasil informal, que é indiferente aos padrões
jurídicos e políticos oficiais. Fica evidente, no entanto, que esses referenciais formais é que os mantem e
estimulam. Carlos expõe em palavras o jeito que parece ser o seu. Assume a máscara e faz dela a sua
estrutura. Luís oprime seus empregados e nem sequer é questionado. Amanda e Alfredo representam de
fato essa cadeia informal ao negociarem corpos e pessoas independente das instituições e dos códigos
binários de licitude e ilicitude instituídos. Maria Luísa procura fortalecer a verticalidade das relações. O
Estado, enquanto instituição que detém o monopólio normativo e impõe formalmente meta-
complementaridade às relações aparece para desconfirmá-las, especialmente nas situações de violência e
abuso de poder praticadas contra crianças e índios.
Enquanto tudo isso ocorre o Brasil que se mostra são os muitos brasis propostos por Darcy
Ribeiro. Tem-se a exposição de uma trama onde cada ponto de encontro dos fios é, na verdade, um
vespeiro, ocultado pela normalização das relações sociais já estruturadas.
Ocorre que no filme, as relações de poder comumente se dão como imposição absoluta, onde
impera a violência, suprimindo do outro qualquer possibilidade de escolha. Muitas vezes essa condição
é ocultada ao se perceber que o poder não se confunde com a força física, mas atua com outras formas de
controle da ação dos demais sujeitos a partir de elementos de influenciem a ação do outro. Os sujeitos se
põe como editores normativos e assumem a condição estrutural de autoridade exigindo dos receptores
uma atitude não questionadora e que também oculta o caráter arbitrário dos seus comportamentos.
Esse processo interativo e a submissão nele presente se dão ao longo dos ruídos da trama. Ela
existe não só a partir de uma pretensão do editor normativo de impor uma relação complementar, mas na
medida em que o sujeito também esteja disposto a se colocar nesta condição subalterna. Ali o poder não
está unicamente nas mãos da autoridade, não é uma coisa que ele tem, portanto. Ele atravessa e ao mesmo
constitui a própria relação autoridade/sujeito[221].
Essa disposição à subalternidade não é consciente ou de fato volitiva. Tem-se a aniquilação
propriamente dita dos envolvidos. Trata-se de um processo de humilhação social, disparada, constitui
uma experiência continuada de diminuição dos seres em que “um traço de humanidade tem sua
experiência impedida”[222]. A humilhação social é conceituada por Moura como:
sofrimento longamente aturado e ruminado. É sofrimento ancestral e
repetido. Um sofrimento que, no caso brasileiro e várias gerações atrás,
começou por golpes de espoliação e servidão que caíram pesados sobre
nativos e africanos, depois sobre imigrantes baixo-assalariados. Alcançou
roceiros, mineiros ou operários, também uma multidão de pequenos
servidores, subempregados e desempregados. (...)[223].

Os humilhados atingidos o são em situação de permanência e continuidade de uma condição já


estabelecida, a situação relacional do rebaixamento, estão de joelhos. O humilhado decaiu. Impera a
verticalidade que é relacional, mas que exibe uma modalidade das relações de poder presentes.
Para Schwarz a diferença social exposta no filme é degradante[224]. Todas essas situações e
relações expõe a complexidade das relações de poder, especialmente das abusivas. Desperta-se a
condição das pessoas, suas características e que destoam da relação entre o bem e o mal ao expor das
contradições e o tom natural de violência dos próprios sujeitos. Esse despertar nada mais é que elemento
de uma cadeia contínua de relações.
REBAIXAMENTO RELACIONAL, RESSENTIMENTO E AS IRRUPÇÕES DA HUMILHAÇÃO
POLÍTICA
O cinismo e a ironia, em Bianchi, segundo Nezi Oliveira[225], seriam desdobramentos daquilo que
fora retratado por Ismail Xavier como jogo de ressentimento[226] e o profundo sentimento de impotência
diante da realidade.
No Cronicamente Inviável se opera um rebaixamento público que se impõe e se sobrecarrega. Mas
os rebaixados não são simples vítimas ou sujeitos inertes. A questão é relacional e reitera o processo
histórico.
O ônibus freia. O motivo, um carro parado no meio do fluxo do trânsito. O motorista do ônibus
aciona a buzina, o que é suficiente para que se inicie uma discussão. A condutora do do carro se dirige
em direção ao ônibus, pára sob a janela do motorista e séria, exclama: O senhor não está vendo que meu
carro morreu! É b-u-r-r-o.
O motorista, que antes de iniciar a discussão ouvira de Ceará a sugestão para que tratasse bem a
mulher, dirige-se ao seu ‘conselheiro’ e ironiza…“Saber como tratar? Ahh”. Reponde então à mulher
que está na rua, à janela do ônibus, “Vai se fuder, tira o carro daí”. A mulher, com autoridade responde:

Você vai querer descer aqui para me ajudar ou vai querer brigar comigo?
Vai querer brigar comigo agora? E se você encostar um dedo em mim eu
te ponho preso e acabo com a sua vidinha vagabunda de nordestino burro.
É por isso que esse país não vai para frente, a gente tem que aguentar
nordestino. Não tá vendo imbecil, não tá vendo? Burro, ignorante, idiota.
Burro, ignorante, idiota.
M-e-u c-a-r-r-o m-o-r-r-e-u!.

A multidão observa o ocorrido. O silêncio que entoa nas expressões de quem observa e agoniza
diante do discurso acima transcrito colide diretamente com o som das palmas que invade a cena. O
espectador, atordoado com a possibilidade da exaltação pública do ocorrido representada pelos
aplausos, novamente é provocado. Esses, os aplausos, estavam na cena seguinte, contextualizada em
outro ambiente distante dali. Sim, na memória de quem acompanhara a cena do ônibus fica os rostos da
plateia na rua parada diante da discussão e que serve de espelho da humilhação ocorrida: o silêncio
estava de fato em seus rostos representado.
A discordância entre as partes e a agressividade do motorista ao provocar a buzina ou determinar
que a condutora tirasse o veículo dali não eram razoáveis. Retiravam dela qualquer possibilidade de
ação. Ela, no entanto, ao invés de dar continuidade à tentativa de solução do ocorrido, se vê provocada e
instaura argumentos que superam a situacão ali vivida, são palavras que assumem uma conformação
histórica.
Darcy Ribeiro afirmou que “milhões de brasileiros, através de gerações, nascem e vivem toda a
sua vida encontrando soluções para seus problemas vitais, motivações e explicações que se lhes afiguram
como o modo natural e necessário de exprimir sua humanidade e sua brasilidade”[227]. Esse aparente
modo de ser oculta disparidades, e que são expostas em imagem por Bianchi. Esse modo de ser inclui um
rebaixamento público. Esse rebaixamento não é ato isolado, novamente, é relacional, as partes
envolvidas interagem entre si e permitem que ele se manifeste.
Neusa Vaz e Silva ao analisar o processo de formação da nação brasileira proposto por Darcy
Ribeiro afirma que o povo brasileiro, “embora detendo uma criatividade extraordinária, internalizou as
marcas da dominação”[228] e que esta condição, segundo o próprio Darcy Ribeiro “se transfigura
deformadamente, orientando-se por direções opostas às de sua afirmação e sobrevivência”[229].
O retrato se vê. Até a fotografia do filme provoca o espectador. Porque neles se vive, diariamente
um movimento que é simultaneamente mobilizador e estabilizado. Senão inteiramente, interage-se com
ele, no cotidiano de todos os brasileiros. Atônitos, decaídos todos ali são iguais em sua desigualdade
social implantada.

desigualdade social é expressão que descreve o estado de grande


disparidade entre pessoas, uma situação de desnivelamento. Só muito
remotamente faz alusão a uma falta praticada por muitos e por
instituições. A igualdade que falta é a igualdade recusada. A igualdade foi
recusada, foi recusado o igual direito de agir e falar, o igual direito de
tomar parte nas iniciativas e decisões. A igualdade foi recusada e
afirmamos a dominação[230].

Trata-se de uma denominação atribuída para algo já consumado[231]. A dominação, como


fenômeno político fica desvelada diante da desigualdade social. Para Moura, a humilhação social e
política é ingrediente da desigualdade social[232]. Quando se opera a dominação, o fenômeno da
desigualdade se consuma e a igualdade política se vê impossibilitada. Se estas se tornam crônicas,
opera-se a humilhação social. Esses males que duram e perduram em grupos, comunidades, povos e se
constituem também como fenômeno político e constitui, mesmo que de modo desapercebido, o
preconceito.
A mensagem veiculada ao interessado pressupõe o seu cometimento, a sua aceitação. A condição
de autoridade retira do endereçado qualquer possibilidade de questionamento e o emissor normativo
mantem o controle sobre os modos como o endereçado poderá agir. Faz com que este acredite que a
questão é do seu interesse, senão algo inquestionável. Ocorre que o filme exibe um cotidiano em que o
que menos interessa são as necessidades dos sujeitos. O controle assumido pelo motorista do ônibus é
retomado pela condutora do veículo. E, ao fazê-lo, ela opera uma relação de dominação. O poder se fez
apropriar e a possibilidade de ação se viu eliminada, simbolicamente.
Após a provocação poderia se esperar que o jovem motorista passasse por cima da atrevida
condutora ou que invocasse formalmente a prática de injúria ou difamação. No entanto, ele nada faz. Todos se
mantiveram inertes diante da violência sofrida que é pouco questionada ante à aceitação moral do estado das coisas. Um estado de opressão e
de aniquilação dos sujeitos que está integrado à um processo histórico encarado pelos presentes como uma questão natural e que é invocada
pelos emissores de forma dissimulada e, no mais das vezes, consciente. O dominado não existe, é estranho, mas ressentido. Para Moura, as
respostas ressentidas à condição estrutural de humilhação política podem ser a resignação servil, o ressentimento adensado, a resignação
judicativa[233].

Na residência de Maria Alice, mais especificamente no closet do quarto, Carlos, o marido, verifica que a camisa que pretende vestir
não possui um botão. Ele questiona Maria Alice à respeito e pede que a esposa chame Josilene. Ele mesmo grita pela empregada. Em um
monólogo, Carlos, lança uma voz terna e pausada para explicar à Josilene o funcionamento de um armário, um recinto que poderia abrigar
apenas “roupas prontas para vestir”. Em seguida, o patrão descreve detalhadamente para Josilene como um botão deve ser pregado,
provavelmente uma ação que Carlos nunca realizou.

Enquanto ele explica sobre armários e botões, ela aguarda silenciosamente, e confere atenção ao patrão. “O senhor quer que eu
troque o botão?”, pergunta Josilene. “Agora não dá mais tempo, estamos atrasados para a festa”, responde Carlos, enquanto entrega a
camisa para Josilene e retira do armário uma outra similar, quase da mesma cor, dentre as muitas que ali estavam, vestindo-a.
Carlos invoca uma condição superior, se situa acima e, para tanto, desloca a funcionária de posição. Esta recai. Ele entoa um saber
teórico. Ela sim, sabia faze-lo, pregar o botão; mas naquele momento aquilo não tinha a menor utilidade. Josilene, não é a vítima subserviente.
Tanto Josilene quanto Maria Luísa mantinham entre si a cordialidade. Invocavam uma relação de amizade. No entanto, na tentativa de
neutralizar o comportamento da outra, manter-se sobrevivente, ambas mantinham um jogo de máscaras.

Sua condição humana ambivalente é exposta diante da cena em que, Maria Luísa chega em casa e se depara com Josilene na cama
dela com um homem, Oswaldo seu namorado. Josilene justifica o ato: a referência é o comportamento de Maria Luisa e Carlos. Josilene
queria igual. Maria Luisa, atordoada só pede que saiam dalí. Uma discussão confusa se instaura e a violência dá seu tom. Ambas gritam.
Josilene então elogia Carlos que é explícito, porque Maria Luisa "nem percebe que é filha da puta". Oswaldo perde o controle, empurra
Josilene e agride Maria Luísa com um abajur. Dalí saí.
Trata-se de um exemplo de uma resignação servil implica em uma submissão contida, raivosa, com explosões esporádicas ou
manifestações ou reflexões de ordem maliciosa ou velada. Ela dissimula a relação de dominação[234]. O mesmo se dá com Adam que,
mesmo consciente da sua condição de empregado explorado, invoca, diante de um ônibus lotado, que não se fará de vítima. Afirma que esse
papel não é seu. Mas Adam ali permanece no ônibus, sendo que durante todo o filme faz comentários maliciosos acerca das relações de poder
e ao final explode. Costa afirma que “a forma suicida com que nos deixamos invadir pela violência, sem nada fazer, é talvez um
sinal desse desejo latente de destruir o que não temos coragem de transformar”[235].
O ressentimento adensado já retirou da pessoa ou grupo o tom da esperança. Acomodou-se e se
estabilizou na descrença[236]. Esse seria o ressentimento do grupo que presenciara a humilhação do
motorista de ônibus. Adensado também é Alfredo, o narrador multifacetário e estático. Esse adensamento
é intensificado por uma apatia. Alfredo contempla, reflete e reitera tudo aquilo que aponta. Forja
conceitos e se afasta da realidade. A hipocrisia de Alfredo o distancia. Alfredo não se sente brasileiro,
está acima disso e incorpora tantas características que são repetidas de modo impessoal a esse, o
brasileiro. As ideias explicam as imagens, mas estas imagens, diante de seus olhos, são apenas ideias e
não podem ser vividas.
Alfredo observa os presentes, é tudo o que faz, não intervém na realidade. Não participa. O índio
na praia sofre violência física, não razoável. Os meninos na rua são revistados arbitrariamente pela
polícia. Alfredo descreve o ritual estatal e indaga se existe uma “explicação para tudo”, para o forte
que violenta sistematicamente o mais fraco. Alfredo só se afeta pelo sol e a violência continua no filme.
A resignação judicativa, por sua vez, assume um tom de protesto, mas discreto, mudo. Nele irrompe a
percepção, é passo para a compreensão, uma vez que se re-significa aquilo que ali estava. Trata-se de um
passo para o desvelamento[237].
Já nas cenas iniciais do filme, ao migrar de ônibus do sul para o sudeste, Adam, assim como os
demais passageiros tem seu destino interrompido por um bloqueio de trabalhadores sem terra na rodovia.
Estes, que estariam prestes a ocupar uma fazenda, ocupam o lugar e seu líder passa a discutir com o
fazendeiro do local.
Adam, observando tudo, institui e aguça um conflito entre proprietário e ocupante da terra que
discursavam sobre o trabalho e ao faze-lo deboxa do conflito a partir de esteriótipos construídos
socialmente “Agora vamu ve quem vai ganhá: o separatista ou o vagabundo”!
No entanto, aquela resignação que poderia ser subversiva e partir para um processo de ampliação
compreensiva de sua situação e de transposição para liberar-se dessa condição é, no entanto,
subserviente. Adam remonta a resignação servil, assim como Josilene, e discursa ao longo do filme,
aguentando sua situação, mas estimulando reflexivamente a sua revolta. No entanto, já naquela fase final
do filme, no desenrolar da trama, Adam, já demitido de seu posto por Luís, inicia uma discussão com o
ex-patrão e opera um discurso sobre a violência. Movimenta todos os presentes e ganha a adesão de
pessoas que estavam trabalhando em uma obra na rua: Adam discursa sobre a necessidade dos patrões
conviverem com o medo de que algo lhes ocorrerá. A polícia então chega ao local e Adam é rendido e
levado preso. A conduta de Adam diante da plateia que se aglomera seria uma espécie de
desconfirmação da autoridade do patrão, não reconhecendo seu discurso. A autoridade estatal então
aparece para transforma-la em rejeição...esse poderia ser um momento de resignação judicativa.
A resignação, como resposta ao aniquilamento, à humilhação e à dominação pode ser uma contra
violência que se manifesta com o grito e com a ação impulsiva. Pode ser raiva, violência, crime. Mas
também a consciência, o discurso e a sobriedade. Para Moura há um poder que torna capaz de em
conjunto promover uma interrupção do automatismo social, cancelar opressões e fundar uma república
com formas salutares de trabalho para todos[238]. A relação implica em energia. Nas situações de
humilhação essa energia amortece o disparo e volta-se contra o humilhado que precisa conte-la.
Schwarz, ao comentar o filme, ainda completa que “tudo é degradado e a mola da transformação, a
mola do aperfeiçoamento, a mobilização dos campos, tudo desapareceu. Assim, a degradação se
manifesta nos dois polos da desigualdade social”[239]: ou seja, dos explorados e dos exploradores. De
fato, não há redenção para nenhuma das partes, apenas violência.
A energia e a interrupção do automatismo social pretendidas por Moura não são mobilizadas nas
imagens de Bianchi. Pelo contrário, a feitura e desdobramentos do filme assumem um caráter pessimista.
O ressentimento nacional se naturaliza nas personagens nominadas e nos invisíveis com quem
contracenam e a trama não se desfaz e a corda não tem fim. São nós que o tempo histórico apenas fez por
corroer, desgastar ou recrudescer.

FIM DA LINHA OU TRAMA SEM FIM: RECRUDESCIMENTO DAS QUESTÕES NACIONAIS


E O REBAIXAMENTO ESTRUTURAL – QUESTIONAMENTO E ABERTURA: A SAÍDA É
PELA FILOSOFIA
A qualidade da arte feita à sério é a de que a primeira impressão não é suficiente e quanto mais
vezes a obra é acessada, mais coisas nela se acha[240]. Esse foi o encantamento provocado por
Cronicamente Inviável em Iná Camargo Costa.
Oferecer um retrato do Brasil, a despeito da montagem e das intenções do diretor, constituiu um
pouco o resultado da produção de Bianchi ao reproduzir regiões, costumes, e constituir esse tecido
aproximando-se do imaginário do espectador pela confusão e pela dor.
“Nenhum povo vive sem uma teoria de si mesmo”[241]. Para Darcy Ribeiro, carecia o Brasil e os
brasileiros de uma teoria geral, inteligível na medida em que partia e remetia para a própria experiência
histórica do Brasil, explicando-nos em nossos próprios termos[242]. Reside, nos filmes, como indagação
oculta, o desfecho do Brasil, talvez seu refazimento. Ao retratar estórias, compor narrativas, os filmes
indicam modos de se viver, documentam o imaginário e compartilham um mundo com as demais pessoas.
(Eles vem de um mundo). Modelos de sociedade se mostram ao retratar a cultura, fazer dela uma
mensagem. Muitas vezes o público, tão acostumado ao que é retratado, nem percebe o que se mostra na
tela, de tão familiar. Em outras ocasiões, com ela se choca ante a evidência que se faz exposta.
Sem uma teoria, ou com o excesso de uma, opera-se no filme uma racionalidade conturbada,
dissimulada ou uma irracionalidade abusiva. As elites são indiferentes ou irresponsáveis. Os cenários
são poluídos. Nas relações, sujeitos operam ou são operados por rebaixamento. Os explorados são
humanizados e violentos. A humilhação não se dá somente em razão de um evento da vida social. Não é
o desrespeito à um índio, em uma situação ocasional, que é objeto de xingamento. Tampouco à uma
criança que, mesmo atropelada e caída no chão, talvez ainda ouvisse que a lei resguarda a motorista. Não
é o fato isolado da doméstica que silenciosamente deve ‘apreender’ do patrão a lição de como se coser
um botão.
De fato, padrões irracionais são reproduzidos e a libertação de aguilhões se opera, mas nem sequer
para permitir a inversão de papéis. Poder, força, controle e ocultação, ordem e a obediência se
relacionam no âmbito político e jurídico ante à complexidade de suas tramas, seja à partir de referências
tanto históricas como fenomenológicas. No campo das relações de poder operam-se uma fatalidade
natural ou uma dissimulação por máscaras[243]. A constituição da arte não é alheia à existência e as
reflexões a seu respeito, não é meramente contemplativa, isolada ou autossuficiente. A arte espelha os
modos de ser do humano ante o mundo da vida.
A afecção, a emoção se constituem e os espectadores sofrem uma ação proposta pelo filme. as
afecções promovem estados modificativos. Trata-se da ai2sqhsiv (aisthesis) da faculdade de sentir ou
sofrer alterações[244]. Os filmes de Bianchi acabam mal, numa linguagem bem simples. Muito mal. Não
somos mais os mesmos depois deles. E esse vazio, essa angústia, como decaimento, pode ser o passo
inicial para a abertura filosófica transformadora.
Ela, a angústia é uma disposição fundamental do ser existente[245]. Como tal, despe o mundo de
significação. É disposição em que o mundo se abre como mundo. A estranheza provocada rompe com o
familiar e desse rompimento pode surgir a filosofia, uma vez que é por ela que o ser se despe de seus
preconceitos e chega à compreensão última. Ela é sentida diante do mundo (real mas que não depende de
uma situação, mas do estar no mundo, que nos abre para ele)[246].
Esse cinema que pensa, não pensa por si, não é objeto apropriável e elemento de reprodução.
Promove abertura, também pela dor, à partir de um processo imagético que provoca a angústia, sdo
espectador e do público, e que também é compartilhada por um povo. Tem-se aí um passo para a sua
compreensão em um mundo. Mesmo sendo o mais qualificado dos afetos traumáticos[247] , a angústia é
também o ponto de partida (ou de encontro) de um processo de auto-compreensão no mundo. No caso de
Cronicamente Inviável, a mensagem é anacrônica e não linear e a saída é pela filosofia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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https://www.youtube.com/watch?v=8tKLs144twI
CABRERA, Júlio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro:
Rocco, 2006
CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
COSTA, Jurandir Freire. Ética democrática e seus inimigos - o lado privado da violência pública, In
BETTO, F.; BARBA, E.; COSTA, J. Ética. Rio de Janeiro: Garamond, 1998.
GONÇALVES FILHO, José Moura. Humilhação social: humilhação política. In SOUZA, Beatriz de
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HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução Márcia Sá Cavalcante Schuback. 13ª. ed.
Petrópolis: Vozes, 2004.
OLIVEIRA, Mara Regina de, O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. 2a. ed. São Paulo: Edição do autor, E-book Kindle: Amazon 2015.
OLIVEIRA, Nezi Heverton Campos de. O cinema autoral de Sérgio Bianchi: uma visão crítica e
irônica da realidade brasileira. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo,
2006,
VAZ E SILVA, Neusa. Teoria da Cultura de Darcy Ribeiro e a filosofia intercultural. São Leopoldo:
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VIEIRA, João Luiz. Câmera-faca: o cinema de Sérgio Bianchi. Festival de cinema luso brasileiro de
Santa Maria da Feira. Portugal, 2004.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. 2a. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
OS INQUILINOS – OS INCOMODADOS QUE SE MUDEM
Maia Aguilera Franklin de Matos[*]

e a primeira impressão é aquela que fica, a cena de abertura de Os Inquilinos – os incomodados que
S se mudem (2009), de Sérgio Bianchi, é a mais marcante do filme em termos de beleza. Depois de um
céu azul em que aparece escrito o nome do filme, vemos uma imagem ensolarada de casas com tijolos
laranjas sem revestimento, com uma árvore alta e verde no meio. A câmera vai se afastando, as casas e a
árvore ficam menores, e a favela fica cada vez maior. A imagem é linda, tem a energia da luz solar, é
potente.
A leitura que ressalta a visualidade desta imagem é de Yanet Aguilera[248], que chama a atenção
para a composição intensa da monocromia do laranja – uma cor quente – em contraste com o verde –
outra cor quente e complementar. Ademais a favela estoura o enquadramento, se expandido para além
dos limites da câmera. Trata-se de uma contraposição à visão da favela como o fracasso das cidades
modernas, e a árvore, símbolo da valorizada cidade jardim, que neste sentido seria uma ponta
irônica nesse mar monocromático dos tijolos. Entre a metáfora e a visualidade, em geral se opta pela
primeira porque, embora sejamos impactados pela imagem, no cinema, só sabemos falar dos sentidos que
ela parece despertar. Independente disso, o que vemos é que a câmera se distancia e enquanto a árvore
fica cada vez menor, a favela cresce aos olhos do espectador.
O tom da cena, produzido pelos quatro acordes de piano que ouvimos nos dão a sensação de
tensão e expectativa, tanto por sua tonalidade menor quanto por sua estrutura cíclica, que nos deixa
esperando o relaxamento da tônica que não chega. A imagem muda, e a música é o elemento que faz a
ligação entre a imagem anterior, favela, e o que se verá a seguir. Vemos então um céu mais para o fim da
tarde, que vai caindo junto com a descida da câmera, até chegar em crianças brincando em uma rua larga
e asfaltada, já é de noite. A música continua, mas também muda, saindo da introdução, ouvimos o baixo
de voz masculina, cantando ópera. Porém, vai sumindo conforme a câmera passeia pela rua, dando lugar
aos sons do bairro vizinho à favela.
Ouvimos o som de uma televisão ligada; em seguida, vemos uma cena filmada em que uma mulher
aparece sendo agredida por um homem, jogando-a numa cama. Supomos que é o ex marido agressor, se
insinua um estupro. Vemos que se trata de uma imagem na televisão quando a câmera mostra o
espectador: quem assiste à cena de violência contra a mulher é uma menina negra de mais ou menos 9
anos, Nanda.
Depois de corte, ouvimos a mãe de Nada, Iara, contando a história da vizinha que apanhou do
marido, pois ele chegou bêbado em casa e bateu nela e no filho que se meteu no meio. Ela está na cozinha
junto com Diogo, seu filho mais novo e o marido Valter. Destaca-se mais uma vez a violência doméstica
contra a mulher, desta vez, não na televisão, mas relatada em uma fala de uma personagem sobre um
acontecimento real, vizinho, próximo aos personagens.
Nanda é obrigada a interromper a novela para jantar com a família, Iara, Valter e seu irmão mais
novo Diogo. Na mesa, por ordem do pai, conta sobre o livro que está lendo para a escola: trata-se de
homens maus que chegam numa cidadezinha calma e bagunçam tudo. No fim, eles morrem e fica todo
mundo feliz. O jantar da família é interrompido por uma movimentação do lado de fora. Homens jovens
chegaram gritando e buzinando a procura de Seu Dimas, vizinho de parede da família. Metade da sua
casa é da sua ex-mulher, e, em troca de não vender a casa e repartir o dinheiro entre os dois, ela exige
que ele receba inquilinos. Os novos inquilinos são da favela vizinha ao bairro de periferia no qual os
personagens vivem.
E assim é apresentado o conflito que se desenvolverá ao longo do filme. Como demonstram as
primeiras imagens, coloca-se questões que passam pela relação entre favela e bairro, confirmada pela
chegada tumultuada dos novos inquilinos. Também já é pautada a violência, especialmente e violência
contra a mulher, que também será objeto de discussão. O filme alterna cenas que aconteceram na
realidade da história com cenas da imaginação de Valter. Há poucos recursos técnicos para diferenciar as
imagens das duas situações. Em alguns momentos, é possível perceber que se trata de imaginação porque
a sequência de cenas fica mais lenta, em outros, cabe ao espectador ter que deduzir pelo contexto se
aquilo ocorreu ou se Valter imaginou.

A JANELA INDISCRETA
Durante todo o filme, Iara e Valter observam os novos vizinhos por uma janela dentro da casa da
família. A visão que temos dos vizinhos é emoldurada por essa janela, assim como o enquadramento
escolhido em um filme é que dá contornos à visão das espectadoras. Podemos pensar a janela enquanto
metáfora do cinema, referencia que aparece em outros filmes, como A Janela Indiscreta de Alfred
Hitchcock. A espectadora é colocada como aquela que espia a vida de outras pessoas, no recorte da tela
do cinema, que usufrui do prazer escópico como um voyeur, mas que está totalmente passiva em sua
poltrona sem poder intervir nos acontecimentos. Mas uma ponta de ironia se insinua, pois enquanto Yara
tem uma visão completa, a câmara poucas vezes se aproxima de tal forma que possa ultrapassar as
divisões do vitrô. O espectador tem que se conformar com uma imagem fragmentada do que sucede na
casa vizinha.
O contato que temos com os jovens da favela é pela visão de Valter e Iara, recortada pela janela.
É por ela que Iara vê que eles não trabalham durante o dia, bebem cerveja durante a tarde, conversam
alto, riem. Valter fica fora a maior parte do tempo, pois trabalha durante o dia como carregador e faz
curso supletivo à noite, e fica sabendo de tudo pelo relato da mulher, que trabalha como dona de casa.
É interessante notar que quase sempre vemos a janela por dentro da casa da família, demarcando
que estamos vendo a história do ponto de vista de seus moradores. Em uma ocasião, entretanto, movido
pela curiosidade do que escondiam os inquilinos, Valter vai até a casa vizinha; quando olha para a sua
janela de um outro ponto de vista, depara-se com Iara, que, fumando um cigarro, olha para o marido e dá
um sorriso irônico. Esta é uma das cenas ambígua, não sabemos se ocorreu ou se Valter imaginou. De
toda forma, fica a sensação de que, se hoje você observa, amanhã poderá ser observada.
A VIOLÊNCIA E O MEDO
A questão da violência, trabalhada por Mara Regina Oliveira[249], é complexa em Os Inquilinos.
Por um lado, ela é real, presente, de fato existe; por outro, está presente no medo da violência sentido
pelas personagens, e no discurso do medo.
As personagens acreditam que a violência vem da favela. Fica evidente a preocupação de Iara e
de Valter com os inquilinos. Enquanto os observam pela janela da casa, seu medo e incômodo é
crescente. Ela teme pelos filhos e chega a querer mudar-se da casa; ele é contra, pois foi herdada de sua
família, que ergueu-a com muito esforço.
A presença dos traficantes é mostrada como incômoda para os moradores, e a ameaça tem lastro
real quando, por exemplo, um dos jovens agride verbalmente Nanda, fazendo um comentário sobre sua
aparência; ou quando outro, embriagado, bate o carro e destrói o muro e o jardim dos vizinhos.
Ao mesmo tempo, o filme aponta que a visão deles sobre os jovens da favela é preconceituosa.
Em uma das festas promovidas pelos traficantes, em que o incômodo da vizinhança vai crescendo
conforme vai ficando mais tarde, Iara chega a chamar seu irmão e seus amigos para resolver a questão.
Valter se incomoda de ver sua autoridade patriarcal questionada pela esposa, e sai na rua desesperado
com a situação, aos berros. Um dos jovens sai da casa e, percebendo o incômodo do vizinho, já histérico,
conversa com ele e pede para os colegas abaixarem a música. Percebemos que a questão é resolvida com
diálogo, que os moradores do bairro não se propõem a ter com os inquilinos. A tensão entre o bairro
periférico e a favela também aparece quando Iara não quer deixar Diogo, o filho mais novo, brincar
muito para lá porque “é muito perto da favela”. Apesar de Valter relativizar essa opinião, colocando-a
como exagerada, uma vez que dá permissão para que o menino brinque por lá, Diogo acaba se
machucando porque foi atropelado de bicicleta lá por perto. A violência urbana também se expressa no
império dos carros sobre as pessoas.
A tensão existente entre a favela e o bairro periférico, vizinho, em que se passa a história, é
visível por meio da preocupação da mãe com os filhos brincarem lá perto, com o fato do pai trancar bem
as janelas da casa antes de dormir; com o toque de recolher que ele impõe ao filho no sábado, sete da
noite, quando não o deixa ir jogar videogame na casa do amigo, mas, principalmente, com a presença dos
inquilinos, da favela, na casa ao lado. Entretanto, as personagens parecem não se dar conta que a
violência está dentro da sua própria casa, por meio da mídia. Iara se diz incomodada com a presença de
mulheres nas festas dos traficantes, diz que não quer que sua filha cresça vendo esse tipo de coisa. Ela
não parece notar, no entanto, a cena de estupro assistida pela filha na novela na primeira cena do filme,
que vai cumprindo o papel de naturalizar a violência contra a mulher, uma vez que não é questionada.
A mídia também é fonte de um discurso do medo que vai sendo incutido nas personagens. A
família assiste, assustada, ao programa sensacionalista D’Atena, que mostra uma mãe e uma irmã aos
prantos sobre o corpo de uma menina da idade de Nada, estuprada e assassinada. A espetacularização da
violência contra a mulher e a criança também é violenta contra as personagens, pois contribui para
aumentar o seu medo e sua sensação de insegurança permanente. Enquanto espectadoras, vivemos essa
angústia crescente junto com as personagens.
A violência urbana também é tema de debate nas aulas do curso supletivo de Valter. Ele reproduz
uma opinião conservadora, pautada pela grande mídia, à qual se contrapõe Evandro, seu colega de
classe. Indignado com a postura da escola de ignorar o quadro de perigo vivido no contexto do que ficou
conhecido como os ataques do PCC ,em 2006, ele aponta a seletividade da violência, que atinge
sobretudo os pobres.
O Mapa da Violência 2013: Homicídio e Juventude no Brasil, realizado pelo Centro Brasileiro de
Estudos Latino-americanos (Cebela) e pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), a
partir de dados disponíveis no Subsistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da
Saúde, mostra que, enquanto o homicídio contra os brasileiros brancos foi reduzido em quase um terço
(31,3%) na última década, o número de vítimas negras cresceu 21,9%[250] entre 2002 e 2012. E a
violência não atinge apenas homens jovens negros. A recém divulgada pesquisa do Ipea[251], o Mapa da
Violência 2015, mostra que, enquanto o homicídio de mulheres brancas diminuiu 9,8%, o homicídio de
mulheres negras aumentou 54% entre 2003 e 2013.
Também a professora, Cassia Kiss, pauta uma visão com mais consciência social em suas aulas de
literatura. Em determinado momento, entretanto, Leandro confronta a professora, demonstrando que as
posições dela, embora bem intencionadas, são idealistas, vindas de alguém que não vive de fato aquela
realidade. No filme, Evandro de fato é morto no episódio que ficou conhecido como os ataques do PCC
em 2006. Entretanto, o filme não enfatiza a violência decorrente do racismo institucional no Brasil, tendo
em vista que Evandro é retratado por um ator branco, Caio Blat.
Desta forma, temos uma violência que é percebida pelas personagens, que enxergam parte do
perito ao qual estão submetidas. Mas existe uma violência que é introduzida em suas vidas de forma
despercebida, e que talvez seja mais violenta pelo fato de não ser percebida enquanto tal, naturalizada
enquanto parte da vida.
O HOMEM E O ANIMAL
Na obra O Aberto – o homem e o animal, Giorgio Agamben apresenta uma coletânea de textos em
que analisa como a filosofia ocidental vê a questão da relação entre o homem e o animal. Sua reflexão
parte de uma imagem de uma Bíblia hebraica do século XIII, da visão de Ezequiel, em que os
representantes da humanidade são retratados com caras de animais. A partir da ideia de reconciliação
com a natureza animal. Isto vai contra a linha evolucionista, que nos coloca como seres mais evoluídos
que os animais, dos quais descendemos. Assim, o animal é sempre apresentado como inferior ao humano.
Mais do que isso, muitas vezes a humanidade é definida colocando o animal enquanto o outro, o não
humano.
É nessa perspectiva que, ao longo do filme, os moradores do bairro fazem vários comentários que
colocam os inquilinos como animais. Os jovens da favela são colocados enquanto o outro, e um outro
mais do que inferiorizado, como não humano. Valter chega a falar que se tratam de animais efetivamente,
em comentário indignado para seu vizinho. A animalização dos inquilinos passa pela autoafirmação
enquanto superiores, já que eles são moradores inferiorizados de um bairro periférico, cidadãos de
segunda classe. Eles mesmo estabelecem a linha de corte e dizem quem não é humano.
Mas como Agamben adverte[252], citando Carlos Lineu, o verdadeiro homem é aquele capaz de
se reconhecer no macaco. A ironia está em que aqueles que ensaiam definir o humano contrapondo-o ao
animal, acabam como disse Pascal: “qui fait l’homme fait le singe”. A ironia é pura assunção de uma
absoluta “impotência cognitiva”. O homem é o absolutamente aberto, o que impossibilita decisão entre o
humano e o inumano, tal como o fizeram os campos de concentração e de extermínio (Agamben,
2002:43).
Por exemplo, os vizinhos são vistos como animais perigosos com os quais não
se pode dialogar. Porém, a impossibilidade do diálogo é pressuposta por Iara e Valter, e eles são os que
não têm nenhuma civilidade com os vizinhos, antes que estes realmente se revelem perigosos. Traçar esta
linha divisória, marca de uma visão racista e preconceituosa sobre o outro, sempre teve um peso político.
Afinal, só diminuímos os outros para domina-los ou reforçar o domínio que exercem sobre nós.
A divisão entre o homem e o animal marca o soberano e o homo sacer[253], mas como todos
afinal, com menos o mais pressão, temos um soberano acima de nós – o Estado e toda sua aparelhagem
jurídica e normativa – o homem, enquanto indivíduo, é o animal, pois não possui nenhum direito no
enfrentamento com o soberano, mas que está completamente submetido a ele.

A ORDEM JURÍDICA E O TRABALHO


De acordo com Oliveira, o direito é um conjunto de mensagens que constituem a relação
autoridade-sujeito. A autora coloca que a linguagem pode ter uma estrutura dialógica, aberta à
fundamentação e à crítica, em que o emissor tem o ônus da prova e se exige a presença de racionalidade;
ou monológica, situação em que o receptor aceita a mensagem como verdadeiro ou evidente, abrindo mão
da postura crítica. Sendo a mensagem reflexiva, a pessoa interlocutora pode confirma-la, rejeita-la ou
desconfirmá-la.
No caso do direito enquanto linguagem, estamos diante de uma situação de institucionalização do
emissor. Isso significa que o emissor está isento do dever de prova do que fala, é o soberano agambiano.
Não à toa, no direito, fala-se em dogmas, que são, na realidade, a imposição de algo como certo. Porém,
as pessoas receptoras sociais dessa mensagem podem recusa-la, surgindo o problema da relação de
poder entre autoridade e sujeito, mas a recusa acarreta sérios problemas sociais e jurídicos ao
insurgente. Para a autora, o poder é o controle da seletividade do agir da autoridade e do sujeito,
diferenciando-o da força física. Para a mensagem ser meta complementar ela precisa ser legitimada pela
pessoa interlocutora. O controle das reações dos sujeitos se dá por meio da violência simbólica, por
meio da institucionalização.
No caso do filme, essa violência é simbólica em vários sentidos. Em primeiro lugar, há uma
naturalização ou invisibilização de violências cotidianas, que por serem administradas diariamente são
mais eficazes e nocivas para as pessoas. A outra violência simbólica é quando restabelecem a escala
evolutiva do humano, ao nomear os vizinhos como animais, estão afirmando sua própria animalização, no
sentido agambiano que colocamos.
A resposta da pessoa interlocutora, no caso do direito, se dá nos seguintes termos: a confirmação
da mensagem se dá por meio de condutas lícitas; a rejeição da mensagem, por meio de condutas ilícitas.
A mensagem pode ainda, ser desconfirmada, ou seja, desautorizada enquanto legítima, o que enfraquece a
violência simbólica. O poder formal tenta transformar a desconfirmação da mensagem em conduta ilícita,
como é o caso da criminalização da luta dos movimentos sociais.
A presença do crime organizado na periferia e na favela, especificamente do Primeiro Comando
da Capital, PCC, já traz essa reflexão da rejeição o desconfirmação da ordem jurídica. A rejeição à
ordem aparece nos homicídios praticados pelos jovens da favela, tanto o relatado por um deles quanto o
do próprio Seu Dimas. Já em relação à desconfirmação, o PCC pretende-se e de fato é uma ordem
paralela, que não só não legitima o Estado como o combate.
Os moradores do bairro se colocam enquanto humanos, em contraposição aos inquilinos vindos da
favela. O fato dos jovens não estarem inseridos no mercado de trabalho e atrapalharem a rotina laboral
do bairro é salientado diversas vezes pelas personagens. A perturbação da ordem, principalmente do
esquema de trabalho, mas também da ordem moral sexual, da família, parece ser o motivo considerado
legítimo por eles para se incomodarem com o outro. No sentido de que, em nenhum momento, os
moradores vão sustentar que são preconceituosos, por exemplo, mas reclama que os vizinhos não os
deixam dormir e que o dia seguinte é dia de trabalho.
De certa forma, então, a humanidade dos moradores do bairro teria embasamento no fato de
estarem inseridos na lógica do trabalho, de estarem em uma posição legítima dentro da ordem
estabelecida. Entretanto, com medo de que lhe aconteça alguma coisa, medo este despertado também pela
presença dos inquilinos, Valter pergunta ao patrão de poderia ter carteira assinada, para que sua família
possa recorrer aos meios legais se necessário. Valter é trabalhador, mas não tem carteira assinada. Isso
significa que, apesar de se considerar dentro da ordem e mesmo humano em contraposição aos
traficantes, Valter não tem direitos mínimos garantidos pelo Estado por ser trabalhador. E tanto é assim
que seu patrão convence-o de que a carteira assinada não seria vantajosa para ninguém, seria dar
dinheiro para o governo, fazendo-o desistir do plano.
A ausência de quaisquer direitos trabalhistas demonstra que Valter, Iara e os filhos não estão tão
protegidos pela ordem jurídica assim. Apesar dos próprios personagens serem colaborativos com a
ordem jurídica, ou seja, haver meta complementaridade da sua parte, na verdade não estão incluídos na
ordem.
Isso indca o que o filme já mostra desde o início: a ordem jurídica pela qual as personagens
acreditam estarem protegidas, na cidade, fora da favela, não existe, ou se apresenta muito mais enquanto
estado de exceção, do homo sacer agambiano, do que da regra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer O Poder Soberano E A Vida Nua. Tradução Henrique Burigo. 1a
Reimpressão, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
BIANCHI, Sérgio. Os Inquilinos, 2009. Disponível no site Youtube em https://www.youtube.com/watch?
v=5BakjzUcQeU
CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
OLIVEIRA, Mara Regina de. O Desafio à Autoridade da Lei: A relação existente entre poder,
obediência e subversão, 2a ed., São Paulo: Edição do Autor, 2015 . Edição Kindle.
OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Dialógo. São Paulo: Edição do Autor,
2015 . Edição Kindle.
DURVAL DISCOS: O ENCONTRO DA REDENÇÃO NO CUMPRIMENTO DA ORDEM
Fernanda de Fátima Borges[*]

D urval Discos é o primeiro longa-metragem dirigido por Anna Muylarte, produzido em 2002, que
conta a estória de Durval (Ary França) e sua mãe, Carmita (Etty Fraser) e a mudança súbita de rotina
provocada pela aparição de Célia (Letícia Sabatella) e Kiki (Isabela Guasco). O filme mostra o
envolvimento dessas personagens com Elisabeth, interpretada por Marisa Orth, em um contexto social
limitado e solitário.
A atmosfera do filme tem os elementos tradicionais do bairro de Pinheiros, conhecido
pelos aspectos urbanos típicos de São Paulo. Além disso, constata-se referência explícita à rua Teodoro
Sampaio, famosa pelas lojas de instrumentos musicais e altamente frequentada por amantes de música.
Tais características são exploradas pela diretora já na abertura do filme, quando da apresentação dos
atores e produtores, em uma tomada única, ao focalizar aspectos tradicionais e urbanos típicos da região,
em que os nomes aparecem em cartazes, cardápios, letreiros, placas e calendários das ruas e do
comércio local.
A primeira impressão do protagonista, Durval, relaciona-se com o conceito-imagem de um
roqueiro na idade adulta com comportamento contestador e rebelde. No entanto, o traço principal de sua
personalidade é marcado pela tentativa de permanência constante no passado e conservadorismo,
apresentando complexidade muito maior do que seria caracterizado como um comportamento
simplesmente saudosista. Durval depende economicamente da mãe, com quem ainda habita, além de ser
responsável pela gestão da loja de discos de vinil, praticamente uma extensão física da casa, que dá
nome ao filme. Cumpre observar que a estória se passa em 1995, época em que a indústria da música
estava em transformação em razão do fortalecimento do CD como formato principal para
comercialização de músicas, além da dominação de estilos musicais de axé e pagode que atraiam o gosto
popular no Brasil.
Nesse contexto, Durval nega-se à aceitação do novo, dedicando-se exclusivamente à venda dos
LPs e manutenção de seu gosto musical composto, principalmente, por canções de MPB da década de
1970, como se constata na própria trilha sonora, de muito bom gosto, do filme.[254] Além disso,
percebe-se que o convívio com o passado está relacionado com sua relação com Carmita, sua mãe e seu
comportamento tardio de adolescente, até mesmo ao pedir à mãe que cozinhe seus pratos preferidos. Há
momentos, por exemplo, que Durval diz que nunca foi à Bahia e também que não aceitaria uma viagem ao
litoral porque não sabia nadar.
Quando Durval se depara com sua mãe, em idade avançada, que havia esquecido como
cozinhar seus pratos preferidos, com tentativa de manter-se no passado, decide contratar uma empregada
para manter os afazeres da casa. Ocorre que, nesse momento, constatamos, mesmo com certo humor, a
relação de poder exercida por Carmita sobre seu filho em razão da dependência econômica e da
limitação física estabelecida entre a casa e a loja e da relação de dominação até mesmo da imposição de
regras em um jogo de cartas em que, necessariamente Carmita sempre termina como vencedora perante
Durval e do incentivo para que a loja permaneça com a venda exclusiva de LPs, mesmo com sua quebra
iminente em razão da comercialização de CDs.
Nesse sentido, como tentativa de impedir que um elemento externo ao convívio na casa e
na loja ingresse na rotina dos dois, Carmita autoriza a contratação da empregada, considerando o limite
máximo de cem reais para salário. Obviamente, em 1995, esse valor já era exageradamente baixo, o que
inviabilizaria a contratação.
Interessante notar que a relação entre mãe e filho descrita até aqui é muito comum,
considerado também os tempos hodiernos, devido à dificuldade financeira que muitos adultos enfrentam
ao saírem da casa dos pais e assumirem o rumo da própria vida, bem como em razão da opção do
casamento ser feita de forma tardia quando comparada aos costumes passados. Nota-se certa aceitação
do exercício da autoridade pelos pais em troca de conforto e comodidade ou até mesmo pela
possibilidade em usufruir do dinheiro ganho com o próprio trabalho com itens considerados supérfluos
ao exemplo de vestimentas, festas e viagens ao invés de pagamento de despesas para manutenção de
própria casa e família.
No contexto praticamente impossível de contratação da empregada, surge Célia, que
aceita as condições do trabalho. É nítida a perturbação inicial de Carmita com a presença de Célia,
tratando-a como intrusa e incapaz de realizar as atividades domésticas. No entanto, a sensação de poder
sobre Célia toma conta de Carmita que passa a admitir a satisfação e até demonstrar certo prazer em ter
mais uma pessoa sob seu domínio.
No entanto, ao mencionar necessidade de pagar uma conta no banco, Célia desaparece e
tem seu quarto invadido na manhã seguinte por Carmita e Durval que se deparam com Kiki, uma menina
de cinco anos, suposta filha de Célia. Kiki menciona que sua mãe está viajando, dando a entender que
estaria ali aos cuidados dos dois.
A partir daí, verifica-se encantamento pela menina, principalmente por Carmita, que
passa a realizar todas as vontades de Kiki, deixando Durval, em um primeiro momento, com ciúmes.
Constata-se que a presença da menina provoca quebra substancial na rotina da casa, fazendo com que as
personagens principais se permitam o ingresso em um mundo infantil, alegre e aberto. Os três, juntos,
cantam, dançam e contam estórias a pedido da menina, que, de certa forma, usufrui da autoridade que
desenvolveu em relação aos dois.
O rompimento é tamanho que a primeira cena externa ao ambiente da casa e da loja é
justamente a busca por animais na rua, já que Kiki apresentava ideia fixa sobre a vontade de ver animais
de fazenda, o que acaba sendo explicado posteriormente. Assim, Durval e Carmita saem de casa à
procura de animais, deparando-se com ratos, conforme solicitado pela menina. A segunda situação
externa é justamente a ida dos três à loja de brinquedos onde, por mais que a menina insistisse que queria
um cavalo de verdade, ganha de presente uma bicicleta.
Interessante notar que, apesar do domínio econômico de Carmita sobre Durval, percebe-
se que não se trata de uma família abastada financeiramente, já que a própria casa e os hábitos das
personagens são simples. O gasto com a bicicleta seria algo considerado supérfluo e totalmente fora de
cogitação no contexto da rotina normal dos dois
O fascínio por Kiki é tanto que Carmita rompe com seu mundo limitado para proporcionar o
convívio da menina com um cavalo, adquirindo um. Nesse momento, a complexidade da relação
desenvolvida, primeiramente entre Carmita e Durval e, posteriormente, com Kiki mostra que Carmita
apresenta comportamento esquizofrênico, ao incluir elemento, o cavalo, em um ambiente incompatível
que seria a pequena casa localizada no bairro de Pinheiros. Trata-se de ação exagerada e servil para
atender os interesses de alguém como forma de impor dominação.[255]
Não se deve deixar de mencionar a presença de Elisabeth, atendente em uma lanchonete
próxima à loja que, às vezes, aproveita os intervalos da jornada de trabalho para visitar Durval e fumar.
Verifica-se tentativa de Elisabeth em ingressar no mundo interior de Durval, que sempre evita contato
mais profundo que um simples flerte. A personagem de Marisa Orth tem papel essencial no desenrolar da
estória.
A imagem rebelde de Durval com seus cabelos longos e vestimentas de roqueiro
contrasta com o comportamento conservador por ele apresentado nas interações com Elisabeth e Carmita,
bem como o próprio carinho e respeito demonstrado por Kiki. Poderia-se dizer que Durval é o típico
“boa gente” que se auto sabota ao limitar seu mundo e suas interações dentro da loja, que possui os
mesmos frequentadores e discos de sempre. O rapaz que, com mais de trinta anos de idade, ainda se
imagina tocando guitarra escondido em seu quarto, tem opinião e sonhos censurados pelo comodismo e
ausência de coragem de lutar pela sua realização, restando apenas a obrigação do cumprimento das
ordens de sua mãe, cujo desenvolvimento ocorre de forma rotineira e natural. Tal descrição leva-nos à
observação de que é muito fácil “ser Durval” nos dias de hoje em uma grande cidade como São Paulo,
em razão da necessidade de fuga das diversas relações de poder que todos estão sujeitos nas mais
diversas esferas sociais que envolvam trabalho, prestação de serviços públicos, violência, amigos,
relacionamentos amorosos e consumo, combinado com a falsa sensação de realização pessoal
proporcionada pelos conteúdos e serviços disponibilizados pela internet e televisão.
A caracterização de Durval, que não é vilão tampouco mocinho, pode ser interpretada no
contexto mencionado por Mara Regina de Oliveira no que se refere à necessidade de um novo paradigma
epistemológico da reflexão imagética artística:

“(...)porque ela mostra a face de nossa vulnerabilidade no meio de várias


questões que envolvem o direito e que podem contribuir para ampliação de
seu olhar crítico. A cultura de massa banaliza os temas e tende a direcioná-
los ao maniqueísmo simplificador: o mal sempre está no outro. Muitas vezes
o próprio direito não nos oferece uma saída satisfatória, do ponto de vista
humano. De fato, pode ser que não existam propriamente vilões ou mocinhos
em nossas histórias de realidade, é possível que os dois, estejam, ao mesmo
tempo, dentro de nós.”[256] (grifo nosso)

Considerando elementos relacionados aos discos de vinil, o filme é divido em “Lado A”


e “Lado B”, sendo o “Lado A” caracterizado por elementos de comédia de uma família alheia ao mundo
exterior mas que encontra sua redenção com o fator novo que seria a presença de Kiki. O encantamento
pela menina causa rompimento no convívio familiar tradicional, causando sensação de liberdade em
relação aos limites físicos da loja e da casa, sendo uma criança capaz de trazer perspectiva de futuro em
pessoas com pensamentos e ações parados no passado.
No entanto, o filme apresenta reviravolta significante, fazendo com que seu “Lado B”
seja marcado por elementos de suspense e humor negro, além de proporcionar ao expectador a
oportunidade de reflexão sobre o comportamento das personagens. Percebe-se, portanto, que mesmo uma
família não exposta aos riscos do mundo exterior, acaba sendo vítima indireta da violência.
A complexidade das personagens e seus valores tornam-se explícitos quando Durval e
Carmita tomam conhecimento, por meio do noticiário da televisão, que Kiki, na realidade, era vítima de
um sequestro praticado por Célia, que havia sido morta pela polícia. Soube-se que a menina morava no
campo, por isso sua ideia fixa por animais, era filha de uma empresária e estava desaparecida.
A reação imediata de Carmita ao exclamar diante da televisão - “Vou desligar essa
porcaria. Isso só traz desgraça”- , deixa claro sua intenção que a “desgraça” refere-se ao dever jurídico
de devolução da menina à mãe. Inicia-se, a partir daí, uma série de ações que mostram o negativismo
com relação à ordem protagonizados por Carmita na tentativa de manter o seu domínio com relação à
menina e ao filho.
De forma contrária, Durval compreende de forma eficaz a situação e já inicia a
movimentação para entrega da menina. No entanto, seu dever moral com relação à mãe mostra-se mais
importante com relação ao dever jurídico ao aceitar de forma submissa e contrariada as ações da mãe na
tentativa de manter a menina sob seus cuidados. Assim, o próprio medo de ser culpado em razão do
sequestro da menina e o domínio de Carmita, faz com que Durval adie algumas vezes a ida à delegacia
com o objetivo de entregar a menina à polícia.
Nesse sentido, percebe-se o grau da inocência de Durval que, mesmo ao ser
surpreendido pela realidade da situação de que aquela suposta empregada doméstica que teria aceitado
condições impraticáveis de trabalho era uma criminosa, também não consegue reconhecer em sua mãe,
em um primeiro momento, o comportamento transgressor e contrário à ordem formal.
A reação exagerada e sem qualquer fundamentação de Carmita fica evidente, sendo que a
personagem mostra-se capaz de tudo para manter a menina sob seu domínio. Nesse contexto, na tentativa
de ingressar no mundo de Durval, ao saber que uma suposta sobrinha estaria ali hospedada, Elisabeth
invade a casa, reconhece a menina desaparecida do noticiário e acaba sendo morta por Carmita.
A atmosfera do filme muda, concentrando-se no desespero de Durval, consciente de toda
a situação que envolve o dever jurídico de devolver a menina, o estado de loucura de sua mãe e a morte
de Elisabeth. Nota-se que Durval apenas entende a complexidade de sua relação com sua mãe, baseada
em poder e influenciada pelos sinais de esquizofrenia por ela apresentados nesse momento.
A situação sombria do “Lado B” do filme ganha certa leveza, com elementos de humor
negro, em razão do comportamento inocente de Kiki, que acredita que o corpo Elisabeth seria a Branca
de Neve em sono pesado. A menina chega até brincar com o sangue de Kiki pensando que seria tinta
vermelha. Ao mesmo tempo, Carmita, apresentando comportamento infantil corta a linha de telefone e
esconde todas as chaves da casa na tentativa de impedir que Durval vá até a polícia.
O rompimento com a relação de domínio de Carmita sobre Durval e Kiki ocorre quando
Kiki se nega a dar um beijo em Carmita em troca de uma estória. Nesse momento, Carmita exclama que a
menina seria uma ingrata pois havia usado todo seu dinheiro comprando presentes para mantê-la na casa.
Diante da vulnerabilidade psicológica da mãe, Durval consegue se libertar da “prisão” ao abrir a janela
de sua casa e pedir a uma vizinha que chame a polícia.
O final do filme é emblemático ao mostrar o processo de demolição do imóvel, onde a
casa e a loja de LPs estavam situados. Verifica-se o término do círculo de dominação, isolamento e
retorno ao passado vividos por Durval e sua mãe, dando lugar ao futuro.
O longa-metragem mostra o fenômeno do alheamento em relação aos outros vivido pelas
personagens principais, com foco na figura de Carmita. Nesse sentido, Jurandir Freire Costa explica:
“ Ao contrário do ódio, da rivalidade explícita ou do temor diante do
adversário que ameaça privar-nos do que julgamos fundamento para nossas
vidas, o alheamento, no qual a hostilidade ou o vivido persecutório são
substituídos pela desqualificação do sujeito como ser moral. (...) No estado
de alheamento, o agente da violência não tem consciência de seus atos. Se o
possível objeto da violência nada tem a oferecer-lhe, então não conta como
pessoa humana e pouco importa o que venha a sofrer.”[257]
Com isso, ao viver na comodidade do isolamento em relação ao mundo exterior, todos os
elementos que não estejam relacionados à casa de Durval e Carmita são considerados estranhos e sem
qualquer tipo de aceitação pelas personagens. Seriam, portanto, elementos externos, os CDs, as
personagens de Elisabeth e Célia e a própria ordem jurídica que exigia a devolução de Kiki à família.
A morte de Elisabeth é resultado desse comportamento, uma vez que Carmita, tratando-a com
indiferença, é surpreendida pela ameaça, manifestando-se a banalidade do mal, já que Elisabeth não
representaria qualquer importância ao mundo isolado de Carmita e sua família. Jurandir Freire Costa
explica que o alheamento é considerado uma das formas pela qual se manifesta a banalidade do mal,
conforme ensinado por Hannah Arendt. [258]
Mara Regina Oliveira explica que o referido conceito é resultado do respeito à regra e à
eficiência de forma mais importante do que a reflexão humana crítica. Cria-se, portanto, um modelo de
legitimidade legal-racional, independentemente, da avaliação crítica de seu conteúdo, passando a ser o
valor moral mais importante. [259]
A relação de domínio entre Carmita e Durval é justamente baseada na imposição de um
valor moral que exige o respeito aos limites físicos da casa e da loja, retorno ao passado, manutenção da
confirmação do poder emanado pela mãe, além da vedação de ingresso de qualquer elemento externo
àquele núcleo. Esse modelo de legitimidade justifica a morte de Elisabeth e o descumprimento da ordem
jurídica de devolução de Kiki.
Além disso, cabe mencionar que o comportamento típico do alheamento é resultado da
prioridade que assuntos da vida privada recebem em relação ao contexto sócio-econômico de uma
sociedade em crise que precisa de atenção e encontra-se carente de solidariedade e convívio real entre
as pessoas. [260] Assim, mesmo a família retratada no filme em seu isolamento, é vítima da violência da
qual estaria protegida atrás de suas paredes.
A personagem de Durval encontra-se dominado nesse contexto, não possuindo qualquer noção
consciente de moralidade que estivesse fora daquele limite físico, até o momento que constata a
debilidade da mãe após a morte de Elisabeth. Essa dominação mostrada no “Lado A” do longa é
justificada pelo conforto e comodidade proporcionado pela situação, apesar de sua idade adulta como
forma de confirmação do poder, submetendo-se à autoridade e à moralidade dominante de sua mãe de
forma indiscutível e natural.[261]
Ocorre a aceitação da ordem como dado indiscutível e natural que sempre existiu, sem
questionamentos por parte do receptor, sendo tratado como “presa” pelo ordenador. Ademais,
caracteriza-se a relação de mãe e filho como sendo “aproximação voluntária”, com base em um
relacionamento desigual e de dependência econômica.[262]
Assim que toma consciência, Durval subverte a autoridade da mãe e desconfirma seu
poder ao acionar a polícia. A cena final mostra justamente a conquista da liberdade em relação àquele
círculo do passado, completando processo de transformação e libertação iniciado com o ingresso de Kiki
em sua vida. Por mais curioso que seja, Durval encontra sua redenção interior no momento em que se
sente capaz de cumprir com a ordem jurídica formal.
Constata-se que a presença da menina foi primeiro grande rompimento com a rotina,
proporcionando o desencadeamento de uma série de acontecimentos que tornaram transparente para
Durval a realidade ao qual estava submetido em razão da enfermidade psicológica de sua mãe.
A negação à ordem formal em razão do estabelecimento involuntário de uma ordem própria com
delimitação física e das pessoas que são consideradas o alvo, é característica das ações tomadas por
Carmita na sequência do “Lado B”. O tempo inteiro, a personagem esquiva-se do dever de devolver Kiki
à família em razão da tentativa de manter a criança como alvo da ordem estabelecida por ela. Cumpre
observar a explicação de Canetti para o fenômeno a fim de que possamos entender os motivos para tal
comportamento:
“Sua defesa contra novas ordens torna-se, então, uma questão de vida ou
morte. Ele tenta não ouvi-las, a fim de que não tenha que acatá-las. Se tem
de ouvi-las, não as entende. Se obrigado a entendê-las, esquiva-se delas da
maneira mais surpreendente, fazendo o contrário do que lhe mandam. Se lhe
dizem para dar um passo adiante, ele recua; se o mandam recuar, adianta-se.
Não se pode afirmar que dessa forma ele fique livre da ordem. Trata-se de
reação desajeitada, impotente – poder-se-ia dizer - , pois à sua maneira,
também ela é determinada pelo conteúdo da ordem. Tal reação é o que, na
psiquiatria, se denomina negativismo, algo que desempenha um papel
importante nos esquizofrênicos.” [263]

Com isso, conseguimos identificar o que motiva as ações de Carmita, ainda mais quando
Canetti esclarece que o que mais chama atenção nos esquizofrênicos é justamente a ausência de todo e
qualquer contato com outras pessoas e teimosia. O autor ainda explica:
“(...) em outros momentos de sua doença, esses mesmos homens subitamente
comportam-se de maneira inversa. Tornam-se, então, fantasticamente
influenciáveis. Fazem o que vêem outros fazer ou que se exige que façam – e
com uma rapidez e perfeição que é como se aquele que o exigiu estivesse
dentro deles e o fizesse por eles. São acessos de servilismo que, de súbito, os
assolam. ‘Escravidão sugestionada’ denominou-o um deles. Transformam-se
de estátuas em escravos ansiosos por servir, e fazem o que quer que se
queira de um modo exagerado que, com frequência, parece ridículo” [264]

Portanto, a presença de Kiki faz com que Carmita mude seu comportamento
repentinamente e passe a servir a menina, obedecendo todas as suas vontades. Ocorre também se verifica
que Carmita se confunde com Kiki, principalmente, ao final do filme ao implorar que seu filho lhe dê
brigadeiros.
O que talvez possa ter contribuído para que Durval não tenha percebido antes a relação
de domínio estabelecida pela mãe em razão da enfermidade, é justamente o fato de que tais
comportamentos mencionados por Canetti também são típicos de pessoas ‘normais, só que não tão
exagerados. Assim como as ordens emanadas pela mãe eram aceitas, seu comportamento possuía o
mesmo entendimento no contexto de submissão considerado cômodo para Durval.
A complexidade envolvida nos relacionamentos descritos em “Durval Discos” é similar
ao filme “Abril Despedaçado” de Walter Salles, embora se tratem de estórias desenvolvidas em
contextos distintos, os protagonistas de ambos os longas são descritos como totalmente sujeitos ao poder
familiar e ao destino já definido por seus ascendentes conforme suas vontades e de forma contrária à
ordem jurídica formal.
O personagem de Rodrigo Santoro, Tonho, encontra-se sujeito ao modelo vertical de justiça
estabelecido pelas famílias no sertão no início do século XIX, não sendo capaz de reconhecer a
irracionalidade do círculo vicioso ao qual estava obrigado a dar continuidade com fundamento na
vingança. De acordo com o código de justiça que rege as relações entre as famílias Breves e Ferreira,
quando houver uma tomada de terras, seguida pela morte de um dos homens da família, cabe ao filho
mais velho da família em luto, cobrar na mesma medida e proporção o sangue derramado. [265]
Tonho depara-se com elemento contestador na figura de seu irmão mais novo, ainda uma
criança, chamado de Menino que o chama a atenção para brutalidade daquele sistema de justiça, ainda
mais quando é chegada a hora de Tonho honrar a morte de seu irmão, vítima da outra família e termina
realizando sua “obrigação“.
Assim como Carmita e Durval, a família de Tonho rejeita qualquer elemento externo à
realidade em que vivem e evitam que seus filhos tenham qualquer contato com a cidade grande e
qualquer coisa que seja capaz de proporcionar o discernimento ou sentimento de questionamento sobre
aquela situação. Assim como Elisabeth e os CDs, a família Ferreira, os artistas do circo e o livro que o
Menino ganha de presente são afastados e julgados pelos pais como não merecedores de respeito e
dignidade, uma vez que se pretende que os filhos sejam capazes de manter o código de justiça e o
sustento da família, sem necessidade de saber ler e escrever. Verifica-se, portanto, a mesma situação de
alheamento que resulta na banalidade do mal com relação ao outro.
A função transformadora de uma criança é caracterizada em ambos os filmes, nas figuras de Kiki
e do Menino. Em “Durval Discos”, a necessidade de que a menina volte para os braços de sua mãe,
motiva Durval a realizar a desconfirmação do poder de sua mãe. Já em “Abril Despedaçado“, o Menino
renuncia sua própria vida e toma o lugar de Tonho no momento de sua morte, o que motiva seu irmão
mais velho libertar-se do destino que lhe era reservado e dos padrões de opressão ao qual estava
acorrentado.
Assim como Durval, Tonho ignora a ordem estabelecida por sua família, encontrando sua
redenção ao por fim ao ciclo marcado pelo código de justiça estabelecido por uma ordem paralela à
ordem jurídica formal. Os momentos finais de ambos os filmes, por mais que sejam cenários diferentes,
possuem significado similar por apresentarem a redenção de seus personagens principais ao optarem
pelo cumprimento de valores moralmente aceitos de forma geral e não de um determinado núcleo de
pessoas que tenham instituído sua própria ordem baseado em uma relação de poder informalmente
mantida.
Tonho e Durval deixam, aliviados, sua residência e família abrindo-se para o futuro e
para a sociedade, abandonando o alheamento e comodismo ao qual estavam sujeitos em razão do domínio
exercido por suas famílias.
A análise da complexidade dos relacionamentos entre círculos restritos também foi realizada em
outros trabalhos de Anna Muylarte, mostrando a reação individual de cada um de seus personagens às
reviravoltas significantes que se deparam durante o enredo. Essa temática aparece, de forma mais sutil,
quando comparada ao seu primeiro filme, em “Que Horas Ela Volta?”, lançado em 2015, embora repita a
sensação de redenção e abertura para o futuro de seus protagonistas como mostrado em “Durval Discos”.
Seriam exemplos de redenção de quem quer incentivar o público no que se refere à necessidade de
rompimento de barreiras internas para que decisões exclusivamente individuais sejam tomadas
objetivando também ao benefício da coletividade, promovendo a integração como fato transformador de
libertação de suas próprias vidas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer O Poder Soberano E A Vida Nua. Tradução Henrique Burigo. 1a
Reimpressão, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
A. MORAES e D. MENEGAZZI . A Mensagem Artística como Crítica Social Presente no filme
“Durval Discos“ . Biblioteca Online de Ciência da Comunicação. disponível on line em
<http://www.bocc.ubi.pt/pag/menegazzi-douglas-mensagem-artistica.pdf> Acesso em 20 Nov 2015.
CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

COSTA, Jurandir Freire. Ética democrática e seus inimigos - o lado privado da violência pública, In. Ética. Rio de Janeiro: Garamond, 1998.
MUYLAERTE, Anna. Durval Discos, 2002. Disponível no site Youtube em
https://www.youtube.com/watch?v=vJ5Ka0c1mIY
OLIVEIRA, Mara Regina de. O Desafio à Autoridade da Lei: A relação existente entre poder,
obediência e subversão, 2a ed., São Paulo: Edição do Autor, 2015 . Edição Kindle.
OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Dialógo. São Paulo: Edição do Autor,
2015 . Edição Kindle.
TRABALHAR CANSA: A LUTA HUMANA PELA SUPERAÇÃO DO MEDO
Olga Regiane Pilegis[*]
Eu vou botar teu nome na macumba
Vou procurar uma feiticeira,
Fazer uma quizumba pra te derrubar,
Você me jogou um feitiço, quase que eu morri
Só eu sei o que eu sofri...
Que Deus me perdoe, mas vou me vingar
Eu vou botar teu retrato num prato com pimenta
Quero ver se você "güenta"
A mandinga que eu vou te jogar
Raspa de chifre de bode
Pedaço de rabo de jumenta
Tu vais botar fogo pela venta
E comigo não vai mais brincar
Asa de morcego
Corcova de camelo pra te derrubar
Uma cabeça de burro
Pra quebrar o encanto do teu patuá
Olha, tu podes ser forte
Mas tens que ter sorte
Pra te salvar
(Canção de Zeca Pagodinho: “Vou botar
seu nome na macumba”).

filme Trabalhar Cansa (2011) foi dirigido por Juliana Rojas e Marco Dutra e retrata as agruras
O vividas por uma família formada por um apaixonado casal, Helena (Helena Albergaria) e Otávio
(Marat Descartes), que contam com o auxílio da jovem Paula, empregada doméstica (Naloana Lima).
O drama se desenvolve tendo como enredo as dificuldades relacionadas ao mundo do trabalho: Helena
deseja se firmar como microempreendedora comercial; Otávio precisa desesperadamente conquistar um
novo emprego para recuperar sua autoestima, enquanto Paula almeja ingressar na formalidade, pois
trabalha sem registro na carteira de trabalho. Cada qual luta, a seu modo, para superar o temor de
circunstâncias reais e imaginárias, na busca de um lugar ao sol. A palavra medo é a que define, pois, essa
obra.
A filmagem inicia com Helena visitando um imóvel que parecia perfeito para dar início ao seu
sonho de empreendedora. Retorna ao lar exultante para dar as boas novas, mas encontra Otávio
cabisbaixo, decepcionado por ter sido despedido do emprego, substituído por funcionário bem mais
jovem. A indignação dela explode: “sujeito trabalha 10 anos, depois é cuspido como um... sei lá o
quê...”. A reação é justificada: para propiciar lucro máximo ao capitalista, o sistema precisa moer suas
vítimas para depois reaproveitar os seus pedaços em novas reconstruções.
Helena pensa inicialmente em desistir de seus projetos, mas acaba seguindo, corajosamente
teimosa: “vou fazer isso dar certo”. Logo percebe que os obstáculos serão muitos: o imóvel em que
funcionará seu comércio tem pintura desgastada, indica abandono: prateleiras, balcões e outros objetos
foram ali deixados pelos antigos inquilinos – indicando a saída inopinada. O local abriga algum segredo
macabro e o filme explora esse mistério por meio de um jogo de sombras e tomadas propositadamente
escuras ou totalmente apagadas, nas quais só restam o diálogo do personagem e a curiosidade do
espectador sobre essa descontinuidade. Paira permanentemente um clima de suspense, tanto nas filmagens
feitas no interior do estabelecimento, como nas da residência da família.
Durante a abertura e primeira limpeza do imóvel alugado, baratas saem de todos os vãos: são
contados 31 insetos. Os personagens têm suas falas constantemente entrecortadas pela percepção de
“cheiros fortes”, odores desagradáveis que lembram esgoto ou fumaça; a expressão dos interlocutores é
sempre de asco e medo. Há tomadas em close propositadamente repugnantes: líquidos viscosos que
escoam dos ladrilhos e paredes; larvas pululam de um objeto putrefato, retirado de um ralo em filmagem
lenta e próxima o suficiente para impressionar estômagos mais sensíveis. Cães aparecem do nada, latem
furiosamente para Helena e soltam uivos agourentos à noite. Mercadorias somem do estoque. Um Papai
Noel dançante e com rosto amedrontador dança de madrugada, sem qualquer interferência humana. O
casal encontra objetos estranhíssimos no depósito: correntes com elos enormes; roupas usadas que teriam
pertencido aos anteriores inquilinos; um enforcador de ferro gigante, colocado misteriosamente atrás de
um armário. O enredo remete a “coisas de outro mundo”, a ameaças inominadas e indomáveis, que vão
definindo, com mão pesada, os destinos da família. O medo do imponderável se instala na mente de
todos.
As críticas à saturação do mercado de trabalho aparecem por todo o filme. Quando Paula vai
conversar pela primeira vez com Helena e questiona sobre o registro em CTPS, esta responde: “o
primeiro mês é de experiência, pago um pouco menos do que o mínimo. A partir do 2º, se tudo der
certo, o mínimo mais a condução. Mas não consigo registrar, é muito caro...”. Essa negativa da
formalização do vínculo é o que aparenta calar fundo na alma de Paula: só quando confrontada com o fato
de ser pessoa “inexperiente para o cargo”, aceita, desolada, as condições ilegalmente impostas pela
patroa: “então pra mim tá bom, D.Helena”. O medo da fome era mais forte do que o seu desejo de
encontrar um emprego formal.
Os medos de Otávio são muitos: sente-se vítima de discriminação etária. Teme perder a condição
de “homem da casa”, provedor do lar; receia não encontrar nova ocupação nunca mais. Sente-se
constrangido durante entrevista conduzida por mulher arrogante, que o submete, junto com dois
candidatos bem mais novos, a uma infantil dinâmica de grupo, cada qual compelido a dizer
características profissionais que supunha ver nos demais. Otávio é citado como portador de “bastante
experiência e paciência” – num tom debochado que deixa entrever uma crítica pessoal; não suporta a
provocação vinda de alguém tão jovem, ainda mais se presenciada por uma mulher, e deixa a sala antes
de terminar a sessão. Dias depois, ao ser fotografado para o book de candidatos, escuta a sugestão: “se
quiser tirar uma outra, sem gravata, fica com o ar mais jovem”. Quando começa ouvir conselhos para
fazer “sessão de networking, com plano de psicólogo”, ou para aderir a convênio-desemprego, com a
explicação de que “tem gente que fica um ano, um ano e meio sem conseguir emprego”, entra em
verdadeiro pânico.
Os medos de Helena não são menores: não bastassem os incidentes sobrenaturais, flagra
funcionário colocando mercadorias indevidamente em sua sacola. Interpelado, ele desafia a autoridade
da empregadora e diz, entre irônico e cínico, que jamais conseguiria “ficar rico vendendo pão velho”.
Helena explode diante dessa desconfirmação de sua ordem: “Tá louco de falar assim comigo? Me
respeita!!!”. E, num ímpeto, ela parte para a coação explícita e despede o funcionário. Depois, passa a
agir com desconfiança em relação a todos e permanece em contínuo estado de tensão. Começa a implicar
com os horários dos empregados e faz revista ostensiva em suas bolsas. O embrutecimento da empresária
é tamanho que leva Otávio a aconselhar: “você deveria pegar mais leve, senão vão fazer macumba para
você”.
Cabe aqui uma referência à teoria de Elias Canetti, em seu livro “Massa e Poder”, segundo a qual,
as relações de poder que os homens estabelecem entre si são muito semelhantes às do meio natural em
que vivem os animais, pois no momento em que pretendem ser superiores, conscientemente, não hesitam
em rebaixar seus semelhantes, frustrando-lhes os direitos e a capacidade de resistência, a fim de torná-
los suas “presas”. Essas relações de poder não são explícitas, elas podem permanecer ocultas aos olhos
da sociedade, é o poder desenvolvido às escondidas e relacionado com a ideia de ocultação
(OLIVEIRA, 2015, pos.387/388 de 6979). Bastante simbólico desse “desejo de ocultação” é o fato de a
conversa entre Helena e o funcionário ter sido realizada longe de todos, no setor de estoque, em tomada
cênica propositadamente sombria. Quando quis legitimar o seu (des)mando, Helena chama outra
funcionária, mas dela escuta apenas a confirmação da honestidade do trabalhador – o que era
desinteressante naquele momento. Por isso, foi a “testemunha” prontamente despachada, tendo então
seguimento, de qualquer forma, o premeditado processo de abate da presa/trabalhador, pois essa era a
ação necessária à continuidade do jogo de máscaras.
O filme prossegue com o mesmo cenário da falta de sorte: emprego que não aparece, negócio que
não dá certo: a crise econômica assola a família e mina as bases de seus laços de pertencimento. Paula
procura ostensivamente um novo emprego. O casal começa a brigar devido à falta de dinheiro. Pensam
em corte de despesas, mas não chegam a consenso. Otávio, orgulhoso e machista, rejeita de plano a ideia
de pedir empréstimo aos pais de Helena, ainda que a mensalidade da escola já estivesse atrasada.
O clima familiar fica péssimo e o apogeu imagético do temor da miséria é representado na cena
em que Paula vai preparar omelete e, ao quebrar o ovo, verifica que há algo errado: a câmera se
aproxima da gema amarela, contendo em si um embrião muito vermelho, já bem formado, e alerta a
patroa: “D. Paula, era o último ovo”. Irritadíssima e com o semblante de quem já não tem mais forças
para lutar, Paula retira o “quase-pinto” daquela gema e começa a bater neuroticamente o que restou do
ovo derradeiro, despachando Paula para outro serviço: “vá cuidar do doce”. Na mesma hora, a filha do
casal entra, dizendo: “mamãe, a televisão desligou sozinha”. Uma Helena já irritada e combalida
descarrega todo o seu ódio no marido, que deixara de pagar a conta mensal da energia elétrica. Quando
ele pondera: “você não precisa gritar”, ela retruca: “por quê? Tá com medo que sua filha pense que
você é um bosta?..”. Apercebendo-se do exagero, depois pede desculpas, diz que falou sem pensar. Mas
ele sai, chateado e visivelmente humilhado, não quer conversa.
Na sequência, a cena da comemoração familiar natalina, passada no escuro devido ao corte de luz.
A cunhada aproveita o clima tenebroso para fazer cena, relatando com detalhes sórdidos a morte de um
morcego a pauladas, fala entrecortada por guinchos propositadamente horripilantes e desafinados da
narradora. O nariz de Helena começa a subitamente sangrar e a mãe desconversa: “é o tempo seco, a
essa época já devia estar chovendo”. Mas a tensão familiar é claríssima e o escoamento do sangue nasal
traz a metáfora de uma mulher forte, mas que já está sangrando de dor em razão de tanta pressão, a ponto
mesmo de explodir. Conclui, desanimada: “acho que esse é o Natal mais tosco da minha vida” – ao que
escuta a resposta irônica de um marido magoadíssimo: “quem mandou você casar com um bosta?...”.
Helena então reitera seu pedido de desculpas a Otávio e dele recebe uma jóia. Sem uma gota de
romantismo, indaga sobre como teria conseguido comprá-la, ao que ele justifica: “comprei em 20
prestações”. E vem a resposta cruel e irônica: “então vou vender para pagar a conta de luz”.
A beleza do filme está em deixar explícita toda a contradição humana da personagem principal:
ela não é só a vilã que maltrata e persegue seus funcionários, ela é também a mulher forte que luta pela
sobrevivência e coesão de sua família - ainda que, paradoxalmente, precise se afastar emocionalmente de
seus componentes, a fim de assegurar esse objetivo. A valente Helena insiste, até às últimas, em fazer o
negócio prosperar. Abre mão do convívio familiar, renunciando a uma viagem para a praia a fim de abrir
o mercadinho. Quando Otávio reclama desse distanciamento, ela retruca, grosseiramente: “alguém tem
que trabalhar”. A família se divide, a filha demonstra clara reprovação e desânimo. E chove
torrencialmente durante aquele Carnaval...
Na linguagem metafórica, chuva é renovação e sorte. E, da parede do imóvel problemático,
começa a brotar água aos jorros. O pedreiro faz o diagnóstico: “tem que abrir pra ver o que é, mas só
posso fazer isso depois do Carnaval”. Sem outra saída, sozinha, combalida e revoltada, a franzina
Helena empunha uma marreta enorme, que mal consegue conter em suas mãos, e começa a demolir
furiosamente o que pensa conter a culpa de sua infelicidade e insucesso.
A linguagem imagética é clara: para a heroína/vilã, no fundo do poço, só restam duas
possibilidades: fuga ou ataque, e ela opta pela última. Golpeia violentamente o local do vazamento; são
marretadas dadas com ódio, a força empregada é muito maior do que exigiria a situação. A cada pedaço
de reboco que cai, aumenta a curiosidade sobre o que existiria, afinal, atrás daquela maldita parede. Essa
ação catártica quase lhe custa a vida, pois a estrutura acaba por ruir, atingindo Helena, que fica
machucada e vai para casa, mas leva consigo uma pata de animal, em asquerosa decomposição,
arrancada dos escombros. Desaba exausta na cama, mas guarda consigo, por entre os lençóis, aquele
objeto nojento, tal qual um troféu para sua simbólica vitória.
Como se vê, quando acuada pelo medo extremo, Helena foi compelida a enfrentar seus fantasmas.
Esse enfrentamento costuma ter um poder simbólico libertador, permitindo uma ruptura com antigos
paradigmas psíquicos. A linguagem do filme, aqui, é extremamente ritualística: o pensamento libertador
é dotado de conteúdo “mágico”.
Roberto DaMata trata desses pensamentos místicos, ou mágicos, procurando explicar como
elementos triviais do mundo social podem ser deslocados e transformados em símbolos – que, em certos
contextos, permitem engendrar um momento especial ou “extraordinário”, através de um discurso
simbólico. Teoriza que os ritos, assim como os mitos, conseguem colocar em close up as coisas do
mundo social. Expõe o autor uma analogia com o matrimônio e seus rituais, dizendo que “um dedo é
apenas um dedo integrado a uma mão e essa mão a um braço, e esse braço a um corpo; mas, no
momento em que se coloca no dedo um anel que marcará o status matrimonial de uma pessoa, esse
dedo muda de posição” – e ocorre, então, uma “transposição de elementos de um domínio para o
outro”: o dedo, antes simples parte de um universo biológico e individual, passa a ostentar o signo de
todo um conjunto de relações sociais (DaMatta, 2015, pos.1005/1008 de 5146).
Otávio retorna de viagem e encontra Helena ainda acamada, assustadíssima. Ela apanha seu
repugnante troféu e o confia ao marido, incrédulo, dizendo: “estava na parede”. Ele retorna então ao
imóvel, para terminar o que a valente esposa começara. Marretadas adiante, encontra o esqueleto de um
grande animal - que jamais teria ficado preso naquela parede por um simples acaso.
Essa cena da exumação animalesca tem o ápice na saída do crânio do bicho: é assustadora e
sonorizada por uivos ensandecidos de uma matilha desesperada. A cena é subitamente cortada para um
total vazio, reina a absoluta escuridão. Em novo cenário, ainda escuro, mas apresentando as luzes da
cidade bem ao fundo, o carro do casal chega a um aterro sanitário; transportam os pedaços de cadáver em
sacos pretos; sobressai na tela um saco branco: é de sal grosso, jogado às mancheias sobre o bicho.
Álcool e fósforo produzem a combinação que a tudo incendeia. A tensão agora salta da tela, reinam o
medo e o sobrenatural. Cai o silêncio, o casal permanece assistindo o crescimento das labaredas que
consomem o cadáver e dominam toda a tela. Otávio finalmente se reaproxima de Helena, solidário; quase
se abraçam. A garoa paulistana cai, insistente.
O chamado “feitiço da caveira de burro” é uma construção mítica que faz parte do imaginário
coletivo brasileiro. Na sabedoria popular, refere-se a “trabalho feito”, a chamada “mandinga”, que atrai
como resultado a inaptidão do local em que enterrado o objeto para o desenvolvimento de negócios,
plantações ou fixação de residência. Quando o povo fala: “ali tem caveira de burro”, quer dizer que
nada dá certo no local: são negócios que sucessivamente fracassam, famílias que se alternam em dado
imóvel, culturas agrícolas que não são bem sucedidas, colheitas seguidas.
Depois desse ritual macabro, o cenário do novo alvorecer volta às cores amenas, com muita luz:
recorte das ruas de São Paulo, casas e praças, pessoas apressadas indo para o trabalho, tudo vai voltando
à normalidade. A vida retoma seu rumo. A parede é recomposta, em meio aos protestos do proprietário:
“porcaria, pra que precisava quebrar tanto?”. Ele demonstra não compreender que grandes males
exigem grandes remédios... Mas a heroína não se abala com as provocações do senhorio. Aparece
radiante: bela, maquiada e esperançosa; o medo já passou. Firme, diz: “agora só preciso do meu
reembolso”. Volta a contemplar, embevecida, a parede finalmente livre de mistérios, clara como a luz
daquele novo dia.
Recorremos novamente às lições da sociologia para analisar o aspecto mítico ou religioso dos
rituais: combinações ritualísticas não engendram transformações essenciais no mundo e nas próprias
relações sociais (isto é, não há mudanças fenomênicas do universo em razão delas). Todavia, os rituais
costumam manipular os elementos e relações daquele mesmo mundo, servindo, então, como uma técnica
para a mudança de posição da pessoa moral - do profano para o sagrado ou do sagrado ao profano
(DAMATTA, 2015, pos. 1098).
O mesmo autor explana que ao fazermos oferendas, despachos ou súplicas, estamos utilizando uma
linguagem própria, uma espécie de código de comunicação com o além - que é bastante comum ao
brasileiro, pois, do mesmo modo que temos pais, padrinhos e patrões, temos também entidades
sobrenaturais que nos protegem. Com isso, esperamos produzir milagres, isto é, uma resposta direta dos
deuses a uma súplica desesperada dos homens, na forma de um atendimento pessoal, corporificado e
intransferível, num ciclo de troca que envolve pessoas e entidades sobrenaturais (DAMATTA, 2015,
pos.602 e 613).
É exatamente essa mudança “milagrosa” de posição que podemos notar quando, após a
incineração daquilo que aparentava ser a temida caveira de burro[266], precedida de muito sal grosso e
atividade contemplativa, o casal finalmente se desvia da sina supostamente agourenta e, livres do terror
autoimposto, passam a ver horizontes mais límpidos. O espectador vê uma nova Helena, semblante
remoçado pela perspectiva de um futuro melhor e ressensibilizada para a potencial beleza da vida.
Corte para uma praça de alimentação em shopping paulistano. Ali, Paula também encontrou seu
“lugar ao sol”: recolhe bandejas, uniformizada e feliz, sendo interpelada por um rapaz, de quem recebe o
cumprimento: “tome sua carteira; primeiro registro, hein? agora você existe!!!”. A empregada-cidadã
contempla a chancela estatal à sua nova situação jurídica: a tela toda é tomada pelo close da folha de
abertura da CTPS, contendo a assinatura da titular e o número do documento com o carimbo oficial. Sua
vitória pessoal foi superar o estigma da informalidade profissional e sente-se agora livre para novas
conquistas.
Mas é uma liberdade relativa, vale lembrar: o Direito, ao regular a condição sócio-jurídica do
trabalhador, “deve permanecer como um símbolo ideal, que mascara as suas contradições, o seu
exercício de controle e as relações de poder”; ele age basicamente como um “grande depósito de
símbolos sociais emocionalmente importantes”, assegurando a perpetuação da máscara ideal,
fortalecendo o status quo presente e garantindo, de forma pacífica, a relação de mando/obediência
jurídico-política. O Estado deve, pois ser “hábil como o gato e manter sob seu poder (controle) todos
os passos dos indivíduos que a ele estão submetidos. No entanto, essa vigilância deve ser sutil,
fazendo com que todos acreditem que exercem de fato a sua liberdade” (OLIVEIRA, 2015, pos.503/510
de 6979). Essa foi, pois, a “liberdade-vigiada” alcançada pela sonhadora trabalhadora Paula.
A última cena do filme é impactante: mostra Otávio em mais uma dinâmica motivacional; ele veste
terno e há dezenas de outros, na mesma situação. O orador traz a estatística: para cada vaga de emprego,
são 100 candidatos concorrendo – e acrescenta: “é quase o que a gente tem aqui na sala”. Deixa
entrever que daquela matilha, só um poderá sair vencedor. O mesmo líder proclama, em tom professoral,
que para se destacar no mercado de trabalho, “o homem moderno precisa retomar contato com seu lado
primitivo”, isto é, deve canalizar sua energia animal para a sua profissão e tirar suas máscaras sociais. E
para completar o esquema ritualístico ensaiado, pede que todos tirem seus paletós e gravatas e “entrem
em contato com seu lado macaco”.
A gritaria é geral - exceto para Otávio, que num primeiro momento permanece boquiaberto, não
acreditando naquele grotesco espetáculo. Após muito relutar, ele consegue enfim se enturmar no bando,
soltando o seu “grito da selva”. A cela é tomada integralmente pelo close do homem/animal Otávio, que
grunhe e vocifera, tendo por sons de fundo o resto do bando em igual atitude. São homens uniformizados,
em gestos, voz e vestimentas. Pensam-se livres, mas em verdade estão sendo manipulados pelo
pseudoguru, entorpecidos pelo transe coletivo. O filme chega, aqui, ao que Hannah Arendt sombriamente
antecipou:
O último estágio da sociedade de trabalhadores, o qual é a sociedade de
empregados, requer de seus membros um funcionamento puramente
automático, como se a vida individual realmente houvesse sido submersa no
processo vital global da espécie e a única decisão ativa exigida do indivíduo
fosse deixar-se levar, por assim dizer, a abandonar a sua individualidade, as
dores e penas de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer a um tipo
funcional, entorpecido e tranquilizado de comportamento. [...] É
perfeitamente concebível que a era moderna – que teve início com um surto
tão promissor e tão sem precedentes de atividade humana – venha a
terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais
conheceu. (ARENDT, 2015, p.400).
O filme não diz, ao fim, se Otávio será o vitorioso da matilha. Mas a considerar o ritual
pirotécnico de “livramento” realizado na noite anterior, deixa no ar pelo menos a esperança de que, uma
vez exumada e incinerada a “caveira de burro”, a paz voltaria a reinar no lar. E o macho-alfa, livre de
seus entraves psíquicos, talvez consiga propiciar à parceira-heroína o aconchego e segurança que ela
paradoxalmente almeja. Os caminhos estavam novamente abertos para aquela família...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. 12.ed.rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
CANETTI, Elias. Massa e Poder. Brasília: Universidade de Brasília, 1983.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. São
Paulo: Rocco Digital - E-book Kindle, 2015.
DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? São Paulo: Rocco Digital - E-book Kindle, 2015.

ROJAS, Juliana. Trabalhar Cansa, 2011. Disponível no site Youtube em


https://www.youtube.com/watch?v=26WIqiUFmmk
OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. São Paulo: Edição do Autor -
E-book Kindle, 2015. Disponível em: <www.amazon.com.br>. Acesso em: 20 nov. 2015.
OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder, obediência e
subversão. 2. ed. São Paulo: Edição do Autor, 2015. Disponível em: <www.amazon.com.br>. Acesso
em: 20 nov. 2015.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
JUSTIÇA: VIOLÊNCIA E PODER NO ÂMBITO JUDICIÁRIO
Giovanna Migliori Semeraro[*]

INTRODUÇÃO

J ustiça (2004), de Maria Augusta Ramos, gira em torno do sistema criminal do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro, mas poderia ser qualquer outro. O ritual é o mesmo, as becas são as mesmas, o perfil
de réu é o mesmo. Analisar o Tribunal do Rio de Janeiro nos fornece um certo senso de universalidade,
dentro do espectro judicial brasileiro quanto ao tratamento da delinquência.
A aproximação que o título do documentário sugere é entre o Poder Judiciário e uma acepção mais
abstrata de justiça. Aproximando-os, contudo, o documentário coloca uma reflexão crítica a respeito da
justiça efetuada pelo Poder Judiciário– e se este merece o título de ‘Justiça’.
O pressuposto deste artigo são as reflexões de Tércio Sampaio Ferraz Jr. e Mara Regina de
Oliveira a respeito do fenômeno do poder. O direito, sob esta perspectiva, é um instrumento de controle
social, utilizado pelo Estado a fim de decidir conflitos sociais e absorver inseguranças.
A fim de exercer sua função, o direito deve permanecer como uma espécie de ‘símbolo ideal’ de
justiça, que mascara seu exercício direto de poder e violência[267]. Normalmente, ele funciona para
produzir a aceitação moral do status quo, de modo a garantir a relação de mando/obediência de forma
pacífica.
Deve ser hábil na manutenção da ‘máscara ideal’ de justiça para manter sob seu poder os
indivíduos, em uma espécie de vigilância discreta, já que o poder depende da colaboração do sujeito
obediente. Além disso, para sustentar dogmaticamente a ideia do ‘Estado-Justiça’, é importante que o
poder governamental se exerça dentro dos limites estabelecidos pela própria ordem jurídica, ou sofrerá
em sua legitimidade.
Com estes pressupostos em mente, passaremos à análise do documentário representativo da
Justiça brasileira em sua face mais pulsante: a do direito criminal. Através do cinema, será possível
apontar aspectos importantes que dificilmente seriam identificados tão claramente em outras formas de
transmissão de conceitos, como a escrita. Nas palavras da defensora pública Maria Ignez, uma das
personagens, “apesar de estar acostumada com o dia-a-dia da justiça criminal, eu fiquei
impactada”[268] ao assistir ao filme. É que a tela de cinema, nesse caso, funciona como uma lente de
aumento da justiça criminal e da sociedade em geral, e, com isso, poderemos analisá-las mais
minuciosamente.

DOCUMENTÁRIO E REALIDADE

Num primeiro momento, pela década de 1920, o cinema documental se opôs diametralmente ao
cinema-ficção como representação direta da realidade, uma ferramenta de revelação da verdade.
Posteriormente, esta distância entre os gêneros foi se relativizando, de modo que temos, frequentemente,
uma sensação de indiscernibilidade entre o documental e o ficcional.
A discussão ontológica sobre o cinema nos anos 1950 cindiu, de um lado, o cinema de ficção e, de
outro, o cinema de realidade. À época, ambos partilhavam uma relação com um ideal de verdade
estabelecido: a verdade era exterior à criação cinematográfica, um dado fático externo que se expunha
como objeto de revelação pelo cinema[269]. O propósito do cinema era dar visibilidade a uma verdade
vista não como sua criação, e o documentário era associado à procura de elementos que supostamente
sustentassem uma captação verídica e direta da realidade.
De toda forma, o documentário é uma asserção do mundo, uma narrativa do diretor recebida pelo
expectador. Ao modo particular do cineasta representar o mundo através da organização de sons e
imagens captados, Bill Nichols se refere como ‘voz’[270]: o arsenal de recursos proporcionados pelo
audiovisual no registro e na expressão de um pensamento a respeito do real.
Maria Augusta Ramos, em Justiça, optou por representar o mundo de maneira observativa, sem
interferências diretas nos acontecimentos. Trata-se do que Nichols se refere como a ‘voz observativa’ do
documentário, ou seja, enfatiza-se a autenticidade ou a fidelidade da representação do mundo, de modo a
minimizar a importância do estilo ou da percepção do cineasta[271]. Justiça se desenvolve sem efeitos
sonoros complementares, apenas com o som ambiente, sem entrevistas, sem narrador. A diretora se
influenciou pela corrente do cinema reflexivo: o filme não se dá para provar uma tese, mas faz parte de
um processo de compreensão. Procura levar o expectador a tirar suas próprias conclusões.
Nem por isso deixa de ser uma narrativa estilística da diretora. Passamos pelo enquadramento, a
escolha e disposição das cenas, a edição, o uso do recurso do zoom, na construção de uma lógica interna
ao documentário. A própria diretora coloca, em entrevista disponível nos extras do DVD, “No momento
que eu olho para a realidade, eu passo a reconstruí-la. Então o meu olhar é uma reconstrução, ele
envolve uma interpretação.”
Fora as estratégias técnicas da diretora, a presença da câmera interfere nas ações dos
personagens. Sua presença, por vezes, é esmagadora: as cenas fora do ambiente formal do tribunal se
tornam quase constrangedoras ao expectador, que percebe a inibição dos personagens frente à presença
da câmera. A filha da defensora Maria Ignez mal responde à mãe, que vai pegá-la na escola e pergunta
como foi o dia. Nas cenas das refeições em família, apenas os personagens da defensora e do juiz falam,
dando a impressão que tentam ‘quebrar o gelo’. Carlos Eduardo olha para a câmera, com um olhar
cabisbaixo, enquanto ouve sua sentença de condenação.
Nas cenas de audiência, podemos refletir também sobre até que ponto a presença da câmera
interferiu subjetivamente nas atitudes dos funcionários no que tange à pompa de suas falas e gestos. Que
impressão estes agentes gostariam de passar ao expectador que assistisse ao filme? Sua atuação é uma
exacerbação ou suavização de seu comportamento cotidiano? Os acusados se portam da mesma maneira
que o fariam sem a câmera?
Assim, é importante ressaltar que o distanciamento da diretora não implica na ausência de uma
perspectiva, ou de uma retratação direta de qualquer concepção de ‘realidade’. O filme dá uma opinião
sobre o mundo, trazendo a ideia de verdade enquanto uma versão do mundo histórico.
A partir das imagens escolhidas pela diretora, formamos nossa opinião a respeito daquele mundo
jurídico e das personagens. Trata-se de um documentário distante, porém altamente crítico.
Nesse sentido, a juíza Fátima Maria Clemente, no decorrer das audiências, esbanja autoridade.
Fora delas, é mostrada apenas em dois momentos: o momento de mudança para o prédio dos
desembargadores, em razão de sua promoção; e a cerimônia de posse como desembargadora, em toda sua
pompa. Ainda que não haja uma narração, percebe-se uma certa reprovação sutil por parte da diretora em
relação à personagem, em sua vaidade (durante a cerimônia) e futilidade (na preocupação com a toga de
juíza).
Já o juiz Geraldo Prado é retratado fora da sala de audiências de outra forma: a diretora
apresenta-o como uma figura um tanto mais progressista, que compra jornais sobre o “imperialismo
americano de Bush”. Na sala de aula, seu discurso sobre a busca pela verdade real é instigante. Na
audiência, sua atitude aparenta ser um pouco mais aberta.
A defensora pública Maria Ignez também recebe mais espaço. A cineasta filma seus comentários
com a família, criticando promotores e juízes. No fundo, percebemos que a diretora concorda com a fala
da defensora.
Ao mesmo tempo, boa parte das cenas do filme ocorreriam independente da presença da câmera:
o discurso “Basta” da posse da desembargadora Fátima Bernardes, por exemplo, é altamente expressivo
da realidade dos tribunais, de modo que a presença da câmera impactou menos nessa cena que em outras.
A abordagem observativa da cineasta esconde suas próprias impressões, que o expectador pode
facilmente auferir como suas próprias. Aliados aos elementos já existentes na perspectiva do expectador
(seus conceitos e preconceitos), Justiça leva-nos a uma impressão da realidade sobre o dia-a-dia do
Tribunal. Ainda nas palavras da diretora, o filme é uma “busca pelo essencial, pelo que define a
sociedade e pelo que define uma realidade”[272].

DIREITO E VERDADE

A decisão jurídica funda-se em uma impressão de uma realidade histórica, da busca daquilo que a
doutrina dogmática se refere como “verdade real”. Algo tremendamente semelhante com a busca do
documentário clássico pela representação fidedigna da realidade.
O personagem do juiz Geraldo Prado fala sobre a busca da verdade em sala de aula:

“A atividade do processo penal é uma atividade de busca da


verdade. Os elementos subjetivos que percorrem a figura de
um crime todos eles são muito difíceis de ser
compreendidos. Mas eu só posso ter um processo criminal
se eu puder provar todos eles. Posso provar que houve a
intenção de atropelar ou o atropelamento foi fruto de
imprudência? Eu acho que é possível provar. Mas tem tipos
de crime... Lei de Segurança Nacional: ‘praticar
terrorismo’...? Tem tipos de crime que você realmente não
consegue saber se são ou não crimes porque não há como
provar um elemento subjetivo dentro dele”.

Com este intuito, as audiências criminais desenrolam-se, na tentativa de acessar o passado,


subsumir os fatos à regra e, então, decidir. Este processo de subsunção, porém, não é tão simples quanto
a doutrina dogmática muitas vezes quer colocar. As premissas – tanto a interpretativa quanto a fática –
não são dadas, elas devem ser construídas.
Esta busca pela verdade real, no universo processual, se dá através das versões. O objeto a ser
conhecido é uma interpretação das versões dos envolvidos, e depende de revelação. O Direito não afeta
diretamente o fato passado, mas sim a sua concepção posterior, formada na subjetividade do juiz a partir
das provas apresentadas: testemunhas, documentos, laudos etc.
Juntos, estes elementos servem de base para legitimar a decisão: a justificação da resposta
constitui a questão de sua legitimidade[273]. Afinal, porquê se decidiu A, e não B? A resposta a esta
pergunta se relaciona ao fenômeno do poder de decisão de conflitos institucionalizados, o qual, para
manter-se eficaz, deve justificar-se. Uma decisão que não apresenta motivos razoáveis terá sua
legitimidade questionada.
A verdade dos julgamentos em Justiça, contudo, é uma verdade tremendamente destoante dos
discursos dogmáticos da verdade real. Conforme percebemos, o direito não passa nem perto do fato – e
nem chega efetivamente a tentar.
A começar com as diferentes versões apresentadas pelos acusados: Carlos Eduardo, durante a
audiência, nega a autoria do delito, dizendo que não sabia da procedência ilícita do carro; frente à
defensora, contudo, ele conta o contrário, que sabia que o carro era roubado. Evidencia-se o fato quase
óbvio das cenas inacessíveis ao direito, e sua impossibilidade de construir uma realidade histórica.
Em outra audiência, o juiz Geraldo entrevista Alan, acusado do crime de tráfico de drogas ao
soltar pipa próximo a um ponto de tráfico. O expectador assiste aos depoimentos do policial que efetuou
sua prisão, o qual afirmou que ‘os elementos estavam próximos à boca de fumo’, que correram após a
abordagem policial, e que naquele momento não estavam portando armas.
Nessa cena, inexiste qualquer certeza a respeito dos acontecimentos, sob a perspectiva do
expectador. Fica clara não só a diferença entre as versões do acusado e do policial, como também a falta
de elementos que indiquem a conduta criminosa de Alan mesmo no discurso da autoridade policial. Em
outra cena, a cineasta mostra a condenação do réu.
Na segunda audiência de Carlos Eduardo, o agente policial afirma que haviam drogas no carro
objeto do crime, e que estas teriam sido apreendidas na delegacia. A juíza se surpreende, pois em nenhum
momento qualquer dos personagens ou dos documentos havia a menção de drogas. Ao final, não se soube
se haviam drogas ou não. Em entrevista posterior, a juíza afirma que determinou a abertura de
investigação a respeito – ao que acrescenta: “o mundo do juiz está dentro dos autos”[274].
Na verdade, a tão aclamada ‘busca pela verdade real’ não aparece em nenhum momento do
documentário. Ao contrário, percebemos um profundo desinteresse por parte do sistema judiciário para
com uma versão aproximada, ao menos plausível dos acontecimentos. A atitude dos funcionários – todos
eles – é de total apatia. A rotina do Judiciário é monótona, mecânica. Tão desinteressada que sequer
preocupa-se com a apresentação de fundamentos legítimos em suas decisões.
A fala, especificamente, assume um papel importante na audiência, por ser a ferramenta
comunicativa das versões. Seu emprego, contudo, é desigual. Há um abismo entre a fala pomposa dos
‘operadores’ do direito – que falam em de cujus (o morto), increpado (acusado), artéria (rua) – e a
dificuldade linguística dos acusados, que tentam comunicar sua experiência com uma fala confusa e um
português típico de uma baixa escolaridade. Sua fala é ‘traduzida’ pelo juiz para a compilação do
escrevente.
No mesmo sentido, percebemos durante o filme que há um profundo descaso apático para com
estas versões dos réus. Em diversos momentos, os juízes interrompem os depoentes – o juiz da primeira
cena o faz com um constrangedor gesto com as mãos que o réu parasse de falar e um autoritário “tá bom”.
Quando da compilação do depoimento para os escreventes, a versão escrita é resumida, pobre, genérica
e diferente daquela apresentada verbalmente pelos acusados.
As diferentes versões dos fatos, assim, possuem diferentes cargas de significado: a produção da
verdade se relaciona com questões de autoridade, de poder. Versões de diferentes agentes tomam uma
carga maior na construção da verdade jurídica.
Os funcionários que mais próximos estiveram do fato são as autoridades policiais, que tipificam-
no, enquadram-no em um artigo do Código Penal, e a partir daí o acusado responderá àquela versão, para
ser eventualmente condenado. Essa versão inicial, contudo, na maioria das vezes é a que prevalece, já
que o juiz e o promotor não tem acesso direto ao passado. A defesa deve, então, trazer provas que
desconstituem aquela versão.
No caso de Alan, a versão dos policiais foi mais considerada do que a do réu, de sua irmã e de
sua avó. De forma mais impressionante, na cena da primeira audiência do documentário, o juiz ignora o
fato de que o acusado não poderia ter pulado um muro para assaltar uma casa pelo fato de ser cadeirante.
Os funcionários mal olham para os réus. Quando olham, seu olhar é contaminado por uma apatia
rotineira, que não enxerga a diferença entre um caso e outro, dentre tantos. Sobre essa burocratização
exacerbada dos procedimentos em uma lógica mecânica, Max Weber alertou: ela abafa o potencial
criativo dos homens, como uma ‘gaiola de ferro’ que reduz a própria cultura a uma estrutura de
máquina[275].
Parece já haver uma versão dos fatos, de todos os casos, que os juízes construíram a partir do dia-
a-dia das audiências: o discurso da culpabilidade. Não à toa, todos os casos apresentados no
documentário resultam em condenação. A sensação é de um mesmo roteiro no qual sempre sabemos o
resultado dos processos.
A versão apática preexistente dos juízes se reflete no caso de Alan, mas especialmente na
audiência da primeira cena. O réu, cadeirante, explica ao juiz que não poderia ter cometido o delito
devido ao seu estado, e que foi fortemente agredido pelos policiais quando da prisão. Durante o
depoimento, o juiz não se volta para ele, concentrando-se apenas nos autos, aparentemente sem notar a
cadeira de rodas do depoente. Quando fala, sua fala é firme, empolada e recheada de autoridade:

JUIZ: Você não tá obrigado a responder o que eu vou lhe perguntar.


RÉU: Sim, senhor
J: Eu lhe pergunto se a acusação é verdadeira.
R: Não, não.
J: Não é verdadeira?
R: Não é verdadeira não.
J: Você não praticou esse fato?
R: Não, não.
J: Como é que se deu a sua prisão?
R: Ó, eu vou explicar ao senhor. Eu tava lá no Carnaval no dia da Cruz
do Méier, aí nisso saiu uma correria. Aí aqueles negócio de espuminha lá, aí os
PM do terceiro batalhão vieram correndo, aí eu, pra me defender, que eles
começaram a dar tiro pro alto lá, eu fui e entrei na rua, quando que eu entrei na
rua tava vindo já os três elemento com vários negócios na mão, aí os policial
abordaram e mandaram eles parar, nessa que mandaram eles parar, eles foram
tudo correndo e largaram todo os objeto tudo assim no chão, e nisso eu tava
passando no momento, que eu ia pedir uma carona aí pro amigo lá do cara que
transporta jornal pra poder me tirar dali, aí os policiais me me abordaram, me
pegaram e me botaram tudo junto, falaram ‘pô, cadê os outros que tavam aí?’ eu
falei ‘não sei quem é não, tio’, ‘cadê os outros que tavam contigo?’ eu falei ‘não
sem quem é não’, aí me jogaram da cadeira, me jogaram no chão, me bateram
aqui nas costas, me bateram no rosto e me levaram pra 25 DP, aí chegou lá aí
começaram a fazer assinar um montão de papel, ‘aí, se tu não assinar vai piorar
seu caso, bah’, eu falei ‘pô, doutor, pô, chefe, olha só como é que tá meu estado,
que estado eu tenho de ficar arrombando casa lá, que o senhor falou que o muro
da casa era alto, como é que eu vou pular o muro?’ falou ‘ah, rapaz, isso aí é
história pra boi dormir, cadê os outros, não sei o quê’, falei ‘pô, não conheço
ninguém não, posso até....’
J: Tá bom. O que que você faz da vida, você trabalha?
R: Eu sou guardador de carro, eu...
JUIZ: “Que não é verdadeira a acusação, que não praticou o fato
narrado na denúncia.” Quer dizer que o senhor foi preso no dia de carnaval?
RÉU: Foi.
J: Conhecia os três elementos?
R: Não, conheço não.
J: “Que não conhecia os três elementos que passaram correndo”. Você
tem advogado?
R: Não tenho, não.
J: Então vai ser nomeada a defensora pública pra defende-lo.
R: Doutor, doutor meritíssimo, antes de eu retornar lá pra DP, se o
senhor pudesse dar uma autorização pra me mandar pro hospital, porque, pô, são
79 lá no xadrez, entendeu? Pra mim...
J: O que que você tem, tá doente?
R: Não, pra mim dar uma evacuada, tem que ficar me arrastando no
chão, pra mim tomar banho, não tenho condição de tá lá, e lá eu tenho
dificuldade de certas coisas.
J: Mas eu só posso te remover se houver uma recomendação médica. Só
se um médico me pedir a tua remoção, porque isso é assunto médico, não é
assunto de juiz. Se o médico disser que você precisa de atendimento, precisa ser
removido, você será removido. Fora disso, não. Entendeu? Você já está assim há
muito tempo? Com essa cadeira? Quando você foi preso você não estava em
cadeira de rodas.
R: Tava.
J: Você foi preso já em cadeira de roda?
R: Em cadeira de roda. Eu tô assim desde 96. Isso aqui aconteceu
comigo porque eu sou hipertenso. Por causa das artérias.
J: Você foi preso na cadeira de rodas?
R: Na cadeira de rodas.
J: A defensora pública vai analisar essa tua situação e vai pedir os
direitos que você... que ela acha que você merece.

O pouco-caso com a versão do réu é tanta que, num primeiro momento, o juiz sequer presta
atenção em sua história; e quando percebe enfim a existência da cadeira de rodas, não considera o
argumento forte o suficiente para conceder a liberdade provisória ao acusado. Sob a perspectiva do réu,
a cena é humilhante.
Este Estado-Juiz, infectado pela rotina, mal percebe os abusos que comete, não apenas ao
desconsiderar as versões dos réus, mas no que tange à também desconsideração da violência física que
perpassa o interior do próprio Poder Judiciário.
Na cena transcrita, o réu cadeirante narra que foi agredido na delegacia pelos policiais, e o juiz
não esboça reação. Não determina a abertura de investigação, não pergunta nomes de policiais, não move
os olhos dos documentos à sua frente. Ao contrário, interrompe o depoimento para perguntar-lhe “você
trabalha”?
Em outra cena, a juíza Fátima Clemente entrevista um homem acusado de furto de um celular com
um grande curativo recente na cabeça. O réu afirma:

“Em todos os meus processos eu sempre fui réu confesso, mas nesse aí eu
fui... eu tive que mentir na delegacia porque eu apanhei muito dos polícias e
tomei muito choque, entendeu? Então eu tive que... ninguém é de ferro. Eu
sou só de carne e osso, então eu sinto dor. Então, tive que...Apanhei muito
dos polícias pra ser réu confesso”.
Novamente, a juíza nada pergunta a respeito da violência, nem nada manda investigar. O
Judiciário fecha os olhos a esses relatos de violência por parte do próprio Estado, ignora-os como meros
mal-entendidos, em outra forma de desprezo desinteressado pelas palavras dos réus. Essa violência,
assim, se torna um instrumento de criação da verdade.
Aqui, abrimos um parêntesis. Em O Caso dos Irmãos Naves (1967), o diretor Luiz Sérgio Person
abordou a temática da tortura de presos durante a época da ditadura de Getúlio Vargas, para na verdade
denunciar a tortura que ocorria durante a ditadura militar, contemporânea ao filme. Na película, levados
pela tortura e pelas ameaças do delegado, os irmãos Naves confessam o assassinato de um homem que
aparece vivo vinte anos depois.
A tortura representa a confusão entre a violência e o poder, uma violência que extrapola os limites
legais do ordenamento jurídico. Através dela, a relação de poder por parte do Estado, que
necessariamente inclui uma ilusão de liberdade do sujeito, torna-se uma simples relação de força e, por
isso, perde a legitimidade por escancarar-se como injustiça. Ou seja, o Estado mina a sua própria
dominação ao agir em desconformidade com o ordenamento jurídico, desconfirmando-o.
Há que se apontar, contudo, que a tortura não se dá apenas de forma ativa, com procedimentos de
espancamento direto – aos quais, aliás, o filme também faz referência, como vimos. Há uma espécie de
tortura passiva, derivada da degradação natural dos homens largados ao esquecimento em um espaço que
comporta o dobro (ou o triplo, ou o quádruplo) do número razoável.
As cenas da carceragem da Delegacia de Polícia do Polinter mostram a superlotação do sistema
carcerário: em celas superlotadas, os encarcerados mal conseguem se movimentar. Há braços e pernas
saindo pelas grades, passando a sensação de claustrofobia ao expectador. A comida é passada aos presos
em um pequeno espaço, e para dormir é necessário um revezamento. Um homem implora por ajuda.
Esse tipo de tortura se dá de maneira mais sutil, menos direta, e por isso mesmo mais difícil de
ser apontada e combatida. O despejo daqueles considerados inúteis socialmente em celas superlotadas é
de uma crueldade fria e desinteressada, configurando a institucionalização da tortura de forma
mascarada. Diferencia-se da tortura direta institucionalizada, típica dos regimes totalitários. Em tempos
de democracia, a principal tortura é a do esquecimento.
Essa tortura passiva também interfere na construção da realidade. Na cena da leitura da sentença
de condenação de Carlos Eduardo, a funcionária lhe pergunta se gostaria de recorrer, e ele responde que
não, porque prefere ser transferido o mais rápido possível a continuar na carceragem da delegacia de
Polinter.
Esta aniquilação do discurso do réu – seja pelo meio mais sutil do desinteresse, seja por meio
escancarado da tortura – se dá por aquilo que Mara Regina de Oliveira se refere como a ‘aniquilação do
sujeito’: uma comunicação abusiva que elimina a complementaridade e a seletividade da ação dos
agentes, aniquilados em termos interativos. Ou seja: não há margem para o sujeito exercer sua liberdade
discursiva, o que torna patente a percepção de injustiça.

ALHEAMENTO, DESUMANIZAÇÃO E RESSENTIMENTO

O desinteresse dos funcionários em relação aos réus perpassa uma atitude de distanciamento, uma
capacidade específica de tornar o outro um estranho que foi descrita pelo psicanalista Jurandir Freire
Costa como o “alheamento em relação ao outro”[276]. Ao contrário do ódio e da rivalidade explícita, o
alheamento consiste em uma atitude na qual a hostilidade é substituída pela desqualificação do sujeito
como ser moral. Isso significa não identificar o próximo como alguém que deve ser respeitado em sua
integridade física e moral, ou seja, uma indiferença que anula quase totalmente o outro em sua
humanidade. Utilizando-nos do vocabulário de Hannah Arendt, este alheamento é uma das formas pela
qual se manifesta a banalidade do mal[277].
Ao ver de Jurandir Costa, a forma de vida das elites no Brasil vem progressivamente apoiando-se
nesse modelo de subjetivação. Para esses indivíduos, os pobres e miseráveis são cada vez menos
percebidos como pessoas morais, sem que essa atitude intencional seja formada por interesses utilitários
ou cálculos racionais de opressão, como é o caso da violência diretamente repressiva e discriminatória.
Pobres e miseráveis são considerados, nesse sentido, uma espécie de resíduo social inabsorvível[278],
com o qual se deve aprender a conviver à condição de puni-los e controla-los em caso de
insubordinação.
O documentário expressa este tipo de atitude em relação aos réus: o distanciamento está
esmagadoramente presente. O juiz da primeira cena, transcrita acima, é um bom exemplo: o olhar para o
réu (quando ocorre) é hierárquico, de cima para baixo. A injustiça patente do caso não o abala porque
não há uma identificação com o réu enquanto ser humano. Ocorreu um processo de desumanização do
acusado.
A própria disposição física da sala e as vestes dos envolvidos demonstram esse tipo de
distanciamento. Cada indivíduo possui uma hierarquia na audiência, com figurino próprio: a toga
pomposa do magistrado, as vestes formais da defensoria e da promotoria, e os uniformes em frangalhos
dos prisioneiros. A disposição física da sala complementa esta teatralidade: o juiz na mesa mais alta, ao
centro da sala; o promotor à sua direita, o escrevente à sua esquerda (como que representando seus
‘assistentes’), em uma mesa um pouco abaixo; a defensoria na mesa cumprida bem mais baixa, e o réu à
sua frente. O clima é de total deferência ao Estado-Juiz que, quando individualizado, afetou-se pelo
esplendor de sua beca. Os réus estão, em sua maioria, algemados, e em todo momento devem manter as
mãos sobre as mesas, como se a qualquer momento pudessem tomar qualquer atitude violenta que deve
ser contida.
Os papéis do teatro daquelas audiências não se comunicam, e o acusado é sempre visto como ser
inútil à sociedade, que pode facilmente ser posto de lado através da prisão, em condições que fazem jus à
ideia de descarte. Sem uma identificação enquanto seres humanos iguais, pouco importa o que os
encarcerados sofrerão em um cárcere superlotado.
É importante lembrar que nem de longe esse tipo de indiferença opressiva se dá apenas pelos
juízes dos casos mostrados no documentário, embora eles assinem as decisões. Aliás, o filme foge a
qualquer estrutura maniqueísta de bom/mau: não há a figura de um juiz ‘bom’ ou de um réu ‘mau’, ou
vice-versa; e tampouco é o caso de colocar a ‘culpa’ em qualquer dos personagens. A diretora se
empenhou na captação de uma realidade do direito muito mais complexa, envolta em um contexto social e
histórico.
Há um alheamento geral. Primeiramente, por parte de todo o sistema judiciário, como exemplifica
o discurso em homenagem à magistrada Fátima Clemente na ocasião de sua promoção ao cargo de
desembargadora:

“A posse da Desembargadora Fátima Maria Clemente deve ser marcada não só


com o calor da nossa amizade, com orgulho pela sua vitória, mas com outro
veemente ‘Basta!’ também em homenagem à coragem sempre por ela demonstrada
em sua carreira quase toda exercida na difícil área da justiça criminal. Basta,
senhor presidente, do medo que nos prende em casa, como se ainda fosse seguro
nela se esconder. Basta, senhor presidente, de inércia, de covardia, de submissão
ao terror e ao poder dos criminosos. Basta de chorar os nossos mortos, feridos e
humilhados em sua dignidade para continuar depois quase insensíveis,
acomodados, aplicando leis que não guardam mais a menor intimidade com a
realidade que vivemos. Basta, senhor presidente, basta!”

Percebe-se que o discurso divide a sociedade em duas categorias: a dos criminosos, e a daqueles
que choram os mortos que o crime criou, sendo que nesta última se enquadrariam os desembargadores.
É que o alheamento em relação ao miserável leva a uma despreocupação com políticas coletivas,
ainda segundo Freire Costa. As elites teriam perdido o sentido da história e do bem comum, e por isso
deixaram-se absorver quase exclusivamente por seus problemas privados, voltando as costas aos
coletivos[279]. O discurso acima deixa claro a confusão entre os problemas individuais daqueles
desembargadores (que integram a burguesia a que se referiu Costa) e os sociais.
O alheamento, contudo, não só provém dos juízes: promotores, advogados, escreventes,
carcereiros, enfim, todos os envolvidos no sistema padecem da mesma completa apatia em relação à
violência institucionalizada para com os réus, já que em posição de desumanidade. E, no mesmo sentido,
a população em geral, apesar de ciente desse tipo de violência por parte do Estado, ou reage com total
desinteresse, ou a considera legítima.
Todo esse processo de exclusão através do alheamento, contudo, gera uma reação igual e
contrária[280]. Estes desumanizados aprenderam bem a lição, e passaram a negar seu pertencimento a um
povo, classe ou nação, o que leva ao crescimento do banditismo urbano. A massa desfavorecida entendeu
que seu corpo é considerado violável pela violência Estatal e que sua liberdade é facilmente podada:
percebeu sua desumanização e a incorporou.
No mesmo sentido, em uma perspectiva da ação psicológica da ordem, Elias Canetti referiu-se ao
que chamou de ‘aguilhão’ como uma espécie de ‘marca de rancor’[281]: guardamos a violência da ordem
na alma, cravada em nossa psique. Para nos livrarmos deste aguilhão, repassamos a ordem o mais rápido
possível, de forma igualmente violenta. Assim, o dominado de hoje torna-se o dominador de amanhã.
Vários aguilhões podem ser liberados através do que Mara Regina de Oliveira se refere como
‘massa de inversão’, ou seja, uma formação de vários indivíduos que, em conjunto, pretendem se libertar
da submissão acumulada, partindo para a revanche. “O rei que mandava cortar cabeças deve ser
decapitado também”[282].
Justiça mostra esse personagem do bandido ressentido ao retratar o processo institucionalizado
de ressentimento. Em outras palavras, o indivíduo considerado bandido, e, por isso, desumanizado e
retirado da esfera de cidadania, incorporou estes rótulos e ressentiu-se. A violência ressentida deságua
no crescimento do poder informal, retratado no filme na cena do discurso do Comando Vermelho.
A cena é da carceragem superlotada, com braços e pés de detentos saindo por entre as grades,
tamanho o aperto. Em uníssimo, os presos discorrem:
“Na mesma, só responsa. Lembrando os amigos que o mal jamais vencerá o bem,
que a família unida jamais será vencida. 100% união do bem. Paz, justiça,
liberdade. Comando Vermelho. Rua já. Fé em Deus e nas crianças, que a pureza
delas ilumine nosso caminho de vida. Hoje, amanhã e sempre. Liberdade para
todos nós no mais RL.”
O discurso do Comando Vermelho é justiceiro e se utiliza de diversos valores de legitimação:
bem, família, paz, justiça, liberdade, Deus. Contempla aqueles que não mais se encontram no espectro
de legitimação do Estado, concorrendo com ele em termos de metacomplementaridade. Este poder
informal nasce e cresce no seio do poder estatal, em razão da exclusão e do ressentimento resultante dela.

CONTROLE E LEGITIMIDADE
A noção de Estado de Direito se ampara através da construção dogmática da ilusão da
neutralidade e da impessoalidade jurídica: o Direito é defendido como acima dos estratos e hierarquias
sociais, por ser aplicado de forma uniforme e de encontro ao interesse de todos.
Contudo, esta construção ideal do Estado de Direito – que a análise crítica relaciona com as
práticas de uma sociedade liberal[283] – é fictícia. Desigualdades não são eliminadas por um
compromisso de igualdade formal perante a lei ou mesmo pelos instrumentos da democracia política. A
elaboração das leis não é um processo genuinamente neutro, já que envolve a incorporação de valores. O
controle do Poder Judiciário não pode efetivamente ser isento de toda e qualquer pessoalidade, já que
inexiste um método totalmente imparcial de interpretação das normas jurídicas.
O Estado, assim, sempre se encontra no meio de um antagonismo gerado por interesses privados e
se transforma no instrumento de uma ou outra facção. A fim de reforçar sua legitimidade, o discurso
dogmático simula o consenso ao redor dos valores que assume, muito embora estes não estejam
inseridos, de fato, em um contexto pacífico.
Se essa realidade for escancarada, porém, este mesmo Estado de Direito perderia a justificativa
de sua suposta natureza ética que o legitima. Assim, o Direito deve mascarar a base violenta de sua
origem, de modo a propiciar um ambiente no qual o dominado sinta-se livre e que obedeça
espontaneamente, além de neutralizar as possíveis rebeliões de forma hábil.
O documentário, ao mesmo tempo que apresenta ao expectador este Direito que opta por uma
concepção muito específica (e não impessoal) de Justiça, mostra também uma enorme dificuldade – e
mesmo um desinteresse – do Estado de Direito brasileiro em legitimar-se.
Muito embora a ciência dogmática sustente um ideal de neutralidade, percebemos que o discurso
adotado pelos magistrados no documentário escapa à impessoalidade. Durante a posse da
Desembargadora Fátima Clemente, fica clara a já mencionada divisão social entre criminosos, os quais
devem ser ‘parados’, e o restante da população que sofre em suas mãos. Fica bastante clara em qual
posição desta sociedade os desembargadores se incluem, e o fato de assumirem a missão de combater o
crime através do encarceramento delimita uma assunção de valores específicos que se dá por todo o
filme.
Além disso, na condenação pelo crime de receptação de Carlos Eduardo, sua personalidade foi
considerada “voltada ao crime”, sua conduta “antissocial e perigosa ao convívio comunitário”. Ao ouvir
isso, o expectador se recorda da audiência do réu com a juíza Fátima, na qual ele menciona que possui
uma mulher e dois filhos, ao que a juíza lembra, em um tom julgador e autoritário, que ele não se
recordara da família na ocasião do crime (quando ele foi preso com duas garotas). Essas considerações
já apontam para uma tomada de posição moral por parte da juíza, que dá por estabelecido que a
sociedade toda concorda com sua perspectiva.
Nesse sentido, como apontou Foucault, o julgamento se dá não apenas para fornecer uma punição
em relação ao ato criminoso em si, mas à própria pessoa do delinquente. A estratégia de poder no direito
penal moderno não é simplesmente de apagar o crime, mas transformar moralmente o culpado para
enquadrar-se nos padrões sociais, tornando-se obediente[284].
Pois bem, Justiça demonstra este Estado que deveria legitimar seus valores (que coincidem com
perspectivas liberais) tem se mostrado pouco preocupado com esta necessidade. As estratégias de
coordenação de poder utilizadas pelo Estado, que servem à antecipação e neutralização de rebeliões, se
mostram um tanto suicidas.
A tortura, conforme já foi mencionado, transforma a relação de poder em pura violência,
eliminando qualquer seletividade por parte do agente, que acaba sendo obrigado a fazer algo. Ela torna
patente o sentimento de injustiça[285]. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., a justiça confere sentido ao
direito. Sem ela, não há sentido a obediência, de modo que um direito considerado injusto perde
legitimidade.
O filme apresenta duas formas de tortura, conforme vimos: a do espancamento direto, conforme os
relatos dos presos; e a tortura relacionada às condições sub-humanas do cárcere. Ambas estão instaladas
no cerne do Estado de Direito, que dá de ombros a esse tipo de violência institucionalizada. Ao fazê-lo,
contudo, o Estado desconfirma sua própria autoridade, pois comete uma violência que vai além do
permitido pelo ordenamento jurídico – processo também retratado em Tropa de Elite (2007), de José
Padilha.
Fora a escancarada substituição da relação de poder pela pura violência, que é o caso da tortura,
o filme mostra uma profunda apatia por parte do Estado de Direito em relação aos réus. Ao
desconsiderar seu discurso, incorre em uma comunicação abusiva que aniquila os sujeitos, o que também
é uma patente forma de injustiça.
Este tipo de desconsideração do sujeito, resultado do já mencionado processo de alheamento em
relação ao outro, leva a um quadro de exclusão social. A humilhação dela resultante gera um processo de
formação de poderes informais que colocam em cheque a legitimidade de um Estado de Direito que não
inclui uma camada social.
Assim, a violência urbana cresce, aumentando o abismo social entre os funcionários da Justiça e
os réus e a desumanização dos últimos. A tendência no tratamento, portanto, será o recrudescimento do
tratamento ao problema da delinquência, aumentando o número de presos.
A prisão, embora criada pelo próprio Estado e inserida no seio da política criminal, é uma zona
sem lícito ou ilícito, no qual não se insere o poderio estatal: este já o aniquilou, ao transformar as
relações de poder com aqueles indivíduos em pura força. Neste espaço, a legitimidade de outros poderes
ganha força, poderes estes que souberam trabalhar o sentimento de humilhação e de exclusão de maneira
muito mais hábil que o Poder Judiciário.
A resposta do Estado ao crescimento desse tipo de poder, contudo, ainda é o encarceramento,
atrelado à indiferença e à tortura, sem perceber o uso das mesmas práticas exclusivas que alimentaram o
problema. O Estado de Direito dá um tiro no pé sem percebê-lo, gerando a própria crise de legitimidade.
A construção da legitimidade do Direito, ademais, dá-se também na construção da realidade
histórica dos fatos a serem subsumidos à norma, conforme vimos. Como o Direito não afeta diretamente o
passado, mas a acepção construída dele, há que se chegar a um resultado no mínimo plausível, capaz de
dar sentido à decisão e, portanto, legitimá-la.
Contudo, mesmo o aclamado (e ilusório) princípio dogmático da busca da verdade real parece ser
deixado de lado em meio à apatia do tribunal. As decisões mostradas no documentário foram tomadas
com pouca ou nenhuma base fática. Várias vezes, a justificativa fática da condenação são declarações
proferidas em situações de tortura – e, aparentemente, ninguém se importa.
Ou seja, o Estado mostrado em Justiça nem mesmo procura uma reconstrução plausível dos fatos,
abandonando determinações da própria dogmática de busca da verdade real e do princípio in dubio pró
réu do direito penal. Nesse caminho, a Justiça vai sendo desacreditada: perdemos a confiança no Estado
de Direito e em suas decisões enquanto justas. Esse tipo de desilusão é causada pelo próprio poder
público que, se perceber, mina sua própria legitimidade. Nesse contexto, as reações dos juízes às cenas
do filme são interessantes. Sua perspectiva é ou de admitir relutantemente os problemas, mas já com uma
promessa de mudança, ou retirar-se da responsabilidade.
Em entrevista[286], o juiz Geraldo Prado afirmou que o Judiciário tem, de fato, um problema no
que tange às construções das provas e da verdade real. No entanto, ele coloca a ‘culpa’ no fato de o
processo ser escrito: segundo ele, se o juiz tivesse mais contato com os envolvidos e menos com papéis,
as decisões seriam mais justas. Ele menciona também os conceitos pré-concebidos pelos juízes, citando
expressamente o racismo e o preconceito econômico. Ele admite que existem, mas acrescenta que os
magistrados estão cada vez mais cientes do problema, e que têm tentado melhorar. Acrescenta, em outro
momento, que a função do juiz é ‘ser defensor dos direitos humanos’.
Também em entrevista, a juíza Fátima Clemente afirmou que odo Departamento Estadual do
Sistema Penitenciário é “o único responsável pelos presos, os juízes não tem a menor interferência no
sistema penitenciário (...)”[287]. Afirmou também que é uma grande dificuldade dos magistrados lidar
com a falta de recursos humanos e técnicos da polícia, o que dificulta a aproximação à verdade, além da
corrupção policial.
Assim, o discurso dos funcionários para com as ás árduas críticas que o documentário levanta é o
da confirmação do ordenamento enquanto justo – o problema é ou a forma como os juízes, pessoas
físicas, conduzem os processos, ou os outros poderes, ou mesmo a sociedade em geral. Seus comentários
demonstram a cegueira deste Estado de Direito, que estreita cada vez mais seu ciclo de influência.

REFLEXÕES FINAIS

Justiça retrata um Direito como simples reafirmação de uma ordem social injusta, e não como
instrumento justiceiro. Através dele, afirmam-se valores de uma elite que se fechou nela mesma, dando as
costas aos problemas coletivos da sociedade, e que é incapaz de se identificar com o miserável enquanto
ser humano. Aos delinquentes, pouco importa o que sofrerão, já que foram excluídos do espectro de
legitimidade do Estado. Há um profundo descaso com as práticas de espancamento por parte da polícia e
com a situação deplorável dos presídios.
Esse tipo de exclusão, contudo, tem uma reação igualmente violenta por parte destes
desumanizados, que acabam criando suas próprias organizações nas quais podem ser incluídos. Nesse
ínterim, desenvolvem-se poderes informais desconfirmadores da ordem jurídica, e que com ela
competem em legitimidade.
O Poder Judiciário, contudo, segue cego a essas conclusões, acreditando que a solução para a
delinquência é o descarte dos indivíduos em celas superlotadas, nas quais são esquecidos, alimentando
ainda mais as mesmas práticas que procura sufocar.
Mais ainda, parece ter havido um abandono da própria necessidade de justificativa fática das
decisões. A construção de uma realidade histórica, ainda que inatingível em sua plenitude, é parte
importante da legitimidade de uma decisão pelo fato de nela incluir-se a noção de justiça do direito
aplicado. O que vemos no documentário, porém, é um descaso mesmo com uma construção plausível dos
fatos, que justificaria uma condenação.
Nesse contexto, o documentário não apresenta uma possível saída, ou esperança de mudança. A
perspectiva é de profundo pessimismo em relação à autoridade do Direito, e de possível agravamento da
situação. Ainda, o documentário sugere, no nascimento das filhas de Carlos Eduardo, que a situação
permanecerá a mesma.
Sem expectativa de mudança, a saída que as mulheres encontram, enquanto os homens são
encarcerados aos borbotões, é a esperança religiosa. A cena do culto em que participa a mãe de Carlos
Eduardo é de uma devoção fervorosa, em uma total entrega. Afinal, se a Justiça não vem pelo Estado de
Direito, a esperança é que venha de Deus.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANETTI, Elias. Massa e Poder. Companhia das Letras: São Paulo, 1995
COSTA. Jurandir Freire. A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência pública, in
Ética, Rio de Janeiro: Garamond, 1997, p. 67 a 83.
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª
Ed. São Paulo: Atlas, 1994.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes. 1997.
NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005.
OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder, obediência
e subversão. 1ª Ed. São Paulo: Corifeu, 2006.
RAMOS, Maria Augusta. Justiça, 2004. Disponível no site Youtube em https://www.youtube.com/watch?
v=75P1KTTTjj0
TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Documentário Moderno In MASCARELLO, Fernando (org.) “História
do Cinema Mundial”. Campinas, SP: Papirus, 2006.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: Editora Universidade de Brasília. Vol. 1 1991.
A INTERFACE ENTRE “JUSTIÇA”, “LEI” E “DIREITO”: UMA ANÁLISE DO FILME
JUÍZO DE MARIA AUGUSTA RAMOS

Danjone Regina
Meira[*]

INTRODUÇÃO

C onsidera-se a importância do diálogo entre filosofia do direito e cinema, como caminho hermenêutico
interdisciplinar para a compreensão de termos fundamentais na dinâmica do “direito” e para uma
leitura da aplicação do texto constitucional pelo “Estado-juiz” na sociedade democrática brasileira. Para
tanto, elege-se o filme “Juízo” de Maria Augusta Ramos como obra relevante para o desenvolvimento de
uma leitura dialogal das relações de poder, dentro da perspectiva de cumprimento/descumprimento da
“lei”.
A forma estética do filme está relacionada à um conteúdo político e jurídico, sob a perspectiva da
legitimidade de instituições, órgãos de justiça. A diretora Maria Augusta parece demonstrar interesse em
evidenciar a ineficácia da concretização das normas constitucionais. Verifica-se ao longo do presente
trabalho que no filme há a presença de um discurso de violência. Vale ressaltar, que a forma estética do
filme é de documentário. Considera-se que os “atores” sociais demonstrados no filme, tais como a
“juíza”, “defensores públicos”, “agentes” como personagens reais, no entanto, o trabalho se direcionará a
eles exatamente como personagens de uma análise da realidade brasileira apresentada na forma de
documentário pela diretora Maria Ramos.
É importante destacar que o filme “Juízo” de 2007, sequência de “Justiça”, compõe uma trilogia
de documentários da diretora. A trilogia fecha com o documentário sobre as “Unidades Policiais
Pacificadoras instaladas” - UPPS nas favelas do Rio de Janeiro. Os personagens no filme “Juízo” são
apresentados por uma câmera que destaca o caráter de documentário. O contexto de cena é definido, mas
a imagem é dinâmica na apreensão de detalhes do cenário. A partir do olhar de Maria, as relações de
poder entre os sujeitos e as autoridades são evidenciadas com riqueza de detalhes. Uma linguagem de
"comando" aos jovens. Os cenários por onde a câmera passa destaca, sobretudo, o esforço de mostrar a
disparidade entre realidade e direito. Acerca do espaço de filmagem, ressalta-se o momento das
audiências realizadas na II Vara de Justiça do Rio de Janeiro. Há também o cenário de visitas ao Instituto
Padre Severino por parte dos familiares dos menores infratores. Bem, como o Instituto Padre Severino
representa o local de cumprimento de medidas socioeducativas retratadas no documentário. O filme
também mostra o cenário de favela, logo nas últimas cenas, apresentando a realidade dos menores
infratores em destaque no documentário.
Se verificará, adiante, que o filme retrata como temática fundamental a interface entre “justiça”,
“lei” e “direito” dando ênfase para a vigência e eficácia ou ineficácia da norma constitucional. Com base
nisso, pode-se refletir: até que ponto num “Estado democrático de direito” a hermenêutica jurídica é
considerada sob o viés da práxis social e jurídica? No caso do cenário brasileiro, que atribui a si o título
de “Estado democrático de direito”, onde a Constituição Federal de 1988 é a Carta Magna que mais
ampliou os direitos fundamentais do ser humano, destacando princípios constitucionais em toda a sua
conjuntura, como o devido processo legal, o princípio de presunção de inocência, de individualização da
pena, havendo também um avanço preponderante dos direitos humanos, se irá analisar a partir do filme a
temática dos menores infratores, seus julgamentos e o processo de cumprimento de medidas
socioeducativas, seguindo o itinerário proposto no filme.
É importante ressaltar que o filme “Juízo” contribui para instaurar a questão do pensamento: como
os julgamentos de menores infratores se apropriam dos conceitos de “justiça”, “lei” e “direito”? A partir
dessa pergunta fundamental, verifica-se com base no próprio título do filme, que há um “juízo” sobre os
menores infratores. Um “juízo” que é evocado como “juízo final” que sentencia suas condutas a serem
moldadas e adequadas às normas do texto constitucional e às condutas socialmente válidas, caso
contrário, tais menores infratores estarão condenados à perpétua exclusão social ou até ao pleno
anonimato, como figuras invisíveis e marginalizadas em uma sociedade democrática de direito. Outra
questão importante para a análise do filme é: de que forma é aplicado esse “juízo” sobre os menores
infratores?
Verifica-se que esse “juízo” é aplicado mediante um discurso abusivo, uma violência simbólica
que já se mostra na relação entre poder e comunicação nos julgamentos. A linguagem jurídica do
“Estado-juiz”[288], incorporada na pessoa da magistrada, expressa a força da lei e o poder jurídico-
político do Estado. Verificam-se as seguintes expressões ao longo do filme, especialmente, no momento
dos julgamentos: “sim, senhora!”, denotando-se o discurso de submissão por parte daquele que está
sendo julgado na audiência. Também pode-se constatar uma violência simbólica, mediante, um discurso
de ameaça por parte do "Estado-juiz" e dos agentes do espaço de internação.

UMA ANÁLISE PRAGMÁTICA DAS RELAÇÕES DE PODER NA JUSTIÇA


No início do documentário, observa-se um dos personagens: “Alex”, acusado de ter anunciado o
furto de uma bicicleta. Logo, neste momento, a personagem “juíza” utiliza a seguinte expressão no
julgamento: “autores do ilícito”. Uma das frases mais marcantes deste documentário se apresenta na
personagem “juíza”, que afirma com veemência: “Podia ta fazendo uma coisa lícita!”[289] A partir, dessa
expressão, verifica-se a presença do código de poder lícito/ilícito que fundamenta o ordenamento
jurídico brasileiro.
Outra questão relevante nesta obra é a presença dos pais, onde se evoca uma mensagem de “juízo”
para aqueles adolescentes que estão a ser julgados, representa também a ênfase numa consciência
jurídica e legal, onde a autoridade, por meio da lei, deve ser respeitada. A obra enfatiza a confirmação
da autoridade dos pais, mediante, as falas da personagem “juíza”. A confirmação do poder dos pais, com
base no filme, é também a confirmação do poder do Estado, na medida em que se requer que os menores
infratores reconheçam o poder das autoridades legítimas, com base no ordenamento jurídico.
Outro exemplo sobre a confirmação do poder dos pais apresenta-se num determinado momento do
filme quando se ressalta a conduta típica cometida por um menor infrator, que matou o pai a facadas. Em
face dessa conduta típica há um fecundo debate em torno da vontade do menor infrator e qual a medida
deve ser aplicada. Por fim, se decide que não há justificativa plausível para se excluir a medida restritiva
de liberdade. Destaca-se um profundo simbolismo acerca da figura do pai. O pai representa a figura da
lei.
O personagem “defensor público” sempre procura ressaltar no seu discurso os limites do poder
judiciário e do próprio princípio democrático de “divisão de poderes”. Tal personagem é a
representação dos direitos humanos e dos limites do “Estado-juiz” no julgamento de menores infratores.
Ele enfatiza a relação de poder entre o poder executivo, legislativo e judiciário, quando ao evocar os
direitos humanos dos menores infratores, chama a atenção para um ponto crucial do sistema jurídico e
político num “Estado democrático de direito”: a efetivação dos direitos humanos numa nação
democrática.
O papel do “defensor público” é evidenciar princípios constitucionais, direitos fundamentais, tais
como o devido processo legal, a presunção de inocência do acusado, no caso, pode-se falar na
individualização da medida socioeducativa que será cumprida pelo menor infrator. Uma das falas do
personagem “defensor público” que chama a atenção é quando ele evoca a ponderação do “Estado-juiz”
ressaltando a participação de menor importância do menor infrator, sua não reincidência, seus valores
familiares.
Outro aspecto importante é a fala da personagem “juíza” quando diz para um menor infrator que já
havia descumprido determinada medida socioeducativa: “já deve, tá devendo, vai ter que pagar!”[290].
Essa fala é fundamental para se enfatizar as relações de poder na audiência e o aspecto normativo
positivista no discurso da magistrada, dentro da perspectiva de cumprimento/descumprimento da lei.
Nesse sentido, o texto constitucional se mostra no topo de uma hierarquia do ordenamento jurídico,
representando a lei máxima, onde a “letra da lei” deve ser cumprida e para tanto, pode-se empregar a
força da lei.
Observa-se no início do documentário, o propósito da diretora Maria Ramos quando a câmera
evidencia o espaço da audiência e mostra o órgão do poder judiciário, seus bastidores, enquanto uma
“personificação da justiça”. Nesse momento, a câmera retrata uma "pilha" de processos e o ambiente
judiciário com seus funcionários. A partir disso, pode-se instaurar uma questão para o pensamento: o
conceito e dimensão de “justiça”. Nesse sentido, a "justiça", com base no documentário, representa
lentidão, não segue o princípio da celeridade processual, esposado na Constituição Federal de 1988,
retrata desordem no andamento e conclusão de processos, o que mostra a ambiguidade da sentença dos
menores infratores, que impõe a ordem e os princípios constitucionais, sendo que o órgão do judiciário
retrata desordem, morosidade, o que fere diretamente princípios do texto constitucional.
Verifica-se, com base nisso, uma ambiguidade do conceito de “sentença” no ordenamento jurídico
e tudo aquilo que uma audiência de julgamento evoca, bem como, a contradição do poder do “Estado-
juiz” na personificação dos órgãos do judiciário e na pessoa da magistrada em face do texto
constitucional. Contradição essa que emerge diante da interface cumprimento/descumprimento do texto
constitucional (lei). Com isso, enfatiza-se a disparidade entre texto constitucional e prática de “justiça”,
o que faz refletir se a apropriação do conceito de “justiça” por parte dos poderes judiciário, executivo e
legislativo, representa de fato o significado de "justiça" presente no texto constitucional.
Dentro da perspectiva de práxis jurídica no cenário atual brasileiro, observa-se a polissemia do
conceito de “justiça”, a dimensão de tal conceito e a possibilidade de diversas interpretações pelas
relações de poder. É necessária uma pragmática jurídica, onde se considera o texto constitucional, mas
não somente a lei, como também a dimensão da lei em sua vigência e eficácia, ou seja, se considera a
práxis social e a práxis jurídica do ordenamento jurídico.
Um dos momentos importantes no filme é quando a câmera mostra o espaço de internação dos
menores infratores e enfatiza as grades e os veículos de grande segurança que transportam os menores
infratores para cumprirem medidas socioeducativas. Há uma ênfase nas grades e no momento em que os
menores infratores são incorporados à esse novo espaço.
Verifica-se também a perda de identidade dos menores infratores, pois, ao adentrarem no espaço
de internação, eles se submetem à uma violência simbólica e também ao abuso de poder do Estado por
parte de funcionários públicos, agentes do espaço de internação. Logo no início de seu processo de
internação, os menores infratores, mediante um discurso abusivo, são direcionados para um local onde há
troca de roupas, e onde se verifica o descumprimento de princípios dos direitos humanos, princípios
constitucionais, como o direito fundamental à privacidade e à dignidade da pessoa humana. É imposto
aos menores infratores que andem de cabeça baixa, um atrás do outro, o que denota a dominação da
corporalidade desses infratores, a violência simbólica e a imposição de submissão ao domínio do poder
do Estado. Os menores infratores devem trocar as suas roupas e ficarem nus em frente ao agente, e seguir
a “voz de comando”, como o próprio personagem “agente” retrata em uma de suas falas: “ao meu
comando...”. Observa-se que os direitos humanos não são concretizados nesse espaço de internação.
A perda de identidade dos menores infratores se retrata no momento em que eles se desfazem de
suas roupas, quando ao entrarem no espaço de internação eles recebem números que passam a serem suas
identificações, ao invés de seus nomes, perdendo toda a sua pessoalidade, já que o direito ao nome é um
direito personalíssimo, assim como, o direito à imagem, o direito ao corpo, o direito à privacidade.
Desse modo, no espaço de internação dos menores infratores há um descumprimento de direitos
personalíssimos.
Noutro momento de audiência de julgamento, a personagem “juíza” enfatiza a consequência dos
atos dos adolescentes, mediante a imposição do discurso de conduta adequada à lei. A personagem
percorre todo um caminho narrativo delineando os fins para uma conduta considerada ilícita pelo Estado.
Ressalta também os espaços jurídicos propícios àqueles que querem adequar suas condutas às normas do
texto constitucional. Um desses ambientes de inclusão social é a escola, segundo a personagem. Pois, se
o menor infrator se encontrasse na escola, ao invés, de estar num ambiente de marginalidade e exclusão
social, não estaria numa audiência de julgamento para cumprimento de medidas socioeducativas.
Nessa perspectiva, o filme tem o propósito de destacar ambientes de inclusão e exclusão social
dentro do cenário de menores infratores. A própria internação do menor infrator seria um ambiente de
exclusão e marginalização social. Outro ponto relevante na fala da personagem “juíza” é a questão da
vontade do menor infrator, a vontade de ilicitude é tratada com ênfase, pois com base na vontade para o
ato ilícito e a realização de uma determinada conduta típica, o “Estado-juiz” também apresenta o seu
poder punitivo.
No que se refere ao discurso abusivo, verifica-se as figuras dos agentes no espaço de internação
dos menores infratores. Uma das falas que chama a atenção é quando um agente pronuncia: “Bora,
bandido, moleza...”[291]. Essa expressão ressalta um discurso abusivo, uma violência simbólica por
parte de um funcionário do Estado, e, por outro lado, ressalta o estado de submissão do menor infrator, e
a imposição do poder jurídico para vencer toda a resistência daquele que cumpre medida socioeducativa.
O filme evoca questões de inclusão/exclusão social, eficácia/ineficácia da lei, a força da lei e o
poder punitivo do Estado a qualquer custo, que desconsidera em sua práxis jurídica os direitos humanos
do menor infrator. A obra retrata dentro do prisma de efetividade do texto constitucional as relações de
poder, sob o prisma de “divisão de poderes”, o que cabe ao poder judiciário e o que cabe ao poder
executivo, por exemplo. Importante ressaltar que o filme nos instiga ao pensamento sobre as condições
sociais dos menores infratores, em disparidade com as condições sociais daqueles que exercem o poder
judiciário. Evidencia-se um distanciamento de realidades. A realidade de um juiz, obviamente, é
diferente da realidade de um adolescente que mora numa favela, isso faz refletir sobre a possibilidade de
compreensão do fato, circunstâncias sociais, num julgamento onde se considera apenas a normatividade
do texto constitucional.
O cenário do filme nos induz a pensar nas desigualdades sociais, embora, se trate de uma
sociedade democrática. A estética do filme conduz o telespectador para a observação da relação entre o
poder jurídico e a violência simbólica. Nesse sentido, a aplicabilidade da lei se distancia cada vez mais
do exercício pleno do "direito". É fundamental perceber o contexto de crise constitucional e crise de
legitimidade de autoridade que é apresentado a partir do filme. A obra “Juízo” (2007) apresentada no
contexto do século XXI, destaca a necessidade de uma consciência jurídica que reivindique os direitos
das crianças e adolescentes positivados no texto constitucional. Caso contrário, adolescentes que já se
encontram em estado de exclusão social não conseguem se livrar das garras da marginalização social
imposta. Por outro lado, o filme tem o propósito de denunciar, por meio de sua forma e conteúdo,
problemas relativos aos princípios democráticos, ao descumprimento de direitos garantidos num “Estado
democrático de direito”, e, sobretudo, evoca um debate crítico e frutífero sobre os direitos humanos dos
menores infratores. Questões estas tão pertinentes na realidade brasileira.
“Juízo” fala sobre crise constitucional, que conduz à ruptura entre norma constitucional e
realidade social. Um distanciamento entre cumprimento normativo do texto constitucional e a
concretização de princípios constitucionais e direitos fundamentais na realidade brasileira. A crise de
legitimidade gera desafios à Constituição, ocorrendo um enfraquecimento do poder judiciário, mas
também um enfraquecimento do poder legislativo. Dentro do contexto de enfraquecimento do poder
legislativo e de um poder executivo inoperante, resta ao poder judiciário o desafio de concretização dos
direitos presentes no texto constitucional de 1988. O Judiciário é desafiado para compreender não só o
que é “direito” na Constituição, mas também o significado de “justiça” e de “lei”. Nesse sentido, o filme
provoca o pensamento acerca do significado de “direito”, “justiça” e “lei”. Já que estes conceitos são
dinâmicos, requer-se a aplicação da lei para além da “letra da lei”. Desse modo, o filme incita
discussões a respeito da temática de métodos de interpretação da Constituição utilizados pelo “Estado-
juiz”.
A partir do filme pode-se refletir sobre paradigmas de interpretação e aplicação do “direito” na
realidade brasileira. É necessária uma hermenêutica jurídica que abranja os fins sociais da lei e as
exigências do “Estado democrático de direito”. Com base nisso, o que se requer é um voltar para o ser
humano e a dignidade da pessoa humana na aplicação da lei. Esse é o propósito do “direito”, a
concretização de direitos e garantias da pessoa humana.
A obra “Massa e Poder” de Elias Canetti apresenta a questão da inversão do temor do contato tão
presente no filme “Juízo”. O filme retrata o momento em que os menores infratores estão adentrando o
espaço de internação. Nesse momento se verifica o temor do contato por parte dos menores infratores,
que agora estão sendo direcionados para um espaço de convivência com pessoas totalmente
desconhecidas e sendo obrigados a estabelecer contato com autoridades e pessoas que não possui um
vínculo de afetividade. Nesse sentido, Canetti afirma: “Não há nada que o homem mais tema do que o
contato com o desconhecido. Ele quer ver aquilo que o está tocando: quer ser capaz de conhecê-lo ou, ao
menos, de classificá-lo. Por toda parte, o homem evita o contato com o que lhe é estranho.”[292]
Os menores infratores são colocados em condições degradantes, onde se evidencia mais seu
estado de exclusão social. As condições desses adolescentes os colocam numa situação de indefesos, de
vítimas do poder punitivo do “Estado-juiz”, onde como se falou anteriormente nem seu corpo é
respeitado, não há um tratamento digno. A fragilidade e combate à resistência do menor infrator são
retratados num ato de despir o adolescente, deixa-lo nu simbolicamente perante o “juízo” do Estado, para
que suas condutas sejam moldadas pelo poder punitivo. Todo seu comportamento anterior deve ser
lançado fora do espaço de internação. Há uma forte repressão social sob o menor infrator. Desse modo, o
menor infrator é visto como uma “presa” do Estado, com base numa leitura da obra de Canetti.
Sendo o adolescente uma “presa”, ele passa por todo um processo de readaptação perante o poder
do Estado. Nas palavras de Canetti: “Nem mesmo as roupas proporcionam segurança suficiente - quão
facilmente se pode rasgá-las, quão fácil é avançar até a carne nua, lisa, indefesa da vítima.”[293] Com
base nisso, destaca-se uma perspectiva de vitimologia do menor infrator, o adolescente que pratica ato
ilícito perante a lei, é menor infrator, mas também é vítima da ineficácia da lei. Na medida em que o
Estado conhece da conduta típica praticada pelo menor infrator e o pune de forma violenta, na tentativa
de adequar suas condutas às normas da Constituição. O menor infrator tem suas resistências combatidas e
se torna indefeso, encarcerado fisicamente e psicologicamente.
Desse modo, vale ressaltar que o cenário da crise brasileira é generalizado, não somente uma
crise do poder legislativo, o enfraquecimento do poder judiciário, a inoperância do poder executivo, mas
também uma crise de valores humanos que circunda todo o contexto ideológico, político, cultural e social
do país. É invocada uma ética do “direito” que contrapõe o próprio “direito”, pois, a ética não deve
nascer da imposição do poder punitivo do Estado, dos tabus sociais e dos interditos presentes no
ordenamento jurídico, mas deve emergir da interface entre práxis social e práxis jurídica. Uma ética do
“direito” que está de acordo com o “direito”, é acima de tudo, uma ética que considera os valores da
dignidade da pessoa humana.
Nessa perspectiva, o filme aborda o fenômeno jurídico de transformações de paradigmas, onde no
contexto atual da realidade brasileira, embora, se vislumbre uma crescente valorização das normas
constitucionais e o aspecto negativo da lei, ou seja, o seu aspecto de punição e cobrança pelo “Estado-
juiz”, direcionando toda a interpretação para o dispositivo da lei, a crise constitucional e a crise da
“divisão dos poderes” convoca o ordenamento jurídico para seguir um novo caminho hermenêutico que
passe a ver a realidade social.
O positivismo da norma deve dar lugar para uma nova hermenêutica jurídica e nova forma de
aplicação da lei. O sistema jurídico precisa considerar a pragmática jurídica. Na obra “O desafio à
autoridade da lei”, Mara de Oliveira, ressalta o fenômeno de desconfirmação da autoridade jurídica
como exposição das relações de poder. Isso significa, no contexto do filme, que o menor infrator ao
infringir a norma do texto constitucional está desconfirmando o poder do Estado e sua “Lei maior”. A
desconfirmação do poder legal pode ser consciente ou inconsciente no menor infrator, de acordo com as
circunstâncias sociais aos quais ele está inserido. É importante ressaltar que, obviamente, o menor
infrator pode não ter conhecimento da “letra da lei” que consta no texto constitucional, mas tem
conhecimento de valores válidos que permeiam as condutas humanas, e tem conhecimento do jogo de
poder lícito/ilícito que está presente na realidade social.
Com base nisso, um momento importante do filme é quando mostra o julgamento de duas meninas
infratoras, e a personagem “juíza” inicia um discurso ético e punitivo acerca da conduta típica
supostamente praticada pelas menores, fala: “Roubar os outros. Pegar o que não é de vocês não tem
justificativa...”[294] Nesse momento, ressalta-se com veemência uma relação de poder entre o “Estado-
juiz” e as menores infratoras acerca do direito de propriedade em face de um direito de necessidade
afirmado por elas. Segundo as adolescentes, a conduta típica foi efetuada porque precisavam alimentar
seus filhos, e suprir suas necessidades, no entanto, esse discurso das adolescentes como forma de
evidenciar um poder de justificativa, que desconfirma a autoridade jurídica da magistrada, foi logo
combatido pelo poder punitivo do Estado, pela norma do texto constitucional, que não prevê a
necessidade de roubo, mas considera o roubo como conduta típica.
Isso evidencia que durante a audiência há relações de poder, onde o poder não se encontra
absolutamente nas mãos do “Estado-juiz”, mas transita entre os acusados e a magistrada. Os acusados,
conforme o princípio do devido processo legal e a presunção de inocência, alegam suas justificativas e
necessidades, na tentativa de apresentar a sua inculpabilidade perante a conduta ilícita praticada, isso
demonstra o poder de resistência do menor infrator. No momento em que ele fala é evidenciado o seu
poder de resistência em face do poder punitivo do “Estado-juiz”, mas logo, mediante um discurso
abusivo, o poder retorna para as mãos da magistrada que apresenta a sentença e a imposição de
cumprimento de medida socioeducativa. Desse modo, a partir de uma leitura da obra de Mara de
Oliveira, verifica-se que para o Estado o menor infrator representa uma ameaça à ordem constitucional.
Vale ressaltar que, pelo fato de o direito apresentar um caráter pluridimensional, pode-se observar
a dimensão do universo jurídico e sua forma de expressão da linguagem. Há um discurso jurídico
presente nas audiências de julgamento dos menores infratores, um discurso que se manifesta muitas vezes
abusivo. Quando, por exemplo, a personagem “juíza” ao se referir às menores infratoras, fala: “Vocês são
ladras?”[295] há também um discurso jurídico que se mostra na forma de discurso de valores morais,
noutro momento afirma a personagem: “O exemplo que estão dando pros filhos. Imagem [...]”.[296]
Desse modo, a personagem evidencia os valores morais presente na sociedade brasileira e evoca uma
ética para as menores infratoras, que considera a reputação.
Nesse cenário de discurso jurídico, se enfatiza de acordo com a autora Mara de Oliveira, a
situação comunicativa. A situação comunicativa evidencia as relações de poder e o jogo lícito/ilícito
presente no discurso jurídico. “Trata-se de uma referência à práxis decisória e a possibilidade de
solução de conflitos”, conforme Mara de Oliveira.[297]
Na situação comunicativa há um intercâmbio do poder, que circula entre as autoridades jurídicas e
os acusados, isso mostra a própria dinâmica das relações de poder. Tais relações de poder também são
desenvolvidas por parte do “Estado-juiz” como estratégias de poder para combater a resistência do
acusado. Nesse sentido, se verifica que os “fatos do discurso” são jogos de poder, representado
estratégias de ação e reação entre a autoridade jurídica e o sujeito, no caso, o menor infrator. Segundo
Mara de Oliveira:
A situação comunicativa possui três elementos: o emissor, o receptor e o objeto da discussão. Envolve a
compreensibilidade da ação. [...] Aquele que se comunica (emissor) não só se reporta ao outro, como
também apela ao entendimento daquele que ouve (receptor). Só existe discurso se houver compreensão,
é necessário um “mútuo entendimento”.[298]

No decorrer da interação comunicativa, emissor e receptor troca de status, no caso, a personagem


“juíza” é emissora e receptora da situação comunicativa, simultaneamente. Assim, os menores infratores
são emissores e receptores, ao mesmo tempo, da mensagem normativa, estando eles confirmando ou
desconfirmando a mensagem. Pois, ao se desconfirmar a mensagem, também se evidencia o “fato do
discurso” que é a norma do texto constitucional dentro de uma perspectiva de
cumprimento/descumprimento, visto que, desconfirmando a mensagem normativa, o menor infrator
invoca para si o poder punitivo do “Estado-juiz”. Nisso se evidencia, o caráter reflexivo da relação
comunicativa, de ação e reação constante dentro da estrutura das relações de poder.
O sistema jurídico representa uma ação mediante o emprego do discurso jurídico que provoca
uma reação naquele que ouve. Pode ser uma ação através de um discurso abusivo que provoca no
acusado o aumento de sua resistência e o emprego da força, ou o seu abatimento e uma postura de
vencido. Ao longo do filme verifica-se com frequência essas alterações de postura dos menores
infratores que num momento mostra sua resistência e noutro momento o seu abatimento. No filme também
se observa o papel da personagem “juíza” exercendo poder, através do discurso jurídico, para confirmar
a mensagem normativa. A personagem chega a fazer o menor infrator repetir discursivamente o que é o
lícito a se fazer, na tentativa de combater assim, sua resistência.
Os personagens simbólicos do filme representam a estrutura do poder no ordenamento jurídico,
constituída de abuso de poder normativo e desconfirmação da autoridade jurídica, o que trás ao foco do
direito a questão da pragmática jurídica. Nesse sentido, a mensagem normativa e a aplicação da lei deve
considerar o caráter pluridimensional do “direito”, deve considerar o significado de “justiça”, “lei” e
“direito” na realidade brasileira. A pragmática jurídica é necessária, porque foge de todo o dogmatismo
jurídico e propõe o diálogo da norma do texto constitucional com a práxis social e jurídica.
Vale ressaltar que sob o viés da pragmática, toda a situação comunicativa apresenta um sistema
interacional, que abrange as condutas e linguagens dos atores sociais e, respectivamente, o papel que
esses atores representam. Considerando também as ações e reações dentro da situação comunicativa. Isso
denota, conforme Mara de Oliveira, a complexidade da situação comunicativa que é constituída por
relações de poder entre os emissores e os receptores da mensagem. O que pode ser caracterizado pela
reflexividade da ação comunicativa.
No que se refere à situação comunicativa entre o “Estado-juiz” e o menor infrator, destaca-se
relações de poder, como falou-se anteriormente. Nesse sentido, o “Estado-juiz” representa a força da lei
e o poder punitivo do Estado e o menor infrator representa o comportamento desviante que deve ser
combatido. Todas as forças do menor infrator devem ser neutralizadas pelo poder do “Estado-juiz”,
emprega-se o poder que for necessário, seja por uma violência simbólica mediante um discurso abusivo,
seja pela internação do menor infrator, que mostra que ele foi detido pelo Estado. Manifesta também que
o poder do Estado é maior que o poder do menor infrator. Com base nisso afirma Canetti: “[...] Seguirá
havendo resistência, ou se se abrirá mão dela completamente, isso depende da relação de forças entre
aquele toca e o que é tocado”.[299]
O Estado exerce sobre o menor infrator um "agarrar"[300]. Esta expressão empregada por Canetti
em sua obra tem um significado amplo, pode representar tanto o contato aparentemente inofensivo do
Estado na pessoa da magistrada, em todo o contexto da audiência, onde o menor infrator é recebido com
cumprimentos da educação formal, expressos em: "bom dia", "boa tarde", "obrigada", no apontamento
dos ditames da lei, e do império da lei sob a conduta típica e a medida socioeducativa que deverá ser
cumprida; como também, pode representar o ataque perigoso do Estado na forma do encarceramento do
menor infrator, quando este é conduzido para um espaço de internação e ali tem seu direito à liberdade de
ir e vir não garantido.
Esse é o prestígio do "Estado-juiz", a partir de uma metáfora de "predador e presa", onde o
Estado é o predador e a presa o menor infrator. O Estado ao agarrar a presa passa a apresentar um status
de prestígio, pois demonstra a dominação e o seu poder punitivo sob o menor infrator. Nesse sentido, o
menor infrator foi tomado, não pode mudar de posição social, ele é um infrator, naquele momento,
cumprindo medida socioeducativa, isso demonstra o caráter do agarrar. O agarrar, conforme Canetti
representa o ato decisivo do poder. O momento da "internação" do menor infrator retrata a práxis
decisória do "Estado-juiz", a manifestação decisiva do poder jurídico.
No que se refere à personagem "juíza", a partir de uma perspectiva da obra de Canetti vê-se que
ela é detentora do poder do Estado, o poder punitivo exercido sobre o menor infrator depende também da
existência da personificação do Estado na pessoa da "juiza". Segundo Canetti, aquele que detêm o poder:
[...] compraz-se da maior e mais nítida distância possível; é nisso, e não apenas em seu brilho, que ele se
equipara ao sol, ou, mais ainda, ao céu, como ocorre entre os chineses. O acesso a ele é dificultado. De
sua distante segurança, ele pode mandar agarrar quem quer que seja, esteja onde estiver.[301]

É exatamente isso que representa a personagem "juíza" enquanto aquela que exerce o poder
punitivo. A partir de sua sentença, os infratores são agarrados, onde quer que se encontrem. Isso também
ressalta a força da lei. Outro aspecto importante a se ressaltar é a prisão enquanto contato definitivo,
segundo Canetti. Destacam-se algumas cenas no filme de contato definitivo. A personagem "juíza" dispõe
de autoridade legítima para prender o menor infrator, no caso, para que este cumpra a medida
socioeducativa. Outro aspecto, os personagens "agentes" no Instituto exercem grande coação, força e
poder do Estado, a fim de dominar a situação do menor infrator, inibindo sua resistência. O menor
infrator se demonstra claramente no filme, como presa capturada pelo "Estado-juiz".
Nesse sentido, é importante ressaltar os “aspectos do poder” a partir da personagem “juíza” e dos
personagens “menores infratores” na audiência de julgamento. Verifica-se as posições do ser humano.
Cada posição, por meio da linguagem corporal, expressa algo específico dentro da ótica das relações de
poder. Quando se observa a cena em que a personagem “juíza” adentra na sala de audiência, se verifica a
constituição da hierarquia do poder jurídico-político, expressas nas posições dos atores sociais. Todos
os presentes na sala de audiência fazem reverência à personagem “juíza”, como representação do
símbolo de poder. A personagem “juíza” representa o símbolo de poder na forma do “Estado-juiz”.
Destaca o prestígio simbólico do poder. Desse modo, as posições dos homens e as reverências enfatizam,
segundo Canetti, a configuração muda que o poder representa.
O menor infrator passa por etapas de incorporação. O caminho que o menor infrator percorre
desde a sua “captura”, até a pronunciação da sentença, e o processo de cumprimento da medida
socioeducativa, representa todo o itinerário que a “presa” percorre pelo corpo. Nesse processo, o menor
infrator é consumido lentamente, todas as suas peculiaridades que relembram a conduta típica devem ser
retiradas. Nesse caso, conforme atesta Canetti, “o que sobra é lixo e fedor”[302]. O espaço de internação
onde o menor infrator se encontra é um lugar sem esperança.
Nessa perspectiva, a sentença pronunciada pela “juíza” representa o ato do “Estado-juiz” agarrar
a presa, levando da mão para a boca. Com base nessa metáfora de Canetti, a prisão seria a boca e se
destacaria como prestígio secreto do poder. A boca constitui o modelo de todas as prisões. Tudo o que
cai nela está sem esperança. Num estado de exclusão social. No momento em que os menores infratores
percorrem os corredores adentrando no espaço de internação, isso representa a “estreita garganta”, a
partir da ótica de Canetti, onde aos poucos os menores infratores vão sendo consumidos. A prisão é,
desse modo, o poder em concentração máxima. O cumprimento da medida socioeducativa pelo menor
infrator, a privação de sua liberdade, causa neste adolescente, sob a ótica de Canetti, um aguilhão. O
menor infrator fica marcado para sempre por estar cumprindo sua medida socioeducativa, por estar
cumprindo a ordem. O aguilhão simboliza as marcas do poder punitivo do “Estado-juiz”.
Nesse sentido, o simbolismo da prisão é constituído de elementos do poder. A força que o
“Estado-juiz” emprega sob o menor infrator no momento de sua “captura” denota que o poder punitivo do
Estado está próximo e presente. A força exerce mais coerção do que o poder, visto que é imediata. Dessa
forma, a força representa o poder em seus estágios mais profundos. Ao longo do tempo, a força
transforma-se em poder. O poder é constituído por universalidade e dessa maneira é mais amplo. Canetti
aborda a metáfora do “gato” e “rato” para evidenciar a diferença fundamental entre força e poder.
Suponha-se que o “rato” represente o menor infrator, o menor infrator uma vez capturado encontra-se
totalmente à mercê da força do “Estado-juiz”. O “Estado-juiz” o agarrou e o mantém cativo.
Quando o menor infrator cumpre sua medida socioeducativa sendo liberado do espaço de
internação, denota o caráter da dinâmica da força do “Estado-juiz”. O Estado solta novamente o menor
infrator, permite que ele goze de um pouco de liberdade, porém, dispõe de poder para agarrá-lo de volta.
O menor infrator ainda se encontra dentro da esfera de poder do “Estado-juiz”, nesse caso. O Estado
representando o “gato”, nesse sentido, permite que o menor infrator corra (após o cumprimento de sua
medida socioeducativa), mas, o menor infrator ainda está sob a vigilância do Estado, se, porventura,
perde-se o controle sob a sua liberdade, o menor infrator não estará mais a mercê da força do Estado.
De acordo com Canetti,
O espaço sobre o qual o gato projeta sua sombra; os instantes de esperança que permite ao rato,
mas tendo-o sob sua estrita vigilância, sem perder o interesse nele e em sua destruição - tudo isso
junto (o espaço, a esperança, a vigilância e o interesse na destruição) poder-se-ia designar como
o corpo propriamente dito do poder, ou, simplesmente, como o poder em si.[303]

O filme retrata que alguns menores infratores fugiram do espaço de internação. Nesse sentido, a
fuga é a desconfirmação da autoridade jurídica. Desconfirmação também do poder do “Estado-juiz”. No
contexto do filme, a fuga se realizou em face do abuso de poder normativo, o que provocou reações
subversivas dos sujeitos. No contexto do jogo jurídico “lícito/ilícito”, a confirmação do poder da
autoridade jurídica representa a licitude, a rejeição da mensagem normativa enfatiza a ilicitude. Isso
ressalta o cometimento meta complementar da norma jurídica. Desse modo, a fuga se demonstra como
confronto entre direito e poder. Representa, sobretudo, a situação-limite dentro do contexto das relações
de poder. Isso caracteriza, segundo Mara de Oliveira, a crise de legitimidade do poder jurídico.
A partir da noção de crise de legitimidade do poder jurídico, reflete-se também sobre a função
simbólica dos textos constitucionais, ou seja, a insuficiente concretização jurídica de diplomas
constitucionais. Com base nisso, a Constituição teria por finalidade, em sua estrutura normativa, o
exercício do controle social, mediante a manutenção da ordem e tranquilidade. Em face do poder da
Constituição há a iminência de um direito de necessidade, consubstanciado na natureza humana. Por isso,
pergunta-se: o direito de necessidade é um direito natural? Se for um direito natural, inerente ao ser
humano, é, portanto, anterior a norma, anterior à escritura da lei. Seria a necessidade, fonte primária do
direito natural? O que seria, então, mais seguido pelo coração humano, seu direito natural ou a norma
positivada? Tais questões dentro da dimensão de "direito", "lei" e "justiça" fazem refletir sobre a
complexidade da vigência e significado da Constituição no contexto da sociedade.
A norma positivada não alcança toda a dimensão do direito, nesse sentido, presencia-se no
ordenamento jurídico o fenômeno jurídico de "lacunas do direito". Diante desse fenômeno, se faz
necessário o preenchimento das lacunas por meio de disposições excepcionais. Seriam, de fato,
disposições excepcionais, ou o preenchimento de lacunas é um exercício constante do "Estado
democrático de direito" em países, como o Brasil? O preenchimento de lacunas ressalta o emprego da
hermenêutica jurídica como dimensão do próprio direito. Não há aplicação do direito sem hermenêutica
jurídica. A hermenêutica é o caminho para que o direito se concretize no cenário brasileiro, na medida
em que não restringe o direito à normatividade do texto constitucional, mas, abrange uma compreensão da
práxis jurídica. Portanto, da hermenêutica jurídica irrompe a práxis jurídica, tão necessária para a
vigência e o significado da norma.
A partir do filme, reflete-se acerca da constatação no cenário político-jurídico de países da
América Latina, tais como o Brasil, um país dito democrático, a presença do estado de exceção.
Conforme Giorgio Agamben, "a teoria do estado de exceção não é de modo algum patrimônio da tradição
antidemocrática".[304] Tal autor constata as raízes do estado de exceção e apresenta, mediante um
método de correlação, as características primordiais desse fenômeno. O estado de exceção representa no
bojo da sociedade brasileira, também, a repressão das desordens. As condutas que não se adequam à lei
são classificadas como manifestações de desordem e, assim, punidas e marginalizadas. Não somente
condutas típicas, antijurídicas, mas condutas que não adequam à totalidade normativa social. Com base
nisso, vemos no contexto brasileiro, condutas atípicas como o funk, o "rolezinho", ainda marginalizadas
por uma classe burguesa dominante.
Todo esse cenário de uma "sociedade democrática emergente" retrata personagens sociais que são
anônimos, pois, vivem à margem da sociedade. Desse modo, pode-se falar numa estrutura binária da
sociedade brasileira, caracterizada pela inclusão e exclusão social, não diretamente relacionada ao
caráter típico ou atípico de condutas do ordenamento jurídico. Ressalta-se, ao se considerar aspectos do
ordenamento jurídico a dinâmica social. Tal relação é extremamente relevante, ao se pretender
compreender o caráter de inclusão/exclusão social e estado de exceção no Brasil.
O cenário político, cultural, social e jurídico apresenta no filme, demonstra as características
fundamentais do estado de exceção. Nesse sentido, vale ressaltar que o estado de exceção demonstra em
tempos de crise política uma restrição aos direitos do cidadão, a partir, de um fundamento na lei. Nesse
contexto, a estrutura da divisão dos poderes apresenta caducidade, onde o poder executivo atribui a si
"plenos poderes" operando a lei em face do direito, abrangendo em sua função muitas características do
poder legislativo. O poder executivo, com base no próprio aparato legal, insere os próprios princípios
democráticos numa caducidade, onde o que mais importa é o exercício do poder para manter determinada
ordem social. As relações de poder político-jurídica medem forças e se rendem em busca da
operacionalização do direito como controle social. É interessante notar a apreensão da noção de "Estado
democrático de direito" por parte da sociedade brasileira. Há o emprego de uma transformação da ordem
da constitucional própria do cenário brasileiro.
Verifica-se, então, a partir do filme “Juízo”, a interface entre princípios democráticos e ordem
constitucional. A partir da irrupção de tensões sociais, o ordenamento jurídico sofre transformações
interpretativas com vistas a aplicação da lei de modo mais eficaz. No entanto, as tensões sociais são
reações à uma normatividade que já se encontra em distanciamento do direito humano. Por haver
constantes alterações substanciais da ordem constitucional, emana o poder dominante com força de lei em
um superestrutura que visa exercer toda a força necessária para a manutenção da ordem.
Segundo Agamben,
o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico. [...] A suspensão
da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo
menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica.[305]

Se o conceito de necessidade é fundamento do estado de exceção, então “o adágio latino


necessitas legem non habet, isto é, a necessidade não tem lei”[306], teria grande relevância para o
sistema jurídico-político. Conforme Agamben, este adágio apresenta dois sentidos opostos, ""a
necessidade não reconhece nenhuma lei" e "a necessidade cria sua própria lei"."[307] Nessa perspectiva,
a teoria do estado de exceção se baseia essencialmente no direito de necessidade.
A necessidade parece conferir poder de tornar lícito o ilícito. Também representa uma
justificativa para transgressão da norma presente no texto constitucional.
A partir de um discurso de necessidade, a violência é justificada, isso viola diretamente a ordem
constitucional. Nesse sentido, a alegação de um direito de necessidade é antijurídico. O fato da
necessidade para alimentar os filhos, no caso das meninas infratoras, tem a pretensão de transformar-se
em direito. Desse modo o princípio da necessidade se apresenta como um princípio revolucionário, que
procura superar a ordem da Constituição, violando o direito à propriedade, na tentativa de se criar um
direito à necessidade que anula as liberdades individuais, em detrimento de apenas uma liberdade.
A interface liberdade e necessidade é um problema filosófico para o ordenamento jurídico. A
questão se resolve a partir de uma práxis decisória que coloca a conduta praticada pela justificativa de
necessidade no seu devido lugar, que é a ilicitude, e ao situar o status dessa necessidade enquanto
conduta ilícita relaciona o fato à norma, e assim pode punir a conduta com base na previsão da lei. Desse
modo, verifica-se a soberania da norma do texto constitucional quando do exercício do poder punitivo do
Estado.
Nas palavras de Agamben,
o estado de exceção não é uma ditadura (constitucional ou inconstitucional), mas um espaço
vazio de direito, uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas – e, antes de tudo,
a própria distinção entre público e privado estão desativados.[308]

Desse modo, o estado de exceção se constitui como anomia no contexto social e jurídico. A
anomia irrompe a partir da suspensão do direito. Nesse sentido, no estado de exceção ocorre um
distanciamento entre a norma e o direito, também entre a norma e a vida. A ação humana da autoridade
jurídica sem relação com o direito representa uma norma sem relação com a vida. Assim sendo, o filme
representa o estado de exceção presente na realidade brasileira. Vale ressaltar que, diante disso, o
Estado enquanto “máquina estatal” ainda permanece eficaz. Ele continua a exercer o seu poder, quase
sempre sem interrupção.
Verifica-se na obra “Juízo” que o estado de exceção constitui-se de violência e ausência de
direito. Não existe nenhuma relação entre a vida e aplicação da norma. O que provoca tensões sociais e
reações subversivas por parte do sujeito, no caso o menor infrator, em face da autoridade jurídica.
Quando, por exemplo, observou-se a fuga como reação subversiva do sujeito, assim como, uma nova
prática de condutas típicas.
A detenção do menor infrator representa uma repressão por parte do Estado em face da tensão
social causada. Tanto as tensões sociais quanto a repressão punitiva do Estado denotam o caráter de
ineficácia do texto constitucional. Na obra “A constitucionalização simbólica”, o jurista Marcelo Neves,
apresenta uma questão primordial acerca da concretização normativo-jurídica de textos constitucionais, a
saber: a discrepância entre a função hipertroficamente simbólica e a insuficiente concretização jurídica
de diplomas constitucionais. Em suma, o autor dá ênfase à um fenômeno jurídico que ele nomeia
"constitucionalização simbólica", onde se verifica um distanciamento da "letra da lei" em face da
aplicabilidade da norma. Ele refere-se, sobretudo, à ineficácia das normas constitucionais.
Os textos constitucionais apresentam uma função meramente simbólica, onde o que predomina é o
simbolismo do poder da "escritura" da lei, a norma em si positivada, o poder da autoridade da lei, no
caso, o Estado representado, por exemplo, no magistrado, o poder constitucional de forma,
especialmente, simbólica. A Constituição é um símbolo que aponta para algo diferente de si mesma,
aponta para relações de poder político-jurídicas no contexto da sociedade moderna. Desse modo, a
função simbólica dos textos constitucionais refere-se à carência de concretização normativo-jurídica da
Constituição.
O debate sobre constitucionalização simbólica ressalta, em primeiro lugar, o conceito de
"Constituição" e em segundo lugar, a sua função simbólica. Para Neves, a significado de "Constituição" é
pluridimensional, pode-se afirmar também que é polissêmico, dotado de uma dimensão de sentidos e
significados que propicia interpretações diversas. O jurista se apropria do significado de "Constituição"
enquanto acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico, mas principalmente enquanto
mecanismo de autonomia operacional do direito na sociedade moderna.
O significado da Constituição é, sobretudo, uma estratégia das relações de poder político-jurídica
dentro da perspectiva do ordenamento jurídico. O autor verifica casos de constitucionalização simbólica
e o significado de "Constituição" para tal fenômeno. Como em casos de constitucionalização simbólica se
compreende e se aplica a Constituição? Essa é uma das perguntas fundamentais nesse contexto.
O jurista apresenta alguns aspectos da relação entre ineficácia normativo-jurídica e função
político-simbólica da Constituição. A norma positiva do direito ressalta o caráter primordial do texto
constitucional e evidencia a autonomia operacional do sistema jurídico. No entanto, a autonomia
operacional do sistema jurídico tem limites dentro das relações de poder político-jurídica. No contexto
de uma constitucionalização simbólica, a autonomia se restringe à função simbólica da normatividade que
se mostra ineficaz em face da concretização do direito. Isso evidencia a disparidade entre norma e
direito, como uma das características principais da constitucionalização simbólica.
Com base no jurista Marcelo Neves, ressalta-se uma característica predominante no ordenamento
jurídico brasileiro: uma forte contradição entre direito e realidade constitucionais. O Brasil por se tratar
de um país "subdesenvolvimento" apreende a constitucionalização de forma não eficaz, porque não
considera a função social do "direito". Modelos jurídicos não devem ser copiados sem levar em conta a
relação fundamental do direito e realidade.
Há uma ausência de normatividade jurídica do texto constitucional como estrutura democrática.
Nesse sentido, não há um desenvolvimento operante do processo de concretização do direito
constitucional. A própria construção do direito constitucional no cenário brasileiro é insuficiente. No
entanto, conforme verifica Marcelo Neves, o que tem força de lei e eficácia jurídica é a linguagem
constitucional. A linguagem do texto constitucional apresenta a construção de um direito simbólico, uma
legislação simbólica e constituição simbólica. Isso evidencia a importância do papel político-simbólico
da linguagem constitucional como estratégia político-jurídica do sistema jurídico.
Nessa perspectiva, toda a legislação, permeada por uma linguagem constitucional, é uma
legislação simbólica. Pois, por não existir concretização efetiva do direito constitucional, a legislação
manifesta a força do texto constitucional enquanto norma, apenas como lei sem aplicabilidade do
"direito" e da "justiça" de forma igualitária. O aspecto simbólico reside no fato de que por existir um
texto constitucional já se acredita que o direito é garantido, e a partir dessa linguagem constitucional da
lei, o Estado procura convencer os cidadãos de que há o exercício do direito e do bem-estar social,
quando, na verdade, há apenas um texto constitucional carente de eficácia social.
O jurista Marcelo Neves ao dialogar em sua obra com a perspectiva sociológica do direito de
Niklas Luhmann apresenta uma crítica à noção de "direito" unilateral. A função do direito não deve ser
reduzida à garantia ou asseguração das expectativas. O direito é um conceito amplo, não unilateral, ele
tem a dimensão de influenciar em reações e ações jurídicas, contribuindo para a criação de novos
direitos, novas condutas típicas. Isso é a dimensão do caráter pluridimensional do direito.
Em contrapartida, a legislação simbólica como estratégia política e jurídica, de que o direito será
garantido porque há um texto constitucional, exerce a função de produção da aceitação do status quo. Na
legislação simbólica há a prevalência de um significado "político-ideológico" relevante em face do
sentido normativo-jurídico aparente. Desse modo, a legislação simbólica serve-se ao discurso jurídico
do Estado de que os cidadãos estão sendo protegidos e seus direitos assegurados.
Por outro lado, tratando-se da legislação enquanto instrumento do sistema jurídico, vê-se que ela
tem o propósito de exercer o controle social mediante a percepção da lei como instrumento da
manutenção da ordem, que dita normas sociais vigentes. Com base nisso, verifica-se um problema
filosófico no contexto do direito: a questão da vigência da lei como instrumento do poder do Estado e a
questão da ineficácia das normas jurídicas. Ambos os aspectos do poder jurídico-político estão
relacionados, visto que a insuficiência da função social da lei como instrumento consequentemente gera a
ineficácia da norma. Todavia, o texto constitucional exerce outras funções sociais relevantes, embora
apresente ineficácia normativo-jurídica. A aplicabilidade da lei não consegue desenvolver o sentido
jurídico manifesto no texto constitucional.[309]
Conforme Marcelo Neves: "A legislação simbólica[310] [...] serve, primária e hipertroficamente,
a finalidades política de caráter não especificamente normativo jurídico".[311] É, pois, instrumento
ideológico-político. Há um aparente sentido normativo-jurídico, mesmo que, porventura, posteriormente,
esta legislação simbólica alcance força normativa. Diante disso, a partir do filme, reflete-se na
necessidade de criação de pressupostos jurídicos para a eficácia da norma constitucional. A pergunta
relevante, nesse caso é: há alguma preocupação quanto à concretização normativa da legislação?
Se não são criados novos resultados com o propósito de concretização normativa na atividade
legislativa, isso gera um enfraquecimento do poder legislativo, onde se questiona as próprias intenções
do legislador na construção da norma, gera desafios ao exercício do direito pelo poder judiciário e
coloca a lei à serviço do poder executivo, como mera estratégia política. A legislação simbólica se
presta a aparência de tutela jurisdicional, a aparência de solução de conflitos. Dessa maneira, é
necessário que o poder judiciário considere a hermenêutica jurídica coerente com a pragmática jurídica
em face das lacunas da lei.
Entende-se, nessa perspectiva, que a legislação simbólica representa também uma legislação-
álibi[312], segundo Neves. O propósito da legislação simbólica seria também o de fortalecer uma certa
confiança dos cidadãos no governo vigente, e de modo mais amplo uma confiança no Estado.
A legislação-álibi se mostra como um instrumento viável para a manipulação dos cidadãos por
parte do Estado. Desenvolve uma perspectiva ideológica e política do texto constitucional, tratando-o
como texto simbólico. Tudo isso com vistas à provocar uma aparência de bem-estar social e de que os
direitos previstos no texto constitucional estão sendo cumpridos, o que na realidade não ocorre. O
emprego da legislação-álibi se presta tão somente à uma função simbólica.
Partindo dessa reflexão, é importante ressaltar que na visão de Marcelo Neves a
constitucionalização simbólica se apresenta como alopoiese do sistema jurídico. Isso caracteriza um dos
problemas típicos do Estado periférico, como, por exemplo, o Brasil.[313] O autor reconhece no Brasil,
em se tratando da Constituição de 1988, uma função hipertroficamente simbólica. Nesse sentido, o texto
constitucional não se desenvolve enquanto instrumento de orientação e reorientação das expectativas
normativas e, portanto, não funciona como instituição jurídica de legitimação generalizada do Estado.
[314]
O que caracteriza a função hipertroficamente simbólica da Constituição de 1988 é a ausência de
concretização normativo-jurídica do texto constitucional que está diretamente relacionada à sua função
simbólica. Desse, a Constituição é instrumento de poder dos discursos políticos do governo. O texto
constitucional é invocado pelos governantes como álibi, com vistas de imunizar o poder político. A culpa
da não concretização dos direitos é lançada para os outros poderes, imunizando-se o governo
constitucional.
Marcelo Neves confere devida ênfase ao direito como sistema autopoiético[315]. Nessa
perspectiva o sistema jurídico tem como fundamento o código binário “lícito/ilícito”. Há um controle
social desenvolvido a partir deste código de poder. A positividade do direito representa o domínio sob o
código-diferença “lícito/ilícito” pelo sistema jurídico. Isso caracteriza o fechamento operativo do
sistema jurídico. A positividade da norma se autodetermina e exerce o fechamento operacional do
direito. Desse modo, o direito adquire uma perspectiva de “auto-observação” do ambiente. O sistema
jurídico torna-se diferente do seu ambiente.
Em face disso, o autor faz a seguinte afirmação: “o direito constitui [...] um sistema
normativamente fechado, mas cognitivamente aberto”.[316] Nesse sentido, o fechamento normativo do
sistema é condição para a sua abertura, porém o direito é restrito à operacionalização conforme o
próprio código lícito/ilícito. No pensamento de Marcelo Neves, todavia, o que prevalece na maior parte
da sociedade moderna é a determinação alopoiética do direito, onde há uma ausência de autonomia
operacional do direito positivo estatal.
Nas palavras de Marcelo Neves:
Isso significa a sobreposição de outros códigos de comunicação, especialmente do econômico
(ter/não-ter) e do político (poder/não-poder), sobre o código “lícito/ilícito”, em detrimento da
eficiência, funcionalidade e mesmo racionalidade do direito.[317]

Desse modo, na visão da alopoiese do direito, o sistema jurídico é determinado por circunstâncias
do mundo exterior, perdendo sua dinâmica jurídica e sua própria diferença entre sistema e meio
ambiente.
Em face disso, conforme Marcelo Neves:
A alopoiese afeta a auto-referência de base (elementar), a reflexividade e a reflexão como
momentos constitutivos da reprodução operacionalmente fechada do sistema jurídico. Atinge
também a heterorreferência, ou seja, a função e as prestações do direito.[318]

Já no sistema jurídico autopoiético[319] há no interior do sistema jurídico uma relação de


fechamento operacional do direito com uma abertura para o meio ambiente. O fechamento normativo é
condição para a possibilidade de abertura. Dessa maneira, há uma circularidade entre sistema e
ambiente. Trata-se do aspecto auto-referencial do sistema, quando ele é constituído pelos próprios
elementos de que é composto. O sistema refere-se ao sistema, dentro de uma perspectiva de
circularidade. O sistema jurídico autopoiético pode assimilar os fatores do meio ambiente, mas não
necessariamente é influenciado por tais fatores.
É necessário que o sistema jurídico contribua para a irrupção de um direito que considera o
ambiente, mas que se autodesenvolve segundo a estrutura própria do ordenamento jurídico. A
consideração da realidade social é importante para a construção normativa na atividade legislativa. A
estrutura de uma legislação deve estar pautada no diálogo entre “direito”, “justiça” e “norma”, caso
contrário, a legislação corre o risco de se materializar na forma de “legislação simbólica” e “legislação-
álibi”. O sistema jurídico precisa estar cognitivamente aberto para desenvolver um nível de compreensão
da realidade social e assim processar as informações dentro do ordenamento jurídico. Todavia, se a
qualidade cognitiva do sistema jurídico permanece aberta ela passa a sofrer transmutações no sistema
jurídico, havendo uma confusão entre sistema e ambiente, onde o poder jurídico se torna confuso com
outros poderes, resultando numa corrupção do sistema jurídico. Nas palavras de Marcelo Neves: “é
necessário a constitucionalização da realidade jurídica e à juridificação das relações políticas.”[320]

REFLEXÕES FINAIS

Este trabalho procurou desenvolver um estudo interdisciplinar a partir da estética da imagem do


filme “Juízo”, apresentado pela cineasta brasileira Maria Augusta Ramos, onde com perspicácia, se
ressalta a dinâmica das relações de poder no poder judiciário, a crise de legitimidade da autoridade do
“Estado-juiz”, na pessoa da magistrada, a apropriação dos conceitos de “justiça”, “lei” e “direito” nos
julgamentos dos menores infratores e no momento de exercício do poder punitivo do Estado sobre tais
adolescentes na forma de “juízo”. Ressaltamos os valores morais que permeiam o discurso abusivo da
personagem “juíza” e das autoridades ao longo do filme. Discurso abusivo que se manifesta dentro da
interface entre poder e comunicação. Evidenciamos o abuso de poder jurídico por parte dos personagens
“agentes” no espaço de internação dos menores infratores, o que é tão presente na realidade brasileira.
A partir disso destacamos também uma crise de legitimidade das autoridades do poder jurídico-
político, uma crise que é também crise constitucional, na medida em que muitos princípios do texto
constitucional não são concretizados na realidade brasileira. Esta obra “Juízo” abre o diálogo para
questionamentos tão fundamentais no contexto do “direito”, pois, enfatiza a necessidade de uma
pragmática jurídica no ordenamento jurídico, enfatiza o descumprimento de direitos humanos no
julgamento e internação de menores infratores no cenário brasileiro. Este filme retrata a relação de poder
jurídico-política que faz refletir sobre o contexto cultural, político, jurídico e social de ambientes da
sociedade brasileira que se encontra em exclusão e marginalização social, tais como as favelas.
Procurou-se empreender um diálogo com obras importantes da filosofia do direito e da análise da
dimensão do sistema jurídico brasileiro. Apontaram-se características principais destas obras como
caminho hermenêutico para se realizar uma leitura interdisciplinar do filme “Juízo”. Tais obras que se
destacaram como “Estado de exceção” de Giorgio Agamben, “Massa e Poder” de Elias Canetti, “A
constitucionalização simbólica” de Marcelo Neves e “O desafio à autoridade da lei” de Mara Regina de
Oliveira porque apresentam perspectivas relevantes para a compreensão da realidade brasileira exposta
no filme. Por isso, procurou-se destacar algumas características destas obras que se considerou de
extrema importância para o desenvolvimento de um diálogo entre cinema e filosofia do direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. Sao Paulo: Boitempo, 2004.
CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Paulo Osório de Castro & Jorge Telles de Menezes,
Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014.
RAMOS, Maria Augusta. Juízo. Direção de Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007. DVD (90min)
colorido.
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder, obediência
e subversão. Rio de Janeiro: Corifeu, 2006.

[*]✽ Mestre e Doutora em Filosofia do Direito, pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, onde leciona a disciplina Direito e Cinema, na condição de Professora Assistente
Doutora. É Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde leciona, no
curso de pós-graduação, a disciplina Cinema e Filosofia do Direito: um estudo sobre as relações
existente entre direito, poder e violência no Brasil.
[1] ROCHA, Glauber, frase retirada de texto de sua autoria presente no encarte do DVD Deus e o Diabo
na terra do sol.
[2] XAVIER, Ismail, O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 118
[3] Op. cit., p. 121.
[4] Op. cit., p. 138.
[5] MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita, repensar a reforma, repensar o pensamento. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2000 - Cap. 4 Aprender a viver, p. 50.
[6] BERNARDET, Jean-Claude, O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006, Coleção primeiros
passos, 18ª reimpressão.
[7] Idem, p. 20.
[8]XAVIER, Ismail, O discurso cinematográfico, a opacidade e a transparência. São Paulo, Paz e
Terra, 2005, p, 17.
[9] BERNADET, Jean-Claude, op. cit., p. 36 e 37.
[10] Op. cit., p. 37.
[11] Op. cit., p. 41.
[12] Op. cit., p. 48.
[13] BALAZS, Bela, Nós estamos no filme, in A Experiência do cinema: antologia/Ismail Xavier
organizador. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 2008, p. 85.
[14] MAUERHOFER, Hugo. A psicologia da experiência cinematográfica, in A Experiência do
cinema: antologia/Ismail Xavier organizador. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 2008, p.378.
[15] BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006, Coleção primeiros
passos, 18ª reimpressão, p. 49.
[16] Op. cit., p. 17.
[17] Op. cit., p. 18.
[18] EPSTEIN, Jean. O cinema do diabo-excertos, in A Experiência do cinema: antologia/Ismail
Xavier organizador. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 2008, p.294.
[19] CABRERA, Julio, op. cit., p. 21.
[20] MUNSTERBERG Hugo. As emoções, in A Experiência do cinema: antologia/Ismail Xavier
organizador. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 2008, p. 52 e 53.
[21] CABRERA, Julio, op., cit., p. 23.
[22] Op. cit., p. 24.
[23] Op. cit., p. 26.
[24] Op. cit., p. 31 e 32.
[25] Op. cit., p. 34.
[26] Op. cit., p. 37.
[27] Op. cit., p. 39.
[28] Op. cit., p. 42.
[29] CABRERA, Julio, op. cit. p. 40 e 41.
[30] FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica: ensaio de pragmática da comunicação
normativa, Rio de Janeiro: Forense, 1978.
[31] FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação,
São Paulo: Atlas, 2003, p. 43.
[32] FERRAZ JR., Tercio Sampaio, op. cit., p. 109.
[33] FERRAZ JR, Tercio Sampaio, op. cit., p. 107.
[34] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão, Rio de Janeiro: Corifeu, 2006, p. 104.
[35] Op. cit., p. 120 a 122.
[36] FERRAZ, JR. Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o poder, a
liberdade, a justiça e o direito, São Paulo: Atlas, 2002, p. 56.
[37] Op. cit., p.60 a 63.
[38] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o poder, a
liberdade, a justiça e o direito, São Paulo: Atlas, 2002, p. 265.
[39] Op. cit., p. 266.
[40] Op. cit., p.268.
[41] Op. cit., p.269.
[42] Op. cit., p 269.
[43] Op. cit., p.270.
[44] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica, Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.19.
[45] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão, Rio de Janeiro: Corifeu, 2006, p. 140.
[46] VIANY, Alex. O processo do Cinema Novo, Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999, p. 65.
[47] Todas as reflexões de DARCY RIBEIRO são extraídas da obra O povo brasileiro: a formação e o
sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. Ver p. 66.
[48] Op. cit., p. 40.
[49] Op.cit., p. 71.
[50] Op. cit., p. 126 e 172.
[51] Op. cit., p. 340.
[52] Op. cit., p. 342.
[53] Op. cit., p. 347.
[54] Op. cit., p. 348.
[55] Op. cit., p.353.
[*]✽ Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Graduado em Direito pela
Faculdade de Direito do Largo São Francisco (Universidade de São Paulo); Mestre em Direito pela
Faculdade de Direito do Largo São Francisco (Universidade de São Paulo), na área de concentração de
Filosofia e Teoria Geral do Direito.
[56] Frase de Plinio Sussekind Rocha citada por Walter Salles, ao apresentar o filme Limite, restaurado,
em São Paulo - 2015.
[57] Mário Peixoto, Limite (RJ, 1931, pb, LM). Cia produtora: Mario Peixoto (produtor);
Direção/argumento/roteiro: Mario Peixoto; Montagem: Edgar Brasil, Mario Peixoto; Dir. fotografia:
Edgar Brasil; Elenco: Raul Schnoor, Olga Breno, Taciana Rei, D. G. Pedrera, Mario Peixoto.

[58] Kierkegaard, Migalhas Filosóficas ou um Bocadinho de Filosofia de João Clímacus, (Rio de


Janeiro: Vozes, 2008).
[59] Kierkegaard, Pós-Escrito não Científico às Migalhas Filosóficas (São Paulo: Vozes, 2013).
[60] Dizemos que os termos são “opostos” não no sentido das categorias lógicas de Aristóteles (“opostos
contraditórios” e “opostos contrários”), o que significaria uma oposição relativamente ao conteúdo
destes termos. Dizemos, de maneira mais simples, que os termos são opostos apenas relativamente à sua
topologia na relação, isto é, estando cada termo na extremidade da relação, o fato de se relacionarem
implica, naturalmente, uma oposição quanto ao lugar que ocupam – uma contraposição – o que é condição
suficiente para afirmar que se tratam de termos que são diferentes entre si.
[61] Dizemos que deve haver uma “identidade” entre os termos não no sentido do princípio lógico da
identidade “A=A”, mas no sentido de que deve haver, no mínimo, um ponto de inflexão por meio do qual
os dois termos possam ser pensados como se relacionando um com o outro.
[62] Aqui não se trata de assumir uma perspectiva positivista por afirmar que o homem é logicamente
anterior ao direito, como se, em decorrência disso, estivéssemos depondo também contra o direito
natural (transcendental) do homem. Deixaremos de lado este debate em nosso texto.
[63] Ainda, de acordo com Heidegger: “[…]. Na física, a teoria da relatividade surge da tendência
para pôr em evidência o próprio encadeamento da natureza ela mesma, tal como consiste ‘em-si’.
Como teoria das condições-de-acesso à natureza ela mesma, a teoria da relatividade procura garantir,
mediante a determinação de todas as relatividades, a invariabilidade das leis do movimento, pondo-se
assim ante a pergunta pela estrutura do domínio-de-coisa que já lhe foi dado, isto é, ante o problema
da matéria. Na biologia surge a tendência para perguntar aquém das condições de organismo e de
vida, dadas pelo mecanicismo e pelo vitalismo, determinando de novo o modo-de-ser do vivo como tal.
Nas ciências históricas do espírito se fortalece o impulso para ir à efetiva realidade histórica ela
mesma, pela tradição e por sua transmissão e apresentação: a história da literatura deve se tornar
uma história-de-problemas. A teologia procura por uma interpretação mais originária do ser do
homem em relação a Deus, interpretação que seja prescrita pelo sentido de fé ela mesma e que
permaneça no seu interior. Lentamente ela começa a entender de novo a visão de Lutero de que sua
sistemática dogmática repousa sobre um ‘fundamento’ que não surgiu de um perguntar primário pela
fé e cuja conceituação não só é insuficiente para a problemática teológica, mas a encobre e
desfigura”. Heidegger, Ser e Tempo (Trad. Fausto Castilho. Rio de Janeiro: Vozes, 2014), p. 51, p. 53 e
p. 55.
[64] A partir disso, Kierkegaard estabelece a categoria do “instante”: “O instante mostra-se agora como
aquele ente raro (atopon, o termo grego aqui é excelente) que se encontra entre movimento e repouso sem
ser algo no tempo, e para ele e a partir dele o que se move vira repouso, e o que está em repouso vira
movimento. O instante torna-se por isso a categoria da passagem, pura e simplesmente […] o presente (to
nun) vacila entre significar o presente, o eterno, o instante. Este Agora (to nun) encontra-se entre “era” e
“será”, e a unidade não pode, ao progredir do que passou para o que virá, pular por cima do Agora. Ela
se imobiliza, portanto, dentro do Agora […]. Kierkegaard, O Conceito de Angústia (Trad. Álvaro Luiz
Montenegro Valls. Rio de Janeiro: Vozes, 2013), p. 89, nota 199.
[65] Indicamos também a leitura do Livro XI da obra Confissões, de Santo Agostinho, onde o Santo
expõe um dos textos mais memoráveis sobre o “tempo” já escritos até hoje. Citamos um trecho: “Pelo
que, pareceu-me que o tempo não é outra coisa senão distensão: Mas de que coisa o seja, ignoro. Seria
para admirar que não fosse a da própria alma. Portanto, dizei-me, eu vo-lo suplico, meu Deus, que coisa
meço eu, quando declaro indeterminadamente: ‘Este tempo é mais longo do que aquele’, ou quando digo
determinadamente: ‘Este é duplo daquele outro’? Sei perfeitamente que meço o tempo, mas não o futuro,
porque ainda não existe. Também não avalio o presente, pois não tem extensão, nem o passado, que não
existe. Que meço eu então? O tempo que presentemente decorre e não o que já passou?” Santo Agostinho,
Confissões (Rio de Janeiro: Vozes, 2014), p. 308.
[66] Com alguma semelhança, isto também apareceria posteriormente em Heidegger, com a noção de
Dasein como ser-no-mundo: “O ente que temos a tarefa de examinar, nós o somos cada vez nós mesmos.
O ser desse ente é cada vez meu. No ser desse ente, ele tem de se haver ele mesmo com seu ser. Como
ente desse ser, cabe-lhe responder pelo seu próprio ser. O ser ele mesmo é o que cada vez está em jogo
para esse ente. […] A ‘essência’ desse ente reside em seu ter-de-ser. O ser-que (essentia) desse ente, na
medida em que em geral disso se pode falar, deve ser concebida a partir do seu ser (existentia). Nisso
está precisamente a tarefa ontológica de mostrar que, ao escolhermos para o ser desse ente a designação
de existência, o termo não tem e não pode ter a significação ontológica do tradicional termo existentia, o
qual, segundo a tradição, significa ontologicamente, tanto como subsistência, um modo-de-ser que não
convém essencialmente ao ente que tem o caráter do Dasein. Para evitar a confusão, empregamos sempre
para o termo existentia a expressão interpretativa subsistência e existência como determinação-de-ser
unicamente para o Dasein. A ‘essência’ do Dasein reside em sua existência”. Heidegger, Ser e Tempo
(Rio de Janeiro: Vozes, 2014, trad. Fausto Castilho), p. 139-140, § 9.
[67] Para Aristóteles, “a natureza (φύσις) é princípio de movimento (κίνησις) e de mudança ” (Física,
III, 1, 200 b12-5). Dentro disso, Aristóteles conceitua o devir: “Toda mudança é de algo para algo. A
própria palavra mostra isso: algo vem ‘depois’ de outro algo […]. Uma vez que toda mudança é de
algo para algo, há quatro possíveis modos dela ocorrer. Há uma mudança de um ser para um ser, ou de
um não-ser para um ser, ou de um ser para um não-ser, ou de um não-ser para um não-ser. Por um ser
eu entendo algo significado por um termo afirmativo. Necessariamente, segue-se a partir disso que há
três tipos de mudança: de um ser para um ser [movimento], de um não-ser para um ser [geração] e de
um ser para um não-ser [corrupção]. Mudança de um não-ser para um não-ser é impossível, pois não
há oposição envolvida: eles não são contrários nem contraditórios” (Física, V, 2, 224 b35-225 b5).
Aristóteles prossegue dizendo que “A geração e a corrupção, que são transições de e para opostos
contraditórios, não são movimentos: […] a única mudança que é movimento é aquela que vai de um ser
para um ser” (Física, V, 1, 225 b1-5). Ainda, Aristóteles afirma que “Se as categorias dividem-se em
existência substantiva, qualidade, lugar, tempo, relação, quantidade e atividade ou passividade, segue-se
necessariamente que há três tipos de movimento: o qualitativo, o quantitativo e a locomoção” (Física, V,
1, 225 b5-10). Aristóteles, Physics (Loeb Classical, London: Harvard University Press, 1933, Vols. IV e
V) (Edição bilíngue grego-inglês) (Tradução nossa do inglês).
[68] De acordo com Kierkegaard: “A eterna expressão da Lógica consiste no que os Eleatas, por um mal-
entendido, transferiram para a existência: nada surge, tudo é”. Kierkegaard, O Conceito de Angústia, op.
cit., p. 15, nota 25.
[69] Para Kierkegaard: “Tudo o que veio a ser é eo ipso [por isso mesmo] histórico; pois mesmo que não
se possa predicar nada mais de histórico, o predicado decisivo do histórico pode lhe ser atribuído: que
ele veio a ser”. Kierkegaard, Migalhas Filosóficas ou um Bocadinho de Filosofia de João Clímacus
(Rio de Janeiro: Vozes, 2008), p. 109.
[70] Aristóteles, Posterior Analytics, I, VII. In: Aristóteles, Posterior Analytics, Topica (Loeb Classical,
London: Harvard University Press, 1933, Vols. IV e V) (Edição bilíngue grego-inglês) (tradução nossa do
grego).
[71] Aristóteles, De Caelo (Trad. J. L. Stocks e H. H. Joachin. Oxford: The Clarendon Press, 1932)
268a31-268b5. (Tradução nossa do inglês).
[72] “A ideia sistemática é o sujeito-objeto, é unidade de pensar e ser; existência, ao contrário, é
precisamente separação. Disso não se segue, de modo algum, que a existência seja irrefletida, mas a
existência abriu e abre espaço entre o sujeito e o objeto, entre o pensar e o ser. Objetivamente
compreendido, o pensar é o puro pensar, que, também de modo abstrato-objetivo, corresponde a seu
objeto, o qual, por sua vez, é de novo ele mesmo, e a verdade é a concordância do pensamento consigo
mesmo. Este pensamento objetivo não tem nenhuma relação com a subjetividade existente, e enquanto
a difícil questão sempre permanece, de como é que o sujeito existente se introduz nessa objetividade,
na qual a subjetividade é a pura subjetividade abstrata (que é, mais uma vez, uma determinação
objetiva, e não designa algum ser humano existente), ao menos fica certo que a subjetividade existente
se evapora”. Kierkegaard, Pós-Escrito não Científico às Migalhas Filosóficas, op. cit., p. 130.
[73] Um exemplo clássico de consideração lógica está na Ciência da Lógica de Hegel. Lá Hegel produz
uma especulação filosófica onde a categoria do imediato realiza uma série de mediações lógicas, e, com
este tipo de movimento, ele produz a passagem do “ser” para a “essência”, e então, da “essência” para o
“conceito”. Para mais, ver tanto a sua Ciência da Lógica quanto a sua Fenomenologia do Espírito.
[74] Conforme Kierkegaard: “Em um sistema lógico não se pode acolher nada que tenha uma relação
com a existência, ou que não seja indiferente à existência. A infinita superioridade que o lógico, por
ser objetivo, tem sobre todo pensamento é de novo limitada pelo fato de que, visto subjetivamente, ele
é uma hipótese, justamente porque no sentido da realidade efetiva ele é indiferente à existência”.
Kierkegaard, Pós-Escrito não Científico às Migalhas Filosóficas (São Paulo: Vozes, 2013), p. 115.
[75] Para Tércio Sampaio Ferraz Junior: “O saber dogmático contemporâneo, como tecnologia em
princípio semelhante às tecnologias industriais, é um saber em que a influência da visão econômica
(capitalista) das coisas é bastante visível. A ideia do cálculo em termos de relação custo/benefício
está presente no saber jurídico-dogmático da atualidade. Os conflitos têm de ser resolvidos
juridicamente com o menor índice possível de perturbação social: eis uma espécie de premissa oculta
na maioria dos raciocínios doutrinadores”. Tércio Sampaio Ferraz Junior, Introdução ao Estudo do
Direito: Técnica, Decisão e Dominação (São Paulo: Atlas, 2007), p. 86.
[76] Tércio Sampaio Ferraz Junior ainda acrescenta: “Nesses termos, um pensamento tecnológico é,
sobretudo, um pensamento fechado à problematização de seus pressupostos – suas premissas e
conceitos básicos têm de ser tomados de modo não problemático – a fim de cumprir sua função: criar
condições para a ação. No caso da ciência dogmática, criar condições para a decidibilidade de
conflitos juridicamente definidos”. Tércio Sampaio Ferraz Junior, Introdução ao Estudo do Direito…,
op. cit., p. 85.
[77] Para Mara Regina de Oliveira: “A pragmática preocupa-se, basicamente, com o chamado
princípio da interação, na medida em que estuda o ato de se comunicar e a relação que ele estabelece
entre emissores (oradores) e receptores (ouvintes), mediada por signos linguísticos. Na definição da
pragmática, os signos são ‘entes que se caracterizam por sua mediatidade, no momento em que
apontam para algo distinto de si mesmos, estando sempre no lugar de alguma coisa’. A língua é um
conjunto de signos artificiais, convencionados pelo homem, que se estruturam de acordo com certas
regras de uso. Neste sentido, eles não podem ter um só significado, mas diversos, que se constroem ao
longo da interação comunicativa que os utiliza. A pragmática não se propõe a fazer um estudo
ontológico do direito, o qual buscaria alcançar a sua essência, pois reconhece que ele permite vários
ângulos de abordagem teórica, dado o seu caráter pluridimensional. Formula um modelo teórico que
relaciona direito e linguagem, ou seja, estuda o direito do seu ângulo normativo, em sua dimensão
linguístico-pragmática”. Mara Regina de Oliveira, O Desafio à Autoridade da Lei na Perspectiva do
Discurso Jurídico: uma Interação Comunicativa que Envolve um Conflito entre Luta e Submissão
(Doutorado em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1999), p. 77.
[78] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica (Rio de Janeiro: Forense, 2000), p.
7-8.
[79] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito..., op. cit., p. 107.
[80] De acordo com a época em que o enredo do filme se desenvolve, sabemos que, pelo menos no que
se refere à lei brasileira, o Código Civil de 1916 (Lei 3.071/16) estava então em voga. De acordo com o
artigo 317 deste Código, “a ação de desquite só se pode fundar em algum dos seguintes motivos: I.
Adultério; II. Tentativa de morte; III. Sevícia, ou injúria grave; IV. Abandono voluntário do lar conjugal,
durante dois anos contínuos”. À época em que se passa o filme, o instituto do divórcio não existia na
legislação brasileira, havendo somente o desquite, que significava unicamente a separação judicial dos
corpos e bens, mas não o rompimento do vínculo conjugal.
[81] Em que se pese, porém, o contexto histórico e o fato de que, se a atitude de abandono do marido não
configurou nenhum ilícito jurídico, certamente configuraria uma sanção social por conta do modelo
patriarcal da sociedade tipicamente brasileira no início do século passado.
[82] De acordo com o artigo 319 do Código Civil de 1916 (Revogado pela Lei n.º 6.515, de
26.12.1977): “O adultério deixará de ser motivo para o desquite: I. Se o autor houver concorrido para
que o réu o cometa; II. Se o conjuge inocente lhe houver perdoado; Parágrafo único. Presume-se
perdoado o adultério, quando o conjuge inocente, conhecendo-o, cohabitar com o culpado”.

[83] A esse respeito, Kierkegaard afirma: “Que espécie de ser é aquele que posiciona todos na linha
sistemática? É ele um ser humano ou é ele a especulação? Porém, se é um ser humano, então é afinal
um existente. Mas, em última análise, para o existente há dois caminhos: ou bem ele pode fazer tudo
para esquecer que é um existente e, com isso, chegar a tornar-se cômico (a contradição cômica de
querer ser o que não se é, por exemplo, que um ser humano queira ser um pássaro, não é mais cômica
do que a contradição de não querer ser o que se é, como in casu, um existente, tal como na linguagem
comum a gente acha cômico quando alguém esquece como se chama, o que não é tão significativo
quanto esquecer a característica própria de seu ser), porque a existência possui a notável propriedade
de que o existente existe, quer queira, quer não; ou bem ele pode voltar toda sua atenção para esse
fato: de que ele é [um] existente. É a partir desse lado, em primeiro lugar, que se deve fazer a objeção
contra a moderna especulação, de que ela tem, não uma pressuposição equivocada, mas uma
pressuposição cômica, ocasionada pelo fato de ter se esquecido, numa espécie de distração histórico-
universal, o que significa ser um ser humano, não aquilo que significa ser um homem em geral, pois os
especuladores ainda poderiam concordar sobre tais coisas, mas sim o que significa que tu e eu e ele
sejamos seres humanos, cada um por si”. Kierkegaard, Pós-Escrito não Científico às Migalhas
Filosóficas (São Paulo: Vozes, 2013), p. 126-127.
[84] Cf. O Conceito de Angústia, de Kierkegaard, particularmente um dos capítulos mais notáveis já
escritos sobre o tempo até hoje, o Caput III – Angústia como Consequência deste Pecado que Consiste
na Ausência da Consciência do Pecado.
[85] Isto está de acordo com Aristóteles, para quem o tempo é “o número do movimento segundo o antes
e o depois” (Física, 4, XI, 219 b1-2) e o tempo é “o movimento enquanto possui um número” (Física,
4, XI, 219 b3). Aristóteles, Physics, op. cit. (tradução nossa do inglês).
[86] Kierkegaard faz uma metáfora para a eternidade: “Os hindus referem-se a uma linhagem de reis que
teriam reinado por 70.000 anos. Dos reis nada se sabe, nem ao menos os seus nomes […]. Se
quisermos tomá-los como um exemplo para o tempo, então os 70.000 anos serão, para o pensamento,
um sumir infinito, mas para a representação a linha se expande, espacializa-se compondo um
panorama ilusório de um nada infinitamente vazio”. Kierkegaard, O Conceito de Angústia, op. cit., p.
91.
[87] Isto está de acordo com Aristóteles: “[…] pelo modo de ser, os eternos são anteriores aos
corruptíveis, e nenhum eterno é em potência. A explicação é esta: toda capacidade é ao mesmo tempo
capacidade de contradição, pois aquilo que não é capaz de ser o caso não pode se dar em nada, mas
tudo aquilo que é capaz pode não estar em atividade. Portanto, aquilo que é capaz de ser pode tanto
ser como também não ser; assim, a mesma coisa é capaz de ser e de não ser. Mas aquilo que é capaz
de não ser pode não ser; e aquilo que pode não ser é corruptível, ou sem mais, ou em relação àquilo
mesmo pelo que se diz que pode não ser (ou pelo lugar, ou pela quantidade ou qualidade); e é sem
mais corruptível aquilo que o é em sua essência”. Aristóteles, Metaphysics (Loeb Classical, London:
Harvard University Press, 1933, Vols. XVII e XVIII) IX, 8, 1050 b6-15. (Tradução nossa do inglês).

[88] “Se, porém, as coisas devem ser colocadas de outra maneira, o instante no tempo precisa ter uma
significação decisiva, de modo que eu não possa esquecê-lo em nenhum instante, nem no tempo nem
na eternidade, porque o eterno, que antes não existia, vem-a-ser nesse instante”. Kierkegaad,
Migalhas Filosóficas, op. cit., p. 32.
[89] “Seja lá como for, a Lógica que veja como se socorrer. Na Lógica, o termo passagem é e será
sempre uma tirada espirituosa. Na esfera da liberdade histórica, aí sim a passagem tem o seu lugar,
pois a passagem é um estado, e é efetivamente real. Platão entendeu muito bem a dificuldade de
colocar a passagem no puramente metafísico, e por isso a categoria de instante lhe custou tantos
esforços”. Kierkegaard, O Conceito de Angústia, op. cit., p. 88.
[*]✽ Mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade de São Paulo. Advogado.
[90] Campos de migrações: Fabiano, Manuel, Ranulfo e os anônimos do sertão In Significação – revista
de cultura audiovisual. Vol. 33. Nº 26. 2006, p. 27.
[91] Os Donos do Poder. 3ª Ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 791.
[92] O cinema pensa: uma introdução à Filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, pp.
20 e 23.
[93] Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book kindle. Amazon, 2015, posição 5639 de 8651.
[94] O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.
326.
[95] Essa mesma dura realidade sertaneja foi descrita com sensibilidade inigualável pelo poeta
PATATIVA DO ASSARÉ em Vida Sertaneja: “Sou matuto sertanejo, / Daquele matuto pobre; / Que não
tem gado nem quêjo, / Nem ôro, prata, nem cobre. / Sou sertanejo rocêro, / Eu trabaio o dia intêro, /
Que seja inverno ou verão. / Minhas mão é calejada, / Minha péia é bronzeada / Da quintura do
sertão. / (...) Sou sertanejo e me gabo / e já tê visto o vaquêro, / Atrás do novio brabo / Atravessá o
tabulêro. / Amo a vida camponesa, / Nunca invejei a beleza / E a fantasia da praça. / Eu sou irmão do
cabôco, / Que ri, que zomba e faz pôco / Da sua própia desgraça. / Cabôco que não cubiça / Riqueza
nem posição / E nem aceita a maliça / Morá no seu coração. / Cabôco que, nesta vida, / Além da sua
comida, / O que mais estima e qué, / É a paz, a honra e o brio, / O carinho de seus fio / E a bondade da
muié. / O que mais preza e percura / O matuto camponês / E não quebrá sua jura, / Que, no casamento,
fez. / Sem enfado e sem preguiça, / Quando vai uvi a missa, / De paz, amô e alegria, / Leva o seu
coração cheio, / Prumode uvi os consêio / Do padre da freguezia. / E assim, na sua peleja, / Com a
famia que tem, / Não inveja nem deseja / O gozo de seu ninguém. / Mas, por infelicidade, / Cronta seu
gosto e vontade, / Munta vez, o pobre vê / A muié morrê de parto, / Gemendo dentro de um quarto, /
Sem ninguém lhe socorrê. / Morre aquela criatura, / Depois, a pobre coitada, / No rumo da sepultura,
/ Vai numa rêde imbruiada. / Um adjunto de gente, / Uns atrás, ôtros na frente, / Num apressado rojão,
/ Quando um sorta, o ôtro pega: / É assim que se carrega / Morto pobre, no sertão. / Fica, o viúvo,
coitado! / De arma triste e dilurida, / Para sempre separado / Do mió de sua vida, / Mas, porém, não
percebeu / Que a sua muié morreu, / Só por fartá um dotô. / E, como nada conhece, / Diz, rezando a
sua prece: / Foi Deus que ditriminou! / Pensando assim desta forma, / Resignado, padece; / Paciente,
se conforma / Com as coisa que acontece. / Coitado! Ignora tudo, / Pois ele não tem estudo, / Também
não tem assistença. / E por nada conhece / Em tudo o camponês vê / O dedo da Providença. / Só a
coisa que o matuto / Conhece, repara e vê / É tê que pagá tributo / Sem ninguém lhe socorrê, / É
derramá seu suó, / Com paciença de Jó, / Mode botá seu roçado, / Esperto, forte e disposto / E tê que
pagá imposto / Sem ninguém tê lhe ajudado. / Às vez, alegre e contente, / Quanto é tempo de fartura, /
Ele diz pra sua gente: / Nossa safra tá segura! / Mas, de repente, intristece, / Pruquê magina e
conhece / Que os home de posição / Só óia para o seu rosto / Pra ele pagá imposto / Ou votá nas
inleição. / Quando aparece um sujeito, / De gravata e palitó, / Todo alegre e sastifeito, / Como quem
caça xodó, / O matuto experiente / Repara pra sua gente / E, sem tê medo de errá, / Diz, com um certo
desgosto: / <<Ele vem cobrá imposto / Ou pedi pra nóis votá>>” ( Cante lá que eu canto cá: filosofia
de um trovador nordestino. 5ª ed. São Paulo: Vozes, 1984 ).
[96] XAVIER, Ismail. Campos de migrações: Fabiano, Manuel, Ranulfo e os anônimos do sertão In
Significação – revista de cultura audiovisual. Vol. 33. Nº 26. 2006, p. 38.
[97] Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 303 e 304.
[98] Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book kindle. Amazon, 2015, posição 5601 de 8651.
[99] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o Poder, a
Liberdade, a Justiça e o Direito. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 83.
[100] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, pp. 25-26 e 35-36.
[101] BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 12.
[102] CABRERA, Júlio. O cinema pensa: uma introdução à Filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro:
Rocco, 2006, pp. 12 e 13.
[*]✽ Bacharel em Direito, mestrando em Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo.
[103] Cf. OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em diálogo (e-book Kindle). São
Paulo: Edição do Autor, 2015. Posição 505.
[104] Cf. BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006. Coleção primeiros
passos, 18ª impressão. P. 37.
[105] Cf. OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. cit. ibid.
[106] Cf. OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. cit. Posição 541.
[107] Cf. OLIVEIRA, Mara Regina. Op. cit. ibid.
[108] Cf. MAUERHOFER, Hugo. A psicologia da experiência cinematográfica, in A Experiência do
cinema: antologia (org. XAVIER, Ismail). Rio de Janeiro: Edições Graal/Embrafilme, 2008. P. 378 e ss.
[109] Encaramos as investigações sobre o mens legislatoris e o mens legis como nada mais que técnicas
de interpretação voltadas a fins exclusivamente dogmáticos, isto é, a solucionar conflitos sociais. O
emprego de uma ou de outra não decorre de seu valor “enquanto tal”, mas de sua utilidade momentânea
para fins de se alcançar o resultado desejado. Trata-se de uma opção pragmática e utilitarista. Ambas
possuem o mesmo valor, podendo ser mais úteis ou menos úteis conforme o caso. Esse o porquê de
dizermos inúteis (pointless) de disputas sobre qual das duas técnicas seria a melhor.
[110] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. cit. ibid.
[111] “A afirmação de que uma norma é válida e a afirmação de que é eficaz são, é verdade, duas
afirmações diferentes. Mas, apesar de validade e eficácia serem dois conceitos inteiramente diversos,
existe, contudo, uma relação muito importante entre os dois. Uma norma é considerada válida apenas com
a condição de pertencer a um sistema de normas, a uma ordem que, no todo, é eficaz. Assim, a eficácia é
uma condição de validade; uma condição, não a razão da validade. Uma norma não é válida porque é
eficaz; ela é válida se a ordem à qual pertence é, como um todo, eficaz. A relação entre validade e
eficácia é cognoscível, porém, apenas a partir da perspectiva de uma teoria dinâmica do Direito que lide
com o problema da razão de validade e o conceito de ordem jurídica” (KELSEN, Hans. Teoria Geral do
Direito e do Estado (trad. Luís Carlos Borges). 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P. 58.)
[112] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002. PP. 23-71 (Parte 1 – Lógica da Soberania).
[113] Idem. Op. cit. PP. 79–121 (Parte 2 – Homo Sacer).
[114] Idem. Op. cit. P. 121.
[115] Idem. Op. cit. PP. 125-194 (Parte 3 – O campo como paradigma biopolítico moderno).
[*]✽ Mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo sob a orientação da Professora Doutora Mara Regina de Oliveira.
[116] BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasilense, 2006, p. 15.
[117] Ibidem, p. 12.
[118] Ibidem, p. 16.
[119] Ibidem, p. 20.
[120] Ibidem, p. 93.
[121] Ibidem, p. 100 – 101.
[122] CABRERA, Júlio. O Cinema Pensa: uma introdução à Filosofia através dos Filmes. Rio de
Janeiro: Rocco, 2006, p. 16.
[123] Ibidem, p. 20 e 45.
[124] NARDIN, Ana Luísa, Et al.. Caracterização e Análise de “O Céu de Suely” de Karim Aïnouz,
como narrativa de viagem. Revista RUA, UFSCAR. Disponível em
<http://www.rua.ufscar.br/caracterizacao-e-analise-de-o-ceu-de-suely-de-karim-ainouz-como-uma-
narrativa-de-viagem/>. Acesso em 18 de outubro de 2015.
[125] CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 303.
[126] Ibidem, p. 305.
[127] OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book Kindle, Amazon, 2015, Cap. 2 (6).
[128] Ibidem.
[*] Mestranda em Direito do Estado, na subárea de Direito Constitucional, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2015-) e
Bacharela em Direito mesma Faculdade (2013). É Pesquisadora Assistente do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (CEBRAP).
[129] O fragmento citado é o título de uma notícia impressa em jornal da década de 1960. JORNAL ÚLTIMA HORA. “Monstruoso:
criança de 4 anos raptada e assassinada na Penha”. Rio de Janeiro, sexta-feira, 01º de julho de 1960. Edição 03070, pp. 02. Disponível
em <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=60923>. Acesso em 24 de novembro de 2015.
[130] Coimbra, Fernando. Entrevista: "O Lobo atrás da Porta": o subúrbio fora dos padrões. São
Paulo: TV Estadão, 2014. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=noMPqsT0Tio> (com
transcrição automática). Acesso em 24 de novembro de 2015.
[131] Conforme a tendência apontada por Jean-Claude Bernardet, “muito mais do que o enredo,
interessam aos cineastas aprofundar o comportamento dos personagens e as significações e implicações
das situações em que se encontram”. BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo:
Brasiliense, 2006, Coleção primeiros passos, 18ª reimpressão, p. 111.
[132] Conforme explica Julio Cabrera, pluriperspectiva e manipulação de tempos e espaços são
particularidades da técnica cinematográfica que embaralham as noções de subjetividade e objetividade e
pelas quais se criam os conceitos-imagem. A pluriperspectiva é “a capacidade que tem o cinema de
saltar permanentemente da primeira pessoa (o que vê ou sente o personagem) para a terceira (o que vê a
câmera) e também para outras pessoas ou semipessoas que o cinema é capaz de construir”. CABRERA,
Júlio. O cinema pensa – uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006,
pp. 31-32.
[133] A proposta de alargamento cognitivo em sentido amplo (ou seja, sem tratar especificamente da
contribuição do cinema) também é encontrada na epistemologia feminista, na crítica ao “realismo
metafísico”, ao “objetivismo” e à “teoria da síntese”, ao “viés racionalista” e à “neutralidade
axiomática” (MATOS, Marlise. Feminismo e teorias da justiça. In: AVRITZER, Leonardo...[et al.].
Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, pp.143-144).
[134] OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e filosofia do direito em diálogo. E-book Kindle, Amazon,
2015, posição 1076.
[135] CABRERA, Júlio. Op. Cit., pp. 15-47.
[136] CABRERA, Júlio. Op. cit., pp. 15-47.
[137] Conceito desenvolvido pela socióloga brasileira Heleieth I.B. Saffioti. SAFFIOTI, Heleieth I.B.
Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cad. Pagu, 2001, nº 16, pp.115-136.
Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n16/n16a07.pdf>. Acesso em 24 de novembro de 2015.
[138] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. cit, posição 2386.
[139] RIOT-SARCEY, Michèle. Poder(es). In: HIRATA, Helena…[et al.] (orgs.). Dicionário Crítico do
Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 187.
[140] FURLIN, Neiva. Relações de gênero, subjetividades e docência feminina: um estudo a partir do
universo do Ensino Superior em teologia católica. Tese de Doutorado. Curitiba, UFPR, 2014.
Disponível em <http://www.humanas.ufpr.br/portal/pgsocio/files/2014/05/R-T-NEIVA-FURLIN-2010-
2014.pdf>. Acesso em 24 de novembro de 2015.
[141] Outra possibilidade é que o ato de Rosa seja mais impactante porque, de alguma forma, passamos a
compreendê-lo, o que causa um estranhamento, já que é um ato moralmente condenável.
[142] Embora seja vasta a literatura feminista e de estudos de gênero relativas à questão da violência,
não recorremos a ela a fim de permanecer nos limites analíticos propostos para o trabalho.
[143] FREIRE COSTA, Jurandir. A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência
pública. In: BETTO, Frei …[et al.]. Ética. Rio de Janeiro: Garamond, 1997, pp. 67-69. O título
transcrito nessa referência inspirou o título do presente artigo.
[144] FREIRE COSTA, Jurandir Op. Cit., pp. 70-71.
[145] FREIRE COSTA, Jurandir. Op. Cit., pp. 72-78.
[146]e cultivo da beleza. Embora não seja o foco do artigo, parece-nos que esse é um aspecto interessante a ser explorado mediante o uso
da ideia de dupla moral sexual, delineado por Alexandra Kollontai para analisar a relação entre casamento e o exercício da
sexualidade pelas mulheres que não aderem a esse modelo (KOLLONTAI, A. A Nova Mulher e a Moral
Sexual, Coleção Bases, n. 6, 5ª ed., 1982).
[147] OLIVE O relacionamento de ambas tem um aspecto bastante ambíguo, já que parece incoerente
afirmar que essa aproximação tinha como objetivo inicial estrito uma vingança premeditada. Pelo
contrário, Rosa parece seduzir-se e almejar ocupar o papel ocupado por Sylvia, enquanto essa é atraída
por sua juventude IRA, Mara Regina de. Op. Cit, posição 2426. O trecho citado discorre sobre as
reflexões de Elias Canetti (CANETTI, Elias. Massa e poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1983, p. 248).
[148] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. Cit, posição 7397.
[149] CANETTI, Elias. Massa e poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983, pp. 307 e 311.
[150] CANETTI, Elias. Massa e poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983, pp. 307 e 311.
[151] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. Cit, posição 6023.
[152] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. Cit, posição 6927. Os apontamentos da autora citados se referem
ao filme “Notícias de uma guerra particular” (NOTÍCIAS de uma guerra particular. Diretor: João
Moreira Salles. VideoFilmes, 2005. DVD 1 Filmes, 54 minutos). Dessa forma, devem ser lidos com
precaução, a fim de preservar o sentido pretendido pela autora.
[153] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. Cit, posição 5938.
[154] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. Cit, posição 2950. Nesse trecho, a autora discorre sobre a obra
de Freire Costa (FREIRE COSTA, Jurandir. A ética e o espelho da cultura. Rio de Janeiro: Rocco,
1994).
[155] FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o poder, a
liberdade, a justiça e o direito. São Paulo: Atlas, 2002, p. 269.
[156] CABRERA, Júlio. Op. Cit., pp. 33 e 35.
[*]✽ Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo, Mestre em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina, professora na Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo,
advogada.
[*]✽✽ Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, campus de Poços de
Caldas. Advogada. Aluna ouvinte da disciplina “Cinema e Filosofia do Direito: um estudo sobre as
relações existentes entre direito, poder e violência no Brasil”, cursada junto ao programa de pós-
graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
[157] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3ª edição. Tradução Roberto Cabral de
Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.
[158] A maior parte do filme foi rodada na cidade de Curitiba-PR e o restante na cidade de São Paulo-
SP. Contudo, o filme não deixa claro qual é a cidade em que Raimundo Nonato se encontra.
[159] Importante ressaltar, já em um primeiro momento, “[...] a força física não constitui o poder, visto
que por meio dela uma ação elimina a outra, e isso impede a transmissão das premissas decisórias de um
para outro, base constitutiva do poder como meio de comunicação. Apesar disso, embora a força não seja
poder, ela é constitutiva do poder enquanto alternativa a evitar”. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio.
Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 2ª ed. São
Paulo: Atlas, 2003, p. 55.
[160] CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 208-209.
[161] De acordo com Ferraz Junior, “O poder que não é percebido é, de todos, o mais perfeito: aquele
cujo processo chegou a um fim; alter e ego, dominante e dominado, são um só, embora continuem como se
fossem distintos. A unidade que é identidade perverte a diversidade, não porque a suprime, mas porque a
mantém como se ela não se alterasse”. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do
direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 15.
[162] FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto
Machado. 25ª ed. São Paulo: Graal, 2012, p. 45 e 215.
[163] Acerca do aguilhão, Canetti explica que é um dos elementos que compõe a ordem. Assim, “Toda
ordem compõe-se de um impulso e de um aguilhão. O impulso obriga o receptor ao seu cumprimento, e,
aliás, da forma como convém ao conteúdo da ordem. O aguilhão, por sua vez, permanece naquele que a
executa. Quando o funcionamento das ordens é o normal, em conformidade com o que se espera delas,
nada se vê desse aguilhão. Ele permanece oculto, e não se imagina que exista; antes do cumprimento da
ordem ele talvez, quase imperceptivelmente, se manifeste numa ligeira resistência”. CANETTI, Elias.
Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 305-306.
[164] FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos. V. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
[165] Nesse sentido, Darcy Ribeiro, ao comentar sobre a antropofagia ritual dos tupis, ressalta que: “O
caráter cultural e co-participado dessas cerimônias tornava quase imperativo capturar os guerreiros que
seriam sacrificados dentro do próprio grupo tupi. Somente estes – por compartilhar do mesmo conjunto
de valores – desempenhavam à perfeição o papel que lhes era prescrito: de guerreiro altivo, que
dialogava soberbamente com seu matador e com aqueles que iriam devorá-lo. Comprova essa dinâmica o
texto de Hans Staden, que três vezes foi levado a cerimônias de antropofagia e três vezes os índios se
recusaram a comê-lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência. Não se comia um covarde”.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995, p. 34.
[166] MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da
Silva e Jeanne Sawaya; rev. técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF:
UNESCO, 2000, p. 52. De acordo com o autor (p. 58): “O século XXI deverá abandonar a visão
unilateral que define o ser humano pela racionalidade (Homo sapiens), pela técnica (Homo faber), pelas
atividades utilitárias (Homo economicus), pelas necessidades obrigatórias (Homo prosaicus). O ser
humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, caracteres antagonistas: Sapiens e demens (sábio
e louco) Faber e ludens (trabalhador e lúdico) Empiricus e imaginarius (empírico e imaginário)
economicus e consumans (econômico e consumista) prosaicus e poeticus (prosaico e poético)”.
[167] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2072.
[168] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2081.
[169] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a
liberdade, a justiça e o direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 44.
[170] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2224
[171] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2328.
[172] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica: ensaio da pragmática da
comunicação normativa. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1997. p. 1-5; FERRAZ JUNIOR, Tércio
Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, Técnica, Decisão e Dominação. São Paulo, Editora Atlas,
2003. p. 257-259.
[173] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2081.
[174] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2267.
[175] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2258.
[176] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2302.
[177] COSTA, Jurandir Freire. A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência pública.
In: NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do (Org.). Brasília: capital do debate – o século XXI – Ética. Rio
de Janeiro/Brasília: Garamond/Codeplan, 1997, p. 70.
[178] BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução Plínio
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 105 e 115.
[179] COSTA, Jurandir Freire. A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência
pública. In: NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do (Org.). Brasília: capital do debate – o século XXI –
Ética. Rio de Janeiro/Brasília: Garamond/Codeplan, 1997, p. 70.
[180] THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 23.
[181] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 35. ed. Rio
de Janeiro: Vozes, 2008, p. 221.
[182] AZEVEDO, José Eduardo. As relações de poder no sistema prisional. Revista da Associação de
Pós-graduandos da PUC-SP. São Paulo, Ano VIII, n.º18, p. 29-35, 1999.
[183] AZEVEDO, José Eduardo. As relações de poder no sistema prisional. Revista da Associação de
Pós-graduandos da PUC-SP. São Paulo, Ano VIII, n.º18, p. 29-35, 1999.
[184] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 5694.
[185] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 5701.
[186] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 5677.
[187] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015.
[188] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 5661.
[189] AZEVEDO, José Eduardo. As relações de poder no sistema prisional. Revista da Associação de
Pós-graduandos da PUC-SP. São Paulo, Ano VIII, n.º18, p. 29-35, 1999.
[190] AZEVEDO, José Eduardo. As relações de poder no sistema prisional. Revista da Associação de
Pós-graduandos da PUC-SP. São Paulo, Ano VIII, n.º18, p. 29-35, 1999.
[191] AZEVEDO, José Eduardo. As relações de poder no sistema prisional. Revista da Associação de
Pós-graduandos da PUC-SP. São Paulo, Ano VIII, n.º18, p. 29-35, 1999.
[192] Explica Canetti que: “Mais fácil é que se modifique a aparência de um homem, aquilo em função
do qual os outros o reconhecem – a postura de sua cabeça, a expressão de sua boca, seu jeito de olhar -,
de que a forma da ordem que, na qualidade de um aguilhão, nele permaneceu armazenada e inalterada. E,
igualmente inalterada, essa ordem é expelida, bastando que se apresente a oportunidade para tanto; a
nova situação, na qual ela se desprende, há de ser idêntica à antiga, na qual ela foi concebida. A
reprodução invertida de tais situações antigas constitui uma das grandes fontes de energia psíquica na
vida do homem.” CANETTI, Elias. Massa e poder. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p. 306.
[193] FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto
Machado. 25ª ed. São Paulo: Graal, 2012, p. 284.
[*]✽ Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – Universidade de São
Paulo, é mestranda no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da mesma faculdade.
[194] No original: “states of affairs that combine the absence of insuperable obstacles with the presence
of means – internal or external – that give one a chance to overcoming the obstacles that remain.”
(NICKEL, 1988, p. 110, apud YOUNG, 1990, p. 26).
[195] No original: “This focus on possession tends to preclude thinking about what people are doing,
according to what institutionalized rules, how their doings and havings are structured by institutionalized
relations that constitute their positions, and how the combined effect of their doings has recursive effects
on their lives.” (YOUNG, 1990, p. 25)
[196] Conferir em http://primeirainfancia.org.br/wp-content/uploads/2015/03/1-
por_ser_menina_resumoexecutivo2014.pdf último acesso em 23 de novembro de 2015.
[*]✽ Mestre e Doutora em Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito pela USP-SP. Especialista em
Direito Constitucional pela UEL-PR. Advogada. Professora do Curso de Direito das Faculdades
Integradas Padre Albino (FIPA) e do Centro Universitário de Rio Preto (UNIRP). E-mail:
polacchini@usp.br.
[197] Cronicamente Inviável . BRASIL, 2000. 35mm. 101’. Direção: Sérgio Bianchi. Roteiro: Sérgio
Bianchi e Gustavo Steinberg.
[198] Compõem a filmografia de Bianchi: Omnibus (1972), Segunda Besta (1977), Maldita coincidência
(1981), Mato eles? (1982), Divina previdência (1983), Entojo (1985) Romance (1988), A causa secreta
(1994), Cronicamente Inviável (2000), Quanto vale ou é por quilo? (2005), Os inquilinos (2009) e Jogo
das decapitações (2013).
[199] OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book Kindle: Amazon,
2015, Capítulo 1, Seção 1, pos. 485.
[200] VIEIRA, João Luiz. Câmera-faca: o cinema de Sérgio Bianchi. Festival de cinema luso brasileiro
de Santa Maria da Feira. Portugal, 2004, p. 164.
[201] Fala de Sérgio Bianchi à Revista Istoé, apud SOLER, Marcelo et. al. Quanto Vale um cineasta
brasileiro: Sérgio Bianchi em palavras, imagens e provocações. São Paulo: Garçoni, 2005, p. 23. O
livro-documentário organizado por Marcelo Soler, diretor de teatro, dramaturgo e teatro-educador. O
livro contou com a participação de Roberto Schwartz, Ismail Xavier, Iná Camargo Costa, Jean Claude
Bernadet, Eduardo Benaim (roteirista) e Claudia Mello (atriz). O organizador os lançou a indagação que
serve de título para a obra e cada qual, ao seu modo, discutiu a proposta de Bianchi e os filmes por ele
dirigidos, dentre os quais o Cronicamente Inviável.
[202] Idem, p. 12.
[203] Ibidem, p. 25.
[204] In SOLER, Quanto Vale um cineasta brasileiro...op. cit.
[205] É possível que o número da casa, de portas fechadas, seja simbólico no filme da ironia debochada
de Bianchi, representando tanto a noção de verdade oculta, os problemas de convivência quanto uma
corda de 81 e um nós e o amor entre irmãos.
[206] CABRERA, Júlio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de
Janeiro: Rocco, 2006, p. 20.
[207] Idem, p. 13.
[208] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed., 2ª. tiragem. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 311.
[209] OLIVEIRA, Nezi Heverton Campos de. O cinema autoral de Sérgio Bianchi: uma visão crítica e
irônica da realidade brasileira. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo,
2006, 213pp., p. 13.
[210] XAVIER, In SOLER, Quanto vale… op. cit., p. 39.
[211] NOVAES, Sylvia Caiuby. Imagem e ciências sociais: trajetória de uma relação difícil. In
BARBOSA, A; CUNHA, E; HIKIJI, R. (orgs.). Imagem-conhecimento: antropologia, cinema e outros
diálogos. Papirus: pp. 35-59, p. 53.
[212] XAVIER, Ismail In SOLER, Quanto Vale um cineasta brasileiro...op. cit., p. 37.
[213] Idem., pp. 21-23.
[214] COSTA, Jurandir Freire. Ética democrática e seus inimigos - o lado privado da violência pública,
In BETTO, F.; BARBA, E.; COSTA, J. Ética. Rio de Janeiro: Garamond, 1998, pp. 70-76.
[215] CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 208.
[216] RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2ª. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995, p. 448.
[217] XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. 2a. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 21.
[218] SOLER, Quanto vale… op. cit., pp. 15-17.
[219] Idem, pp. 17-22.
[220] Ibidem, p. 21.
[221] OLIVEIRA. Mara Regina de. O Desafio à Autoridade da Lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. 2a. ed. São Paulo: Edição do autor, E-book Kindle: Amazon 2015.
[222] GONÇALVES FILHO, José Moura. Humilhação social: humilhação política. In SOUZA, Beatriz
de Paula. Orientação à queixa escolar. 2a. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, pp. 187-221, p. 194.
[223] Idem, p. 195.
[224] In SOLER, Quanto vale… op. cit., p. 18.
[225] OLIVEIRA, O cinema autoral... op. cit., p. 13.
[226] SOLER, Quanto vale… op. cit., p. 38.
[227] RIBEIRO, O Povo Brasileiro...op. cit, p. 254.
[228] VAZ E SILVA, Neusa. Teoria da Cultura de Darcy Ribeiro e a filosofia intercultural. São
Leopoldo: Nova Harmonia, 2009, p. 23.
[229] RIBEIRO, Os Brasileiros...op. cit., p. 137.
[230] GONÇALVES FILHO, Humilhação social: humilhação política... op. cit., p. 208.
[231] Idem, p. 208.
[232] GONÇALVES FILHO, Humilhação social: humilhação política... op. cit., p. 209.
[233] Idem, p. 215.
[234] Ibidem.
[235] COSTA, Jurandir Freire. Ética democrática e seus inimigos - o lado privado da violência pública,
In BETTO, F.; BARBA, E.; COSTA, J. Ética. Rio de Janeiro: Garamond, 1998, p. 81.
[236] GONÇALVES FILHO, Humilhação social: humilhação política... op. cit., p. 215.
[237] Idem, p. 215.
[238] Ibidem.
[239] SOLER, Quanto vale… op. cit., p. 18.
[240] Idem, p. 41.
[241] RIBEIRO, O Povo Brasileiro...op. cit, p. 261.
[242] Idem.
[243] OLIVEIRA, Mara Regina de, O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. 2a. ed. São Paulo: Edição do autor, E-book Kindle: Amazon 2015, Capítulo 1,
seção 1.1, pos. 392.
[244] ARISTOTELES, De Anima, livros I, II e III. Trad. Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: 34,
2006, 416b33.
[245] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução Márcia Sá Cavalcante Schuback. 13ª. ed.
Petrópolis: Vozes, 2004, p. 199.
[246] Idem.
[247] GONÇALVES FILHO, Humilhação social: humilhação política... op. cit., p. 207.
[*]✽ Mestranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo.
[248] AGUILERA, Yanet. “Sana’a versus Milán y San Pablo” (no prelo).
[249] OLIVEIRA, Mara Regina. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. E-Book Kindle, Amazon, 2015.
[250]http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/07/homicidios-contra-jovens-negros-continua-
crescendo-no-brasil-violencia-contra-brancos-diminui-8115.html
[251] http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/primeiraedicao.pdf
[252] AGAMBEN, Giorgio. O Aberto – O homem e o animal. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro,
2013, p. 51
[253] Ibidem, p. 43.
[*]✽ Mestra e Doutoranda em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Advogada em São
Paulo.
[254] Encontram-se na trilha sonora do filme: Que Maravilha, de Jorge Ben; Madalena, de Elis Regina;
Ovelha Negra, de Rita Lee; Pérola Negra, de Luiz Melodia, etc.
[255] CANETTI, Elias. Massa e Poder. Cia das Letras, p. 323.
[256] OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Dialógo. São Paulo: Edição do
Autor, 2015 . Edição Kindle Posição (5%) 414-415.
[257] COSTA, Jurandir Freire. Ética democrática e seus inimigos - o lado privado da violência pública,
In. Ética. Rio de Janeiro: Garamond, 1998, p. 70 e 71
[258] COSTA, Jurandir Freire. Ética democrática e seus inimigos - o lado privado da violência pública,,
p. 71
[259] OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Dialógo. São Paulo: Edição do
Autor, 2015 . Edição Kindle
capitulo 1
[260] COSTA, Jurandir Freire. Ética democrática e seus inimigos - o lado privado da violência pública,
p. 75 e76
[261] OLIVEIRA, Mara Regina de. O Desafio à Autoridade da Lei: A relação existente entre poder,
obediência e subversão, 2a ed., São Paulo: Edição do Autor, 2015 . Edição Kindle. (6%) Posição 413.
[262] OLIVEIRA, Mara Regina de. O Desafio à Autoridade da Lei: A relação existente entre poder,
obediência e subversão, 2a ed., São Paulo: Edição do Autor, 2015 . Edição Kindle. (7%) Posição 455-
463
[263] CANETTI, Elias. CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
322 e 323
[264] CANETTI, Elias. CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
p 323
[265] OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Dialógo. São Paulo: Edição do
Autor, 2015 . Edição Kindle Posição 5800-5803
[*]✽ Mestranda em Direito do Trabalho e Seguridade Pessoal, na Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo.
[266]
[*]✽ Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da PUC-SP. Mestranda em Teoria e Filosofia do
Direito pela Universidade de São Paulo.
[267] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. 1ª Ed. São Paulo: Corifeu, 2006. Pp. 20.
[268] Disco 2 do DVD Justiça. Menu “Entrevistas” – “Maria Ignez Kato”.
[269] TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Documentário Moderno In MASCARELLO, Fernando (org.)
“História do Cinema Mundial”. Campinas, SP: Papirus, 2006. P. 253.
[270] NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005.
[271] Op. Cit. PP. 20.
[272] Disco 2 do DVD Justiça. Menu “Entrevista com a diretora”.
[273] FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª
Ed. São Paulo: Atlas, 1994.
[274] Disco 2 do DVD Justiça. Menu “Entrevistas” – “Fátima Clemente”.
[275] WEBER, Max. Economia e Sociedade. TRADUÇÃO DE REGIS BARBOSA E KAREN ELSABE
BARBOSA, R. T. D. G. C. Brasília: Editora Universidade de Brasília. Vol. 1 1991. Pp. 147.
[276] COSTA. Jurandir Freire. A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência
pública, in Ética, Rio de Janeiro: Garamond, 1997, p. 67 a 83.
[277] Op. Cit. P. 71.
[278] Op. Cit. p. 71.
[279] Op. Cit. p. 72.
[280] Op. Cit. p. 73
[281] CANETTI, Elias. Massa e Poder. Companhia das Letras: São Paulo, 1995. Pp. 306.
[282] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. 1ª Ed. São Paulo: Corifeu, 2006. p. 19.
[283] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. 1ª Ed. São Paulo: Corifeu, 2006. p. 26.
[284] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes. 1997. p. 124.
[285]
[286] Disco 2 do DVD Justiça. Menu “Entrevistas” – “Geraldo Prado”.
[287] Disco 2 do DVD Justiça. Menu “Entrevistas” – “Fátima Clemente”.
[*]✽ Doutoranda em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP. Mestre em Ciências da Religião
pela Universidade do Estado do Pará – UEPA. Bacharel em Direito pela Faculdades Metropolitanas
Unidas – FMU. Bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Batista Equatorial – FATEBE. E-mail:
danjonemeira@hotmail.com
[288] Empregamos a expressão “Estado-juíz” para nos referirmos ao fato de que o juiz é o Estado no
momento em que é provocado para exercer tutela jurisdicional em face dos litigantes. A partir da
provocação do “Estado-juiz” requer-se que este cumpra seu dever de proporcionar aos litigantes uma
adequada prestação jurisdicional. Este filme “Juízo” nos faz pensar justamente na personificação da
justiça e do papel do Estado na figura do “Estado-juíz”, fazendo refletir sobre o “Estado-juíz” na
democracia brasileira.
[289] JUÍZO. Direção de Maria Augusta Ramos. Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007.
DVD(90min) colorido.
[290] JUÍZO. Direção de Maria Augusta Ramos. Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007.
DVD(90min) colorido.
[291] JUÍZO. Direção de Maria Augusta Ramos. Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007. DVD
(90min) colorido.
[292] CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Paulo Osório de Castro & Jorge Telles de
Menezes, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p.13
[293] Idem
[294] JUÍZO. Direção de Maria Augusta Ramos. Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007.
DVD(90min) colorido.
[295] JUÍZO. Direção de Maria Augusta Ramos. Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007.
DVD(90min) colorido.
[296] JUÍZO. Direção de Maria Augusta Ramos. Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007. DVD
(90min) colorido.
[297] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Rio de Janeiro: Corifeu, 2006.
[298] Idem
[299] CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Paulo Osório de Castro & Jorge Telles de Menezes,
Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p.202
[300] Trata-se aí de uma questão que, em boa parte, manifesta-se no duplo sentido da palavra agarrar
[angreifen]. Nesta encontram-se contidos ao mesmo tempo tanto o contato inofensivo quanto o ataque
perigoso, e algo deste último sempre ecoa no primeiro. (Cf. CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução
de Paulo Osório de Castro & Jorge Telles de Menezes, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p.202).
[301] Idem
[302] CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Paulo Osório de Castro & Jorge Telles de
Menezes, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p.206
[303] CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Paulo Osório de Castro & Jorge Telles de
Menezes, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p.281
[304] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. Sao Paulo: Boitempo,
2004, p.30.
[305] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. Sao Paulo: Boitempo,
2004, p.39
[306] Idem
[307] Idem
[308] Idem
[309] Nem sempre o direito e a legislação exercem hipetroficamente uma função simbólica,
sobressaindo-se em muitos casos a sua dimensão instrumental. (Cf. NEVES, Marcelo. A
constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p.26).
[310] O jurista Marcelo Neves emprega o termo “legislação simbólica” sob a ótica de um sentido estrito
e diferenciado.
[311] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007,
p.30.
[312] Marcelo Neves apresenta a percepção do Harald Kinderman, quando destaca a expressão
"legislação-álibi". Através dela o legislador procura descarregar-se de pressões políticas ou apresentar
o Estado como sensível às exigências e expectativas dos cidadãos. (Cf. NEVES, Marcelo. A
constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, pp.36-37).
[313] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p.183
[314] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p.185
[315] Esse conceito foi proposto por Luhmann. A concepção luhmanniana da autopoise afasta-se do modelo biológico Maturana, na medida
em que nela se distinguem os sistemas constituintes de sentido (psíquicos e sociais) dos sistemas não-constituintes de sentido (orgânicos e
neurofisiológicos). No caso de sistemas constituintes de sentido, a "auto-observação torna-se componente necessário da reprodução
autopoiética”. A auto-observação como "momento operativo da autopoiese". Na teoria dos sistemas sociais autopoiéticos de Luhmann, o
ambiente não atua perante o sistema nem meramente como "condição infra-estrutural de possibilidade da constituição dos elementos", nem
apenas como perturbação, ruído, "bruit"; constitui algo mais, "o fundamento do sistema". (Cf. NEVES, Marcelo. A constitucionalização
simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, pp.128-129).
[316] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p.136.
[317] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007,
p.146
[318] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007,
p.147
[319] O sistema jurídico autopoiético é composto de uma correlação entre os elementos sistêmicos:
procedimento jurídico (processo), ato jurídico (elemento), norma jurídica (estrutura) e dogmática
jurídica (identidade).
[320] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007,
p.187

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