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DE COPYRIGHT
Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de
oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da
qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.
Sobre nós:
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
AUTORES VARIADOS
SÃO PAULO
PRIMEIRA EDIÇÃO
2016
Copyright 2016 by Mara Regina de Oliveira
A reprodução parcial ou total desta obra, por qualquer meio, somente será
permitida com a autorização por escrito do autor.
(Lei 9.610, 19.02.1998)
ISBN 978-85-919586-2-7
9 788591 958627
“O cinema, como todas as artes, deve ser, antes de mais nada,
transgressor. Ele pode ser um fantástico instrumento de compreensão do
mundo e não de banalização”.
(Walter Salles)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO: A TEMÁTICA DA VIOLÊNCIA E DO PODER RELACIONADA AO
DIREITO E AO SENTIMENTO DE EXÍLIO PERMANENTE – Mara Regina de Oliveira
TRABALHAR CANSA: A LUTA HUMANA PELA SUPERAÇÃO DO MEDO -Olga Regiane Pilegis
A leitura deste pequeno trecho de Fausto (Goethe), feita por um jovem rapaz, na janela de seu
apartamento que beira o Elevado Costa e Silva (Minhocão), em São Paulo, compõe a intrigante abertura
do filme Terra Estrangeira, dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, em 1995. A fotografia em
preto e branco, com o elevado vazio, mostra uma ideia imagética de abandono e decadência de parte da
sociedade paulistana. Na fachada lateral do edifício, um grande outdoor, com o anúncio das calcinhas
“Hope” – esperança - compõe um cenário emblemático em relação ao espírito inicial de seus
personagens. Logo ficamos sabendo que o nome do jovem é Francisco (Paco) Eizaguirre, que não tem pai
e que estuda na Faculdade de Física, mas o seu sonho é fazer um teste, com a citada fala de Fausto, para
tornar-se ator de teatro. Sua mãe Manuela Eizaguirre mostra cansaço em subir as escadas do prédio com
as pesadas sacolas de compra, o elevador permanece quebrado. Trabalha arduamente como costureira e,
com muito esforço, há muitos anos, junta dinheiro na poupança a fim de realizar o seu sonho de vida
maior: voltar ao seu local de origem: San Sebastian, região do “País Basco “na Espanha.
Percebemos que a narrativa do filme fala do problema da fragilização da identidade e do
sentimento de inadequação ao ambiente em que se vive, a terra estrangeira de cada um. Compõe um
interessante cenário onde várias formas de exílio, não necessariamente ligadas a nacionalidade, são
apresentadas e associadas a um forte desejo de constituição de uma identidade pessoal, a qual os
personagens almejam se sentir integrados. Francisco (Paco) busca esta integração na suposta nova
profissão de ator, que se volta para o futuro. Sua mãe, em contrapartida, almeja reencontrar uma
identidade afetiva construída no passado, no retorno ao país de origem. A referência ao País Basco, que
não reconhece a sua identidade espanhola, e clama pela sua independência política, de forma subversiva,
é bem ilustrativa neste contexto. A crise financeira presente no fim do período ditatorial brasileiro e a
recente primeira eleição democrática do Presidente Fernando Collor de Mello, compõe, como veremos
adiante, o cenário político. Mas o filme vai além, ao também traçar um diálogo imagético com nossas
origens portuguesas.
Através do recurso fílmico da simultaneidade, conhecemos um jovem casal – Alex e Miguel - que
puseram em prática o sonho de deixar o Brasil falido, economicamente, para viver em Portugal, como
forma de liberação de um exílio forçado pela inadequação cultural. O que a leitura crítica nos mostra
sobre eles? O sonho de integração não se realizou, pois estão vivendo a margem da sociedade e
agregados a redes informais de imigrantes. Alex trabalha duramente como garçonete de um restaurante
popular, submetida a um chefe grosseiro e Miguel, sem conseguir sucesso na carreira musical de
trompetista, insere-se nas redes mafiosas transacionais de contrabando de diamantes, além de ter o
envolvimento com o consumo de drogas. Sua insatisfação com a degradante vida informal do submundo o
leva a recriar a ter mais um sonho de fuga de Portugal para a “Europa” real.
Voltando à casa de Manuela, chegamos ao clímax dramático do filme, ligado a percepção de
como um ato abusivo, do ponto de vista político-jurídico, praticado pelo governo, pode aniquilar a vida
de uma pessoa humilde. Manuela ouve, pela TV, a recém empossada Ministra da Economia Zélia
Cardoso de Mello, falar sobre o confisco da poupança e percebe que o seu sonho de deixar o exílio no
Brasil foi abortado de forma abrupta e injusta. Ela já demonstrava sinais de dores no peito, e seu ataque
de coração mortal é um grito de dor e desespero diante da injustiça que foi praticada contra vários
brasileiros na época. Além deste pacote econômico ter desafiado vários dispositivos constitucionais
recém aprovados em 1988, ele caracterizou um ato abusivo praticado em relação a muitos sujeitos, que,
mesmo tendo juntado seu dinheiro honestamente, durante muitos anos – naquela época a poupança era um
recurso seguro de investimento – foram “punidos” com o confisco de seu dinheiro por dois anos. O
governo igualou, em termos de punição, o pequeno poupador ao grande especular financeiro, que tirava
muita vantagem dos altos índices inflacionários da época. Temos a situação emblemática do abuso de
poder praticado por um Presidente recém-eleito, por via democrática, depois de vinte e cinco anos de
ditadura. A autoridade que desafia o direito o qual deveria obedecer, punindo o sujeito que o confirma,
acaba por aniquilá-lo. Nesta perspectiva, vemos que Manuela foi morta pelo desgoverno abusivo de
Fernando Collor de Mello.
A solidão e o sentimento de abandono vividas por Francisco (Paco), após a morte de sua mãe,
acentuam a sua inadequação ao ambiente em que vive, fazendo com que ele não consiga fazer o teste para
trabalhar como ator, devido a um bloqueio psicológico. Desesperado e frustrado, ele entrega-se a bebida
e torna-se presa fácil de Igor, de origem portuguesa, num bar, pois este lhe oferece bebida cara e a
oportunidade de realizar o sonho de sua mãe: visitar San Sebastian, com tudo pago, desde que ele leve
uma mercadoria em sua mala. Igor leva Francisco (Paco) para conhecer seu antiquário, que não percebe
que se trata de um negócio de fachada para o contrabando de diamantes. Ele aceita a sua tarefa, sem
saber que será lavado para Lisboa e não para Madri como o combinado. Neste momento, tomamos
ciência de que Miguel faz parte da mesma conexão mafiosa em Lisboa e, numa atitude altamente
arriscada, decide vender os diamantes que chegam, diretamente, e não como intermediário. Esta atitude
lhe custará a vida.
Neste momento, Francisco (Paco) instala-se no decadente hotel combinado, em Lisboa, com a
mala, a espera de Miguel, que iria retirá-la e fazer o pagamento. Como este morreu, tudo dá errado e
Francisco sente-se, mais uma vez, abandonado. Depois de esperar bastante em seu quarto, consegue o
endereço e vai até o apartamento de Miguel, onde vê o corpo sendo retirado pela polícia. Através de um
cartão caído, por acaso, acha o endereço de uma loja de música de Pedro e da localização de Alex. As
locações foram feitas em regiões informais e decadentes de exclusão onde vivem vários imigrantes
africanos. Francisco acaba encontrando Alex e tendo com ela um rápido envolvimento pessoal. O
problema é que Alex, na tentativa equivocada de proteger Francisco da sua entrada no submundo, e, ao
mesmo tempo, se vingar de Igor, acaba providenciando a retirada a mala do hotel, por Pedro, doando o
violino e promovendo a ira das redes mafiosas. Igor vai a Lisboa e marca um encontro com Francisco e
os compradores de diamantes, num restaurante de fado. Ao se dar conta do perigo que corre se não
entregar o violino, ele foge a procura de Alex, na loja de música.
Francisco repreende Alex duramente e tenta reaver o violino a fim de cumprir o seu trato, mas ela
alega que não tem como localizar a pessoa que recebeu a doação do instrumento. Com a ajuda do amigo
Pedro, que lhes empresta o carro, decidem fugir para a Espanha – Francisco ainda pensa em poder
realizar o sonho de chegar a San Sebastian por sua mãe. Como Alex vendeu o seu passaporte, só resta a
eles passar a fronteira por um pequeno vilarejo no norte de Portugal, com menos fiscalização. O filme
assume ares de um Road Movie e, durante o percurso, apesar do sentimento de ameaça de morte que os
acompanha, há entre os dois um encontro amoroso sincero. A cena de amor, na praia, em frente o navio
encalhado é muito romântica e poética. Enquanto isso, percebemos que Igor é um antigo amante de Pedro,
que, sob tortura, acaba revelando o destino de fuga do casal.
O casal em fuga se aproxima da fronteira, mas percebe que ela está vigiada por guardas. Alex e
Francisco (Paco) decidem esperar e comer algo, e, durante a refeição descontraída, são surpreendidos
por Igor e seu comparsa, que exigem, de forma ameaçadora, a devolução do violino. Francisco coordena
a ida ao carro, onde supostamente estaria o violino e planeja uma fuga com o uso da violência. Igor e seu
companheiro são feridos, mas Francisco (Paco) também leva um tiro e parece estar ferido mortalmente.
Alex o põe no carro, em seu colo, dizendo, em prantos: estou te lavando para casa. Em alta velocidade,
Alex passa por cima da barreira policial da fronteira, em ato de absoluta subversão a violência
opressiva. Percebemos que Francisco está morrendo (há sangue saindo de sua boca) e, neste momento,
uma câmara panorâmica mostra o carro em movimento ao som da música Vapor Barato.
Simultaneamente, vemos o irônico destino dos diamantes, inspirado no clássico O Tesouro de Sierra
Madre (John Houston 1948): enquanto um cego toca o violino no metrô, vemos a capa do instrumento
cair no chão e os diamantes sendo pisoteados, sem que as pessoas se deem conta. O final é pessimista
pois, percebemos, no plano da sensibilidade, como o sentimento esperançoso de livrar-se do exílio e
voltar para casa não se realiza nos personagens, no plano fático. Francisco tenta confirmar as regras da
máfia do contrabando, mas acaba sendo aniquilado, mortalmente, pelo uso não razoável (não jurídico) da
violência. Diz a música, de Jards Macalé e Waly Salomão, imortalizada por Gal Costa, em época de
ditadura, em nossa país:
Oh, sim, eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general
Cheio de anéis
Vou descendo por todas as ruas
E vou tomar aquele velho navio
Eu não preciso de muito dinheiro
Graças a Deus
E não me importa, honey
Observamos que o problema do abuso de poder e da violência não jurídica, no filme Terra
Estrangeira, provocam o desconforto do sentimento do exílio permanente no Brasil e em Portugal, nosso
país de origem, o qual permanece não resolvido. Não há lugar para Manuela e Francisco na realidade
abusiva gerada pelo próprio governo brasileiro, mas a saída não está em se agregar a redes informais e
violentas no exterior, igualmente geradoras de abuso de poder mortais. Os filmes nacionais posteriores
de Walter Salles, como Central do Brasil, O Primeiro Dia e Abril Despedaçado vão retomar esta
temática da falta de identidade e o desconforto do exílio permanente, a partir de ângulos distintos, mas
sem desligar deste núcleo de referência central ao problema do abuso de poder. Mas Walter Salles não
está sozinho em suas reflexões. Desde o Cinema Novo, há uma longa tradição de tratamento desta
temática, onde, eventualmente, observamos a dramática e abusiva sobreposição da violência sobre o
direito nas relações sociais.
Pressupomos que o cinema é, precipuamente, uma linguagem imagética capaz de ampliar nosso
raciocínio crítico sobre temas jurídico-filosóficos, a partir da sua profícua associação dialógica com
teorias críticas do direito. Nesta coletânea, vamos mostrar como a temática da violência, do poder e do
direito aparecem relacionados não só na obra de Walter Salles, mas em grandes filmes nacionais como
um todo, ao longo de mais de cinquenta anos. Em sentido amplo, estas relações abusivas são perpetradas
pelos próprio Estado, mas, eventualmente, elas aparecem reproduzidas na esfera privada também.
Revelam, de um ponto de vista crítico, traços de nossa cultura, que acabam por comprometer a
legitimidade jurídico-política, em sentido mais amplo.
Esta temática permanece atual em sua realidade e o problema do abuso de poder e do uso não
razoável da violência ainda estão presentes e vem constantemente sendo reproduzidos pelos governos e
pela sociedade. A linguagem fílmica, por englobar os conceitos-imagem, apreendidos de forma racional e
emocional, ao mesmo tempo, permitem um acesso cognitivo a elementos subjetivos complexos que
passam despercebidos na convivência concreta. Todos os catorze filmes brasileiros analisados nesta
coletânea partem deste elemento de articulação comum, apesar de apresentarem pontos de vista diversos
em termos temáticos. Convidamos o leitor a adentrar na sala escura do pensamento imagético. No
primeiro tema, antes de analisarmos o clássico do Cinema Novo - Deus e o Diabo na terra do sol –
faremos uma discussão teórica mais abrangente sobre esta metodologia interdisciplinar, que servirá de
referência para análise dos demais filmes.
A VIOLÊNCIA, O PODER E O DIREITO NA VISÃO IMAGÉTICA DE DEUS E O DIABO NA
TERRA DO SOL
Mara Regina de Oliveira[*]
INTRODUÇÃO
ste artigo visa desenvolver a hipótese de que o cinema pode, através dos conceitos-imagem, auxiliar-
E nos a pensar temas da Filosofia do Direito. Nossa delimitação temática nos leva a destacar o
problema filosófico do abuso de poder jurídico, tão presente na realidade brasileira desde a sua
formação, que vem gerando uma histórica crise de legitimidade jurídica, em nossa sociedade. Em
pesquisa de doutorado tivemos a oportunidade demonstrar como o abuso de poder normativo praticado
pela autoridade, quando ela própria ignorar o direito, pode estimular o surgimento de reações
subversivas dos sujeitos. Usamos em nossa tese o exemplo histórico da Guerra de Canudos para expandir
as nossas reflexões. Agora, analisaremos um material cinematográfico que retrate a nossa realidade, no
intento de aprimorar o estudo interdisciplinar. Para tanto, escolhemos nos debruçar sobre o filme Deu e o
diabo na terra do sol, concebido de forma integral por um grande intelectual e artista que refletiu,
através da estética da imagem, sobre as entranhas da relação abusiva de poder no Brasil, o nosso singular
e genial Glauber Rocha.
De acordo com Ismail Xavier, Glauber pertence a uma geração de intelectuais e artistas
brasileiros, marcada por aguda consciência histórica, ligando o cultural ao político. Cada filme pensa as
questões coletivas (lutas de classe, religião, política), através de um teatro de ação e da consciência dos
homens, onde as personagens se colocam como condensações da experiência de grupos, classes, nações.
A relação existente entre direito, poder e violência aparece em vários de seus filmes. Segundo o autor, a
vida social se põe como drama, enfrentamento de crises, rupturas, ascensões e quedas; o espetáculo se
faz de passado e presente de lutas, dominação e resistência, num mundo que se revela sempre
orientado no eixo do tempo, inclinando-se para uma libertação do oprimido inevitável: o seu
imaginário se faz rebelião permanente e promessa de justiça.[2]
Neste sentido, partimos do pressuposto de que é possível desenvolver um diálogo entre teorias
filosófico-jurídicas que estudam a relação autoridade sujeito, do ponto de vista comunicativo, nos seus
momentos de crise e o clássico filme de Glauber. Apesar de a película ter sido concebida em 1964, ainda
espelha a discussão crítica de temas, tanto na forma como no conteúdo, que permanecem atuais e
problemáticos em nosso país. Deus e o diabo na terra do sol fala da crise de legitimidade, que leva a
ruptura da relação autoridade-sujeito estatal abusiva retratada, inicialmente, pelo líder messiânico e pelo
cangaceiro místico, e posteriormente através de uma Revolução ainda mais radical, exposta na canção
final o sertão vai virar mar e o mar virar sertão”.
A forma estética do filme é profundamente integrada ao seu conteúdo político, na medida em que
aparece como uma recusa radical do cinema industrial dominante, que deve assumir a precariedade de
recursos e inventar uma linguagem que, no plano da cultura, seja, ela própria, uma estética revolucionária
tão legítima quanto a violência do oprimido na práxis histórica. [3] Segundo Ismail Xavier:
Estes personagens simbólicos são observados por uma câmera que se
comporta como um documentário. O campo de cena é definido, mas a
imagem é de uma riqueza admirável, pois a câmera não para. Ora se
aproxima, ora se afasta das pessoas e objetos, em planos-sequência,
“apalpando” o que se põe à sua frente. O olhar de Glauber é táctil, sensual,
cheio de contrastes, desequilíbrios, excessos de toda ordem. Há um impulso
totalizador que colide com a interminável acumulação de elementos que
desafia a síntese. Sempre metafórico e distante do naturalismo, inventou a
sua própria linguagem. O seu cinema é barroco (trabalha opostos) na
textura da imagem e do som e também na concepção do poder, com
metáforas extraídas da tradição popular afro-brasileira, do catolicismo
rústico, que não é um artifício retórico. Há um esforço de aliar religião
popular e prática revolucionária. Não podemos negar a tradição dos mitos,
podemos reinterpretá-los em termos de projeto de liberação. As lições sobre
a luta de classes convivem com uma recuperação do sagrado, que é
sincrético.[4]
Antes de iniciarmos propriamente a análise interdisciplinar do filme, desenvolveremos um
panorama mais detalhado sobre o cinema como forma de manifestação linguística imagética do pensar
filosófico jurídico e também sobre a perspectiva pragmática de se pensar a relação autoridade sujeito
sob o ponto de vista comunicativo. A importância cognitiva do contato com a cultura de humanidades
está numa ampliação de nossa vida subjetiva, que permanece até certo ponto inacessível em nossa vida
concreta. No romance ou no espetáculo cinematográfico, a magia do livro ou do filme faz-nos
compreender o que não compreendemos na vida comum, onde percebemos os outros de forma exterior, ao
passo que na tela e nas páginas do livro eles surgem com todas as dimensões, subjetivas e objetivas,
concomitantemente.[5]
Neste campo, torna-se possível o entendimento de como as comunicações normativas abusivas
estimulam a percepção da crise e as manifestações subversivas revolucionárias, tão bem retratadas por
Glauber Rocha, do ponto de vista estético, unindo elementos subjetivos e objetivos. A questão que
visaremos equacionar neste artigo é a seguinte: a busca de uma libertação do dramático abuso de poder
praticado pelas instituições político-jurídico–religiosas em relação ao povo sertanejo, através do
beatismo e do cangaço, significa uma ruptura efetiva ou seria mera reprodução dos padrões de violência
abusivos? É o que veremos a seguir.
INTRODUÇÃO
ste ensaio, pretendemos elaborar uma reflexão sobre a relação entre o homem e o direito a partir do
E filme Limite, de Mário Peixoto[57]. Diante disso, pretendemos: (1) indicar, do ponto de vista formal,
um conceito de “relação” que possa conter o “homem” e o “direito” como termos que se relacionam
entre si; (2) indicar que cada um desses termos constitui perspectivas diferentes através das quais esta
relação pode ser pensada; (3) formalizar, a partir de tais perspectivas, um argumento segundo o qual, na
relação ideal entre o homem e o direito, o homem deve ser objeto para si mesmo através do direito,
sendo a esfera da liberdade humana a determinação pela qual isto pode acontecer; (4) mostrar, entretanto,
que a liberdade apreendida e cristalizada na dicotomia categorial do ser e do dever jurídicos é
diametralmente oposta à liberdade tipicamente humana, e que, nesse sentido, a primeira pertence à
imanência conceitual da lógica e a segunda, à transcendência temporal da existência; (5) demonstrar,
assim, que há uma oponibilidade irredutível entre instâncias como sujeito e objeto, existência e
conceito, temporalidade e lógica, pensamento e realidade, e que qualquer tentativa de passagem
completa de uma destas determinações para o seu par correlato representa uma contradição e uma
impossibilidade, na medida em que pressupõe aquilo que Aristóteles designou por μετάβασις εἰς ἄλλο
γένος [passagem para um outro gênero]; (6) analisar o filme Limite como um substrato para revelar
demonstrativamente toda a exposição precedente, particularmente no que se refere à distinção de gêneros
previamente apontada. Assim, faremos também (a) uma análise objetiva (conceitual) da narrativa de
Limite, à luz da pragmática jurídica; e (b) uma análise subjetiva (existencial) da mesma narrativa, à luz
da temporalidade.
De um modo geral, a fundamentação deste ensaio reside em nossa leitura do projeto filosófico
kierkegaardiano globalmente considerado, e, de modo mais específico, o seu principal ponto de apoio
consiste no seguinte par de obras: Migalhas Filosóficas ou um Bocadinho de Filosofia de João
Clímacus[58] e Pós-Escrito não Científico às Migalhas Filosóficas[59]. Tudo sem prejuízo quanto à
incursão em outras obras de Kierkegaard ou de outros autores, quando necessário e na medida do escopo
desse texto.
O objetivo deste ensaio, por sua vez, consiste em uma articulação temática e interdisciplinar de
temas da filosofia geral e da filosofia do direito (particularmente, da pragmática jurídica) com o referido
filme.
O HOMEM E O DIREITO ENTENDIDOS COMO TERMOS QUE CONSTITUEM UMA RELAÇÃO
O homem e o direito podem ser pensados a partir da relação que constituem. Do ponto de vista
formal, uma relação é constituída por pelo menos dois termos opostos[60] que se relacionam um com o
outro. Por definição, esta oposição entre termos não pode ser nem absoluta nem nula, isto é, os termos de
uma relação não podem ser nem absolutamente diferentes nem absolutamente idênticos, porque tanto a
diferença absoluta quanto a identidade absoluta não permitem que haja um relacionamento entre os
termos: se um termo difere absolutamente do outro, não há nada por meio do que estejam vinculados, e,
com isso, não há nada através do que possam relacionar-se; e, se um termo se assemelha absolutamente
ao outro, temos um caso de identidade absoluta, ou seja, não se trata de dois termos, mas de um só e
mesmo termo, pois, se não há pelo menos uma propriedade ou característica pela qual duas coisas se
distingam uma da outra, então é necessário que elas não sejam duas coisas distintas, mas uma; na falta de
um segundo termo, porém, não pode haver ainda uma relação. Isso também se pode concluir do seguinte
modo: os termos de uma relação constituem polos contrapostos que jamais podem coincidir inteiramente
(pois os polos se anulariam em apenas um termo), e, em virtude disso, é necessário afirmar alguma
diferença entre os termos. Entretanto, considerando que devam se relacionar entre si, os termos jamais
podem divergir inteiramente (pois os polos se anulariam em uma diferença entre si inconciliável), e, em
virtude disso, é necessário afirmar também alguma igualdade entre os termos.
Assim, se a oposição entre os termos de uma relação não pode ser nem absoluta nem nula, é
preciso estabelecer que deve haver uma oposição relativa, isto é, deve haver tanto uma identidade[61]
relativa quanto uma diferença relativa entre tais termos: identidade relativa porque, para se relacionarem,
é necessário que haja alguma coisa através da qual os termos se unam e se vinculem, alguma coisa
através da qual uma relação possa, efetivamente, desenrolar-se a partir destes opostos; e diferença
relativa porque, para se relacionarem, também é necessário que sejam diferentes de algum modo, pois
uma relação só se dá na diferença e só acontece a partir de uma contraposição. Assim, em toda relação,
os termos estão separados, porém também unidos, na medida em que esta oposição relativa é o que
implica o fato de se relacionarem entre si; e este fato, por sua vez, é aquilo que, a um só tempo, afasta,
mas também reúne os termos em uma relação.
Assim, se assumirmos a premissa de que o homem e o direito constituem uma relação, então
“homem” e “direito” devem ser concebidos como os termos desta relação e deve existir,
necessariamente, uma oposição relativa entre eles, de tal modo que uma relação possa desenvolver-se a
partir deles.
Esta relação pode ser pensada sob um duplo aspecto, relativamente a cada um de seus termos: o
homem e o direito. Do ponto de vista do homem, a relação pode ser entendida de acordo com a
proposição (a) “o direito é objeto para o homem”. Neste caso, acentuam-se tanto o homem na qualidade
de sujeito (papel ativo de sujeito) quanto o direito na qualidade de objeto (papel passivo de objeto). Na
qualidade de sujeito, o homem é, ao mesmo tempo, condição necessária e suficiente para a geração do
direito na qualidade objeto, isto é, sem o homem como um sujeito com capacidade de criar não pode
haver direito. Assim, o homem é o sujeito que mobiliza a esfera jurídica, que opera com as
determinações jurídicas que ele mesmo engendrou, e é também aquele para o qual estas determinações
devem se orientar.
Por sua vez, do ponto de vista do direito, a relação pode ser entendida de acordo com a
proposição (b) “o homem é objeto para o direito”. Neste caso, acentuam-se tanto o direito na qualidade
de sujeito (papel ativo de objeto) quanto o homem na qualidade de objeto (papel passivo de sujeito). Não
dizemos que o direito é sujeito da mesma forma que o homem, pois são entes ontologicamente distintos.
Entretanto, na medida em que o homem engendra o direito, estabelecendo como paradigma do âmbito
jurídico ele mesmo (o próprio homem), e, na medida em que o homem lhe confere império e força de
autoridade, o direito assume uma função de ente portador de determinações (jurídicas) que devem
apreender e, ao mesmo tempo, sujeitar o homem. Nesse sentido, na relação entre o homem e o direito,
entendida do ponto de vista da proposição (b) “o homem é objeto para o direito”, há uma curiosa
inversão na qual o homem assume um papel ativo de objeto (análoga a uma posição passiva de sujeito) e
o direito assume um papel passivo de sujeito (análoga a uma posição ativa de objeto), porque o homem
nunca é concebido conforme a complexidade de sua condição constitutiva, mas sempre como um
resultado hermenêutico das determinações jurídicas. Isso significa que o homem não é ele mesmo, não é
aquilo que ele verdadeiramente (realmente, efetivamente) é. Ao contrário, o homem é uma construção
conceitual.
Entretanto, ainda que, sob o aspecto científico, o homem seja considerado objeto, e, portanto, seja
destituído de seu estatuto ontológico específico, a realidade do homem não pode ser desfeita: que ele é
sujeito. Por outro lado, porém, sob o aspecto existencial, ainda que o direito seja considerado sujeito, e,
portanto, igualmente destituído de seu estatuto ontológico específico, a realidade do direito também não
pode ser desfeita: que ele é objeto. O homem e o direito constituem, assim, uma relação entre sujeito e
objeto cuja peculiaridade está em que, de certa maneira, os termos desta relação invertem os papéis de
sujeito e objeto, ou, de outra forma, se se mantêm como realmente são (o homem como sujeito e o direito
como objeto), chegam, porém, a assumir o papel funcional um do outro (o homem com papel passivo de
sujeito e o direito com papel ativo de objeto). Em todo caso, aqui, o fundamental é notar que o homem e o
direito, considerados como termos opostos que constituem uma relação, e, dentro disso, considerados
especificamente do ponto de vista de cada um desses termos no interior desta relação – de acordo com as
proposições (a) e (b) – constituem um cenário em que, no limite, o homem é objeto para si mesmo.
Vejamos isto mais de perto.
Se as proposições (a) e (b) estão corretas, nosso argumento pode ser formalizado da seguinte
maneira: se (a) “o direito é objeto para o homem” e se (b) “o homem é objeto para o direito”, então as
possibilidades de conclusão são as seguintes proposições: (c1) “o homem é objeto para o homem”; (c2)
“o direito é objeto para o direito”, restando ainda saber como estas possibilidades se relacionam entre
si, isto é, se são mutuamente excludentes na forma de um dilema – ou “(c1)” ou “(c2)” – ou se são
complementares na forma de uma adição – “(c1)” e “(c2)”. Mas parece faltar algo a esta formulação das
proposições conclusivas, pois, da forma como as expusemos acima, a relação originária (direito –
homem) não fica devidamente exposta; e, no entanto, ela deve aparecer. Quando se afirma como
conclusão a proposição (c1) “o homem é objeto para o homem”, o termo “direito” da relação originária
se oculta, embora, nem por isso, deixe de influenciar a relação, pois “o homem é objeto para o homem”
através do direito. Da mesma maneira, quando se afirma como conclusão a proposição (c2) “o direito é
objeto para o direito”, o termo “homem” da relação originária também se oculta, embora permaneça
como termo efetivo a todo momento, afinal, “o direito é objeto para o direito” através do homem. Eis
demonstrada a situação real das proposições (c1) e (c2), as quais, a partir de agora, podemos formalizar
de outra maneira: (c1) “através do direito, o homem é objeto para si mesmo”; (c2) “através do homem, o
direito é objeto para si mesmo”.
Isto feito, passemos a verificar se nossas proposições conclusivas se relacionam como um dilema
ou como uma adição. Supondo que (c1) e (c2) se relacionem como uma adição, então as proposições (c1)
e (c2) devem ter um caráter de verdade: uma vez, porém, que existem dois termos que se relacionam
entre si de tal modo que ambos são, a um só tempo, sujeito e objeto um para o outro, há então uma
relação de referência mútua entre eles. Neste caso, ambos devem ser objeto com a mesma determinidade
conceitual, assim como também devem ser sujeito com a mesma especificidade ontológica – mas, isto é
um absurdo. Além disso, já destacamos, na relação originária (homem – direito), quem é o verdadeiro
sujeito da relação e qual é o verdadeiro objeto, e qualquer inversão quanto a isso seria uma confusão
ontológica grave.
Assim, se é impossível que (c1) e (c2) se relacionem aditivamente, é forçoso afirmar que se
relacionam como o seguinte dilema: ou (c1) “através do direito, o homem é objeto para si mesmo” ou
(c2) “através do homem, o direito é objeto para si mesmo”. Entretanto, se considerarmos a anterioridade
lógica do homem em relação ao direito[62] (pois é o homem que engendra o direito), e, sobretudo, se
considerarmos a primazia ontológica do homem sobre o direito (pois o homem é sujeito e o direito é
objeto), o dilema conclusivo é apenas aparente, pois torna-se necessário desconsiderar a conclusão (c2):
seria uma anomalia teórica considerar uma relação entre o homem e o direito na qual o direito fosse
objeto para si mesmo através do homem – anomalia que, no entanto, não deixa de existir em determinadas
realidades jurídicas, mas, neste caso, a crítica já está feita tanto quanto a sua breve apresentação.
Assim, a conclusão para o nosso argumento fica sintetizada na proposição (c1): “através do
direito, o homem é objeto para si mesmo”. Agora, é preciso encontrar aquilo por meio do que, através do
direito, o homem se relaciona consigo mesmo, o que significa encontrar a determinação através da qual o
homem e o direito se relacionam, ou as determinações, caso sejam mais de uma. Com Heidegger, ficou ao
menos indicado algo a esse respeito:
Toda ciência, portanto, sempre e somente diz respeito a determinado âmbito de coisas do homem,
e, dessa forma, só pode ser fundamentada na medida em que receba sua significação e adquira sua
vinculação a partir de tais “domínios-de-coisa” pertencentes ao homem. No caso particular da ciência do
direito, é possível indicar a esfera da liberdade humana como o âmbito de coisas que permite o
engendramento da dimensão tipicamente jurídica, afinal, a existência do direito é imagem da liberdade no
homem. Parece intuitivo, inclusive, que a dicotomia fundamental de toda ordem jurídica (entre ser e
dever) só possa ser pensada no horizonte da liberdade humana, porque ser e dever são, neste caso,
sempre e somente ser do homem e dever do homem. Permanecem, entretanto, coisas distintas a liberdade
verificada no homem que existe como um ente real no mundo e a liberdade juridicamente estabelecida
nas categorias do ser e do dever.
Por um lado, a liberdade tipicamente humana só aparece como um problema subjetivo, isto é,
como um problema do homem ao qual ela pertence e se refere; objetivamente, ou seja, conceitualmente, a
liberdade jamais se coloca, porque liberdade só pode ser liberdade do homem que, existindo no mundo,
age “livremente” (com sua liberdade) a partir de sua história. Nesse sentido, a liberdade do homem só
pode desenrolar-se no horizonte do tempo e na medida em que o tempo desvela o ser do homem para ele
mesmo; mas isso significa também que a liberdade é sempre e cada vez diferente[64], pois o tempo é uma
sucessão de momentos – um desfilar[65] – a partir dos quais fica possibilitada a singularização da
liberdade.
Por outro lado, a liberdade juridicamente apreendida através da dicotomia entre ser e dever é
sempre o resultado de uma cristalização de determinados estados de coisas em categorias conceituais
(preponderantemente descritivas), que, de maneira imediata ou mediata, dizem respeito a situações
fáticas relativamente à liberdade do homem. Neste caso, porém, só objetivamente a liberdade pode
aparecer, pois a determinação fundamental da liberdade – o movimento – não pode ser capturada
adequadamente por meio da letra fria de uma norma jurídica. Se, pela perspectiva da liberdade humana, a
subjetividade é o essencial, e, com ela, também a interioridade do homem, o essencial, pela perspectiva
da liberdade jurídica, é justamente o oposto a isso, a objetividade, pois somente ela pode responder
normativamente à demanda coletiva da esfera social.
Em primeiro lugar, agora está claro que o problema está sendo tratado
objetivamente. A modesta, espontânea, totalmente irrefletida subjetividade
mantém-se ingenuamente convencida de que tão logo se estabelece a
verdade objetiva, a subjetividade prontamente deseja agarrá-la. Logo em
seguida se vê o caráter juvenil […] que não tem a mínima noção daquele
sutil segredo socrático: que o nó da questão está justamente na relação do
sujeito. Se a verdade é espírito, então a verdade é interiorização, e não uma
relação imediata e totalmente desinibida de um Geist [espírito, mente]
imediato com um conjunto de proposições […]. A irreflexão sempre se
dirige para a exterioridade, rumo a, ao encontro de, empenhando-se para
atingir seu alvo – ao encontro da objetividade; o segredo socrático […]
consiste em que o movimento esteja voltado para o interior, que a verdade
seja a transformação do sujeito em si mesmo. (Kierkegaard, 2013, p. 42-43)
Há, portanto, uma irredutível oponibilidade entre homem e direito, sujeito e objeto, existência e
conceito, pensamento e realidade: enquanto determinações como homem, sujeito e existência pertencem
ao plano do devir[67], determinações como direito, objeto e conceito pertencem ao plano da lógica[68],
mas a impotência deste plano é a passagem do lógico ao devir, onde existência e realidade
aparecem[69]. O devir é o plano fundamental da existência, plano no qual o homem está ontologicamente
aberto, desde sempre, à criação do mundo. Nesse sentido, ele consiste em uma instanciação que escapa à
tentativa e à apreensão conceitual, porque ele é sempre mais do que a objetividade pressuposta para sua
cristalização em uma categoria filosófica própria. O devir corta o tempo e o tempo atravessa o devir, e,
se o tempo é uma sucessão de momentos, o devir é o curso fático dos acontecimentos a partir dos quais
ocorre, na temporalidade, o seu desfilar.
Como é que muda o que vem a ser; ou qual é a mudança (kinesis) própria
do devir? Qualquer outra mudança (alloiosis) pressupõe que exista aquilo
em que se dá o processo da mudança, mesmo quando a mudança consiste
no cessar de existir. Mas com o devir não é assim […]. Esta mudança não
é então mudança na essência, mas no ser, e é mudança do não-existir para
o existir. […] Mas um tal ser, que contudo é não-ser, é a possibilidade; e
um ser que é ser, é o ser real, ou a realidade; e a mudança do devir é a
passagem da possibilidade à realidade. (Kierkegaard, 2008, p. 105)
Entretanto, é possível que alguém frustre a expectativa da autoridade, não obedecendo à norma
por ela emanada. Isto, porém, pode acontecer de duas formas: é possível desobedecer à norma emanada
tanto por não aceitação do relato da norma, mas apenas do seu cometimento, quanto por não aceitação de
ambos (relato e cometimento). No primeiro caso, aquele que desobedece (que conhece o relato da norma,
mas age contrariamente a ele), embora saiba que a sua desobediência é um caso de ilicitude (pois ainda
reconhece o cometimento da norma), mostra que aceita a autoridade enquanto tal, embora opte
deliberadamente por desobedecê-la. No segundo caso, porém, aquele que nem mesmo reconhece a
autoridade enquanto tal (que desrespeita o cometimento), a princípio também não deve julgar que esteja
praticando um ato ilícito, pois não aceita submeter-se à autoridade (e, assim, não aceita que a autoridade
lhe impute o ato que está cometendo como ato ilícito). Este último é o cenário mais ameaçador para
qualquer autoridade institucionalizada[79].
Isto posto, podemos passar a analisar as três histórias de Limite à luz da pragmática jurídica, a
partir da dicotomia por meio da qual o homem e o direito relacionam-se: o ser e o dever. Podemos,
portanto, articular as histórias das personagens de Limite com o arcabouço conceitual brevemente
exposto. Vejamos como isto pode ser feito.
Em Limite, há três náufragos em uma canoa à deriva, duas mulheres e um homem. Os três estão
severamente abatidos, extenuados, ao que tudo indica, não propriamente com a situação que enfrentam,
mas com algo além, talvez algo mais íntimo na profundidade subjetiva de cada um. Uma das mulheres
conta sua história: com a ajuda do carcereiro, ela fugiu da prisão e foi para um lugar distante tentar a vida
como costureira. Mas ela então se deparou com a monotonia, e, novamente, uma grave angústia recaiu
sobre ela. Quando é descoberta a sua fuga da prisão, os jornais noticiam o fato e ela tem que se mudar
novamente.
Em seguida ao relato da primeira mulher, a segunda mulher conta como chegou até aquela
situação: casada com um pianista ébrio que tocava em cinemas, em um determinado dia ela chega em
casa com um cesto de alimentos e se depara com o marido sentado na escada, junto com algumas
partituras de música, dormindo porque bebera muito. Ao perceber o ponto degradante em que seu
casamento se encontra, ela decide abandonar o marido e fugir.
Por fim, o homem conta sua história: ele foi amante de uma mulher casada, mas esta mulher
acabou falecendo. No cemitério, ele encontra o marido de sua amante, que lhe diz que a mulher falecida
era leprosa. Com a possibilidade real da castração, o homem desespera.
Os detalhes narrados são escassos e não sabemos muita coisa sobre as vidas das personagens e as
circunstâncias em que procederam de tal ou tal forma. Isto certamente não é por acaso. A explicitação
detalhada de um personagem relativamente ao seu enredo, isto é, o esclarecimento sobre as razões de sua
ação de modo discriminado, é sempre recebida, por quem presencia a obra, como um dado objetivo. Pelo
contrário, quando não há indício do porque e do como do personagem em relação à narrativa, então as
coisas se invertem e a objetividade ali contida é recebida subjetivamente, isto é, a vacuidade de sentido
pede nossa interferência subjetiva para que o sentido se complete; ou, antes, o sentido é produzido a
partir de uma ausência de referências a que se possa agarrar-se. Se nos fossem, assim, reveladas, mais
detalhadamente, as circunstâncias nas quais os três náufragos agiram da forma como o filme narra, eles
estariam passíveis a um juízo de reflexão de nossa parte; mas, em virtude de uma tal inexistência de
informação, só o que podemos reter é o acontecido tal como descrito.
No caso da história da primeira mulher, não é possível saber o motivo pelo qual ela foi presa,
pois ela rememora sua história já a partir da fuga. Mas podemos afirmar que o ato de fugir do
estabelecimento prisional consiste em uma rejeição da autoridade, o que fica evidente na medida em que
ela segue se escondendo da mesma no desenrolar posterior à fuga. Vale dizer, esta mulher não questiona o
estatuto da autoridade enquanto tal em momento algum, ela simplesmente comete o ilícito, mas toma o
cuidado de se ocultar para não ser capturada novamente. Assim, fica caracterizada a reação de rejeição
relativamente à sua interação comunicativa com a autoridade.
Aqui, porém, aparece o problema do limiar entre o subjetivo e o objetivo, ou entre a verdade da
existência e a decidibilidade de conflitos. Podemos vislumbrar este limiar a partir justamente do
desconhecimento, no filme, do motivo pelo qual ela foi presa. Poderíamos supor que ela tenha sido presa
justamente, mas também poderíamos supor que ela tenha sido presa por algum equívoco. Já aqui a
reflexão precisa deter-se, pois é intuitiva a dificuldade na definição do que seria uma “prisão justa” ou
“injusta”. Suponhamos, em todo caso, que ela tenha sido presa porque cometeu um ato ilícito: então ela
rejeitou a autoridade em dois momentos, quando cometeu o ilícito que fez com que ficasse retida na
prisão, e, depois, quando fugiu da prisão. Mas, pelo contrário, se supusermos que ela tenha sido presa
por um ato ilícito que não cometeu, ou por qualquer outro equívoco ou engano, então parece ao menos
razoável pensar que a sua fuga tenha sido um ato de reparação necessário, e que o próprio direito é que
deveria tê-la colocado em liberdade (ou, antes, jamais tê-la prendido).
Já no caso da segunda mulher, a que abandona o marido alcoolista, uma coisa é certa: ela
abandona o marido sem maiores explicações e sem nem mesmo comunicar a ele tal abandono.
Precisamos pensar este fato à luz do Código Civil de 1916, o qual já previa o instituto do desquite[80].
Por um lado, considerando que a segunda mulher tenha efetivamente formalizado o desquite, o que, de
fato, poderia ocorrer com base no inciso IV do artigo 317 do Código Civil de 1916 (“a ação de desquite
só se pode fundar em algum dos seguintes motivos: IV. Abandono voluntário do lar conjugal, durante dois
anos contínuos”) é possível dizer que ela pode ter confirmado a autoridade na medida em que exerceu um
direito a ela atribuído pela própria autoridade[81].
Mas, como não sabemos se ela chegou a formalizar o desquite, se considerarmos somente que ela
abandonou o seu marido para nunca mais voltar – o que não seria injustificado, haja vista a angústia com
que o filme retrata sua partida –, neste caso, poderíamos estar diante tanto de um ato de rejeição quanto
de um ato de desconfirmação da autoridade. Considerando o elevado valor atribuído à família
matrimonial no início do século passado, contexto em que o filme se passa, é possível sustentar que a
segunda mulher, caso não tenha formalizado juridicamente o desquite, tenha agido de forma
deliberadamente ilícita ao não respeitar o ordenamento jurídico. Esta ilicitude, no entanto, poderia ser
uma rejeição: embora ela não tivesse agido de acordo com os preceitos legais relativamente à sua
situação matrimonial (desrespeito ao relato), ela pode ter continuado a reconhecer a autoridade enquanto
tal (respeito ao cometimento), o que significaria que ela sabia que estava em uma situação juridicamente
irregular, e, no entanto, manifestamente desejou assim permanecer.
Mas também pode ser que ela tenha agido de maneira mais subversiva, a ponto de nem mesmo
aceitar aquilo que a autoridade preceituou a ela (desrespeito ao relato e ao cometimento da norma), até
porque, o desquite significava que as pessoas entravam em débito com a sociedade (desquites – não
quites com a sociedade). Assim, no caso de rejeição da segunda mulher, precisaríamos concebê-la como
agindo com uma espécie de indiferença em relação ao direito, e, no caso de desconfirmação, esta
indiferença em sua ação seria algo mais grave, algo como um ímpeto de subversão – talvez até mesmo no
sentido da condição que a cultura da época concebia institucionalmente o seu gênero – em detrimento da
autoridade.
Por fim, no caso do homem cuja amante era casada e faleceu de lepra, seria preciso levar em
conta, novamente, o Código Civil de 1916[82] para nossa análise. Mas, exclusivamente do seu ponto de
vista, pode-se dizer que não parece haver, propriamente, nenhum ilícito jurídico, uma vez que, ao que
tudo indica, algum eventual ilícito recairia sobre a falecida que, no pleno curso do regime regular de seu
matrimônio, cometeu o adultério.
Entretanto, se considerarmos que o homem sabia da situação matrimonial da falecida, então se
torna possível sustentar que ele tenha agido de maneira a rejeitar a autoridade, na medida em que esta
mesma autoridade havia estabelecido a família matrimonial institucional como figura privilegiada do
ordenamento jurídico, o que era também uma imagem dos valores sociais tradicionais da época.
Nessa direção, a análise pragmática da história pregressa do homem náufrago parece também
permitir estabelecer que ele tenha agido de maneira desconfirmadora: seria este o caso se, em sua
conduta de envolver-se com a mulher casada, ele tivesse agido contra a autoridade enquanto tal, isto é,
tivesse agido deliberadamente em desacordo com a proteção jurídica do vínculo matrimonial, por nem
mesmo reconhecer-se como sujeito subordinado àquela ordem de direito. São possibilidades,
evidentemente, que podemos apenas conjecturar, na medida em que o filme não nos fornece material mais
detalhado, e nem é esta a sua proposta; entretanto, são possibilidades exaustivas de análise, isto é, por
mais que suponhamos uma série de circunstâncias para as três pessoas à deriva no barco, a leitura
jurídica de cada uma, do ponto de vista da pragmática, resultaria sempre na categorização da liberdade
em uma das três categorias expostas: confirmação, rejeição e desconfirmação.
De qualquer maneira, o fundamental é observar, nas três narrativas, a discrepância entre a
subjetividade que efetivamente vive uma história singular no mundo e a leitura jurídica de cada situação.
A questão aqui é que não se trata de verdade, mas de decidibilidade de conflitos, e, uma vez que há uma
diferença insuperável de gêneros entre a liberdade tipicamente humana e a liberdade cristalizada no ser e
no dever jurídicos, então, do ponto de vista do direito, a decidibilidade deve preponderar. Com isso, fica
claro também o papel da tecnologia no universo jurídico contemporâneo e a sua relação íntima com a
decidibilidade. Do ponto de vista da verdadeira história de cada personagem, não podemos saber a
realidade subjetiva de cada um no momento em que cometeram os atos ilícitos, se é que os cometeram. E,
se assim foi, seria preciso ainda garantir psicologicamente a sua medida de envolvimento com as
situações fáticas que tenham porventura cometido e que tenham sido subsumidas às tipificações nas
normas jurídicas, o que é impossível.
Devemos, porém, observar a profundidade psicológica na situação real de cada personagem
enquanto sujeito existente, e, com isso, também a angústia, a desilusão e o desespero de cada um, em
virtude de cada história. É preciso, assim, reparar na diferença abissal que há a partir do momento em
que se faz uma leitura jurídica da existência. O direito nunca apreende – e, enquanto sistema conceitual,
nunca poderia apreender – a subjetividade em sua real profundidade, pois só o sujeito existente pode
assim proceder – se é que a psicanálise já não mitigou uma tal possibilidade. As leituras jurídicas das
situações fáticas previstas nas categorias do ser e do dever não podem, portanto, condizer com a
realidade, pois são sempre e somente aproximações, isto é, construções lógicas aproximativas com algum
grau de fundamentação em estruturas jurídicas previamente estabelecidas; nunca, porém, verdades
efetivamente verdadeiras, ou seja, subjetivas.
O único referencial fixo capaz de dividir o tempo em passado, presente e futuro é, então, a
eternidade. Mas, se a eternidade existe, ela deve necessariamente equivaler ao ser, isto é, ela deve ser
uma eternidade de ser, caso contrário, ela seria uma eternidade nadificada (uma eternidade de não-ser),
o que seria uma contradição, pois seria uma eternidade inexistente. Mas, se a eternidade existe e é
eternidade de ser, ela também não pode apartar-se do tempo, pois o plano do ser é também o plano do
devir, e o devir pressupõe o tempo para a realização de seu movimento; pelo contrário, é de uma
eternidade de ser que deve necessariamente ter derivado o tempo[87]. A este ponto, parece
razoavelmente garantida uma eternidade de ser no sentido em que Parmênides a formulara. Mas há aqui
uma diferença essencial entre o a eternidade de ser de Parmênides e a eternidade de ser kierkegaardiano.
Para Parmênides, todo movimento era uma ilusão, pois o ser não poderia jamais perecer. Mas, se o
movimento era uma ilusão, segue-se disso que o tempo também era uma ilusão, na medida em que era
considerado como uma determinação quantitativa que apenas ofuscava a realidade essencial e eterna de
ser. Se, porém, a eternidade existe, o presente não é mais este plano infinitamente vazio do devir onde o
presente é sempre o imediato e o imediato nunca é efetivamente algo, porque justamente corresponde a
um desaparecer infinito. Pelo contrário, se as coisas se passam desta maneira, então é necessário que o
eterno seja o sempre presente, pois ele deve existir já agora e sempre; mas, se é assim, também é
possível conceber este presente não como o imediato que escoa (e, portanto, como determinação
quantitativa, assim como Parmênides o concebia), mas como uma determinação qualitativa: nesse caso,
toda a concepção de devir precisa ser reparadigmatizada.
Assim, uma vez posta a eternidade, devemos deixar de entender o tempo como a determinação
quantitativa do “imediato” que não cessa de fluir, para entendê-lo como a determinação qualitativa do
instante decisivo. Agora, o pensador subjetivo existente está continuamente em processo de vir-a-ser, isto
é, está esforçando-se, e aqui está o fundamento e a possibilidade da vida ética. Na medida em que
adquiriu, a partir de sua história, consciência de sua condição constitutiva como sujeito realmente
(efetivamente) existente, descobriu também sua liberdade e descobriu que esta liberdade é, desde
sempre, um vaso que pode tornar-se prenhe de conteúdo eterno, bastando que a sua vontade a isso se
dirija. Isso significa, porém, que o devir não se dá mais como na Física aristotélica, enquanto passagem
de não-ser a ser (geração), de ser a não-ser (corrupção) e de ser a ser (movimento quantitativo,
qualitativo e locomoção). Com isso, pelo contrário, o devir deve sofrer uma transposição definitiva da
objetividade para a subjetividade, da física da natureza para a metafísica do espírito: estará dada a
possibilidade do instante existencial decisivo[88] para cada liberdade histórica concreta, isto é, a
oportunidade de preenchimento do instante com o conteúdo do eterno no tempo[89].
Assim, a categoria filosófica do instante aparece como o único modo de tempo possível, isto é, o
instante aparece como uma imagem da eternidade no tempo. A única forma de superação da própria
finitude, e, junto com ela, da angústia e do desespero das vicissitudes e idiossincrasias de uma existência
finita, é o preenchimento do instante com o conteúdo da eternidade. Este preenchimento deve ser capaz de
fazer com que o sujeito, ele mesmo, também venha-a-ser em sentido ontológico pleno: enquanto existe
como uma simples permanência angustiada no mundo, o sujeito ainda não está devidamente constituído
em sua liberdade, pois existe de forma a meramente sobreviver em desespero: “Angústia tem aqui o
mesmo significado que melancolia, num momento bem posterior, quando a liberdade, depois de ter
percorrido as formas imperfeitas de sua história, deve chegar a ser ela mesma, no sentido mais
profundo da palavra” (Kierkegaard, 2013, p. 46).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Trad. Fausto Castilho. Rio de Janeiro: Vozes, 2014. (Edição bilíngue
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Trad. Álvaro Luiz Montenegro Valls. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
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________ Pós-Escrito não Científico às Migalhas Filosóficas. Trad. Álvaro Luiz Montenegro Valls.
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OLIVEIRA, Mara Regina. O Desafio à Autoridade da Lei na Perspectiva do Discurso Jurídico: uma
Interação Comunicativa que Envolve um Conflito entre Luta e Submissão. Doutorado em Direito.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1999.
PEIXOTO, Mário. Limite (RJ, 1931, pb, LM). Cia produtora: Mario Peixoto (produtor);
Direção/argumento/roteiro: Mario Peixoto; Montagem: Edgar Brasil, Mario Peixoto; Dir. fotografia:
Edgar Brasil; Elenco: Raul Schnoor, Olga Breno, Taciana Rei, D. G. Pedrera, Mario Peixoto
O CAMPO DE CONCENTRAÇÃO FUGIDIO DO SERTÃO NA CENA IMAGÉTICA DE
CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS
Marco Aurélio Panadés Aranha[*]
INTRODUÇÃO
M uitas obras artísticas nacionais buscaram retratar, traduzir, figurar, discutir, compor, problematizar,
investigar, desvendar, alumiar e rememorar o sertão, em razão da contribuição inequívoca desse
espaço humano-geográfico para a composição e afirmação da cultura e da identidade popular.
Como frisado por ISMAIL XAVIER[90], “no Brasil, o sertão é um lugar mítico dentro do
processo de construção de identidade nacional, com forte presença nas formulações do século XIX e
da primeira metade do século XX: a vasta região do semi-árido do interior brasileiro (centro-oeste e
nordeste) é a região emblemática da seca e da miséria ligada à concentração da propriedade da terra,
herança dos tempos coloniais”.
Diversos meios de representação cuidaram do tema. Na literatura, para citar algumas poucas
obras, assim o fizeram Vidas Secas de Graciliano Ramos, Grande Sertão: veredas de Guimarães Rosa,
Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto e Fogo Morto de José Lins do Rego. Na música,
entre tantos, cantaram o sertão nordestino Luis Gonzaga, Zé Ramalho, Dominguinhos, Silvio Caldas e
Elba Ramalho. Na pintura e na gravura, Cândido Portinari, Di Cavalcanti e Lasar Segall retrataram como
poucos o sertanejo e seu espaço.
No cinema não foi diferente. No intuito de “descobrir” o Brasil por meio da imagem com a
“câmera na mão”, o Cinema Novo constituiu um dos grandes movimentos culturais do século passado
que, entre outros assuntos, extraiu do sertão matéria-prima essencial de sua produção. Assim, foram
filmados Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha e
Os Fuzis de Ruy Guerra, todos do ano de 1963.
Em meio ao diálogo entre essas obras fílmicas, há discussões em torno do fenômeno da migração
geográfica, da peregrinação messiânica, da perpetuação dos ciclos de violência social e familiar, do
coronelismo, do cangaço, do sofrimento do povo sertanejo em virtude do abandono e do desinteresse
estatal pela região, da repetição de atos comunicativo-abusivos formais e informais, da seca e do vazio
existencial.
Essas três obras cinematográficas do Cinema Novo inauguraram uma venturosa tradição de tratar
de todos esses assuntos em conjunto, de falar, expor e mostrar a vida severina de tantos anônimos sem
voz, sem rosto e sem vez.
Cinema, aspirinas e urubus, filme (2005) dirigido por Marcelo Gomes, mostrou-se um dos
melhores filmes a retomar, nos últimos dez anos, essa tradição de olhar para o sertão brasileiro,
ensejando a possibilidade de rediscussão das relações existentes entre direito, poder e violência no
Brasil sob o aspecto histórico-filosófico.
Ao longo de cerca de 100 minutos, ao espectador é contada a história de Johan, alemão que fugiu
da 2ª Guerra Mundial e chegou ao Brasil por acaso após trabalhar como garçom em navios saídos da
Europa, e de Ranulfo, sertanejo típico, cuja vida é marcada pela miséria material, pela tragédia pessoal,
pelo sentimento de abandono estatal e econômico da região e que sonha em chegar no Rio de Janeiro e
conseguir um emprego com carteira assinada, sob o argumento de que “cansou desse lugar aqui, esse
buraco”.O povo sertanejo, de forma sensível e velada, ao ser representado por várias personagens
anônimas, sem nome ou identificação, encerra o quadro de protagonistas, refletindo a própria realidade
histórico-social de esquecimento dos que sobrevivem no sertão.
Um dos primeiros elementos que chama a atenção no filme é a música “Serra da Boa Esperança”,
cantada por Silvio Caldas, com destaque para o seguinte trecho: “Serra da Boa Esperança meu último
bem; Parto levando saudades, saudades deixando; Murchas caídas na serra lá perto de Deus; Oh,
minha serra, eis a hora do adeus vou me embora; Deixo a luz do olhar no teu luar; Adeus; Os nossos
olhos nos olhos de alguém que não vem ; Serra da Boa Esperança, não tenhas receio ; Hei de guardar
tua imagem com a graça de Deus ; Oh, minha serra, eis a hora do adeus, vou-me embora ; Deixo a luz
do olhar no teu luar ; Adeus”.
Emerge desde essa canção inaugural o aspecto da migração como central na discussão
problematizadora em torno do sertão, o que marcará a trajetória das principais personagens dessa obra
fílmica. Todavia, não se trata de uma migração voluntariosa, benfazeja e venturosa; antes, cuida-se de
uma migração imposta, inevitável, ensejadora da falta de opção do sertanejo diante de um cenário de
absoluta escassez, dor e esquecimento.Cinema, aspirinas e urubus é um filme com uma fotografia
maravilhosa e forte ao mesmo tempo. Passado no contexto do Estado Novo de Getúlio Vargas, as cenas
contemplam um período curto de tempo (de 18 de agosto a 2 de setembro do ano de 1942) e concentram
sua dramaticidade no Sertão de Cariri, onde simbolicamente localiza-se Canudos.
Não custa lembrar que o Estado Novo (1937-1945), período mais duro do regime Vargas (1930-
1945), foi marcado pelo autoritarismo nacionalista, pela centralização do poder estatal, pela perseguição
aos comunistas e pela supressão de direitos fundamentais, incluindo a suspensão dos trabalhos do Poder
Legislativo e a outorga da Constituição “Polaca” de 1937, escrita por Francisco Campos.
Nas palavras de RAYMUNDO FAORO[91], “Getúlio Vargas evitaria o comunismo, conciliando
o operariado, e se afastaria do fascismo, oficializando os grupos de pressão capitalistas. O centro de
equilíbrio, igualmente afastado dos extremismos, não se situa na democracia, nem no liberalismo”.
Atentar para esse contexto histórico é ponto chave para a compreensão do filme, seja para
entender a fuga involuntária de Johan para a Amazônia, seja para captar os motivos do encantamento de
Ranulfo sobre o Rio de Janeiro, lugar que, mesmo escurecido pelas sombras de um Estado opressor, é
melhor do que o “buraco” do sertão.
O trecho acima transcrito explica com sensibilidade os motivos que levam o sertanejo a uma
pacificidade verdadeiramente involuntária.
A lei do sertão não é, pois, a do Direito formal institucionalizado. Como se demonstrará à frente,
há muitos elementos para se equiparar a situação do sertanejo à de um prisioneiro de um campo de
concentração, ainda mais se considerado o contexto da 2ª Guerra Mundial, época histórica da narrativa
(1942).
Retomando a viagem para Triunfo, Ranulfo e Johan param para almoçar em um bar-restaurante na
estrada. Em conversa com o dono do estabelecimento, em que o tema Amazônia é tratado, o senhor
afirma que nunca quis ir para aquela região porque “lá é perigoso” e que no Brasil a guerra “chega, não.
Nosso Brasil é bom demais. Calmo”, o que motiva um olhar inconformado de Ranulfo. O filme
demonstrará que a opinião do dono da venda está equivocada.
A viagem segue com outros caronas sertanejos. A certa altura, na estrada, motorista pára o
caminhão e tenta entender uma “cena” no meio do caminho: vê um sertanejo alterando a cerca (feita de
madeira seca torcida) de lugar. Ranulfo desce para saber o que estava ocorrendo e, ao voltar, explica que
“o rio estava tão seco que as vacas estavam tudo fugindo pro lado. Aí, ele teve que cercar”. Johan acha
“interessante” e Ranulfo pergunta: “o que que o moço acha de interessante num lugar tão miserável
como esse? Aqui é seco e pobre”. O alemão responde, bastante incomodado e com a sensação de quem já
viveu a guerra: “mas pelo menos não caem bombas do céu”.
Com apenas Johan e Ranulfo no carro, este reclama: “se o moço parar na estrada pra toda essa
corriola que pede condução, a gente vai chegar no Rio de Janeiro no ano que vem”. Ao ouvir isso,
Johan fala: “mas o senhor não pediu uma condução também?”. Ranulfo: “mas esse povo só faz sujar
seu carro”. Johan: “esse povo que o senhor está falando... o senhor também faz parte dele, não é?”.
Ranulfo gesticula com a mão em sinal de mais ou menos. Johan, então, pergunta: “como mais ou
menos?”. Sem nenhuma resposta de Ranulfo, sobe outro caronista.
Na manhã do dia seguinte, a rádio alardeia que os primeiros sobreviventes do navio brasileiro
bombardeado pelos Nazistas chegam ao litoral de Pernambuco e que o barco estava perto de Sergipe.
Ranulfo exclama: “Vixe... Sergipe é aqui perto”. O noticiário da rádio anuncia ainda que “as reações aos
ataques já começam em todo o Brasil”, o que deixa Johan levemente apreensivo.
Gradativamente a “guerra” vai aproximando-se de ambos.
Ao pararem o caminhão novamente para pedirem água a uma família sertaneja pobre e isolada,
Johan grita ao ser picado por uma cobra. Ranulfo, então “sangra a ferida” com uma faca e chupa o local
para extrair o veneno, em total conhecimento da aspereza da situação. Após esse ocorrido, cuida do
alemão por dois dias até sua melhora.
Após o incidente, já curado e como compensação por ter salvado sua vida, Johan ensina Ranulfo a
dirigir o caminhão, para viabilizar o sonho do sertanejo de, quem sabe um dia, ser contratado pela
Companhia Bayer. Após algum treino de direção, retornam à estrada e o alemão decide “celebrar” a vida
ao chegarem em Triunfo ao perceber que tudo pode acabar em um segundo, seja ou não pela Guerra,
convidando Ranulfo para acompanhá-lo.
No caminho para o destino urbano, enquanto Ranulfo dirige, a rádio anuncia: “Notícias da
Paraíba. Outra pirataria nazista. Foi preso nesta manhã na Paraíba um alemão que supostamente
enviava mensagens de localização de navios na costa brasileira. Dentro da casa do referido alemão,
foram encontradas suásticas... o alemão foi levado ao campo de concentração em Aldeia, perto de
Recife, onde ficará preso”. Ranulfo tenta tranquilizar Johan dizendo que não há bomba que chegue nesse
fim-de-mundo.
Já em Triunfo, o estrangeiro diverte as crianças “desenhando” o voo dos urubus com as sombras
projetadas de suas mãos em frente à luz do farol do caminhão, enquanto Ranulfo vende aspirinas aos
locais. Um homem (espécie de coronel local) dirige-se ao alemão e diz que pode comprar todo o estoque
de aspirina e anunciar por toda a região. Enquanto acompanha essa conversa, Ranulfo olha desconfiado,
com medo de “ser trocado” e perder a oportunidade de sair daquela realidade de miséria.
Na negociação com Johan, o homem diz que venderá mais caro o medicamento para compensar os
custos. Johan concorda. O homem de nome Claudionor José Pereira Carneiro de Assis, o que inspira
alguma ascensão social, fala: “Aspirinas e cinema na minha Triunfo... quanta honra”, denotando a ideia
de posse sobre a região. Claudionor leva Johan e Ranulfo para sua casa e os apresentam à sua esposa,
Adelina. Todos brindam desejando o fim da Guerra.
Ranulfo e Johan saem da casa de Claudionor, após venderem todo o estoque da mercadoria, e o
alemão fala: “amanhã já é nosso caminho de volta. Você vai ser meu ajudante, já é contratado, viu”.
Para comemorarem o sucesso da empreitada e o iminente retorno ao Rio de Janeiro, dirigem-se ao
puteiro da cidade. Chegando lá, reencontram Claudionor, que discursa (na presença de Johan): “Meus
prezados, Triunfo vai ser a nova capital de todo o sertão. Estamos inaugurando uma nova Era. E, por
isso, eu quero brindar a proeza desse alemão autêntico, que veio lá do outro lado do mundo para
trazer o futuro para a nossa cidade...”. Brindam. Ranulfo brinca com Johan dizendo: “todo mundo
admirado com tu, parece até que nunca viram um estrangeiro antes”, denotando a clara valorização da
cultura nacional de que o que vem de “fora” é tido sempre como melhor.
Claudionor gaba-se do sucesso que será representar a Aspirina por todo o sertão: a cena não
deixa dúvida de que a comercialização da aspirina não passa de um projeto de poder local em total
desconexão com a necessidade dos sertanejos.
Revelando essa intenção cênica, o “coronel” discursa novamente: “Meu nome vai estar escrito
em cada rua e antes de cada filme vai aparecer: Aspirina, uma organização Dr. Claudionor”. Ranulfo,
nesse momento, retruca: “o senhor vai ganhar é dinheiro”. Johan ameniza: “os filmes são muito bem
feitos. Eles impressionam todo o mundo. Uma pessoa que nunca tem dor de cabeça vai começar a ter
somente para tomar remédio”. Ante tal comentário, Claudionor brinca ao dizer “principalmente os
cornos, né, seu Edivaldo”. Ranulfo provoca Claudionor e fala, rindo: “Arretou-se. Esse é o sertão:
miséria, coronel e piada de corno”. Então, Claudionor dirige-se a Ranulfo retrucando: “eu não sou
coronel, eu sou empresário”. Ranulfo: “é a mesma coisa”. Claudionor: “não é”. Ranulfo: “qual é a
diferença?”. Claudionor: “A diferença é que se eu fosse coronel, eu já tinha mandado meu capanga te
pegar. Mas como eu sou empresário, eu mesmo posso fazer isso... não preciso mandar ninguém” Johan
tenta amenizar o” clima” da conversa entre Ranulfo e Claudionor dizendo que aquele está bêbado, que
todos estão bêbados. Ranulfo e Johan passam a noite no puteiro se divertindo-se.
É evidente que o “empresário” Claudionor é uma releitura da figura do coronelismo nos tempos
modernos, ficando claro que as relações de poder e dominação no sertão pouco mudaram de fato em
relação às últimas décadas. Assumem hoje uma nova roupagem, mas com a mesma essência.
Esse cenário trágico motiva a seguinte fala sóbria e consciente de Ranulfo: “Que situação desse
povo... perdeu tudo e ainda é obrigado a ir para aquele fim de mundo. Eu não quero isso pra mim, não,
viu”. Johan retruca: “a gente chega lá em outra condição”. Ranulfo argumenta: “Eu sei, mas eu tenho
que lhe dizer uma coisa. Eu vou ficar até o trem chegar. Depois eu vou-me embora”. Johan pergunta:
“Como isso? Desistiu?”, o que Ranulfo responde: “Desisti não. Eu vou enfrentar. Vou fazer o que você
vai fazer lá na Amazônia. Vou fazer meu destino...”. Johan pergunta: “E por que não pode ser lá?”.
Ranulfo responde: “Porque meu destino é outro. Mas pra tu é melhor ficar lá mesmo e só sair quando a
Guerra acabar”.
Urubus sobrevoam a região. Aparece um mensageiro da estação e diz, com rispidez, a todos os
presentes: “Vocês vão até Fortaleza de trem e de lá tomam um navio até a Amazônia. Só entram no
trem quando eu mandar e lá em Fortaleza só sai quando eu mandar e ensinar o caminho até o vapor...
estão me ouvindo?!?”. Ao ouvir esse discurso, Ranulfo reclama: “O país tá cheio de filha-da-puta. Bota
uma farda e, pronto, sai gritando com todo o mundo. Isso é jeito de tratar gente?”, o que Johan retruca:
“Você tratava as pessoas às vezes assim no caminho...”. Ranulfo responde: “Eu fiz o que fizeram
comigo... agora mudei... posso não, é?!?”. Eis a repetição do ciclo de abuso-comunicativo e violência
estampado na fala do sertanejo.
O mensageiro manda que todos fiquem sentados porque “a polícia vai fazer uma vistoria”. Nesse
momento, Johan se esconde no banheiro da estação. Chega o trem da companhia inglesa Great Western of
Brazil Railway (GWBR). O povo amontoa-se para subir nos vagões, sem assentos, feito gado. Ranulfo
chama Johan (escondido no banheiro) apenas quando o trem está para partir. Em agradecimento, o alemão
entrega ao sertanejo a chave de ignição do caminhão. Aparecem imagens das famílias nos vagões... com
total desesperança e dor...o trem parte.
Na última cena do filme, Ranulfo aparece próximo ao caminhão; entra, liga o motor e dirige...
feliz. A iluminação aumenta até toda a tela ficar branca. O final é poético e de alguma forma esperançoso,
mas sem destino certo para as personagens principais, pois não se sabe se qualquer deles conseguirá
chegar no destino traçado.
REFLEXÕES FINAIS
O filme Cinema, aspirinas e urubus expõe a situação trágica do sertão vivida por três
personagens: Johan, alemão desterrado pela guerra, Ranulfo, sertanejo que tenta fugir da situação de
penúria em busca de algo melhor para si, e o sertanejo anônimo, sofrido, esquecido, manipulado pelas
relações de força política, social e econômica.
É uma película com um roteiro de ficção, mas que estabelece permanente diálogo com a realidade.
Nas palavras de ISMAIL XAVIER, “a deriva de Johan o torna um retirante sem nome que partilha o
destino de brasileiros pobres ironicamente enredados na Guerra. Seu gesto de desterritorialização
implica em escolher uma das alternativas postas pela malha dos poderes nacionais que sempre
rejeitou em nome de uma disposição humanista ao diálogo sem fronteira”.
De certa forma a história de empregado alemão revela que a condição de retirante – a ele também
imposta ao final da obra cinematográfica – é sempre decorrente de circunstâncias alheias e por motivos
de natureza política, econômica e social, nunca optativa, o que aproxima as críticas vinculadas às
circunstâncias do sertão à crítica universal em torno da miséria e do esquecimento.
A situação de completo abandono desse espaço humano-geográfico aparece ao longo de toda a
narrativa como regra vivida, apesar de o sertão constituir um lugar de inequívoca exceção à ordem
jurídica formal do Estado. Os conceitos-imagem extraídos da obra trazem a força que poucos argumentos
teóricos poderiam alcançar, haja vista a imanente “impressão de realidade”[101] estampada na tela de
cinema, que se impõe com força à realidade[102].
Se, por um lado, o motorista alemão surge em Cinema, aspirinas e urubus como detentor de uma
posição social e econômica privilegiada em relação ao sertanejo, ao longo da trama sua condição vai
gradativamente igualando-se à de um retirante comum, de modo que também passa a ser destinatário da
ordem de fuga que aflige todos que compartilham daquele contexto social.
Essa “virada” da personagem estrangeira pode ser bem explicada pela teoria da norma-
comunicação, visto que as relações existentes entre direito, poder e violência no Brasil são dinâmicas e
podem ser alteradas a partir da interação entre os diferentes contextos e personagens.
Leciona MARA REGINA DE OLIVEIRA que a legitimidade das autoridades aparentes tem por
base a dissimulação das relações de poder pretéritas existentes. É justamente o caso do sertão, que
apresenta uma histórica cadeia de poder informal encabeçada por coronéis, líderes religiosos, líderes
cangaceiros, figuras essas que, em algum sentido, foram e continuando sendo “encorajadas” por um
Estado omissivo. Todavia, nenhum desses atores cultiva um efetivo interesse na região sob o aspecto
humano e social.
Ranulfo é uma personagem emblemática e vivencia bem os efeitos desse “desinteresse”. O filme
nem ao menos mostra o sertanejo deixando a aridez do sertão. Na melhor das hipóteses, ele aparece feliz,
dirigindo o caminhão na última cena, mas nada indica que tenha conseguido realmente fugir do “campo de
concentração” sertanejo.
Na verdade, Ranulfo protagoniza uma releitura dos falsos voluntarismos e opções de caminhar do
sertanejo, pois sequer tem dinheiro para encher o tanque de combustível do caminhão, a fim de chegar ao
Rio de Janeiro.
O final da película é sutil e reimprime todas as críticas colocadas ao longo do roteiro percorrido
pelas personagens. O próprio caminhão reforça o ar fugidio da região, pois o veículo que seria um
mecanismo de liberdade do humano, viabilizando o alcance de longas distâncias em pouco tempo,
representa de fato uma possibilidade de fuga naquele contexto do interior nordestino.
Incumbe salientar que Ranulfo é um entre tantos sertanejos sem nome que aparecem na tela, o que
revela que, mesmo a chance de sair daquelas condições miseráveis de vida, não passa de uma simples e
improvável possibilidade.
Cinema, aspirinas e urubus, para além de cinema, aspirinas e urubus, constitui uma crítica
veemente aos abusos decorrente da violência não-razoável inscrita pelas relações de poder e autoridade
que historicamente insistem em repetir seu ciclo na formação da cultura brasileira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Vozes, 1984.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006.
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Rocco, 2006.
CANNETI, Elias. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
COSTA, Jurandir Freire. A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência pública In
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FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 3ª Ed. São Paulo: Globo, 2001.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a
Justiça e o Direito. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2009.
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São Paulo: Atlas, 2001.
OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book kindle. Amazon, 2015.
________________________. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre Poder,
obediência e subversão. E-book kindle. Amazon, 2015.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
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_____________. Campos de migrações: Fabiano, Manuel, Ranulfo e os anônimos do sertão In
Significação – revista de cultura audiovisual. Vol. 33. Nº 26. 2006.
FILMOGRAFIA
CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS. 2005. Diretor: Marcelo Gomes.
DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL. 1963. Diretor: Glauber Rocha.
OS FUZIS. 1963. Diretor: Ruy Guerra.
VIDAS SECAS. 1963. Diretor: Nelson Pereira dos Santos.
REFLEXÕES SOBRE O FILME ÁRIDO MOVIE E O PROBLEMA DA LEGITIDADE
JURÍDICA
Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho[*]
INTRODUÇÃO
O estudo a ser empreendido a seguir parte da premissa de que toda forma de expressão artística,
independentemente de seu estilo e/ou da escola a que se filie, consiste em nada menos que um esforço
humano voltado à realização da tarefa de valorar e reconstruir o mundo/realidade e alguns – ou muitos –
de seus problemas, a partir de certas posições e pontos de vista, que podem ou não ser intencionais.
Daí por que o Cinema, da mesma forma que a música, a literatura, a arquitetura, enfim, como todas
as manifestações da “linguagem artística”, consiste em uma interpretação que se faz do mundo a partir de
um conjunto de escolhas adotadas pelos envolvidos no processo de (re)criação, objetivando exprimir
certas sensações e/ou ideias a respeito de uma história ou “estória” e de uma infinidade de temas que
lhes são subjacentes.
Realmente, a chamada “linguagem cinematográfica” vale-se de uma série de recursos – câmeras,
lentes, movimentos, angulações, recortes etc. – para a captação de cenas, mais tarde utilizadas, não
necessariamente de modo linear, para a composição final da peça-filme, sendo certo que, “na ficção ou
no documentário, [ela] constitui-se através de uma manipulação permanente”[103] e que conduz a um
resultado.
É nesse sentido que Jean-Claude Bernadet afirma, com toda propriedade, afirma que o Cinema
seria:
“Uma sucessão de seleções, de escolhas de como filmar, escolha de
ângulos, depois, de como montar, tendo em vista várias opções de
sequências, que são constituídas de cenas, que por sua vez são compostas
por planos, entendidos como a extensão do filme compreendida entre dois
cortes, ou seja, como um segmento contínuo de imagem”[104]
É certo, como observa Mara Regina de Oliveira, que todos esses elementos constituintes da
“linguagem cinematográfica” não podem ser encarados como tendo “um sentido a priori, pois sua
significação é construída pelo homem, não apenas na sequência de planos, mas na manipulação
dentro do próprio plano”, que lhes confere consistência “pela sua presença num contexto mais
geral”[105]
Porque um filme não é outra coisa senão uma particular interpretação que se faz do
mundo/realidade, há nela uma constante ambiguidade decorrente da “operação linguística
seleção/montagem” que se busca neutralizar pela “impressão de realidade no expectador, que deve se
lembrar mais do enredo e dos personagens” do que dos elementos e recursos utilizados[106] na
construção do conceito-imagem que se procura transmitir.
Nessa conformidade, uma peça de Cinema é, a um só tempo, fruto de interpretação (aquela
adotada pelos seus criadores) e objeto de interpretações (aquelas leituras a serem feitas pelos seus
espectadores), residindo justamente nisso o fato de que, não raramente, o resultado pretendido pelo (s)
artista(s) não coincide com as impressões efetivamente deixadas pela obra em seus destinatários.
É que a chamada “situação cinema”, marcada por isolamento visual e acústico, pela sensação de
lentidão/tédio e pela sensação de indefinição, aliada ao “estado passivo voluntário do espectador”,
conduz a uma entrega que permite ao consciente e ao inconsciente que se comuniquem entre si, fazendo
com que duas pessoas jamais possam vivenciar de modo idêntico a experiência de um filme, que, por
isso, termina, em termos coletivos, sendo altamente anônima e individual[107] [108].
Bem se vê, portanto, que a busca pelo sentido de uma obra de Cinema suscita problemas
semelhantes aos que surgem quando se busca o sentido de uma lei: em ambas as situações aparecer a
permanente tensão, situada em nível linguístico-interpretativo, entre o que se quis dizer e o que
efetivamente se disse com determinada mensagem transmitida.
No plano das mensagens normativas (leis), de fato, a tensão aparece sob a forma da clássica – e
inútil – disputa comparativa entre o “valor” da vontade do legislador (mens legislatoris) e o “valor” da
vontade da lei (mens legis), para os fins e efeitos de solucionar conflitos decorrentes da vagueza e
ambiguidade dos termos empregados por certos textos normativos[109].
No plano das mensagens cinematográficas (filmes), semelhantemente, a tensão aparece sob a
forma de possíveis discrepâncias entre a vontade do criador (mens creatoris) e a vontade da criatura
(mens creatura), no sentido de que, não raro, o filme é realizado para transmitir mensagem X, porém
termina sendo “lido” pelo auditório como arauto da mensagem Y, como comumente se diz ter ocorrido
com Tropa de Elite (José Padilha).
Sem desprezar a importância de se buscar a interpretação do criador que se materializa por
intermédio da composição final de Árido Movie, o que poderia render farto material investigativo e
riquíssimas discussões, optamos por privilegiar o “lado auditório” do filme, isto é, a busca pelas
interpretações passíveis de serem feitas do filme de modo independente do mens creatoris.
Assim, optamos por encarar o filme como um catálogo involuntário de problemas de elevada
importância no campo da Filosofia do Direito, que serão abordados nas linhas que se seguem sem
qualquer intenção de solucioná-los, mas, apenas e tão somente, com ímpeto provocativo, na esperança de
contribuir para que nosso leitor lance “novos” olhares sobre as velhas estruturas de poder e abusos de
nossa sociedade.
Nesse mister, trataremos de selecionar algumas dessas problemáticas e utilizá-las como focos ou
portas de acesso para as questões filosóficas relacionadas, não sem antes esboçarmos um resumo da
trama e tecermos breves considerações sobre nossas impressões gerais sobre o filme.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006.
CABRERA, Júlio. O cinema pensa: uma introdução à Filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro:
Rocco, 2006.
CANNETI, Elias. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a
Justiça e o Direito. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2009.
FERREIRA, Lírio. Árido Movie, 2005. Disponível no site youtube em https://www.youtube.com/watch?
v=QhBQ64UwRIA
_________________________. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decio, dominação. 3a Ed.
São Paulo: Atlas, 2001.
OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book kindle. Amazon, 2015.
________________________. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre Poder,
obediência e subversão. E-book kindle. Amazon, 2015.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
_____________. Da violência justiceira à violência ressentida. Endereço eletrônico
https://periodicos.ufsc.br/index.php/desterro/article/view/2175-8026.2006n51p55 (acessado em
05/11/2015).
A FORMA POLÍTICA ESTATAL E O DIREITO: UMA PERSPECTIVA
JUSFILOSÓFICA INTERDISCIPLINAR SOBRE A FUGA E A MORAL NO CÉU
DE SUELY
Silvio Sandro Soares Júnior[*]
INTRODUÇÃO
F ilmado em 2005 pelo diretor Karim Aïnouz, O Céu de Suely constitui uma importante obra do cinema
nacional e, sobretudo, importante aos temas relacionados à visão crítica de cunho interdisciplinar que
envolvem as relações existentes entre direito, poder e violência no Brasil.
Antes de entrar propriamente no que seria a situação da obra, é necessário fazer alguns
apontamentos sobre a relevância do estudo interdisciplinar – utilizando-se o cinema – para a filosofia do
direito.
Pensar as grandes questões filosóficas envolvendo a sociedade e, de forma mais ampla, o
fenômeno jurídico-social, é tarefa que demanda esforço intelectual e dedicação na forma de leituras, na
maioria das vezes. No entanto, a estratégia interdisciplinar é capaz de revolucionar as formas
consagradas de enxergar e lidar com a filosofia do direito.
Por estratégia interdisciplinar devemos compreender, aqui, o uso do cinema; segundo Jean-Claude
Bernadet, o cinema, forma de criação artística burguesa[116], é arte capaz de causar impressão[117] de
realidade e até mesmo de constituir realidades[118]. Mais modernamente, o Cinema Novo se ocupou de
fazer as vezes da voz das classes sociais menos abastadas[119] e, através da exploração das temáticas
sociais, retratar o proletariado[120] e as inquietudes da burguesia – fator pelo qual as camadas mais
privilegiadas da sociedade não se interessariam tanto pela arte em questão[121].
Desta forma, podemos concluir que o cinema é importantíssimo meio de retratação social em
forma de arte. A cena em movimento, a trilha sonora, a imagem – sobretudo colorida – conseguem fazer
papel de sensibilização que a literatura não é capaz de proporcionar e que, portanto, pode ser meio eficaz
de pensar filosoficamente as questões sociais.
Julio Cabrera, em sua obra O Cinema Pensa, traz conceitos de alta relevância para a linha de
raciocínio que ora se explora. De acordo com o autor, para se apropriar de um problema filosófico, não
é suficiente entendê-lo: também é preciso vive-lo, senti-lo na pele, dramatiza-lo, sofrê-lo, padecê-lo,
sentir-se ameaçado por ele, sentir que nossas bases habituais são afetadas radicalmente[122].
Avançando na compreensão interdisciplinar, é de se citar a forma Conceito-imagem, através da
qual Cabrera aduz que a sensibilidade cinematográfica pode ser percebida como apreensão filosófica do
cinema por meio da leitura filosófica fílmica.[123]
Assim, a relevância das análises de filmes como ferramenta filosófica interdisciplinar está
diretamente relacionada ao conceito de cinema, que é capaz de constituir realidades em forma de imagens
em movimento, e também ao conceito-imagem, através do qual o olhar filosófico pode repousar sobre o
cinema de modo a contribuir para uma análise sensível dos problemas conceituais enfrentados.
Explicada a pertinência da análise cinematográfica para o presente ensaio, cumpre agora situar o
filme de modo a expor as bases de conceito-imagem sobre as quais a análise se sustentará.
O filme narra, de forma muito sensível, a trajetória de Hermila; que teria saído fugida da cidade
de Igatú, no interior do Ceará, com seu então namorado, Mateus, rumo a São Paulo para viver uma paixão
e em busca de melhores condições de vida.
A primeira cena do filme retrata um casal aparentemente feliz, com imagem em formato que dá a
entender que a cena que se vê jaz no passado, característica que se acentua com a narração quase
melancólica feita por Hermila sobre a situação do casal. Em seguida o expectador é apresentado a outra
Hermila, que regressa ao Ceará com um filho, Mateuzinho, a tiracolo e sozinha – o companheiro lha
tinha prometido retornar em seguida para viver junto dela e do filho, no entanto Mateus some.
Recebida na casa avó, onde também mora uma tia, Maria, Hermila passa a se reinserir no ritmo da
cidade aos poucos. O plano era montar uma banca de vender CDs e DVDs com Mateus no centro da
cidade, mas como o companheiro a deixou, Hermila teve de procurar se arranjar sozinha para ajudar no
sustento da casa, já que as situações financeiras da avó – cozinheira – e da tia – moto taxista – estavam
apertadas.
Hermila começa a vender rifas de bebidas no centro da cidade, aceita trabalhar lavando carros no
posto de gasolina onde tudo acontece e faz contato com uma amiga prostituta, que lhe diz que nunca antes
tinha visto mulher lavando carro naquela cidade.
Mais adiante, com a situação financeira já bem crítica, Hermila especula com a amiga prostituta
qual a margem de rendimentos financeiros na atividade da prostituição e se sente compelida a fazer
programa. No entanto, Hermila tem uma ideia diferente, resolve rifar uma noite no paraíso consigo, ou
seja, uma noite de programa. Antes de tomar a decisão o assunto foi comentado com sua tia Maria e com
seu ex-namorado João (com quem Hermila, aparentemente, começa a resgatar um relacionamento), sendo
que ambos reprovaram a ideia e até avaliaram como loucura.
A despeito das opiniões divergentes da sua, Hermila vende as rifas e cumpre seu plano aderindo
ao nome de Suely – não sem transtornos, visto que foi posta fora de casa pela avó e sofreu discriminação
por parte da população da cidadela onde morava, chegando até a ser agredida.
A rifa de si foi idealizada por Hermila para conseguir dinheiro suficiente para poder comprar uma
passagem de ônibus rumo ao Sul do país, onde tentaria a vida novamente e, talvez, até chegasse a levar
sua tia, sua avó e seu filho, o qual deixou sob os cuidados da avó quando embarcou de ônibus rumo ao
Sul.
A riqueza dos detalhes do filme reside, em parte, nas escolhas do diretor Karim, que optou por
produzir a película com roteiro aberto, ou seja, havia ideias principais, pontos que norteariam a trajetória
de Hermila, mas os detalhes das cenas não foram todos idealizados, como costumeiramente se faz em
obras de cinema. Desta forma, houve espaço para improvisação, participações espontâneas do público
local da cidade que estavam de fato interagindo naturalmente nas cenas (não eram atores – figurantes). Os
nomes dos personagens são os mesmos nomes dos atores e todo o elenco morou junto numa casa do local
onde a trama se desenvolve na etapa de preparação do elenco[124].
Outra peculiaridade do filme que merece destaque é o enfoque na figura do feminino. A trama toda
é conduzida quase que exclusivamente por mulheres que, batalhadoras, têm de tomar as rédeas de suas
vidas e resolver seus dilemas em prol de suas próprias trajetórias.
Já situado o filme, este ensaio agora se direciona à análise da trama à luz de conceitos da filosofia
do direito interdisciplinar para compreender a complexidade filosófica envolvida na obra
cinematográfica.
TRAJETÓRIA E FUGA
A primeira característica que merece destaque é a trajetória de Hermila que, apaixonada, foge de
Igatú. Ironicamente, a saída de São Paulo se dá quase na mesma situação, uma vez que a justificativa
apresentada à tia sobre o regresso ao Ceará foi que lá – em São Paulo – a vida é muito cara. O motivo
que levou a personagem a São Paulo desaparece quando confirmadamente Mateus não retorna. O filme
termina com a partida de Hermila para o Sul, de novo em busca de uma vida melhor, quase que fugida
das circunstâncias duras de realidade que a cercam. Sua trajetória se define na busca por algo que não se
concretiza – sempre fugindo em busca de melhoria.
Sobre esta fuga, é possível identificar o binômio Ordem x Fuga, da teoria de Canetti[125],
segundo a qual a Ordem figuraria como forma primitiva de conquistar comportamentos, já que até mesmo
entre os animais há relação de ordem. Para Canetti, a ameaça de morte criaria, para o animal mais fraco,
uma ordem de fuga imposta pelo animal mais forte. Ou seja, a ameaça figuraria como uma ordem que
determinasse ou a fuga, ou a morte do mais fraco.
Utilizando a lógica contida na teoria invocada, Hermila, apaixonada, se viu compelida a fugir de
Igatú para viver seu amor com vistas a uma vida melhor na Capital – a realidade sertaneja não lhe dava
perspectivas de vida boa quando comparada com o que poderia, em seu ponto de vista, ser a vida em São
Paulo.
Em seguida, nova fuga: a vida em São Paulo se tornou perigosa, posto que cara, fato que culminou
no retorno ao Ceará. Desiludida e novamente a perigo, Hermila não viu saída senão na fuga mais uma vez
– para o Sul.
É claro que a teoria de Canetti não foi idealizada com vistas a esta situação, mas, de forma a
trabalhar conceitos-imagem, é possível caracterizar uma constante necessidade de fuga do ser mais fraco
(indivíduo - Hermila) frente ao ente mais forte e ameaçador (o Estado – o Capital). Neste sentido,
Hermila figura como a metonímia da população miserável que foge do sertão ou dos interiores do país
para as Capitais e que, já nas Capitais, se vê obrigada a fugir novamente, quer seja da fome, do frio, do
desemprego, da polícia abusiva de autoridade e violenta por legitimação; e tudo em prol de permanecer
viva.
Assim, a ameaça de morte compeliu Hermila a sempre fugir, materializando o comando de Ordem
contido na teoria de Canetti. Avançando na teoria proposta, é possível dizer que Hermila sofre com o
Aguilhão que lhe foi posto.
Para Canetti, a Ordem é fruto da conjugação existente entre Impulso e Aguilhão[126]; Impulso
seria o fator que induz o destinatário da ordem a cumpri-la e o Aguilhão seria a marca da Ordem, o fator
que condiciona o sujeito a agir segundo a ordem em situações para as quais a ordem já foi dada.
Ou seja, as ameaças de morte e má vida feitas à Hermila constituem o Impulso e o Aguilhão é a
reação já instalada no interior do sujeito, a saída de sempre; a fuga.
Neste sentido, o Céu de Suely figura a saída, a fuga, a busca pela vida que vale a pena, a
segurança ante a ameaça. Fato que contrasta curiosamente com a concepção mais comum de céu, a qual,
sob a influência religiosa – sobretudo cristã – identifica o céu como lugar de paraíso, livre de pecados e
de falhas de caráter, o que se opõe completamente ao paraíso rifado por Hermila (Suely), visto que
esteve associado ao prazer da carne, ao profano e ao campo semântico da prostituição.
Muito embora o Céu do filme possa significar a fuga, não é de se pensar que representou uma
saída harmônica e naturalmente indicada pelo Aguilhão posto em Hermila, pois a despeito da vantagem
pecuniária que a rifa de seu corpo lhe proporcionou, a noite do paraíso foi retratada no filme com muita
tensão e com um peso tal que transparecesse na feição de Hermila a profunda crise em que se encontrava
(em outras cenas parecidas, dos encontros de Hermila com João, vê-se uma personagem mais leve e,
aparentemente, sem crise).
O movimento de fuga, conforme suscitado, também pode ser percebido em outras obras da
literatura e do cinema nacionais. No romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, publicado em 1938 –
bem como no filme homônimo dirigido por Nelson Pereira dos Santos em 1963 – é retratada realidade de
família nordestina que, açoitada pelas constantes ameaças de morte feitas pelas circunstâncias de extrema
vulnerabilidade social, adota a fuga como meio de vida, ou seja, mais do que um recurso escapista e
esporádico, a fuga materializa a própria história de vida dessas pessoas. A cada novo período de seca,
uma nova fuga.
No caso de Vidas Secas o próprio enredo da fuga culmina em morte, uma vez que o papagaio da
família acaba servindo de refeição aos retirantes e que a cachorra Baleia – que muitas vezes conduz a
trama através do recurso da antropomorfização – também não resiste às ameaças impostas pela dureza
social.
Ainda no campo da literatura é possível citar também a obra O Quinze, de Rachel de Queiroz, na
qual toda uma comunidade tem seus destinos fatalmente alterados pela situação de fuga em prol da
sobrevivência com prejuízos vitais.
Por fim, é possível citar também o filme Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, no qual
as trajetórias dos personagens Johann e Ranulfo tem início a partir da fuga (Johann foge da Segunda
Guerra Mundial e Ranulfo segue a regra de vida do nordestino socialmente vulnerável) e atravessam o
fim do filme também com o movimento de fuga em prol da sobrevivência.
Os exemplos citados, mais do que confirmar a teoria de Canetti, denunciam um problema crônico
brasileiro que surge a partir da ausência do Estado. Em outros filmes e em outras obras literárias é
possível verificar o contrário, ou seja, situações em que o Estado, através de seus agentes, acaba tendo
atuação abusiva na construção da realidade social das personagens.
O Céu de Suely, Vidas Secas, Cinema, Aspirinas e Urubus e O Quinze são, portanto, obras de
suma importância para a compreensão da realidade social daqueles que padecem da presença
providencial do Estado. Em O Céu de Suely sequer há a presença de qualquer agente do Estado, mesmo
em situações de degradação social em que, geralmente, o Estado promoveria intervenção (problemas de
Saúde Pública, escolaridade, emprego e assistência social).
REFLEXÕES FINAIS
A partir da análise do filme em confronto com as teorias invocadas, é possível concluir que
Hermila é personagem delicada, de finalidade imbricada.
É fruto de uma sociedade contraditória e cindida, que vive sempre à margem do certo e do errado
na construção de sua própria trajetória, que reúne fugas, recomeços, traços de vilania e de heroísmo em
sua constituição. Não à toa o filme de Karim pode ser considerado uma importante ferramenta de análise
interdisciplinar jusfilosófica da sociedade brasileira.
São retratadas situações e realidades reincidentes nas obras de arte brasileiras do último Século,
fato que aponta para uma alarmante característica do Estado brasileiro: sua participação negativa, ou
não-participação, na construção de realidades extremadas, que dizem respeito a direitos fundamentais de
indivíduos que precisam fugir para sobreviver ou então que precisam se submeter aos julgamentos moral
e jurídico de uma sociedade contraditória para poderem ter seus anseios de vida supridos.
Alguns questionamentos pairam na consciência do expectador dO Céu de Suely: estaria Hermila
correta? Estaria errada? Qual seria a alternativa? E todas as questões estão diretamente ligadas, em
cadeia, com necessários questionamentos acerca do sucesso da constituição do Estado como forma
política e do Direito como estrutura basilar – e ideológica, de violência organizada – deste Estado
forjado no pós-revolução burguesa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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https://www.youtube.com/watch?v=5hoSyp89MM4
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RUA, UFSCAR. Disponível em <http://www.rua.ufscar.br/caracterizacao-e-analise-de-o-ceu-de-suely-de-karim-ainouz-como-uma-narrativa-
de-viagem/>. Acesso em 18 de outubro de 2015.
OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book Kindle, Amazon, 2015.
INTRODUÇÃO
"... afirmou que não está interessada em saber o que lhe vai
acontecer, que não quer advogado e nenhum meio de defesa, pois tem
consciência da responsabilidade de seus atos e não deseja o perdão de -
absolutamente – ninguém; perguntada da origem do revólver, respondeu
apenas que é mais fácil comprar um do que se imagina".
O direito é um tema evidente na narrativa desde o início do filme, já que a presença da
personagem da autoridade policial, que personifica o Estado, é quem dita o desenrolar da narrativa. É
por meio da ação dessa personagem que articularemos a análise do direito.
O primeiro ponto que destacamos é a insuficiência da dogmática normativa e das instituições
formais para lidar com conflitos morais complexos. O descompasso entre a realidade apreendida pelo
delegado por meio da cognição jurídica dos fatos e a complexidade do drama instalado é evidente. A
sanção imposta pelo direito pode ser moralmente justa, mas não responde ao drama moral em todas suas
dimensões.
Além disso, podemos notar insuficiências relativas à eficácia social do direito, associada a
situações de abuso de poder. A primeira pessoa a ser ouvida pelo delegado é a professora da creche, que
é moralmente julgada por esse por ser incapaz de administrar de modo eficiente e seguro a segurança das
crianças atendidas. Contraditoriamente, o Estado se faz ausente nos locais periféricos no que diz respeito
à garantia de serviços públicos básicos e, posteriormente, responsabiliza os indivíduos que participam
de soluções informais e precárias pela via do direito.
Essa contradição se repete no fato de que o crime perpetrado (aborto forçado) por Bernardo
sequer aparece como um ilícito, que deve ser objeto de persecução penal. Essa omissão representa a
ausência da autoridade do Estado, que opera uma seletividade negativa. Em conclusão, o “Direito é
apresentando como mecanismo burocrático de poder, não, necessariamente, de justiça em sentido
humano”[151].
Em outra situação, durante o interrogatório de Rosa, o delegado profere ameaças para constrangê-
la a confessar o crime, afirmando que ninguém se importa que criminosos como ela sofram tortura nas
delegacias. Embora não apareçam explicitamente como uma questão para a personagem, representam
“(...) a histórica indiferença e omissão social do Estado em relação a estas
comunidades, a não prestação dos devidos serviços básicos, o abuso de
poder, em termos comunicativos, praticado por muitos policiais, que
confundem a noção de autoridade com autoritarismo, ou seja, que agem de
forma violenta e desconfirmadora, sem respeitar os limites da lei(...)”[152].
Dessa forma, os referidos pontos da narrativa podem agudizar o sentimento de injustiça, por
caracterizam situações de abuso de poder. Considerando tais reflexões, a postura cínica (ou cética?) de
Rosa na delegacia pode ser compreendida como uma ação desconfirmadora, que “surgem no momento em
que a legitimidade da relação de poder está enfraquecida”[153].
A personagem se torna consciente sua vivência em um contexto de “desqualificação cínica de
padrões etico-jurídicos”, consubstanciadas em esvaziamento moral e comportamentos abusivos[154],
uma vez que o controle social informal e o direito não foram aptos a conter seu aniquilamento enquanto
sujeito.
Destarte, a percepção da injustiça da norma implica na sua revogação por Rosa, que refuta a
autoridade do emissor normativo. A personagem, ao afirmar que aceita a responsabilização e que não
deseja defesa não o faz por estar convencida sobre a justiça da imputação da pena, mas antes por
ceticismo ante a realidade social, incluindo aí as formas de resolução de conflitos impostas pelo direito.
Não se trata, portanto, de um discurso de submissão. Ocorre, em verdade, “a carência do poder do
emissor pela carência de sentido existencial do sujeito destinatário”, nas palavras de Tercio Sampaio
Ferraz Jr[155].
REFLEXÕES FINAIS
Conforme explica Cabrera, a linguagem do cinema permite “soluções lógicas, epistêmicas e
moralmente abertas e problemáticas (...) para as questões filosóficas que aborda”. Em consonância com
as reflexões aqui expostas, julgamos que essa assertiva se aplica ao filme “O Lobo atrás da Porta”.
Ainda que Rosa, que cometeu o assassinato, seja punida de acordos com os parâmetros legais – conforme
prescreve a fórmula cinematográfica do happy end -, a narrativa, dotada de complexidade, se sustenta e
não é ameaçada por esse desenlace[156].
Embora seja inspirado em um crime datado da década de 1960, o filme é extremamente atual e
tematiza uma série de questões que estão em efervescente debate na esfera pública, alinhando-se a outros
títulos cinematográficos brasileiros que impulsionam a discussão sobre aspectos importantes da
sociedade contemporânea do país. Um dos poucos suspenses nacionais, sua forma dramática não se
impõe de forma artificial, mas tem funcionalidade na armação do conceito-imagem veiculado.
Em conclusão, “O Lobo atrás da Porta” contribui para o desenvolvimento do estudo das relações
entre direito, poder e violência no Brasil a partir do cinema, propiciando um alargamento cognitivo no
que diz respeito à atualidade e pertinência da reflexão sobre as intersecções entre violência, relações de
gênero e direito. A obra expõe como a violência vista como restrita ao âmbito privado, em verdade, é
fenômeno público, por perpassar de forma transversal as relações sociais em sua totalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006, Coleção primeiros passos,
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SAFFIOTI, Heleieth I.B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Disponível em
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SAFFIOTI, Heleieth I.B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.
ESTÔMAGO: UMA FÁBULA NADA INFANTIL SOBRE PODER, SEXO E CULINÁRIA
Gabriela Werner Oliveira[*]
Isabelli Carvalho Botazini de Souza[*]✽
INTRODUÇÃO
E stômago, filme lançado em 2007 sob a direção de Marcos Jorge, foi inspirado no conto “Presos pelo
Estômago”, do livro Pólvora, Gorgonzola e Alecrim, escrito por Lusa Silvestre, e narra a história do
personagem central do filme, Raimundo Nonato. Tal narrativa é feita em primeira pessoa, ou seja,
todos os acontecimentos revelados ao espectador o são a partir da perspectiva de Nonato.
Assim, a narrativa assume a forma digressiva e o espectador só tem certeza do que realmente
aconteceu ao final do filme. Essa abordagem, pela qual a verdade vai sendo construída ao longo do filme,
guarda proximidade com a produção das verdades dentro do sistema judiciário, conforme analisado por
Foucault.[157]
O filme inicia com Nonato contando uma parábola de como o queijo gorgonzola foi inventado,
visando convencer outras pessoas a deixa-lo ficar com o queijo gorgonzola, de cheiro forte, no local
onde se encontravam. Contudo, sua pretensão é rapidamente rejeitada, de forma ríspida e autoritária. A
partir desse momento, a narrativa se dá de forma retrospectiva, de modo a revelar ao espectador os fatos
que levaram Nonato a estar inserido naquele contexto.
Descobre-se que Nonato saiu de sua terra natal, a Paraíba, em direção à cidade grande[158], sem
que se esclareça o porquê, uma vez que sua história anterior não é contada. Aqui, tem-se a ideia de fuga
de uma situação que se tornou insuportável, da ordem, e busca por um recomeço. Essa mesma ideia de
fuga pode ser encontrada nos filmes “A casa de Alice” e “O lobo atrás da porta”, embora ocorra de
maneira diferente. Nestes, a fuga dos personagens não é territorial, mas puramente emocional.
Ao chegar na cidade, Nonato perambula pelas ruas, tal qual estivesse perdido em sua busca, até
entrar em um bar, onde pede um copo de água e duas coxinhas. O aspecto precário do bar e das coxinhas
demonstra a situação de miserabilidade de Nonato naquele momento. Apenas uma pessoa fisicamente
extenuada e faminta, sem outra opção, entraria naquele bar e comeria as coxinhas gordurosas e de aspecto
repulsivo. Nonato, por sua vez, come as coxinhas com ferocidade, demonstrando sua necessidade por
suprir a fome, e adormece no balcão, em função de sua necessidade por descanso.
Na sequência, Nonato é acordado pelo dono do bar, que já se encontra vazio e quase todo
fechado. Nonato faz menção de sair, mas é cobrado pelas coxinhas. Ao responder que não tinha dinheiro,
Nonato é intimidado pelo dono do bar com um pedaço de madeira[159]. Atemorizado, pergunta o que ele
pode fazer para saldar a dívida, ao passo que o dono do bar responde que ele poderia lavar a louça.
Ainda, em troca de dormir em um quartinho no local, Nonato também deveria lavar o chão da cozinha. É
apenas depois disso que os dois se apresentam e que o espectador fica sabendo o nome de Raimundo
Nonato, e do dono do bar, Zulmiro. Tal cena termina com Zulmiro apagando a luz e baixando a grade de
ferro do bar. Nonato permanece no escuro e trancado no bar.
A cena seguinte mostra Nonato sendo conduzido a uma cela de prisão. A partir desse momento, a
narrativa começa a ser desenvolvida em paralelo com a história de Nonato fora da prisão, embora, como
será evidenciado, não livre, e dentro da prisão, até que o espectador descubra o porquê ele foi preso e as
mutações pelas quais o personagem passa, até o final da narrativa.
Com base nisso, os tópicos seguintes têm por objetivo demonstrar as relações de poder existentes
no filme e como elas afetam a trajetória de Raimundo Nonato, analisando o papel desempenhado pela
culinária, pelo sexo e pelas necessidades biológicas nesse contexto.
A pragmática admite que a língua possua um caráter mutante, já que seus significados são
convencionados a partir do uso de cada comunidade. A tal característica dá-se o nome de concepção
convencionalista da língua. Assim sendo, “a língua está em perene mutação, na medida em que é
constantemente alterada pelo seu uso pragmático”[170]. Como dito anteriormente, a comunicação sempre
será uma ação direcionada ao entendimento alheio, assim ela está visceralmente ligada ao
comportamento humano não podendo ser separada deste.[171]
O ato de se comunicar constitui uma ação linguística que apela ao mútuo entendimento e que
somente pode ser definido na própria situação comunicativa, nunca fora dela. A comunicação é
direcionada ao entendimento do outro; visa à compreensão da ação – o emissor apela ao entendimento do
receptor. Se houver compreensão entre ambos pode-se dizer que há discurso. Os “fatos do discurso” não
são apenas simples fatos linguísticos, mas jogos estratégicos de ação e reação que envolvem relações de
poder. A pragmática tem por objetivo relacionar num modelo teórico direito e linguagem, relacionando-
os de forma que “todo o universo jurídico só pode ter existência se for expresso numa linguagem”.[172]
Os próprios sistemas sociais são formados através da interação comunicativa coexistindo
relações de poder e controle entre emissor e receptor. Tal premissa é notada também quando Seu
Giovanni, no primeiro dia de Nonato em seu restaurante, diz a ele “ainda bem que você não vai ter
contato com o público”, reforçando a ideia de superioridade, elitismo e segregação assim como já havia
ocorrido no primeiro encontro de Nonato com Zulmiro.
Todo direito é composto a partir de um discurso jurídico que não pode ser visto exclusivamente
“como simples fatos linguísticos, mas como jogos estratégicos de ação e reação que envolvem relações
de poder”.[173] Nonato começa a perceber que pode conquistar mais coisas do que somente “salário e
benefícios” por meio de sua culinária. Atentando para o discurso de Seu Giovanni no quesito conquistar
mulheres com comida e convivendo com Íria, ele percebe que pode conquistar mais cozinhando do que
de qualquer outra forma.
Nonato ganha prestígio tanto no trabalho, como no meio em que vive através da sua evolução na
cozinha. Tal cena fica evidente quando o mesmo passa a ser reconhecido no mercado municipal e também
pelas companheiras de trabalho de Íria. Aqui é perceptível a força do segundo axioma conjectural da
comunicação: a comunicação não é apenas digital – voluntária, feita através dos signos e da língua, mas
também analógica – involuntária, feita através de gestos, movimentos e ações[174]. Fica clara a
impossibilidade da não comunicação em sociedade, como reza o primeiro axioma, sendo tal
comunicação possibilitada inclusive pelo silêncio[175].
Como qualquer comunicação transmite um conteúdo e impõe um comportamento de modo a definir
a relação entre emissor e receptor, terceiro axioma conjectural da comunicação[176], a personalidade de
Nonato começa a se transformar: de homem simplório a homem que percebe uma forma de poder em suas
mãos.
Ao ser preso pelos homicídios de Giovanni e Íria, Nonato é inserido em uma nova realidade.
Como dito alhures, para se adaptar à nova situação, tenta mudar seu nome, já que o poder dentro da
prisão está intimamente ligado com o tipo de crime cometido. Contudo, não obtém sucesso nesse
caminho, vindo a se destacar, novamente, pelos seus dotes gastronômicos. Com base nisso, o próximo
tópico visa analisar a questão da desconfirmação da norma nos presídios, com o surgimento do poder
paralelo, e também analisar o alheamento em relação ao outro e a consequência da manifestação do
aguilhão em Nonato.
As regras de funcionamento da prisão são impostas ao preso com rigor e coerção. Este, por sua
vez, também dispõe de um conjunto de regras, chamado "código dos presos" e que tem vigência entre eles
e é aplicado por alguns sobre os demais. Esse regime disciplinar possui aspectos bastante antagônicos,
pois de um lado há “o policiamento tático, meticuloso, que controla uma possível insubordinação,
impondo ao preso o mecanismo de disciplina individualizante”; em contrapartida, existe toda a
universalidade do controle disciplinar que permite o conhecimento de um protótipo ideal, assim como a
fabricação de novos mecanismos de poder. [183]
Assim sendo, há a criação de uma situação comunicativa normativa nos presídios peculiar por
conta da existência do dogma, que coloca fora de questão qualquer premissa, não porque demonstrada a
sua veracidade, mas sim porque ela não é passível de contestação. Ela é colocada fora da discussão. A
relação é baseada no fato de alguma premissa estar fora de contestação.
Quando nem todas as mensagens emitidas pelo emissor do discurso podem ser questionadas pelo
receptor, mas têm de ser aceitas como evidentes, tem-se um discurso monológico. Tal discurso não está
aberto a novos questionamentos, ele simplesmente deve ser aceito como certo pelo receptor. Com isso,
há uma possibilidade constante de haver reações desconfirmadoras, tornando assim inevitável o
confronto entre direito e poder onde os endereçados sociais deixam de assumir a relação emanada pela
norma não mais assumindo a condição de sujeitos da relação.[184]
Consequentemente, “aquele que desconfirma uma mensagem normativa não mais se ente obrigado
a se submeter à autoridade porque não a reconhece como tal, na medida em que ele próprio não mais se
vê como sujeito da relação”.[185] Para Oliveira,
Isto faz com que esta supremacia não seja, de fato, inquestionável, e
dependa de uma institucionalização a nível social da própria relação de
autoridade, que deve neutralizar o dissenso e as possíveis reações sociais
contrárias. É neste ponto que pudemos identificar, com clareza, a relação
existente entre direito, poder e comunicação na medida em que a relação
de autoridade não preexiste à própria interação, pois ela se constitui
propriamente durante o processo interativo. Ela existe não só a partir de
uma pretensão do editor normativo de impor uma relação complementar,
mas na medida em que o sujeito estiver disposto a se colocar nesta
condição. O poder não está unicamente nas mãos da autoridade, portanto.
Ele atravessa e, ao mesmo, constitui a própria relação autoridade/sujeito.
[186]
Tal premissa pode ser notada pelas cenas de “tráfico de comida”, como por exemplo, na troca de
queijos por cigarros entre Nonato e o agente penitenciário deixando evidente a ausência do Estado e a
pluriformação do poder. Esta, segundo Oliveira, consiste na formação de um contra poder, que venha por
parte do subordinado, em direção ao superior caracterizando um código informal, paralelo, que em
épocas de crises sócio-políticas podem assumir uma máscara legitimadora sendo reconhecido como
legítimo. São as reações desconfirmadoras.[187] Ainda de acordo com Oliveira,
Aquele que desconfirma a mensagem normativa não reconhece a autoridade do emissor e nem se
sente obrigado a se submeter a ela. Dentro dos presídios essa desconfirmação pode ser vista tanto no
comportamento dos presidiários, como dos próprios agentes estatais, incumbidos de aplicar as normas.
Quando essa desconfirmação é trazida para o mundo da comunicação jurídica, o que se tem é a rejeição
do que é lícito ou ilícito; inclusive pelos próprios agentes estatais, que passam a ignorar a própria
legalidade e a substituem por procedimentos informais. Esse aspecto pode ser visualizado em outros
filmes, como “O primeiro dia”, “Tropa de Elite” e “Tropa de Elite 2”.
Outrossim, o confinamento e a vigilância a que os presos estão submetidos é estrategicamente
ordenado por mecanismos de opressão, fazendo que o Estado pareça um Estado forte, contudo não é o
que se nota quando se adentra a fundo na realidade prisional. Descrentes da legislação vigente, e
desconfirmando por completo as normas, o preso vê com ceticismo e desconfiança todo o sistema
prisional. Assim sendo, a relativa tranquilidade que existe na prisão só existe se houver “disposição dos
presos em submeterem-se e cooperar espontaneamente com os regulamentos de disciplina e segurança”.
[189]
Como afirma Azevedo, “neste momento o jogo do poder começa a ser definido, os compromissos
tácitos desafiam as regras oficiais e a resistência dos presos em obedecer as normas instituídas exige
uma negociação. Esse é o ponto estratégico do sistema prisional.”[190]
No momento em que se faz a análise das prisões, observa-se que essas são objetos históricos
significativos no que diz respeito aos limites instituídos que governam o exercício do poder. O poder não
é propriedade do Estado, nem está somente nas mãos dos presidiários, não é atributo, mas relação de
forças que passam tanto pelos dominados, quanto pelos dominadores constituindo singularidades.[191]
Nessa conjuntura, sem outra alternativa, Nonato acaba por se adequar ao ambiente prisional.
Visualiza-se então, a terceira relação de poder do filme: Bujiú, detentor da cama de cima da cela, local
privilegiado, o detento da cama do meio, o da cama de baixo, os que dormem no chão e aqueles que
dormem no chão sem possuir colchão. Conforme ganha a confiança de Bujiú, Nonato ascende à cama do
meio.
Eis que se chega a outro momento-chave na narrativa: a pedido de Bujiú, Nonato fica encarregado
de fazer “uma comida que dá tesão de comer”, em um banquete que seria prepara a Etecétera, detento
mais poderoso e perigoso que Bujiú, que seria transferido para o presídio. Nonato, então, prepara um
banquete para a comemoração, porém, ele faz uma comida requintada e ninguém conhece os pratos,
considerando-os estranhos e, por consequência, rejeitando-os. Fica evidente uma falha na comunicação
entre Nonato e Bujiú.
Contudo, o último prato agrada a todos, inclusive aos agentes penitenciários que também estão, de
canto, participando do banquete. Todos se fartam da comida preparada por Nonato.
Pouco depois do término do banquete, quando todos já estão em suas celas, Bujiú começa a passar
mal e é levado para enfermaria do presídio onde acaba falecendo. No atestado de óbito, é descrito como
causa mortis indigestão. Logo, Nonato presenteia o espectador com a mais pura definição de que poder
nem sempre é compreendido somente como força física, mas também como astúcia e perspicácia, já que a
verdadeira causa da morte de Bujiú foi o veneno que Nonato colocou no feijão preparado especialmente
por Bujiú comeu.
Dessa forma, Nonato passa a ocupar o lugar de Bujiú na cama de cima, sendo, então, o novo chefe
da cela e, ao mesmo tempo, ganha a simpatia de Etecétera, já que o mesmo aprovou sua comida. Não
obstante, Nonato já pensa no próximo grau de poder: ocupar o lugar de Etecétera, que possui uma cela
individual. Para tanto, começa a elaborar um plano que envolve comida e sexo. Assim, Nonato expele o
aguilhão que permanecia cravado em sua psique, reproduzindo os padrões de ordens que o colocaram ali
em primeiro lugar. Como consequência, crava novos aguilhões nos indivíduos que acatam suas ordens,
dando continuidade a esse processo cíclico.[192] Nesse sentido, interessante se faz a observação de
Foucault, de que
[...] O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como
algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca
está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um
bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os
indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer esse
poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do
poder, são sempre centros de transmissão.[193]
Assim sendo, o poder que hoje está sendo exercido por um, amanhã pode estar no comando de
outro. Em outras palavras, aquele que hoje devora, pode ser o devorado de amanhã. Verifica-se, por fim,
que Raimundo Nonato internaliza a máscara de criminoso, a lógica de funcionamento autoritária dos
presídios, com a existência do poder paralelo, que consumiu sua subjetividade e instrumentalizou seu
dom culinário para o exercício do poder.
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A OPRESSÃO DE GÊNERO NO FILME A CASA DE ALICE
Renata do Vale Elias[*]
INTRODUÇÃO
Casa de Alice é um filme brasileiro, dirigido por Chico Teixeira e lançado em 2007. O roteiro é de
A Chico Teixeira e Marcelo Gomes. O filme retrata a vida familiar na casa de Alice, personagem
interpretada por Carla Ribas. Alice mora com sua mãe, Jacira, interpretada por Berta Zemel, além de
seus três filhos – Lucas, Edinho e Junior, interpretados, respectivamente, por Vinícius Zinn, Ricardo
Vilaça e Felipe Massuia, e seu marido, Lindomar, interpretado por Zé Carlos Machado.
O filme retrata uma série de violências entre as pessoas da família, perpetradas e sofridas por
muitos de seus personagens. Importante notar que nenhuma dessas personagens é somente boa ou má, o
filme apresenta-as enquanto seres complexos, que sofrem e praticam violências ao mesmo tempo, nem
sempre contra quem as violentou. O filme não é, portanto, maniqueísta de forma alguma. Essa é uma
característica importante a ser notada, tendo em vista o interesse de se pensar o cinema e a filosofia do
direito. Conforme ensina a Professora Mara Regina de Oliveira, em seu livro “Cinema e Filosofia do
Direito em Diálogo”, busca-se, com a reflexão entre cinema e filosofia do direito, encontrar um novo
paradigma epistemológico, que possa ampliar a percepção sobre a realidade e a consequente crítica a
ela, de modo que as discussões sobre temas importantes, como os direitos humanos, possam compreender
a existência desses espaços de incertezas, de modo não idealizado e assim, levem a compreender o
mundo de um modo não maniqueísta. Ela diz:
Diante desse diagnóstico, e considerando que questões distributivas são importantes para se
pensar a justiça, mas não são o seu único escopo, Iris Young propõe uma concepção alargada de justiça,
que consideraria as pessoas não mais como meras consumidoras, mas como agentes (“actors and doers”)
(YOUNG, 1990, p. 37).
Young propõe uma concepção de justiça segundo a qual as instituições sociais permitam (1) o
desenvolvimento e exercício das capacidades de alguém e a expressão de suas experiências, bem como
(2) a participação das pessoas na determinação de suas ações a nas condições de suas ações (YOUNG,
1990, P. 37).
Young reitera expressamente que essa concepção de justiça diz respeito às instituições sociais e
não que cada um desses valores se exerça efetivamente na vida de cada indivíduo. Segundo ela, a justiça
social diz respeito ao quanto uma sociedade contem e promove as condições institucionais necessárias
para a realização desses valores.
Pensando tanto na proposta de análise do cinema como meio de se pensar problemas filosóficos
de forma alargada, quanto nessa concepção de justiça de Iris Young, acredito ser possível pensar nas
questões de gênero trazidas pelo filme “A Casa de Alice” não como problemas individuais de cada
personagem (problemas que seriam concernentes a questões de boa vida), mas sim como questões de
grupos e de justiça, como questões institucionais da sociedade que afetam as mulheres enquanto um grupo
social. Tenho em mente, em especial, a ideia de que determinados grupos sociais não têm a possibilidade
de expressar suas experiências, de desenvolver suas capacidades e serem reconhecidas em ambientes
sociais (aspectos que, quando ausentes, Young denomina de opressão), bem como de tomar decisões
sobre suas próprias vidas (aspecto que, quando ausente, Young denomina de dominação). Aqui me
furtarei da discussão sobre o que vem a ser um grupo social, por conta do objetivo do artigo, mas
gostaria de deixar registrado que tal conceito não é, de forma alguma, pacífico na teoria social atual.
À luz dessas considerações, passarei a analisar algumas passagens do filme “A Casa de Alice”,
em especial sobre duas de suas personagens: Alice e Jacira.
Essa “cordialidade” apresenta um profundo desprezo com tudo quanto é regrado, regras essas que
são uma forma de proteção para as pessoas envolvidas no trato social. Carmen trata Alice com
cordialidade, no sentido de que a trata conforme suas emoções: isso significa tratá-la bem em alguns
momentos e, simultaneamente, não hesitar em tratá-la mal – sempre com ares de intimidade e franqueza -
em outros.
Inclusive, mais no final do filme, quando está com problemas conjugais, Carmen passa a tratar
Alice cada vez pior. Em uma cena, Alice diz que não está encontrando o esmalte japonês que comprara
para Carmen – aquele mesmo que Carmen elogia no começo do filme – e Carmen fica muito brava, diz
que só vai naquele salão para dar uma força para Alice, que é melhor ela encontrar o esmalte. Fica
patente que a cordialidade no trato social é cordial somente no sentido de não ser regrado, e não no de
ser civilizado: Carmen trata Alice da forma que quer, sem se preocupar com qualquer regra e sem
considerá-la como um ser que merece respeito.
Ao mesmo tempo, é na conversa com Carmen que Alice passa a ter algumas ambições. Alice se
reconhece enquanto igual à Carmen e passa a ter vontade de ter as coisas que ela tem. Em um primeiro
momento, Alice se depila como Carmen disse que se depilava para agradar o marido. Quando seu
marido, Lindomar, percebe, ele ridiculariza seu comportamento. Alice se depila dessa forma
aparentemente para agradá-lo e sentir-se desejada, mas ele repreende seu comportamento de forma muito
agressiva. Ao conversar com Carmen, todavia, Alice mente, dizendo que o marido está tratando-a super
bem, e que foi por conta da depilação que aprendeu com ela. Isso parece mostrar o desejo de Alice de
que o marido gostasse da depilação. Além dessa reação quanto à depilação, o marido constantemente trai
Alice com adolescentes da idade de seu filho mais novo, Junior, inclusive com Thaís, que Alice
considerava sua amiga.
Em um segundo momento, Alice conhece o marido de Carmen, Nilson, e descobre que ele foi seu
namorado na adolescência. A partir daí, os dois começam a se paquerar. Nilson dá a Alice um colar de
presente e ela fica encantada, inclusive, mostra para seu marido. Esse ato parece uma tentativa de que o
marido enxergue-a, nem que seja para ficar com ciúmes, o que não ocorre mesmo com ela pedindo essa
atenção.
Nilson passa a representar a possibilidade de Alice ter uma vida diferente da que ela tem. Ele
representa tanto a possibilidade de afeto, porque a trata bem, quanto a de uma vida materialmente mais
confortável: Nilson é dono de uma grande revendedora de carros, dá um presente a ela, e, pelo que
Carmen conta e demonstra, tem bastante dinheiro.
Jurandir Costa (1997, p. 68) apresenta uma ferramenta bastante interessante para analisar essa
passagem do filme: ele traz a ideia de um horizonte desejável, de uma ordem desejável. Essa ordem
desejável que está no horizonte de Alice é representada por Nilson, como já expus: seria uma ordem na
qual ela pudesse ser mais reconhecida, mais valorizada, na qual ela acha que poderia ser mais feliz.
Nilson passa a representar uma possibilidade de fuga da própria vida de Alice, dos seus
problemas e frustrações. Enquanto a relação entre eles se desenvolve, todavia, Carmen passa por um
processo de definhamento: cada dia que ela aparece no salão está mais abatida, mas ela própria continua
dizendo que é porque dormiu pouco, por ter tido relações sexuais muito prazerosas com o seu marido até
altas horas da noite. Logo depois, aparece uma cena de Alice e Nilson na cama, e Nilson diz que ele e
Carmen não transam mais, que ficaram até de madrugada discutindo. Carmen aparece cada dia mais
nervosa, e passa a tratar Alice cada vez pior. Esse dissabor de Carmen chega às ultimas consequências:
um dia, após sair do salão, ela distrai-se no volante e acaba morrendo por conta de um acidente de
trânsito.
Nilson representa uma fuga e um horizonte desejável tão importantes na vida de Alice que, quando
ele diz que eles terão que ficar sem se ver por conta da pressão de Carmen, Alice se descontrola ao
chegar em casa e ver uma briga entre seus filhos e joga diversos objetos no chão.
Com a morte de Carmen, Alice fica esperançosa de que Nilson vá ficar com ela, de que eles se
casarão e que, portanto, ela alcançará esse horizonte ideal. Todavia, isso não acontece: já no final do
filme, quando telefona para Nilson, Alice descobre que ele foi viajar, sem data para retornar.
A história de Alice com Nilson parece representar a impossibilidade de salvação individual. Por
um lado, a própria Alice é traída por seu marido e sente uma dor muito profunda quando sabe dessa
traição – chora à noite, dorme na sala de sua casa, chora no ônibus a caminho do trabalho; por outro, ela
é amante do marido de Carmen, que também passa a sofrer muito com a suspeita da traição, de modo que
a própria salvação individual de Alice representa um sofrimento muito grande para uma outra mulher, que
a própria Alice reconhece estar na mesma posição que a sua (tanto é que o filme inicia-se com essa
comparação de Alice em relação à Carmen). E essa ideia de que Alice poderia ser salva por meio de
uma relação individual com Nilson desvanece-se com a morte de Carmen e o posterior sumiço dele. O
que o filme parece mostrar é que o casamento de Alice com Lindomar não é tão diferente assim do
casamento de Carmen com Nilson. Parece ficar claro que as frustrações e insatisfações talvez estejam
mais no modelo de relação, nos papéis destinados a cada gênero dentro da sociedade e dentro de uma
relação heterossexual de matrimônio do que em contingências de cada situação, isto é, as questões são
estruturais e não individuais e pessoais.
Uma cena importante para a compreensão da dinâmica de naturalização desse tipo de situação nas
relações entre casais é quando Junior pergunta a Lucas se ele sabe que o pai está saindo com Thaís, e
Lucas responde que sim. Questionado sobre se deveriam contar para sua mãe, Lucas responde de pronto
que é assunto do casal, que eles não têm que se intrometer. Isso parece mostrar a ideia de que as mulheres
têm de suportar as traições dos maridos.
Um ponto muito importante nessa dinâmica é que as duas mulheres traídas parecem sentir como se
a culpa da traição fosse delas. Como já expus, as mulheres conversam de estratégias para que seus
maridos não as traiam, e quando Alice descobre que isso aconteceu, pergunta à colega de trabalho se está
gorda, querendo encontrar um motivo em si mesma para explicar a traição. Em primeiro lugar, é
importante notar a enorme opressão trazida por essa ideia de que existe apenas um tipo de beleza e que
essa beleza exige que as mulheres sejam magras. Tal ideia é extremamente opressora para as mulheres,
que muitas vezes ficam insatisfeitas com seus corpos e infelizes, com a autoestima muito baixa por conta
desse tipo de colocação amplamente divulgada. Em segundo lugar, é muito significativo que as mulheres
culpem-se a si mesmas pelas traições perpetradas pelos seus companheiros. Na verdade, quem
descumpre o pacto feito com elas são eles, mas mesmo assim elas procuram em si mesmas a
responsabilidade por isso.
Essas duas ideias culturais, amplamente disseminadas, revelam uma estrutura em que
determinados grupos podem desenvolver mais suas habilidades, tomar mais decisões sobre suas vidas,
ter mais liberdade para suas escolhas do que outros. Isso se reflete no âmbito distributivo, pois uma vez
que podem se desenvolver mais, as pessoas desses grupos tendem a ganhar mais dinheiro – os homens do
filme estão em profissões que ganham mais dinheiro do que suas mulheres – mas não se limita a este
âmbito. Os homens do filme parecem estar mais livres e ter posições mais móveis do que as mulheres,
que ficam grande parte do tempo esperando a aprovação deles. É claro que as mulheres não decidem por
livre e espontânea vontade esperar a aceitação deles, sendo esta uma outra ideia amplamente difundida
de que uma mulher completa é uma mulher com um marido, que as mulheres devem se arrumar para serem
aprovadas pelos homens. Não quero aqui dizer que todas as mulheres pensem assim, mas que essas
ideias são difundidas socialmente, como podemos perceber no cinema de massas, nas telenovelas, nos
contos infantis, nas propagandas de produtos de beleza, dentre outros.
Em nenhum momento do filme, todavia, as mulheres aparecem como vítimas exclusivamente e os
homens como seus algozes. As mulheres têm relações complexas tanto umas com as outras como com os
homens com quem se relacionam. Desse modo, a própria problemática de gênero aparece de uma forma
complexa no filme, o que reflete o que já expus na introdução, sobre o cinema como forma de se pensar
questões complexas de filosofia do direito.
Desse modo, o filme parece mostrar o que Jurandir Costa em seu texto “A ética democrática e
seus inimigos” chama de “mito da salvação individual em universo vizinho de bancarrota” (p. 77): as
relações de gênero entre esposas e maridos é extremamente perversa, porque as mulheres sempre ficam à
espera da aprovação de seus companheiros e inseguras caso eles traiam-nas, ou seja, o universo geral
está à beira da bancarrota, e as soluções individuais são incapazes de serem libertadoras para essas
mulheres. A ideia de Alice de que Nilson poderia salvá-la de seu casamento, de suas frustrações
familiares e pessoais mostra-se uma ilusão, na medida em que estruturalmente, a relação deles tenderia a
se tornar igual a que ela tem com Lindomar e ele com Carmen. A ideia desenvolvida por Jurandir Costa é
de que há todo um mal-estar cultural e geral reduzido a questões de competência e incompetência (1997,
p. 80), o que se mostra claro aqui, ao se pensar que ambos os maridos traem as esposas, mas elas são
ensinadas a ver tais traições como questões de incompetência delas mesmas e não como um problema
geral.
REFLEXÕES FINAIS
O filme permite refletir, de forma complexa, sobre as questões de gênero na família, que é também
parte da sociedade. A reflexão é rica por se dar por meio do cinema, permitindo que não façamos
idealizações que permitiriam colocar o mal apenas no outro, sem perceber a característica estrutural da
maior parte das opressões, ou seja, sem perceber que não são questões individuais e problemas de uma
determinada pessoa ou conjunto de pessoas, mas sim questões que perpassam toda a nossa sociedade.
Conforme analisei nas seções anteriores, o filme mostra como as mulheres são muitas vezes
tornadas invisíveis, tolhidas desde logo em qualquer esforço por reconhecimento, e tratadas como meios
instrumentais para a obtenção de finalidades, e não enquanto seres morais. Por outro lado, também fica
claro que não são questões de uma ou outra mulher, mas sim que estruturam toda a nossa sociedade.
Dessa forma, não há possibilidade de salvação individual.
Desse modo, o filme permite pensar questões de justiça, na medida em que trata de temas gerais
da sociedade e como socialmente produzimos estruturas que fazem com que alguns grupos sejam
privilegiados em relação a outros, que trabalham e são tornados invisíveis para a promoção dos
primeiros. O filme não propõe uma solução, um final feliz que resolveria todos os problemas postos por
ele, e não é o meu objetivo nesse artigo sugerir sobre essa possível solução, mas apenas refletir sobre as
questões trazidas pela obra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Jurandir Freire. “A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência pública” in
Ética. Rio de Janeiro: Garamond, 1997.
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica: ensaio da pragmática da comunicação
normativa. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1997.
______. Introdução ao Estudo do Direito, Técnica, Decisão e Dominação. São Paulo, Editora Atlas,
2003.
______. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 2ª
ed. São Paulo: Atlas, 2003.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, 26ª edição.
OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book Kindle, Amazon, 2015.
YOUNG, Iris Marion. Justice and the politics of difference. Princenton: Princenton University Press,
1990
TEIXEIRA, Chico. A Casa de Alice, 2007. Disponível no site Youtube em
https://www.youtube.com/watch?v=avEgMgdb084
UM BRASIL CRONICAMENTE INVIÁVEL: AMBIVALÊNCIA MORAL E A VERTICALIDADE
ESTRUTURAL DAS RELAÇÕES DE PODER NO FILME DE SÉRGIO BIANCHI
Ana Paula Polacchini de Oliveira[*]
INTRODUÇÃO
I sso é coisa do Brasil é fala recorrente em Cronicamente Inviável[197], um filme de Sérgio Bianchi
que, mesmo contando com quinze anos de seu lançamento, ainda confere contornos realistas à
conjuntura atual.
Cronicamente Inviável é a exposição explícita de um cotidiano nacional de caráter contraditório,
mesquinho, de humilhação resignada estrutural em que não há qualquer redenção humana. Ao promover
essa exposição explícita, o filme pensa o Brasil, mas pensa junto com o espectador e dele também se
distancia: é obra de arte aberta. Trata-se de uma arte que opera o feio diante do belo, que expõe sem dar
contornos nítidos, causa perplexidade, e que talvez provoque a sensação de dor e o sentimento de revolta
ou impotência do público para o qual se dirige à quem também dirige uma crítica. Aquele que se submete
ao processo imagético proporcionado pelas imagens em movimento que correm a tela por uma hora e
quarenta e dois minutos é conduzido para uma leitura do Brasil, realizada por um brasileiro de seu tempo
e também apresentada para brasileiros, sem manipulações. Aqui o público não é plateia. Tem destaque
nos filmes de Bianchi[198] uma narrativa da realidade social, política e econômica brasileira, do Brasil
de muitos momentos, da brasilidade e da formação cultural nacional.
A mencionada proposta aberta à reflexão é intensificada ao lançar uso de imagens e um discurso
irônico que contorna o Brasil e seu povo. Trata-se de um processo que exige do espectador uma atitude
reflexiva. São imagens e discursos que presenciamos, mas que se inibem no cotidiano. “A linguagem
imagética do cinema e da arte tem o poder de penetração profunda em nossa consciência subjetiva,
expondo, com maestria, esta composição dialógica, que foge a qualquer tratamento maniqueísta em torno
do certo e do errado. Ela produz pensamento crítico”[199].
A abertura reflexiva proposta por Bianchi assume contornos morais e éticos, mas inseridas
imageticamente em um contexto de questionamento que supera dicotomias totalizantes e faz imperar a
incerteza sobre juízos morais imperativos ou totalizantes.
Cronicamente Inviável foi produzido na década de 90, e entoava um modelo à época ainda
rejeitado pelo público de cinema ao expor temáticas nacionais ocultadas pelo sistema tradicional. O
lançamento, previsto para 1996[200], deu-se apenas em maio de 2000. Entre roteiro, produção e
exibição, a obra de Bianchi levou quase dez anos.
Integrado ao processo de democratização brasileira e de abertura econômica, o ano de lançamento
assume caráter simbólico ante a proposta de Bianchi, serve-lhe de metáfora. Os filmes são também
documento de um tempo, mesmo diante da raiva de seu diretor, da ficção do roteiro e das imagens, e
Cronicamente Inviável aponta para a composição de mentalidades e a configuração de comportamentos
nacionais. O filme foi de fato exibido quando se comemoravam os quinhentos anos do descobrimento do
Brasil, ou segundo diria Darcy Ribeiro, quinhentos anos do início do fazimento do povo brasileiro.
Ao que parece aos planos fílmicos de Bianchi presentes em Cronicamente Inviável, esse processo
de fazimento continua em curso, residindo na película, e nas mentalidades nacionais uma indagação quase
imperativa na resposta a ela subjacente: diante da aparência e busca de unidade nacional e de
uniformidade cultural, quem somos nós e o que estaríamos a comemorar?
Cronicamente Inviável aborda relações, sejam de amizade, de trabalho, familiares ou entre
estranhos. Discute olhares, especialmente àqueles já absorvidos pelo senso comum, sobre as instituições,
sobre os movimentos sociais, sobre o povo brasileiro e sua cultura; sobre as relações de poder e de
dominação condicionadas estruturalmente em razão da história desse povo.
Bianchi exibe em imagem o país e unifica os acontecimentos em uma trama que se centraliza entre
as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, e mais especificamente no cotidiano, nas relações e
reflexões de um grupo de pessoas cujas estórias se entrecruzam. Por intermédio da saga de suas
personagens, lança uma leitura totalizante de um Brasil com muitos povos, muitas culturas, ideologias.
Aponta para diversidade e também para uma só busca de unidade, transfigurada e que segrega sem
necessariamente separar.
A utilidade das presas enseja a sua não percepção ou o seu ocultamento e máscaras são utilizadas
para dissimular a relação estabelecida entre presa e predador. Amanda dissimula para si mesma a sua
máscara ao justificar seus comportamentos para as pessoas com quem interage. Amanda protagoniza o
ocultamento de uma cadeia normativa informal de corrupção que serve de referência ao explorar grupos
sob o aparente manto da formalidade: são índios, crianças, órgãos. Diante dos amigos mantem uma
aparente retidão, a de que integra uma rede formal de negócios. O papel de coadjuvante gerente na
aparência é também o de uma situação comunicativa abusiva e dejuridificante: ela submete os
empregados do restaurante à humilhações contínuas. Amanda, como reta gerente e empreendedora de
novos negócios, faz questão de se impor aos subordinados. Com Adam, recém-contratado justifica a
importância da colocação da mesa segundo as regras de etiqueta.
Realmente, tudo se resume à uma mesa de jantar: que nela pode se sentar e como as coisas são ali
resolvidas.
Em Cronicamente Inviável todos são brasileiros, formalmente. Nenhum se questiona à esse
respeito. Mas a referência ao Brasil é feita em terceira pessoa em todas as ocasiões que as personagens
precisam justificar um comportamento depreciativo do país, especialmente nos comportamentos das
elites e dos intelectuais representados no filme.
A etiqueta de uma mesa bem posta para os amigos que dela compartilham exibe algumas faces da
prosperidade nacional e o ruído que esse teatro provoca diante daqueles que servem a mesa institui e
mantem uma ordem de humilhação que configura uma modalidade de relação simbólica do poder
abusivo.
Tem-se ali a exposição da penúria generalizada da população, um conglomerado multiétnico
coexistindo com a prosperidade empresarial conforme dissera Darcy Ribeiro ao tratar da configuração
do povo brasileiro[216]. São interesses materiais e uma luta de classes presentes no processo histórico
nacional.
O cinema expõe um tempo histórico e essa condição se faz presente em Cronicamente Inviável.
Com efeito, assim pontuou Ismail Xavier, entendendo que a questão vai além do Cinema Novo, que tem
continuidade a partir de uma tradição por ele erigida:
Você vai querer descer aqui para me ajudar ou vai querer brigar comigo?
Vai querer brigar comigo agora? E se você encostar um dedo em mim eu
te ponho preso e acabo com a sua vidinha vagabunda de nordestino burro.
É por isso que esse país não vai para frente, a gente tem que aguentar
nordestino. Não tá vendo imbecil, não tá vendo? Burro, ignorante, idiota.
Burro, ignorante, idiota.
M-e-u c-a-r-r-o m-o-r-r-e-u!.
A multidão observa o ocorrido. O silêncio que entoa nas expressões de quem observa e agoniza
diante do discurso acima transcrito colide diretamente com o som das palmas que invade a cena. O
espectador, atordoado com a possibilidade da exaltação pública do ocorrido representada pelos
aplausos, novamente é provocado. Esses, os aplausos, estavam na cena seguinte, contextualizada em
outro ambiente distante dali. Sim, na memória de quem acompanhara a cena do ônibus fica os rostos da
plateia na rua parada diante da discussão e que serve de espelho da humilhação ocorrida: o silêncio
estava de fato em seus rostos representado.
A discordância entre as partes e a agressividade do motorista ao provocar a buzina ou determinar
que a condutora tirasse o veículo dali não eram razoáveis. Retiravam dela qualquer possibilidade de
ação. Ela, no entanto, ao invés de dar continuidade à tentativa de solução do ocorrido, se vê provocada e
instaura argumentos que superam a situacão ali vivida, são palavras que assumem uma conformação
histórica.
Darcy Ribeiro afirmou que “milhões de brasileiros, através de gerações, nascem e vivem toda a
sua vida encontrando soluções para seus problemas vitais, motivações e explicações que se lhes afiguram
como o modo natural e necessário de exprimir sua humanidade e sua brasilidade”[227]. Esse aparente
modo de ser oculta disparidades, e que são expostas em imagem por Bianchi. Esse modo de ser inclui um
rebaixamento público. Esse rebaixamento não é ato isolado, novamente, é relacional, as partes
envolvidas interagem entre si e permitem que ele se manifeste.
Neusa Vaz e Silva ao analisar o processo de formação da nação brasileira proposto por Darcy
Ribeiro afirma que o povo brasileiro, “embora detendo uma criatividade extraordinária, internalizou as
marcas da dominação”[228] e que esta condição, segundo o próprio Darcy Ribeiro “se transfigura
deformadamente, orientando-se por direções opostas às de sua afirmação e sobrevivência”[229].
O retrato se vê. Até a fotografia do filme provoca o espectador. Porque neles se vive, diariamente
um movimento que é simultaneamente mobilizador e estabilizado. Senão inteiramente, interage-se com
ele, no cotidiano de todos os brasileiros. Atônitos, decaídos todos ali são iguais em sua desigualdade
social implantada.
Na residência de Maria Alice, mais especificamente no closet do quarto, Carlos, o marido, verifica que a camisa que pretende vestir
não possui um botão. Ele questiona Maria Alice à respeito e pede que a esposa chame Josilene. Ele mesmo grita pela empregada. Em um
monólogo, Carlos, lança uma voz terna e pausada para explicar à Josilene o funcionamento de um armário, um recinto que poderia abrigar
apenas “roupas prontas para vestir”. Em seguida, o patrão descreve detalhadamente para Josilene como um botão deve ser pregado,
provavelmente uma ação que Carlos nunca realizou.
Enquanto ele explica sobre armários e botões, ela aguarda silenciosamente, e confere atenção ao patrão. “O senhor quer que eu
troque o botão?”, pergunta Josilene. “Agora não dá mais tempo, estamos atrasados para a festa”, responde Carlos, enquanto entrega a
camisa para Josilene e retira do armário uma outra similar, quase da mesma cor, dentre as muitas que ali estavam, vestindo-a.
Carlos invoca uma condição superior, se situa acima e, para tanto, desloca a funcionária de posição. Esta recai. Ele entoa um saber
teórico. Ela sim, sabia faze-lo, pregar o botão; mas naquele momento aquilo não tinha a menor utilidade. Josilene, não é a vítima subserviente.
Tanto Josilene quanto Maria Luísa mantinham entre si a cordialidade. Invocavam uma relação de amizade. No entanto, na tentativa de
neutralizar o comportamento da outra, manter-se sobrevivente, ambas mantinham um jogo de máscaras.
Sua condição humana ambivalente é exposta diante da cena em que, Maria Luísa chega em casa e se depara com Josilene na cama
dela com um homem, Oswaldo seu namorado. Josilene justifica o ato: a referência é o comportamento de Maria Luisa e Carlos. Josilene
queria igual. Maria Luisa, atordoada só pede que saiam dalí. Uma discussão confusa se instaura e a violência dá seu tom. Ambas gritam.
Josilene então elogia Carlos que é explícito, porque Maria Luisa "nem percebe que é filha da puta". Oswaldo perde o controle, empurra
Josilene e agride Maria Luísa com um abajur. Dalí saí.
Trata-se de um exemplo de uma resignação servil implica em uma submissão contida, raivosa, com explosões esporádicas ou
manifestações ou reflexões de ordem maliciosa ou velada. Ela dissimula a relação de dominação[234]. O mesmo se dá com Adam que,
mesmo consciente da sua condição de empregado explorado, invoca, diante de um ônibus lotado, que não se fará de vítima. Afirma que esse
papel não é seu. Mas Adam ali permanece no ônibus, sendo que durante todo o filme faz comentários maliciosos acerca das relações de poder
e ao final explode. Costa afirma que “a forma suicida com que nos deixamos invadir pela violência, sem nada fazer, é talvez um
sinal desse desejo latente de destruir o que não temos coragem de transformar”[235].
O ressentimento adensado já retirou da pessoa ou grupo o tom da esperança. Acomodou-se e se
estabilizou na descrença[236]. Esse seria o ressentimento do grupo que presenciara a humilhação do
motorista de ônibus. Adensado também é Alfredo, o narrador multifacetário e estático. Esse adensamento
é intensificado por uma apatia. Alfredo contempla, reflete e reitera tudo aquilo que aponta. Forja
conceitos e se afasta da realidade. A hipocrisia de Alfredo o distancia. Alfredo não se sente brasileiro,
está acima disso e incorpora tantas características que são repetidas de modo impessoal a esse, o
brasileiro. As ideias explicam as imagens, mas estas imagens, diante de seus olhos, são apenas ideias e
não podem ser vividas.
Alfredo observa os presentes, é tudo o que faz, não intervém na realidade. Não participa. O índio
na praia sofre violência física, não razoável. Os meninos na rua são revistados arbitrariamente pela
polícia. Alfredo descreve o ritual estatal e indaga se existe uma “explicação para tudo”, para o forte
que violenta sistematicamente o mais fraco. Alfredo só se afeta pelo sol e a violência continua no filme.
A resignação judicativa, por sua vez, assume um tom de protesto, mas discreto, mudo. Nele irrompe a
percepção, é passo para a compreensão, uma vez que se re-significa aquilo que ali estava. Trata-se de um
passo para o desvelamento[237].
Já nas cenas iniciais do filme, ao migrar de ônibus do sul para o sudeste, Adam, assim como os
demais passageiros tem seu destino interrompido por um bloqueio de trabalhadores sem terra na rodovia.
Estes, que estariam prestes a ocupar uma fazenda, ocupam o lugar e seu líder passa a discutir com o
fazendeiro do local.
Adam, observando tudo, institui e aguça um conflito entre proprietário e ocupante da terra que
discursavam sobre o trabalho e ao faze-lo deboxa do conflito a partir de esteriótipos construídos
socialmente “Agora vamu ve quem vai ganhá: o separatista ou o vagabundo”!
No entanto, aquela resignação que poderia ser subversiva e partir para um processo de ampliação
compreensiva de sua situação e de transposição para liberar-se dessa condição é, no entanto,
subserviente. Adam remonta a resignação servil, assim como Josilene, e discursa ao longo do filme,
aguentando sua situação, mas estimulando reflexivamente a sua revolta. No entanto, já naquela fase final
do filme, no desenrolar da trama, Adam, já demitido de seu posto por Luís, inicia uma discussão com o
ex-patrão e opera um discurso sobre a violência. Movimenta todos os presentes e ganha a adesão de
pessoas que estavam trabalhando em uma obra na rua: Adam discursa sobre a necessidade dos patrões
conviverem com o medo de que algo lhes ocorrerá. A polícia então chega ao local e Adam é rendido e
levado preso. A conduta de Adam diante da plateia que se aglomera seria uma espécie de
desconfirmação da autoridade do patrão, não reconhecendo seu discurso. A autoridade estatal então
aparece para transforma-la em rejeição...esse poderia ser um momento de resignação judicativa.
A resignação, como resposta ao aniquilamento, à humilhação e à dominação pode ser uma contra
violência que se manifesta com o grito e com a ação impulsiva. Pode ser raiva, violência, crime. Mas
também a consciência, o discurso e a sobriedade. Para Moura há um poder que torna capaz de em
conjunto promover uma interrupção do automatismo social, cancelar opressões e fundar uma república
com formas salutares de trabalho para todos[238]. A relação implica em energia. Nas situações de
humilhação essa energia amortece o disparo e volta-se contra o humilhado que precisa conte-la.
Schwarz, ao comentar o filme, ainda completa que “tudo é degradado e a mola da transformação, a
mola do aperfeiçoamento, a mobilização dos campos, tudo desapareceu. Assim, a degradação se
manifesta nos dois polos da desigualdade social”[239]: ou seja, dos explorados e dos exploradores. De
fato, não há redenção para nenhuma das partes, apenas violência.
A energia e a interrupção do automatismo social pretendidas por Moura não são mobilizadas nas
imagens de Bianchi. Pelo contrário, a feitura e desdobramentos do filme assumem um caráter pessimista.
O ressentimento nacional se naturaliza nas personagens nominadas e nos invisíveis com quem
contracenam e a trama não se desfaz e a corda não tem fim. São nós que o tempo histórico apenas fez por
corroer, desgastar ou recrudescer.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. 2a. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
OS INQUILINOS – OS INCOMODADOS QUE SE MUDEM
Maia Aguilera Franklin de Matos[*]
e a primeira impressão é aquela que fica, a cena de abertura de Os Inquilinos – os incomodados que
S se mudem (2009), de Sérgio Bianchi, é a mais marcante do filme em termos de beleza. Depois de um
céu azul em que aparece escrito o nome do filme, vemos uma imagem ensolarada de casas com tijolos
laranjas sem revestimento, com uma árvore alta e verde no meio. A câmera vai se afastando, as casas e a
árvore ficam menores, e a favela fica cada vez maior. A imagem é linda, tem a energia da luz solar, é
potente.
A leitura que ressalta a visualidade desta imagem é de Yanet Aguilera[248], que chama a atenção
para a composição intensa da monocromia do laranja – uma cor quente – em contraste com o verde –
outra cor quente e complementar. Ademais a favela estoura o enquadramento, se expandido para além
dos limites da câmera. Trata-se de uma contraposição à visão da favela como o fracasso das cidades
modernas, e a árvore, símbolo da valorizada cidade jardim, que neste sentido seria uma ponta
irônica nesse mar monocromático dos tijolos. Entre a metáfora e a visualidade, em geral se opta pela
primeira porque, embora sejamos impactados pela imagem, no cinema, só sabemos falar dos sentidos que
ela parece despertar. Independente disso, o que vemos é que a câmera se distancia e enquanto a árvore
fica cada vez menor, a favela cresce aos olhos do espectador.
O tom da cena, produzido pelos quatro acordes de piano que ouvimos nos dão a sensação de
tensão e expectativa, tanto por sua tonalidade menor quanto por sua estrutura cíclica, que nos deixa
esperando o relaxamento da tônica que não chega. A imagem muda, e a música é o elemento que faz a
ligação entre a imagem anterior, favela, e o que se verá a seguir. Vemos então um céu mais para o fim da
tarde, que vai caindo junto com a descida da câmera, até chegar em crianças brincando em uma rua larga
e asfaltada, já é de noite. A música continua, mas também muda, saindo da introdução, ouvimos o baixo
de voz masculina, cantando ópera. Porém, vai sumindo conforme a câmera passeia pela rua, dando lugar
aos sons do bairro vizinho à favela.
Ouvimos o som de uma televisão ligada; em seguida, vemos uma cena filmada em que uma mulher
aparece sendo agredida por um homem, jogando-a numa cama. Supomos que é o ex marido agressor, se
insinua um estupro. Vemos que se trata de uma imagem na televisão quando a câmera mostra o
espectador: quem assiste à cena de violência contra a mulher é uma menina negra de mais ou menos 9
anos, Nanda.
Depois de corte, ouvimos a mãe de Nada, Iara, contando a história da vizinha que apanhou do
marido, pois ele chegou bêbado em casa e bateu nela e no filho que se meteu no meio. Ela está na cozinha
junto com Diogo, seu filho mais novo e o marido Valter. Destaca-se mais uma vez a violência doméstica
contra a mulher, desta vez, não na televisão, mas relatada em uma fala de uma personagem sobre um
acontecimento real, vizinho, próximo aos personagens.
Nanda é obrigada a interromper a novela para jantar com a família, Iara, Valter e seu irmão mais
novo Diogo. Na mesa, por ordem do pai, conta sobre o livro que está lendo para a escola: trata-se de
homens maus que chegam numa cidadezinha calma e bagunçam tudo. No fim, eles morrem e fica todo
mundo feliz. O jantar da família é interrompido por uma movimentação do lado de fora. Homens jovens
chegaram gritando e buzinando a procura de Seu Dimas, vizinho de parede da família. Metade da sua
casa é da sua ex-mulher, e, em troca de não vender a casa e repartir o dinheiro entre os dois, ela exige
que ele receba inquilinos. Os novos inquilinos são da favela vizinha ao bairro de periferia no qual os
personagens vivem.
E assim é apresentado o conflito que se desenvolverá ao longo do filme. Como demonstram as
primeiras imagens, coloca-se questões que passam pela relação entre favela e bairro, confirmada pela
chegada tumultuada dos novos inquilinos. Também já é pautada a violência, especialmente e violência
contra a mulher, que também será objeto de discussão. O filme alterna cenas que aconteceram na
realidade da história com cenas da imaginação de Valter. Há poucos recursos técnicos para diferenciar as
imagens das duas situações. Em alguns momentos, é possível perceber que se trata de imaginação porque
a sequência de cenas fica mais lenta, em outros, cabe ao espectador ter que deduzir pelo contexto se
aquilo ocorreu ou se Valter imaginou.
A JANELA INDISCRETA
Durante todo o filme, Iara e Valter observam os novos vizinhos por uma janela dentro da casa da
família. A visão que temos dos vizinhos é emoldurada por essa janela, assim como o enquadramento
escolhido em um filme é que dá contornos à visão das espectadoras. Podemos pensar a janela enquanto
metáfora do cinema, referencia que aparece em outros filmes, como A Janela Indiscreta de Alfred
Hitchcock. A espectadora é colocada como aquela que espia a vida de outras pessoas, no recorte da tela
do cinema, que usufrui do prazer escópico como um voyeur, mas que está totalmente passiva em sua
poltrona sem poder intervir nos acontecimentos. Mas uma ponta de ironia se insinua, pois enquanto Yara
tem uma visão completa, a câmara poucas vezes se aproxima de tal forma que possa ultrapassar as
divisões do vitrô. O espectador tem que se conformar com uma imagem fragmentada do que sucede na
casa vizinha.
O contato que temos com os jovens da favela é pela visão de Valter e Iara, recortada pela janela.
É por ela que Iara vê que eles não trabalham durante o dia, bebem cerveja durante a tarde, conversam
alto, riem. Valter fica fora a maior parte do tempo, pois trabalha durante o dia como carregador e faz
curso supletivo à noite, e fica sabendo de tudo pelo relato da mulher, que trabalha como dona de casa.
É interessante notar que quase sempre vemos a janela por dentro da casa da família, demarcando
que estamos vendo a história do ponto de vista de seus moradores. Em uma ocasião, entretanto, movido
pela curiosidade do que escondiam os inquilinos, Valter vai até a casa vizinha; quando olha para a sua
janela de um outro ponto de vista, depara-se com Iara, que, fumando um cigarro, olha para o marido e dá
um sorriso irônico. Esta é uma das cenas ambígua, não sabemos se ocorreu ou se Valter imaginou. De
toda forma, fica a sensação de que, se hoje você observa, amanhã poderá ser observada.
A VIOLÊNCIA E O MEDO
A questão da violência, trabalhada por Mara Regina Oliveira[249], é complexa em Os Inquilinos.
Por um lado, ela é real, presente, de fato existe; por outro, está presente no medo da violência sentido
pelas personagens, e no discurso do medo.
As personagens acreditam que a violência vem da favela. Fica evidente a preocupação de Iara e
de Valter com os inquilinos. Enquanto os observam pela janela da casa, seu medo e incômodo é
crescente. Ela teme pelos filhos e chega a querer mudar-se da casa; ele é contra, pois foi herdada de sua
família, que ergueu-a com muito esforço.
A presença dos traficantes é mostrada como incômoda para os moradores, e a ameaça tem lastro
real quando, por exemplo, um dos jovens agride verbalmente Nanda, fazendo um comentário sobre sua
aparência; ou quando outro, embriagado, bate o carro e destrói o muro e o jardim dos vizinhos.
Ao mesmo tempo, o filme aponta que a visão deles sobre os jovens da favela é preconceituosa.
Em uma das festas promovidas pelos traficantes, em que o incômodo da vizinhança vai crescendo
conforme vai ficando mais tarde, Iara chega a chamar seu irmão e seus amigos para resolver a questão.
Valter se incomoda de ver sua autoridade patriarcal questionada pela esposa, e sai na rua desesperado
com a situação, aos berros. Um dos jovens sai da casa e, percebendo o incômodo do vizinho, já histérico,
conversa com ele e pede para os colegas abaixarem a música. Percebemos que a questão é resolvida com
diálogo, que os moradores do bairro não se propõem a ter com os inquilinos. A tensão entre o bairro
periférico e a favela também aparece quando Iara não quer deixar Diogo, o filho mais novo, brincar
muito para lá porque “é muito perto da favela”. Apesar de Valter relativizar essa opinião, colocando-a
como exagerada, uma vez que dá permissão para que o menino brinque por lá, Diogo acaba se
machucando porque foi atropelado de bicicleta lá por perto. A violência urbana também se expressa no
império dos carros sobre as pessoas.
A tensão existente entre a favela e o bairro periférico, vizinho, em que se passa a história, é
visível por meio da preocupação da mãe com os filhos brincarem lá perto, com o fato do pai trancar bem
as janelas da casa antes de dormir; com o toque de recolher que ele impõe ao filho no sábado, sete da
noite, quando não o deixa ir jogar videogame na casa do amigo, mas, principalmente, com a presença dos
inquilinos, da favela, na casa ao lado. Entretanto, as personagens parecem não se dar conta que a
violência está dentro da sua própria casa, por meio da mídia. Iara se diz incomodada com a presença de
mulheres nas festas dos traficantes, diz que não quer que sua filha cresça vendo esse tipo de coisa. Ela
não parece notar, no entanto, a cena de estupro assistida pela filha na novela na primeira cena do filme,
que vai cumprindo o papel de naturalizar a violência contra a mulher, uma vez que não é questionada.
A mídia também é fonte de um discurso do medo que vai sendo incutido nas personagens. A
família assiste, assustada, ao programa sensacionalista D’Atena, que mostra uma mãe e uma irmã aos
prantos sobre o corpo de uma menina da idade de Nada, estuprada e assassinada. A espetacularização da
violência contra a mulher e a criança também é violenta contra as personagens, pois contribui para
aumentar o seu medo e sua sensação de insegurança permanente. Enquanto espectadoras, vivemos essa
angústia crescente junto com as personagens.
A violência urbana também é tema de debate nas aulas do curso supletivo de Valter. Ele reproduz
uma opinião conservadora, pautada pela grande mídia, à qual se contrapõe Evandro, seu colega de
classe. Indignado com a postura da escola de ignorar o quadro de perigo vivido no contexto do que ficou
conhecido como os ataques do PCC ,em 2006, ele aponta a seletividade da violência, que atinge
sobretudo os pobres.
O Mapa da Violência 2013: Homicídio e Juventude no Brasil, realizado pelo Centro Brasileiro de
Estudos Latino-americanos (Cebela) e pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), a
partir de dados disponíveis no Subsistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da
Saúde, mostra que, enquanto o homicídio contra os brasileiros brancos foi reduzido em quase um terço
(31,3%) na última década, o número de vítimas negras cresceu 21,9%[250] entre 2002 e 2012. E a
violência não atinge apenas homens jovens negros. A recém divulgada pesquisa do Ipea[251], o Mapa da
Violência 2015, mostra que, enquanto o homicídio de mulheres brancas diminuiu 9,8%, o homicídio de
mulheres negras aumentou 54% entre 2003 e 2013.
Também a professora, Cassia Kiss, pauta uma visão com mais consciência social em suas aulas de
literatura. Em determinado momento, entretanto, Leandro confronta a professora, demonstrando que as
posições dela, embora bem intencionadas, são idealistas, vindas de alguém que não vive de fato aquela
realidade. No filme, Evandro de fato é morto no episódio que ficou conhecido como os ataques do PCC
em 2006. Entretanto, o filme não enfatiza a violência decorrente do racismo institucional no Brasil, tendo
em vista que Evandro é retratado por um ator branco, Caio Blat.
Desta forma, temos uma violência que é percebida pelas personagens, que enxergam parte do
perito ao qual estão submetidas. Mas existe uma violência que é introduzida em suas vidas de forma
despercebida, e que talvez seja mais violenta pelo fato de não ser percebida enquanto tal, naturalizada
enquanto parte da vida.
O HOMEM E O ANIMAL
Na obra O Aberto – o homem e o animal, Giorgio Agamben apresenta uma coletânea de textos em
que analisa como a filosofia ocidental vê a questão da relação entre o homem e o animal. Sua reflexão
parte de uma imagem de uma Bíblia hebraica do século XIII, da visão de Ezequiel, em que os
representantes da humanidade são retratados com caras de animais. A partir da ideia de reconciliação
com a natureza animal. Isto vai contra a linha evolucionista, que nos coloca como seres mais evoluídos
que os animais, dos quais descendemos. Assim, o animal é sempre apresentado como inferior ao humano.
Mais do que isso, muitas vezes a humanidade é definida colocando o animal enquanto o outro, o não
humano.
É nessa perspectiva que, ao longo do filme, os moradores do bairro fazem vários comentários que
colocam os inquilinos como animais. Os jovens da favela são colocados enquanto o outro, e um outro
mais do que inferiorizado, como não humano. Valter chega a falar que se tratam de animais efetivamente,
em comentário indignado para seu vizinho. A animalização dos inquilinos passa pela autoafirmação
enquanto superiores, já que eles são moradores inferiorizados de um bairro periférico, cidadãos de
segunda classe. Eles mesmo estabelecem a linha de corte e dizem quem não é humano.
Mas como Agamben adverte[252], citando Carlos Lineu, o verdadeiro homem é aquele capaz de
se reconhecer no macaco. A ironia está em que aqueles que ensaiam definir o humano contrapondo-o ao
animal, acabam como disse Pascal: “qui fait l’homme fait le singe”. A ironia é pura assunção de uma
absoluta “impotência cognitiva”. O homem é o absolutamente aberto, o que impossibilita decisão entre o
humano e o inumano, tal como o fizeram os campos de concentração e de extermínio (Agamben,
2002:43).
Por exemplo, os vizinhos são vistos como animais perigosos com os quais não
se pode dialogar. Porém, a impossibilidade do diálogo é pressuposta por Iara e Valter, e eles são os que
não têm nenhuma civilidade com os vizinhos, antes que estes realmente se revelem perigosos. Traçar esta
linha divisória, marca de uma visão racista e preconceituosa sobre o outro, sempre teve um peso político.
Afinal, só diminuímos os outros para domina-los ou reforçar o domínio que exercem sobre nós.
A divisão entre o homem e o animal marca o soberano e o homo sacer[253], mas como todos
afinal, com menos o mais pressão, temos um soberano acima de nós – o Estado e toda sua aparelhagem
jurídica e normativa – o homem, enquanto indivíduo, é o animal, pois não possui nenhum direito no
enfrentamento com o soberano, mas que está completamente submetido a ele.
D urval Discos é o primeiro longa-metragem dirigido por Anna Muylarte, produzido em 2002, que
conta a estória de Durval (Ary França) e sua mãe, Carmita (Etty Fraser) e a mudança súbita de rotina
provocada pela aparição de Célia (Letícia Sabatella) e Kiki (Isabela Guasco). O filme mostra o
envolvimento dessas personagens com Elisabeth, interpretada por Marisa Orth, em um contexto social
limitado e solitário.
A atmosfera do filme tem os elementos tradicionais do bairro de Pinheiros, conhecido
pelos aspectos urbanos típicos de São Paulo. Além disso, constata-se referência explícita à rua Teodoro
Sampaio, famosa pelas lojas de instrumentos musicais e altamente frequentada por amantes de música.
Tais características são exploradas pela diretora já na abertura do filme, quando da apresentação dos
atores e produtores, em uma tomada única, ao focalizar aspectos tradicionais e urbanos típicos da região,
em que os nomes aparecem em cartazes, cardápios, letreiros, placas e calendários das ruas e do
comércio local.
A primeira impressão do protagonista, Durval, relaciona-se com o conceito-imagem de um
roqueiro na idade adulta com comportamento contestador e rebelde. No entanto, o traço principal de sua
personalidade é marcado pela tentativa de permanência constante no passado e conservadorismo,
apresentando complexidade muito maior do que seria caracterizado como um comportamento
simplesmente saudosista. Durval depende economicamente da mãe, com quem ainda habita, além de ser
responsável pela gestão da loja de discos de vinil, praticamente uma extensão física da casa, que dá
nome ao filme. Cumpre observar que a estória se passa em 1995, época em que a indústria da música
estava em transformação em razão do fortalecimento do CD como formato principal para
comercialização de músicas, além da dominação de estilos musicais de axé e pagode que atraiam o gosto
popular no Brasil.
Nesse contexto, Durval nega-se à aceitação do novo, dedicando-se exclusivamente à venda dos
LPs e manutenção de seu gosto musical composto, principalmente, por canções de MPB da década de
1970, como se constata na própria trilha sonora, de muito bom gosto, do filme.[254] Além disso,
percebe-se que o convívio com o passado está relacionado com sua relação com Carmita, sua mãe e seu
comportamento tardio de adolescente, até mesmo ao pedir à mãe que cozinhe seus pratos preferidos. Há
momentos, por exemplo, que Durval diz que nunca foi à Bahia e também que não aceitaria uma viagem ao
litoral porque não sabia nadar.
Quando Durval se depara com sua mãe, em idade avançada, que havia esquecido como
cozinhar seus pratos preferidos, com tentativa de manter-se no passado, decide contratar uma empregada
para manter os afazeres da casa. Ocorre que, nesse momento, constatamos, mesmo com certo humor, a
relação de poder exercida por Carmita sobre seu filho em razão da dependência econômica e da
limitação física estabelecida entre a casa e a loja e da relação de dominação até mesmo da imposição de
regras em um jogo de cartas em que, necessariamente Carmita sempre termina como vencedora perante
Durval e do incentivo para que a loja permaneça com a venda exclusiva de LPs, mesmo com sua quebra
iminente em razão da comercialização de CDs.
Nesse sentido, como tentativa de impedir que um elemento externo ao convívio na casa e
na loja ingresse na rotina dos dois, Carmita autoriza a contratação da empregada, considerando o limite
máximo de cem reais para salário. Obviamente, em 1995, esse valor já era exageradamente baixo, o que
inviabilizaria a contratação.
Interessante notar que a relação entre mãe e filho descrita até aqui é muito comum,
considerado também os tempos hodiernos, devido à dificuldade financeira que muitos adultos enfrentam
ao saírem da casa dos pais e assumirem o rumo da própria vida, bem como em razão da opção do
casamento ser feita de forma tardia quando comparada aos costumes passados. Nota-se certa aceitação
do exercício da autoridade pelos pais em troca de conforto e comodidade ou até mesmo pela
possibilidade em usufruir do dinheiro ganho com o próprio trabalho com itens considerados supérfluos
ao exemplo de vestimentas, festas e viagens ao invés de pagamento de despesas para manutenção de
própria casa e família.
No contexto praticamente impossível de contratação da empregada, surge Célia, que
aceita as condições do trabalho. É nítida a perturbação inicial de Carmita com a presença de Célia,
tratando-a como intrusa e incapaz de realizar as atividades domésticas. No entanto, a sensação de poder
sobre Célia toma conta de Carmita que passa a admitir a satisfação e até demonstrar certo prazer em ter
mais uma pessoa sob seu domínio.
No entanto, ao mencionar necessidade de pagar uma conta no banco, Célia desaparece e
tem seu quarto invadido na manhã seguinte por Carmita e Durval que se deparam com Kiki, uma menina
de cinco anos, suposta filha de Célia. Kiki menciona que sua mãe está viajando, dando a entender que
estaria ali aos cuidados dos dois.
A partir daí, verifica-se encantamento pela menina, principalmente por Carmita, que
passa a realizar todas as vontades de Kiki, deixando Durval, em um primeiro momento, com ciúmes.
Constata-se que a presença da menina provoca quebra substancial na rotina da casa, fazendo com que as
personagens principais se permitam o ingresso em um mundo infantil, alegre e aberto. Os três, juntos,
cantam, dançam e contam estórias a pedido da menina, que, de certa forma, usufrui da autoridade que
desenvolveu em relação aos dois.
O rompimento é tamanho que a primeira cena externa ao ambiente da casa e da loja é
justamente a busca por animais na rua, já que Kiki apresentava ideia fixa sobre a vontade de ver animais
de fazenda, o que acaba sendo explicado posteriormente. Assim, Durval e Carmita saem de casa à
procura de animais, deparando-se com ratos, conforme solicitado pela menina. A segunda situação
externa é justamente a ida dos três à loja de brinquedos onde, por mais que a menina insistisse que queria
um cavalo de verdade, ganha de presente uma bicicleta.
Interessante notar que, apesar do domínio econômico de Carmita sobre Durval, percebe-
se que não se trata de uma família abastada financeiramente, já que a própria casa e os hábitos das
personagens são simples. O gasto com a bicicleta seria algo considerado supérfluo e totalmente fora de
cogitação no contexto da rotina normal dos dois
O fascínio por Kiki é tanto que Carmita rompe com seu mundo limitado para proporcionar o
convívio da menina com um cavalo, adquirindo um. Nesse momento, a complexidade da relação
desenvolvida, primeiramente entre Carmita e Durval e, posteriormente, com Kiki mostra que Carmita
apresenta comportamento esquizofrênico, ao incluir elemento, o cavalo, em um ambiente incompatível
que seria a pequena casa localizada no bairro de Pinheiros. Trata-se de ação exagerada e servil para
atender os interesses de alguém como forma de impor dominação.[255]
Não se deve deixar de mencionar a presença de Elisabeth, atendente em uma lanchonete
próxima à loja que, às vezes, aproveita os intervalos da jornada de trabalho para visitar Durval e fumar.
Verifica-se tentativa de Elisabeth em ingressar no mundo interior de Durval, que sempre evita contato
mais profundo que um simples flerte. A personagem de Marisa Orth tem papel essencial no desenrolar da
estória.
A imagem rebelde de Durval com seus cabelos longos e vestimentas de roqueiro
contrasta com o comportamento conservador por ele apresentado nas interações com Elisabeth e Carmita,
bem como o próprio carinho e respeito demonstrado por Kiki. Poderia-se dizer que Durval é o típico
“boa gente” que se auto sabota ao limitar seu mundo e suas interações dentro da loja, que possui os
mesmos frequentadores e discos de sempre. O rapaz que, com mais de trinta anos de idade, ainda se
imagina tocando guitarra escondido em seu quarto, tem opinião e sonhos censurados pelo comodismo e
ausência de coragem de lutar pela sua realização, restando apenas a obrigação do cumprimento das
ordens de sua mãe, cujo desenvolvimento ocorre de forma rotineira e natural. Tal descrição leva-nos à
observação de que é muito fácil “ser Durval” nos dias de hoje em uma grande cidade como São Paulo,
em razão da necessidade de fuga das diversas relações de poder que todos estão sujeitos nas mais
diversas esferas sociais que envolvam trabalho, prestação de serviços públicos, violência, amigos,
relacionamentos amorosos e consumo, combinado com a falsa sensação de realização pessoal
proporcionada pelos conteúdos e serviços disponibilizados pela internet e televisão.
A caracterização de Durval, que não é vilão tampouco mocinho, pode ser interpretada no
contexto mencionado por Mara Regina de Oliveira no que se refere à necessidade de um novo paradigma
epistemológico da reflexão imagética artística:
Com isso, conseguimos identificar o que motiva as ações de Carmita, ainda mais quando
Canetti esclarece que o que mais chama atenção nos esquizofrênicos é justamente a ausência de todo e
qualquer contato com outras pessoas e teimosia. O autor ainda explica:
“(...) em outros momentos de sua doença, esses mesmos homens subitamente
comportam-se de maneira inversa. Tornam-se, então, fantasticamente
influenciáveis. Fazem o que vêem outros fazer ou que se exige que façam – e
com uma rapidez e perfeição que é como se aquele que o exigiu estivesse
dentro deles e o fizesse por eles. São acessos de servilismo que, de súbito, os
assolam. ‘Escravidão sugestionada’ denominou-o um deles. Transformam-se
de estátuas em escravos ansiosos por servir, e fazem o que quer que se
queira de um modo exagerado que, com frequência, parece ridículo” [264]
Portanto, a presença de Kiki faz com que Carmita mude seu comportamento
repentinamente e passe a servir a menina, obedecendo todas as suas vontades. Ocorre também se verifica
que Carmita se confunde com Kiki, principalmente, ao final do filme ao implorar que seu filho lhe dê
brigadeiros.
O que talvez possa ter contribuído para que Durval não tenha percebido antes a relação
de domínio estabelecida pela mãe em razão da enfermidade, é justamente o fato de que tais
comportamentos mencionados por Canetti também são típicos de pessoas ‘normais, só que não tão
exagerados. Assim como as ordens emanadas pela mãe eram aceitas, seu comportamento possuía o
mesmo entendimento no contexto de submissão considerado cômodo para Durval.
A complexidade envolvida nos relacionamentos descritos em “Durval Discos” é similar
ao filme “Abril Despedaçado” de Walter Salles, embora se tratem de estórias desenvolvidas em
contextos distintos, os protagonistas de ambos os longas são descritos como totalmente sujeitos ao poder
familiar e ao destino já definido por seus ascendentes conforme suas vontades e de forma contrária à
ordem jurídica formal.
O personagem de Rodrigo Santoro, Tonho, encontra-se sujeito ao modelo vertical de justiça
estabelecido pelas famílias no sertão no início do século XIX, não sendo capaz de reconhecer a
irracionalidade do círculo vicioso ao qual estava obrigado a dar continuidade com fundamento na
vingança. De acordo com o código de justiça que rege as relações entre as famílias Breves e Ferreira,
quando houver uma tomada de terras, seguida pela morte de um dos homens da família, cabe ao filho
mais velho da família em luto, cobrar na mesma medida e proporção o sangue derramado. [265]
Tonho depara-se com elemento contestador na figura de seu irmão mais novo, ainda uma
criança, chamado de Menino que o chama a atenção para brutalidade daquele sistema de justiça, ainda
mais quando é chegada a hora de Tonho honrar a morte de seu irmão, vítima da outra família e termina
realizando sua “obrigação“.
Assim como Carmita e Durval, a família de Tonho rejeita qualquer elemento externo à
realidade em que vivem e evitam que seus filhos tenham qualquer contato com a cidade grande e
qualquer coisa que seja capaz de proporcionar o discernimento ou sentimento de questionamento sobre
aquela situação. Assim como Elisabeth e os CDs, a família Ferreira, os artistas do circo e o livro que o
Menino ganha de presente são afastados e julgados pelos pais como não merecedores de respeito e
dignidade, uma vez que se pretende que os filhos sejam capazes de manter o código de justiça e o
sustento da família, sem necessidade de saber ler e escrever. Verifica-se, portanto, a mesma situação de
alheamento que resulta na banalidade do mal com relação ao outro.
A função transformadora de uma criança é caracterizada em ambos os filmes, nas figuras de Kiki
e do Menino. Em “Durval Discos”, a necessidade de que a menina volte para os braços de sua mãe,
motiva Durval a realizar a desconfirmação do poder de sua mãe. Já em “Abril Despedaçado“, o Menino
renuncia sua própria vida e toma o lugar de Tonho no momento de sua morte, o que motiva seu irmão
mais velho libertar-se do destino que lhe era reservado e dos padrões de opressão ao qual estava
acorrentado.
Assim como Durval, Tonho ignora a ordem estabelecida por sua família, encontrando sua
redenção ao por fim ao ciclo marcado pelo código de justiça estabelecido por uma ordem paralela à
ordem jurídica formal. Os momentos finais de ambos os filmes, por mais que sejam cenários diferentes,
possuem significado similar por apresentarem a redenção de seus personagens principais ao optarem
pelo cumprimento de valores moralmente aceitos de forma geral e não de um determinado núcleo de
pessoas que tenham instituído sua própria ordem baseado em uma relação de poder informalmente
mantida.
Tonho e Durval deixam, aliviados, sua residência e família abrindo-se para o futuro e
para a sociedade, abandonando o alheamento e comodismo ao qual estavam sujeitos em razão do domínio
exercido por suas famílias.
A análise da complexidade dos relacionamentos entre círculos restritos também foi realizada em
outros trabalhos de Anna Muylarte, mostrando a reação individual de cada um de seus personagens às
reviravoltas significantes que se deparam durante o enredo. Essa temática aparece, de forma mais sutil,
quando comparada ao seu primeiro filme, em “Que Horas Ela Volta?”, lançado em 2015, embora repita a
sensação de redenção e abertura para o futuro de seus protagonistas como mostrado em “Durval Discos”.
Seriam exemplos de redenção de quem quer incentivar o público no que se refere à necessidade de
rompimento de barreiras internas para que decisões exclusivamente individuais sejam tomadas
objetivando também ao benefício da coletividade, promovendo a integração como fato transformador de
libertação de suas próprias vidas.
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OLIVEIRA, Mara Regina de. O Desafio à Autoridade da Lei: A relação existente entre poder,
obediência e subversão, 2a ed., São Paulo: Edição do Autor, 2015 . Edição Kindle.
OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Dialógo. São Paulo: Edição do Autor,
2015 . Edição Kindle.
TRABALHAR CANSA: A LUTA HUMANA PELA SUPERAÇÃO DO MEDO
Olga Regiane Pilegis[*]
Eu vou botar teu nome na macumba
Vou procurar uma feiticeira,
Fazer uma quizumba pra te derrubar,
Você me jogou um feitiço, quase que eu morri
Só eu sei o que eu sofri...
Que Deus me perdoe, mas vou me vingar
Eu vou botar teu retrato num prato com pimenta
Quero ver se você "güenta"
A mandinga que eu vou te jogar
Raspa de chifre de bode
Pedaço de rabo de jumenta
Tu vais botar fogo pela venta
E comigo não vai mais brincar
Asa de morcego
Corcova de camelo pra te derrubar
Uma cabeça de burro
Pra quebrar o encanto do teu patuá
Olha, tu podes ser forte
Mas tens que ter sorte
Pra te salvar
(Canção de Zeca Pagodinho: “Vou botar
seu nome na macumba”).
filme Trabalhar Cansa (2011) foi dirigido por Juliana Rojas e Marco Dutra e retrata as agruras
O vividas por uma família formada por um apaixonado casal, Helena (Helena Albergaria) e Otávio
(Marat Descartes), que contam com o auxílio da jovem Paula, empregada doméstica (Naloana Lima).
O drama se desenvolve tendo como enredo as dificuldades relacionadas ao mundo do trabalho: Helena
deseja se firmar como microempreendedora comercial; Otávio precisa desesperadamente conquistar um
novo emprego para recuperar sua autoestima, enquanto Paula almeja ingressar na formalidade, pois
trabalha sem registro na carteira de trabalho. Cada qual luta, a seu modo, para superar o temor de
circunstâncias reais e imaginárias, na busca de um lugar ao sol. A palavra medo é a que define, pois, essa
obra.
A filmagem inicia com Helena visitando um imóvel que parecia perfeito para dar início ao seu
sonho de empreendedora. Retorna ao lar exultante para dar as boas novas, mas encontra Otávio
cabisbaixo, decepcionado por ter sido despedido do emprego, substituído por funcionário bem mais
jovem. A indignação dela explode: “sujeito trabalha 10 anos, depois é cuspido como um... sei lá o
quê...”. A reação é justificada: para propiciar lucro máximo ao capitalista, o sistema precisa moer suas
vítimas para depois reaproveitar os seus pedaços em novas reconstruções.
Helena pensa inicialmente em desistir de seus projetos, mas acaba seguindo, corajosamente
teimosa: “vou fazer isso dar certo”. Logo percebe que os obstáculos serão muitos: o imóvel em que
funcionará seu comércio tem pintura desgastada, indica abandono: prateleiras, balcões e outros objetos
foram ali deixados pelos antigos inquilinos – indicando a saída inopinada. O local abriga algum segredo
macabro e o filme explora esse mistério por meio de um jogo de sombras e tomadas propositadamente
escuras ou totalmente apagadas, nas quais só restam o diálogo do personagem e a curiosidade do
espectador sobre essa descontinuidade. Paira permanentemente um clima de suspense, tanto nas filmagens
feitas no interior do estabelecimento, como nas da residência da família.
Durante a abertura e primeira limpeza do imóvel alugado, baratas saem de todos os vãos: são
contados 31 insetos. Os personagens têm suas falas constantemente entrecortadas pela percepção de
“cheiros fortes”, odores desagradáveis que lembram esgoto ou fumaça; a expressão dos interlocutores é
sempre de asco e medo. Há tomadas em close propositadamente repugnantes: líquidos viscosos que
escoam dos ladrilhos e paredes; larvas pululam de um objeto putrefato, retirado de um ralo em filmagem
lenta e próxima o suficiente para impressionar estômagos mais sensíveis. Cães aparecem do nada, latem
furiosamente para Helena e soltam uivos agourentos à noite. Mercadorias somem do estoque. Um Papai
Noel dançante e com rosto amedrontador dança de madrugada, sem qualquer interferência humana. O
casal encontra objetos estranhíssimos no depósito: correntes com elos enormes; roupas usadas que teriam
pertencido aos anteriores inquilinos; um enforcador de ferro gigante, colocado misteriosamente atrás de
um armário. O enredo remete a “coisas de outro mundo”, a ameaças inominadas e indomáveis, que vão
definindo, com mão pesada, os destinos da família. O medo do imponderável se instala na mente de
todos.
As críticas à saturação do mercado de trabalho aparecem por todo o filme. Quando Paula vai
conversar pela primeira vez com Helena e questiona sobre o registro em CTPS, esta responde: “o
primeiro mês é de experiência, pago um pouco menos do que o mínimo. A partir do 2º, se tudo der
certo, o mínimo mais a condução. Mas não consigo registrar, é muito caro...”. Essa negativa da
formalização do vínculo é o que aparenta calar fundo na alma de Paula: só quando confrontada com o fato
de ser pessoa “inexperiente para o cargo”, aceita, desolada, as condições ilegalmente impostas pela
patroa: “então pra mim tá bom, D.Helena”. O medo da fome era mais forte do que o seu desejo de
encontrar um emprego formal.
Os medos de Otávio são muitos: sente-se vítima de discriminação etária. Teme perder a condição
de “homem da casa”, provedor do lar; receia não encontrar nova ocupação nunca mais. Sente-se
constrangido durante entrevista conduzida por mulher arrogante, que o submete, junto com dois
candidatos bem mais novos, a uma infantil dinâmica de grupo, cada qual compelido a dizer
características profissionais que supunha ver nos demais. Otávio é citado como portador de “bastante
experiência e paciência” – num tom debochado que deixa entrever uma crítica pessoal; não suporta a
provocação vinda de alguém tão jovem, ainda mais se presenciada por uma mulher, e deixa a sala antes
de terminar a sessão. Dias depois, ao ser fotografado para o book de candidatos, escuta a sugestão: “se
quiser tirar uma outra, sem gravata, fica com o ar mais jovem”. Quando começa ouvir conselhos para
fazer “sessão de networking, com plano de psicólogo”, ou para aderir a convênio-desemprego, com a
explicação de que “tem gente que fica um ano, um ano e meio sem conseguir emprego”, entra em
verdadeiro pânico.
Os medos de Helena não são menores: não bastassem os incidentes sobrenaturais, flagra
funcionário colocando mercadorias indevidamente em sua sacola. Interpelado, ele desafia a autoridade
da empregadora e diz, entre irônico e cínico, que jamais conseguiria “ficar rico vendendo pão velho”.
Helena explode diante dessa desconfirmação de sua ordem: “Tá louco de falar assim comigo? Me
respeita!!!”. E, num ímpeto, ela parte para a coação explícita e despede o funcionário. Depois, passa a
agir com desconfiança em relação a todos e permanece em contínuo estado de tensão. Começa a implicar
com os horários dos empregados e faz revista ostensiva em suas bolsas. O embrutecimento da empresária
é tamanho que leva Otávio a aconselhar: “você deveria pegar mais leve, senão vão fazer macumba para
você”.
Cabe aqui uma referência à teoria de Elias Canetti, em seu livro “Massa e Poder”, segundo a qual,
as relações de poder que os homens estabelecem entre si são muito semelhantes às do meio natural em
que vivem os animais, pois no momento em que pretendem ser superiores, conscientemente, não hesitam
em rebaixar seus semelhantes, frustrando-lhes os direitos e a capacidade de resistência, a fim de torná-
los suas “presas”. Essas relações de poder não são explícitas, elas podem permanecer ocultas aos olhos
da sociedade, é o poder desenvolvido às escondidas e relacionado com a ideia de ocultação
(OLIVEIRA, 2015, pos.387/388 de 6979). Bastante simbólico desse “desejo de ocultação” é o fato de a
conversa entre Helena e o funcionário ter sido realizada longe de todos, no setor de estoque, em tomada
cênica propositadamente sombria. Quando quis legitimar o seu (des)mando, Helena chama outra
funcionária, mas dela escuta apenas a confirmação da honestidade do trabalhador – o que era
desinteressante naquele momento. Por isso, foi a “testemunha” prontamente despachada, tendo então
seguimento, de qualquer forma, o premeditado processo de abate da presa/trabalhador, pois essa era a
ação necessária à continuidade do jogo de máscaras.
O filme prossegue com o mesmo cenário da falta de sorte: emprego que não aparece, negócio que
não dá certo: a crise econômica assola a família e mina as bases de seus laços de pertencimento. Paula
procura ostensivamente um novo emprego. O casal começa a brigar devido à falta de dinheiro. Pensam
em corte de despesas, mas não chegam a consenso. Otávio, orgulhoso e machista, rejeita de plano a ideia
de pedir empréstimo aos pais de Helena, ainda que a mensalidade da escola já estivesse atrasada.
O clima familiar fica péssimo e o apogeu imagético do temor da miséria é representado na cena
em que Paula vai preparar omelete e, ao quebrar o ovo, verifica que há algo errado: a câmera se
aproxima da gema amarela, contendo em si um embrião muito vermelho, já bem formado, e alerta a
patroa: “D. Paula, era o último ovo”. Irritadíssima e com o semblante de quem já não tem mais forças
para lutar, Paula retira o “quase-pinto” daquela gema e começa a bater neuroticamente o que restou do
ovo derradeiro, despachando Paula para outro serviço: “vá cuidar do doce”. Na mesma hora, a filha do
casal entra, dizendo: “mamãe, a televisão desligou sozinha”. Uma Helena já irritada e combalida
descarrega todo o seu ódio no marido, que deixara de pagar a conta mensal da energia elétrica. Quando
ele pondera: “você não precisa gritar”, ela retruca: “por quê? Tá com medo que sua filha pense que
você é um bosta?..”. Apercebendo-se do exagero, depois pede desculpas, diz que falou sem pensar. Mas
ele sai, chateado e visivelmente humilhado, não quer conversa.
Na sequência, a cena da comemoração familiar natalina, passada no escuro devido ao corte de luz.
A cunhada aproveita o clima tenebroso para fazer cena, relatando com detalhes sórdidos a morte de um
morcego a pauladas, fala entrecortada por guinchos propositadamente horripilantes e desafinados da
narradora. O nariz de Helena começa a subitamente sangrar e a mãe desconversa: “é o tempo seco, a
essa época já devia estar chovendo”. Mas a tensão familiar é claríssima e o escoamento do sangue nasal
traz a metáfora de uma mulher forte, mas que já está sangrando de dor em razão de tanta pressão, a ponto
mesmo de explodir. Conclui, desanimada: “acho que esse é o Natal mais tosco da minha vida” – ao que
escuta a resposta irônica de um marido magoadíssimo: “quem mandou você casar com um bosta?...”.
Helena então reitera seu pedido de desculpas a Otávio e dele recebe uma jóia. Sem uma gota de
romantismo, indaga sobre como teria conseguido comprá-la, ao que ele justifica: “comprei em 20
prestações”. E vem a resposta cruel e irônica: “então vou vender para pagar a conta de luz”.
A beleza do filme está em deixar explícita toda a contradição humana da personagem principal:
ela não é só a vilã que maltrata e persegue seus funcionários, ela é também a mulher forte que luta pela
sobrevivência e coesão de sua família - ainda que, paradoxalmente, precise se afastar emocionalmente de
seus componentes, a fim de assegurar esse objetivo. A valente Helena insiste, até às últimas, em fazer o
negócio prosperar. Abre mão do convívio familiar, renunciando a uma viagem para a praia a fim de abrir
o mercadinho. Quando Otávio reclama desse distanciamento, ela retruca, grosseiramente: “alguém tem
que trabalhar”. A família se divide, a filha demonstra clara reprovação e desânimo. E chove
torrencialmente durante aquele Carnaval...
Na linguagem metafórica, chuva é renovação e sorte. E, da parede do imóvel problemático,
começa a brotar água aos jorros. O pedreiro faz o diagnóstico: “tem que abrir pra ver o que é, mas só
posso fazer isso depois do Carnaval”. Sem outra saída, sozinha, combalida e revoltada, a franzina
Helena empunha uma marreta enorme, que mal consegue conter em suas mãos, e começa a demolir
furiosamente o que pensa conter a culpa de sua infelicidade e insucesso.
A linguagem imagética é clara: para a heroína/vilã, no fundo do poço, só restam duas
possibilidades: fuga ou ataque, e ela opta pela última. Golpeia violentamente o local do vazamento; são
marretadas dadas com ódio, a força empregada é muito maior do que exigiria a situação. A cada pedaço
de reboco que cai, aumenta a curiosidade sobre o que existiria, afinal, atrás daquela maldita parede. Essa
ação catártica quase lhe custa a vida, pois a estrutura acaba por ruir, atingindo Helena, que fica
machucada e vai para casa, mas leva consigo uma pata de animal, em asquerosa decomposição,
arrancada dos escombros. Desaba exausta na cama, mas guarda consigo, por entre os lençóis, aquele
objeto nojento, tal qual um troféu para sua simbólica vitória.
Como se vê, quando acuada pelo medo extremo, Helena foi compelida a enfrentar seus fantasmas.
Esse enfrentamento costuma ter um poder simbólico libertador, permitindo uma ruptura com antigos
paradigmas psíquicos. A linguagem do filme, aqui, é extremamente ritualística: o pensamento libertador
é dotado de conteúdo “mágico”.
Roberto DaMata trata desses pensamentos místicos, ou mágicos, procurando explicar como
elementos triviais do mundo social podem ser deslocados e transformados em símbolos – que, em certos
contextos, permitem engendrar um momento especial ou “extraordinário”, através de um discurso
simbólico. Teoriza que os ritos, assim como os mitos, conseguem colocar em close up as coisas do
mundo social. Expõe o autor uma analogia com o matrimônio e seus rituais, dizendo que “um dedo é
apenas um dedo integrado a uma mão e essa mão a um braço, e esse braço a um corpo; mas, no
momento em que se coloca no dedo um anel que marcará o status matrimonial de uma pessoa, esse
dedo muda de posição” – e ocorre, então, uma “transposição de elementos de um domínio para o
outro”: o dedo, antes simples parte de um universo biológico e individual, passa a ostentar o signo de
todo um conjunto de relações sociais (DaMatta, 2015, pos.1005/1008 de 5146).
Otávio retorna de viagem e encontra Helena ainda acamada, assustadíssima. Ela apanha seu
repugnante troféu e o confia ao marido, incrédulo, dizendo: “estava na parede”. Ele retorna então ao
imóvel, para terminar o que a valente esposa começara. Marretadas adiante, encontra o esqueleto de um
grande animal - que jamais teria ficado preso naquela parede por um simples acaso.
Essa cena da exumação animalesca tem o ápice na saída do crânio do bicho: é assustadora e
sonorizada por uivos ensandecidos de uma matilha desesperada. A cena é subitamente cortada para um
total vazio, reina a absoluta escuridão. Em novo cenário, ainda escuro, mas apresentando as luzes da
cidade bem ao fundo, o carro do casal chega a um aterro sanitário; transportam os pedaços de cadáver em
sacos pretos; sobressai na tela um saco branco: é de sal grosso, jogado às mancheias sobre o bicho.
Álcool e fósforo produzem a combinação que a tudo incendeia. A tensão agora salta da tela, reinam o
medo e o sobrenatural. Cai o silêncio, o casal permanece assistindo o crescimento das labaredas que
consomem o cadáver e dominam toda a tela. Otávio finalmente se reaproxima de Helena, solidário; quase
se abraçam. A garoa paulistana cai, insistente.
O chamado “feitiço da caveira de burro” é uma construção mítica que faz parte do imaginário
coletivo brasileiro. Na sabedoria popular, refere-se a “trabalho feito”, a chamada “mandinga”, que atrai
como resultado a inaptidão do local em que enterrado o objeto para o desenvolvimento de negócios,
plantações ou fixação de residência. Quando o povo fala: “ali tem caveira de burro”, quer dizer que
nada dá certo no local: são negócios que sucessivamente fracassam, famílias que se alternam em dado
imóvel, culturas agrícolas que não são bem sucedidas, colheitas seguidas.
Depois desse ritual macabro, o cenário do novo alvorecer volta às cores amenas, com muita luz:
recorte das ruas de São Paulo, casas e praças, pessoas apressadas indo para o trabalho, tudo vai voltando
à normalidade. A vida retoma seu rumo. A parede é recomposta, em meio aos protestos do proprietário:
“porcaria, pra que precisava quebrar tanto?”. Ele demonstra não compreender que grandes males
exigem grandes remédios... Mas a heroína não se abala com as provocações do senhorio. Aparece
radiante: bela, maquiada e esperançosa; o medo já passou. Firme, diz: “agora só preciso do meu
reembolso”. Volta a contemplar, embevecida, a parede finalmente livre de mistérios, clara como a luz
daquele novo dia.
Recorremos novamente às lições da sociologia para analisar o aspecto mítico ou religioso dos
rituais: combinações ritualísticas não engendram transformações essenciais no mundo e nas próprias
relações sociais (isto é, não há mudanças fenomênicas do universo em razão delas). Todavia, os rituais
costumam manipular os elementos e relações daquele mesmo mundo, servindo, então, como uma técnica
para a mudança de posição da pessoa moral - do profano para o sagrado ou do sagrado ao profano
(DAMATTA, 2015, pos. 1098).
O mesmo autor explana que ao fazermos oferendas, despachos ou súplicas, estamos utilizando uma
linguagem própria, uma espécie de código de comunicação com o além - que é bastante comum ao
brasileiro, pois, do mesmo modo que temos pais, padrinhos e patrões, temos também entidades
sobrenaturais que nos protegem. Com isso, esperamos produzir milagres, isto é, uma resposta direta dos
deuses a uma súplica desesperada dos homens, na forma de um atendimento pessoal, corporificado e
intransferível, num ciclo de troca que envolve pessoas e entidades sobrenaturais (DAMATTA, 2015,
pos.602 e 613).
É exatamente essa mudança “milagrosa” de posição que podemos notar quando, após a
incineração daquilo que aparentava ser a temida caveira de burro[266], precedida de muito sal grosso e
atividade contemplativa, o casal finalmente se desvia da sina supostamente agourenta e, livres do terror
autoimposto, passam a ver horizontes mais límpidos. O espectador vê uma nova Helena, semblante
remoçado pela perspectiva de um futuro melhor e ressensibilizada para a potencial beleza da vida.
Corte para uma praça de alimentação em shopping paulistano. Ali, Paula também encontrou seu
“lugar ao sol”: recolhe bandejas, uniformizada e feliz, sendo interpelada por um rapaz, de quem recebe o
cumprimento: “tome sua carteira; primeiro registro, hein? agora você existe!!!”. A empregada-cidadã
contempla a chancela estatal à sua nova situação jurídica: a tela toda é tomada pelo close da folha de
abertura da CTPS, contendo a assinatura da titular e o número do documento com o carimbo oficial. Sua
vitória pessoal foi superar o estigma da informalidade profissional e sente-se agora livre para novas
conquistas.
Mas é uma liberdade relativa, vale lembrar: o Direito, ao regular a condição sócio-jurídica do
trabalhador, “deve permanecer como um símbolo ideal, que mascara as suas contradições, o seu
exercício de controle e as relações de poder”; ele age basicamente como um “grande depósito de
símbolos sociais emocionalmente importantes”, assegurando a perpetuação da máscara ideal,
fortalecendo o status quo presente e garantindo, de forma pacífica, a relação de mando/obediência
jurídico-política. O Estado deve, pois ser “hábil como o gato e manter sob seu poder (controle) todos
os passos dos indivíduos que a ele estão submetidos. No entanto, essa vigilância deve ser sutil,
fazendo com que todos acreditem que exercem de fato a sua liberdade” (OLIVEIRA, 2015, pos.503/510
de 6979). Essa foi, pois, a “liberdade-vigiada” alcançada pela sonhadora trabalhadora Paula.
A última cena do filme é impactante: mostra Otávio em mais uma dinâmica motivacional; ele veste
terno e há dezenas de outros, na mesma situação. O orador traz a estatística: para cada vaga de emprego,
são 100 candidatos concorrendo – e acrescenta: “é quase o que a gente tem aqui na sala”. Deixa
entrever que daquela matilha, só um poderá sair vencedor. O mesmo líder proclama, em tom professoral,
que para se destacar no mercado de trabalho, “o homem moderno precisa retomar contato com seu lado
primitivo”, isto é, deve canalizar sua energia animal para a sua profissão e tirar suas máscaras sociais. E
para completar o esquema ritualístico ensaiado, pede que todos tirem seus paletós e gravatas e “entrem
em contato com seu lado macaco”.
A gritaria é geral - exceto para Otávio, que num primeiro momento permanece boquiaberto, não
acreditando naquele grotesco espetáculo. Após muito relutar, ele consegue enfim se enturmar no bando,
soltando o seu “grito da selva”. A cela é tomada integralmente pelo close do homem/animal Otávio, que
grunhe e vocifera, tendo por sons de fundo o resto do bando em igual atitude. São homens uniformizados,
em gestos, voz e vestimentas. Pensam-se livres, mas em verdade estão sendo manipulados pelo
pseudoguru, entorpecidos pelo transe coletivo. O filme chega, aqui, ao que Hannah Arendt sombriamente
antecipou:
O último estágio da sociedade de trabalhadores, o qual é a sociedade de
empregados, requer de seus membros um funcionamento puramente
automático, como se a vida individual realmente houvesse sido submersa no
processo vital global da espécie e a única decisão ativa exigida do indivíduo
fosse deixar-se levar, por assim dizer, a abandonar a sua individualidade, as
dores e penas de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer a um tipo
funcional, entorpecido e tranquilizado de comportamento. [...] É
perfeitamente concebível que a era moderna – que teve início com um surto
tão promissor e tão sem precedentes de atividade humana – venha a
terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais
conheceu. (ARENDT, 2015, p.400).
O filme não diz, ao fim, se Otávio será o vitorioso da matilha. Mas a considerar o ritual
pirotécnico de “livramento” realizado na noite anterior, deixa no ar pelo menos a esperança de que, uma
vez exumada e incinerada a “caveira de burro”, a paz voltaria a reinar no lar. E o macho-alfa, livre de
seus entraves psíquicos, talvez consiga propiciar à parceira-heroína o aconchego e segurança que ela
paradoxalmente almeja. Os caminhos estavam novamente abertos para aquela família...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CANETTI, Elias. Massa e Poder. Brasília: Universidade de Brasília, 1983.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. São
Paulo: Rocco Digital - E-book Kindle, 2015.
DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? São Paulo: Rocco Digital - E-book Kindle, 2015.
INTRODUÇÃO
J ustiça (2004), de Maria Augusta Ramos, gira em torno do sistema criminal do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro, mas poderia ser qualquer outro. O ritual é o mesmo, as becas são as mesmas, o perfil
de réu é o mesmo. Analisar o Tribunal do Rio de Janeiro nos fornece um certo senso de universalidade,
dentro do espectro judicial brasileiro quanto ao tratamento da delinquência.
A aproximação que o título do documentário sugere é entre o Poder Judiciário e uma acepção mais
abstrata de justiça. Aproximando-os, contudo, o documentário coloca uma reflexão crítica a respeito da
justiça efetuada pelo Poder Judiciário– e se este merece o título de ‘Justiça’.
O pressuposto deste artigo são as reflexões de Tércio Sampaio Ferraz Jr. e Mara Regina de
Oliveira a respeito do fenômeno do poder. O direito, sob esta perspectiva, é um instrumento de controle
social, utilizado pelo Estado a fim de decidir conflitos sociais e absorver inseguranças.
A fim de exercer sua função, o direito deve permanecer como uma espécie de ‘símbolo ideal’ de
justiça, que mascara seu exercício direto de poder e violência[267]. Normalmente, ele funciona para
produzir a aceitação moral do status quo, de modo a garantir a relação de mando/obediência de forma
pacífica.
Deve ser hábil na manutenção da ‘máscara ideal’ de justiça para manter sob seu poder os
indivíduos, em uma espécie de vigilância discreta, já que o poder depende da colaboração do sujeito
obediente. Além disso, para sustentar dogmaticamente a ideia do ‘Estado-Justiça’, é importante que o
poder governamental se exerça dentro dos limites estabelecidos pela própria ordem jurídica, ou sofrerá
em sua legitimidade.
Com estes pressupostos em mente, passaremos à análise do documentário representativo da
Justiça brasileira em sua face mais pulsante: a do direito criminal. Através do cinema, será possível
apontar aspectos importantes que dificilmente seriam identificados tão claramente em outras formas de
transmissão de conceitos, como a escrita. Nas palavras da defensora pública Maria Ignez, uma das
personagens, “apesar de estar acostumada com o dia-a-dia da justiça criminal, eu fiquei
impactada”[268] ao assistir ao filme. É que a tela de cinema, nesse caso, funciona como uma lente de
aumento da justiça criminal e da sociedade em geral, e, com isso, poderemos analisá-las mais
minuciosamente.
DOCUMENTÁRIO E REALIDADE
Num primeiro momento, pela década de 1920, o cinema documental se opôs diametralmente ao
cinema-ficção como representação direta da realidade, uma ferramenta de revelação da verdade.
Posteriormente, esta distância entre os gêneros foi se relativizando, de modo que temos, frequentemente,
uma sensação de indiscernibilidade entre o documental e o ficcional.
A discussão ontológica sobre o cinema nos anos 1950 cindiu, de um lado, o cinema de ficção e, de
outro, o cinema de realidade. À época, ambos partilhavam uma relação com um ideal de verdade
estabelecido: a verdade era exterior à criação cinematográfica, um dado fático externo que se expunha
como objeto de revelação pelo cinema[269]. O propósito do cinema era dar visibilidade a uma verdade
vista não como sua criação, e o documentário era associado à procura de elementos que supostamente
sustentassem uma captação verídica e direta da realidade.
De toda forma, o documentário é uma asserção do mundo, uma narrativa do diretor recebida pelo
expectador. Ao modo particular do cineasta representar o mundo através da organização de sons e
imagens captados, Bill Nichols se refere como ‘voz’[270]: o arsenal de recursos proporcionados pelo
audiovisual no registro e na expressão de um pensamento a respeito do real.
Maria Augusta Ramos, em Justiça, optou por representar o mundo de maneira observativa, sem
interferências diretas nos acontecimentos. Trata-se do que Nichols se refere como a ‘voz observativa’ do
documentário, ou seja, enfatiza-se a autenticidade ou a fidelidade da representação do mundo, de modo a
minimizar a importância do estilo ou da percepção do cineasta[271]. Justiça se desenvolve sem efeitos
sonoros complementares, apenas com o som ambiente, sem entrevistas, sem narrador. A diretora se
influenciou pela corrente do cinema reflexivo: o filme não se dá para provar uma tese, mas faz parte de
um processo de compreensão. Procura levar o expectador a tirar suas próprias conclusões.
Nem por isso deixa de ser uma narrativa estilística da diretora. Passamos pelo enquadramento, a
escolha e disposição das cenas, a edição, o uso do recurso do zoom, na construção de uma lógica interna
ao documentário. A própria diretora coloca, em entrevista disponível nos extras do DVD, “No momento
que eu olho para a realidade, eu passo a reconstruí-la. Então o meu olhar é uma reconstrução, ele
envolve uma interpretação.”
Fora as estratégias técnicas da diretora, a presença da câmera interfere nas ações dos
personagens. Sua presença, por vezes, é esmagadora: as cenas fora do ambiente formal do tribunal se
tornam quase constrangedoras ao expectador, que percebe a inibição dos personagens frente à presença
da câmera. A filha da defensora Maria Ignez mal responde à mãe, que vai pegá-la na escola e pergunta
como foi o dia. Nas cenas das refeições em família, apenas os personagens da defensora e do juiz falam,
dando a impressão que tentam ‘quebrar o gelo’. Carlos Eduardo olha para a câmera, com um olhar
cabisbaixo, enquanto ouve sua sentença de condenação.
Nas cenas de audiência, podemos refletir também sobre até que ponto a presença da câmera
interferiu subjetivamente nas atitudes dos funcionários no que tange à pompa de suas falas e gestos. Que
impressão estes agentes gostariam de passar ao expectador que assistisse ao filme? Sua atuação é uma
exacerbação ou suavização de seu comportamento cotidiano? Os acusados se portam da mesma maneira
que o fariam sem a câmera?
Assim, é importante ressaltar que o distanciamento da diretora não implica na ausência de uma
perspectiva, ou de uma retratação direta de qualquer concepção de ‘realidade’. O filme dá uma opinião
sobre o mundo, trazendo a ideia de verdade enquanto uma versão do mundo histórico.
A partir das imagens escolhidas pela diretora, formamos nossa opinião a respeito daquele mundo
jurídico e das personagens. Trata-se de um documentário distante, porém altamente crítico.
Nesse sentido, a juíza Fátima Maria Clemente, no decorrer das audiências, esbanja autoridade.
Fora delas, é mostrada apenas em dois momentos: o momento de mudança para o prédio dos
desembargadores, em razão de sua promoção; e a cerimônia de posse como desembargadora, em toda sua
pompa. Ainda que não haja uma narração, percebe-se uma certa reprovação sutil por parte da diretora em
relação à personagem, em sua vaidade (durante a cerimônia) e futilidade (na preocupação com a toga de
juíza).
Já o juiz Geraldo Prado é retratado fora da sala de audiências de outra forma: a diretora
apresenta-o como uma figura um tanto mais progressista, que compra jornais sobre o “imperialismo
americano de Bush”. Na sala de aula, seu discurso sobre a busca pela verdade real é instigante. Na
audiência, sua atitude aparenta ser um pouco mais aberta.
A defensora pública Maria Ignez também recebe mais espaço. A cineasta filma seus comentários
com a família, criticando promotores e juízes. No fundo, percebemos que a diretora concorda com a fala
da defensora.
Ao mesmo tempo, boa parte das cenas do filme ocorreriam independente da presença da câmera:
o discurso “Basta” da posse da desembargadora Fátima Bernardes, por exemplo, é altamente expressivo
da realidade dos tribunais, de modo que a presença da câmera impactou menos nessa cena que em outras.
A abordagem observativa da cineasta esconde suas próprias impressões, que o expectador pode
facilmente auferir como suas próprias. Aliados aos elementos já existentes na perspectiva do expectador
(seus conceitos e preconceitos), Justiça leva-nos a uma impressão da realidade sobre o dia-a-dia do
Tribunal. Ainda nas palavras da diretora, o filme é uma “busca pelo essencial, pelo que define a
sociedade e pelo que define uma realidade”[272].
DIREITO E VERDADE
A decisão jurídica funda-se em uma impressão de uma realidade histórica, da busca daquilo que a
doutrina dogmática se refere como “verdade real”. Algo tremendamente semelhante com a busca do
documentário clássico pela representação fidedigna da realidade.
O personagem do juiz Geraldo Prado fala sobre a busca da verdade em sala de aula:
O pouco-caso com a versão do réu é tanta que, num primeiro momento, o juiz sequer presta
atenção em sua história; e quando percebe enfim a existência da cadeira de rodas, não considera o
argumento forte o suficiente para conceder a liberdade provisória ao acusado. Sob a perspectiva do réu,
a cena é humilhante.
Este Estado-Juiz, infectado pela rotina, mal percebe os abusos que comete, não apenas ao
desconsiderar as versões dos réus, mas no que tange à também desconsideração da violência física que
perpassa o interior do próprio Poder Judiciário.
Na cena transcrita, o réu cadeirante narra que foi agredido na delegacia pelos policiais, e o juiz
não esboça reação. Não determina a abertura de investigação, não pergunta nomes de policiais, não move
os olhos dos documentos à sua frente. Ao contrário, interrompe o depoimento para perguntar-lhe “você
trabalha”?
Em outra cena, a juíza Fátima Clemente entrevista um homem acusado de furto de um celular com
um grande curativo recente na cabeça. O réu afirma:
“Em todos os meus processos eu sempre fui réu confesso, mas nesse aí eu
fui... eu tive que mentir na delegacia porque eu apanhei muito dos polícias e
tomei muito choque, entendeu? Então eu tive que... ninguém é de ferro. Eu
sou só de carne e osso, então eu sinto dor. Então, tive que...Apanhei muito
dos polícias pra ser réu confesso”.
Novamente, a juíza nada pergunta a respeito da violência, nem nada manda investigar. O
Judiciário fecha os olhos a esses relatos de violência por parte do próprio Estado, ignora-os como meros
mal-entendidos, em outra forma de desprezo desinteressado pelas palavras dos réus. Essa violência,
assim, se torna um instrumento de criação da verdade.
Aqui, abrimos um parêntesis. Em O Caso dos Irmãos Naves (1967), o diretor Luiz Sérgio Person
abordou a temática da tortura de presos durante a época da ditadura de Getúlio Vargas, para na verdade
denunciar a tortura que ocorria durante a ditadura militar, contemporânea ao filme. Na película, levados
pela tortura e pelas ameaças do delegado, os irmãos Naves confessam o assassinato de um homem que
aparece vivo vinte anos depois.
A tortura representa a confusão entre a violência e o poder, uma violência que extrapola os limites
legais do ordenamento jurídico. Através dela, a relação de poder por parte do Estado, que
necessariamente inclui uma ilusão de liberdade do sujeito, torna-se uma simples relação de força e, por
isso, perde a legitimidade por escancarar-se como injustiça. Ou seja, o Estado mina a sua própria
dominação ao agir em desconformidade com o ordenamento jurídico, desconfirmando-o.
Há que se apontar, contudo, que a tortura não se dá apenas de forma ativa, com procedimentos de
espancamento direto – aos quais, aliás, o filme também faz referência, como vimos. Há uma espécie de
tortura passiva, derivada da degradação natural dos homens largados ao esquecimento em um espaço que
comporta o dobro (ou o triplo, ou o quádruplo) do número razoável.
As cenas da carceragem da Delegacia de Polícia do Polinter mostram a superlotação do sistema
carcerário: em celas superlotadas, os encarcerados mal conseguem se movimentar. Há braços e pernas
saindo pelas grades, passando a sensação de claustrofobia ao expectador. A comida é passada aos presos
em um pequeno espaço, e para dormir é necessário um revezamento. Um homem implora por ajuda.
Esse tipo de tortura se dá de maneira mais sutil, menos direta, e por isso mesmo mais difícil de
ser apontada e combatida. O despejo daqueles considerados inúteis socialmente em celas superlotadas é
de uma crueldade fria e desinteressada, configurando a institucionalização da tortura de forma
mascarada. Diferencia-se da tortura direta institucionalizada, típica dos regimes totalitários. Em tempos
de democracia, a principal tortura é a do esquecimento.
Essa tortura passiva também interfere na construção da realidade. Na cena da leitura da sentença
de condenação de Carlos Eduardo, a funcionária lhe pergunta se gostaria de recorrer, e ele responde que
não, porque prefere ser transferido o mais rápido possível a continuar na carceragem da delegacia de
Polinter.
Esta aniquilação do discurso do réu – seja pelo meio mais sutil do desinteresse, seja por meio
escancarado da tortura – se dá por aquilo que Mara Regina de Oliveira se refere como a ‘aniquilação do
sujeito’: uma comunicação abusiva que elimina a complementaridade e a seletividade da ação dos
agentes, aniquilados em termos interativos. Ou seja: não há margem para o sujeito exercer sua liberdade
discursiva, o que torna patente a percepção de injustiça.
O desinteresse dos funcionários em relação aos réus perpassa uma atitude de distanciamento, uma
capacidade específica de tornar o outro um estranho que foi descrita pelo psicanalista Jurandir Freire
Costa como o “alheamento em relação ao outro”[276]. Ao contrário do ódio e da rivalidade explícita, o
alheamento consiste em uma atitude na qual a hostilidade é substituída pela desqualificação do sujeito
como ser moral. Isso significa não identificar o próximo como alguém que deve ser respeitado em sua
integridade física e moral, ou seja, uma indiferença que anula quase totalmente o outro em sua
humanidade. Utilizando-nos do vocabulário de Hannah Arendt, este alheamento é uma das formas pela
qual se manifesta a banalidade do mal[277].
Ao ver de Jurandir Costa, a forma de vida das elites no Brasil vem progressivamente apoiando-se
nesse modelo de subjetivação. Para esses indivíduos, os pobres e miseráveis são cada vez menos
percebidos como pessoas morais, sem que essa atitude intencional seja formada por interesses utilitários
ou cálculos racionais de opressão, como é o caso da violência diretamente repressiva e discriminatória.
Pobres e miseráveis são considerados, nesse sentido, uma espécie de resíduo social inabsorvível[278],
com o qual se deve aprender a conviver à condição de puni-los e controla-los em caso de
insubordinação.
O documentário expressa este tipo de atitude em relação aos réus: o distanciamento está
esmagadoramente presente. O juiz da primeira cena, transcrita acima, é um bom exemplo: o olhar para o
réu (quando ocorre) é hierárquico, de cima para baixo. A injustiça patente do caso não o abala porque
não há uma identificação com o réu enquanto ser humano. Ocorreu um processo de desumanização do
acusado.
A própria disposição física da sala e as vestes dos envolvidos demonstram esse tipo de
distanciamento. Cada indivíduo possui uma hierarquia na audiência, com figurino próprio: a toga
pomposa do magistrado, as vestes formais da defensoria e da promotoria, e os uniformes em frangalhos
dos prisioneiros. A disposição física da sala complementa esta teatralidade: o juiz na mesa mais alta, ao
centro da sala; o promotor à sua direita, o escrevente à sua esquerda (como que representando seus
‘assistentes’), em uma mesa um pouco abaixo; a defensoria na mesa cumprida bem mais baixa, e o réu à
sua frente. O clima é de total deferência ao Estado-Juiz que, quando individualizado, afetou-se pelo
esplendor de sua beca. Os réus estão, em sua maioria, algemados, e em todo momento devem manter as
mãos sobre as mesas, como se a qualquer momento pudessem tomar qualquer atitude violenta que deve
ser contida.
Os papéis do teatro daquelas audiências não se comunicam, e o acusado é sempre visto como ser
inútil à sociedade, que pode facilmente ser posto de lado através da prisão, em condições que fazem jus à
ideia de descarte. Sem uma identificação enquanto seres humanos iguais, pouco importa o que os
encarcerados sofrerão em um cárcere superlotado.
É importante lembrar que nem de longe esse tipo de indiferença opressiva se dá apenas pelos
juízes dos casos mostrados no documentário, embora eles assinem as decisões. Aliás, o filme foge a
qualquer estrutura maniqueísta de bom/mau: não há a figura de um juiz ‘bom’ ou de um réu ‘mau’, ou
vice-versa; e tampouco é o caso de colocar a ‘culpa’ em qualquer dos personagens. A diretora se
empenhou na captação de uma realidade do direito muito mais complexa, envolta em um contexto social e
histórico.
Há um alheamento geral. Primeiramente, por parte de todo o sistema judiciário, como exemplifica
o discurso em homenagem à magistrada Fátima Clemente na ocasião de sua promoção ao cargo de
desembargadora:
Percebe-se que o discurso divide a sociedade em duas categorias: a dos criminosos, e a daqueles
que choram os mortos que o crime criou, sendo que nesta última se enquadrariam os desembargadores.
É que o alheamento em relação ao miserável leva a uma despreocupação com políticas coletivas,
ainda segundo Freire Costa. As elites teriam perdido o sentido da história e do bem comum, e por isso
deixaram-se absorver quase exclusivamente por seus problemas privados, voltando as costas aos
coletivos[279]. O discurso acima deixa claro a confusão entre os problemas individuais daqueles
desembargadores (que integram a burguesia a que se referiu Costa) e os sociais.
O alheamento, contudo, não só provém dos juízes: promotores, advogados, escreventes,
carcereiros, enfim, todos os envolvidos no sistema padecem da mesma completa apatia em relação à
violência institucionalizada para com os réus, já que em posição de desumanidade. E, no mesmo sentido,
a população em geral, apesar de ciente desse tipo de violência por parte do Estado, ou reage com total
desinteresse, ou a considera legítima.
Todo esse processo de exclusão através do alheamento, contudo, gera uma reação igual e
contrária[280]. Estes desumanizados aprenderam bem a lição, e passaram a negar seu pertencimento a um
povo, classe ou nação, o que leva ao crescimento do banditismo urbano. A massa desfavorecida entendeu
que seu corpo é considerado violável pela violência Estatal e que sua liberdade é facilmente podada:
percebeu sua desumanização e a incorporou.
No mesmo sentido, em uma perspectiva da ação psicológica da ordem, Elias Canetti referiu-se ao
que chamou de ‘aguilhão’ como uma espécie de ‘marca de rancor’[281]: guardamos a violência da ordem
na alma, cravada em nossa psique. Para nos livrarmos deste aguilhão, repassamos a ordem o mais rápido
possível, de forma igualmente violenta. Assim, o dominado de hoje torna-se o dominador de amanhã.
Vários aguilhões podem ser liberados através do que Mara Regina de Oliveira se refere como
‘massa de inversão’, ou seja, uma formação de vários indivíduos que, em conjunto, pretendem se libertar
da submissão acumulada, partindo para a revanche. “O rei que mandava cortar cabeças deve ser
decapitado também”[282].
Justiça mostra esse personagem do bandido ressentido ao retratar o processo institucionalizado
de ressentimento. Em outras palavras, o indivíduo considerado bandido, e, por isso, desumanizado e
retirado da esfera de cidadania, incorporou estes rótulos e ressentiu-se. A violência ressentida deságua
no crescimento do poder informal, retratado no filme na cena do discurso do Comando Vermelho.
A cena é da carceragem superlotada, com braços e pés de detentos saindo por entre as grades,
tamanho o aperto. Em uníssimo, os presos discorrem:
“Na mesma, só responsa. Lembrando os amigos que o mal jamais vencerá o bem,
que a família unida jamais será vencida. 100% união do bem. Paz, justiça,
liberdade. Comando Vermelho. Rua já. Fé em Deus e nas crianças, que a pureza
delas ilumine nosso caminho de vida. Hoje, amanhã e sempre. Liberdade para
todos nós no mais RL.”
O discurso do Comando Vermelho é justiceiro e se utiliza de diversos valores de legitimação:
bem, família, paz, justiça, liberdade, Deus. Contempla aqueles que não mais se encontram no espectro
de legitimação do Estado, concorrendo com ele em termos de metacomplementaridade. Este poder
informal nasce e cresce no seio do poder estatal, em razão da exclusão e do ressentimento resultante dela.
CONTROLE E LEGITIMIDADE
A noção de Estado de Direito se ampara através da construção dogmática da ilusão da
neutralidade e da impessoalidade jurídica: o Direito é defendido como acima dos estratos e hierarquias
sociais, por ser aplicado de forma uniforme e de encontro ao interesse de todos.
Contudo, esta construção ideal do Estado de Direito – que a análise crítica relaciona com as
práticas de uma sociedade liberal[283] – é fictícia. Desigualdades não são eliminadas por um
compromisso de igualdade formal perante a lei ou mesmo pelos instrumentos da democracia política. A
elaboração das leis não é um processo genuinamente neutro, já que envolve a incorporação de valores. O
controle do Poder Judiciário não pode efetivamente ser isento de toda e qualquer pessoalidade, já que
inexiste um método totalmente imparcial de interpretação das normas jurídicas.
O Estado, assim, sempre se encontra no meio de um antagonismo gerado por interesses privados e
se transforma no instrumento de uma ou outra facção. A fim de reforçar sua legitimidade, o discurso
dogmático simula o consenso ao redor dos valores que assume, muito embora estes não estejam
inseridos, de fato, em um contexto pacífico.
Se essa realidade for escancarada, porém, este mesmo Estado de Direito perderia a justificativa
de sua suposta natureza ética que o legitima. Assim, o Direito deve mascarar a base violenta de sua
origem, de modo a propiciar um ambiente no qual o dominado sinta-se livre e que obedeça
espontaneamente, além de neutralizar as possíveis rebeliões de forma hábil.
O documentário, ao mesmo tempo que apresenta ao expectador este Direito que opta por uma
concepção muito específica (e não impessoal) de Justiça, mostra também uma enorme dificuldade – e
mesmo um desinteresse – do Estado de Direito brasileiro em legitimar-se.
Muito embora a ciência dogmática sustente um ideal de neutralidade, percebemos que o discurso
adotado pelos magistrados no documentário escapa à impessoalidade. Durante a posse da
Desembargadora Fátima Clemente, fica clara a já mencionada divisão social entre criminosos, os quais
devem ser ‘parados’, e o restante da população que sofre em suas mãos. Fica bastante clara em qual
posição desta sociedade os desembargadores se incluem, e o fato de assumirem a missão de combater o
crime através do encarceramento delimita uma assunção de valores específicos que se dá por todo o
filme.
Além disso, na condenação pelo crime de receptação de Carlos Eduardo, sua personalidade foi
considerada “voltada ao crime”, sua conduta “antissocial e perigosa ao convívio comunitário”. Ao ouvir
isso, o expectador se recorda da audiência do réu com a juíza Fátima, na qual ele menciona que possui
uma mulher e dois filhos, ao que a juíza lembra, em um tom julgador e autoritário, que ele não se
recordara da família na ocasião do crime (quando ele foi preso com duas garotas). Essas considerações
já apontam para uma tomada de posição moral por parte da juíza, que dá por estabelecido que a
sociedade toda concorda com sua perspectiva.
Nesse sentido, como apontou Foucault, o julgamento se dá não apenas para fornecer uma punição
em relação ao ato criminoso em si, mas à própria pessoa do delinquente. A estratégia de poder no direito
penal moderno não é simplesmente de apagar o crime, mas transformar moralmente o culpado para
enquadrar-se nos padrões sociais, tornando-se obediente[284].
Pois bem, Justiça demonstra este Estado que deveria legitimar seus valores (que coincidem com
perspectivas liberais) tem se mostrado pouco preocupado com esta necessidade. As estratégias de
coordenação de poder utilizadas pelo Estado, que servem à antecipação e neutralização de rebeliões, se
mostram um tanto suicidas.
A tortura, conforme já foi mencionado, transforma a relação de poder em pura violência,
eliminando qualquer seletividade por parte do agente, que acaba sendo obrigado a fazer algo. Ela torna
patente o sentimento de injustiça[285]. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., a justiça confere sentido ao
direito. Sem ela, não há sentido a obediência, de modo que um direito considerado injusto perde
legitimidade.
O filme apresenta duas formas de tortura, conforme vimos: a do espancamento direto, conforme os
relatos dos presos; e a tortura relacionada às condições sub-humanas do cárcere. Ambas estão instaladas
no cerne do Estado de Direito, que dá de ombros a esse tipo de violência institucionalizada. Ao fazê-lo,
contudo, o Estado desconfirma sua própria autoridade, pois comete uma violência que vai além do
permitido pelo ordenamento jurídico – processo também retratado em Tropa de Elite (2007), de José
Padilha.
Fora a escancarada substituição da relação de poder pela pura violência, que é o caso da tortura,
o filme mostra uma profunda apatia por parte do Estado de Direito em relação aos réus. Ao
desconsiderar seu discurso, incorre em uma comunicação abusiva que aniquila os sujeitos, o que também
é uma patente forma de injustiça.
Este tipo de desconsideração do sujeito, resultado do já mencionado processo de alheamento em
relação ao outro, leva a um quadro de exclusão social. A humilhação dela resultante gera um processo de
formação de poderes informais que colocam em cheque a legitimidade de um Estado de Direito que não
inclui uma camada social.
Assim, a violência urbana cresce, aumentando o abismo social entre os funcionários da Justiça e
os réus e a desumanização dos últimos. A tendência no tratamento, portanto, será o recrudescimento do
tratamento ao problema da delinquência, aumentando o número de presos.
A prisão, embora criada pelo próprio Estado e inserida no seio da política criminal, é uma zona
sem lícito ou ilícito, no qual não se insere o poderio estatal: este já o aniquilou, ao transformar as
relações de poder com aqueles indivíduos em pura força. Neste espaço, a legitimidade de outros poderes
ganha força, poderes estes que souberam trabalhar o sentimento de humilhação e de exclusão de maneira
muito mais hábil que o Poder Judiciário.
A resposta do Estado ao crescimento desse tipo de poder, contudo, ainda é o encarceramento,
atrelado à indiferença e à tortura, sem perceber o uso das mesmas práticas exclusivas que alimentaram o
problema. O Estado de Direito dá um tiro no pé sem percebê-lo, gerando a própria crise de legitimidade.
A construção da legitimidade do Direito, ademais, dá-se também na construção da realidade
histórica dos fatos a serem subsumidos à norma, conforme vimos. Como o Direito não afeta diretamente o
passado, mas a acepção construída dele, há que se chegar a um resultado no mínimo plausível, capaz de
dar sentido à decisão e, portanto, legitimá-la.
Contudo, mesmo o aclamado (e ilusório) princípio dogmático da busca da verdade real parece ser
deixado de lado em meio à apatia do tribunal. As decisões mostradas no documentário foram tomadas
com pouca ou nenhuma base fática. Várias vezes, a justificativa fática da condenação são declarações
proferidas em situações de tortura – e, aparentemente, ninguém se importa.
Ou seja, o Estado mostrado em Justiça nem mesmo procura uma reconstrução plausível dos fatos,
abandonando determinações da própria dogmática de busca da verdade real e do princípio in dubio pró
réu do direito penal. Nesse caminho, a Justiça vai sendo desacreditada: perdemos a confiança no Estado
de Direito e em suas decisões enquanto justas. Esse tipo de desilusão é causada pelo próprio poder
público que, se perceber, mina sua própria legitimidade. Nesse contexto, as reações dos juízes às cenas
do filme são interessantes. Sua perspectiva é ou de admitir relutantemente os problemas, mas já com uma
promessa de mudança, ou retirar-se da responsabilidade.
Em entrevista[286], o juiz Geraldo Prado afirmou que o Judiciário tem, de fato, um problema no
que tange às construções das provas e da verdade real. No entanto, ele coloca a ‘culpa’ no fato de o
processo ser escrito: segundo ele, se o juiz tivesse mais contato com os envolvidos e menos com papéis,
as decisões seriam mais justas. Ele menciona também os conceitos pré-concebidos pelos juízes, citando
expressamente o racismo e o preconceito econômico. Ele admite que existem, mas acrescenta que os
magistrados estão cada vez mais cientes do problema, e que têm tentado melhorar. Acrescenta, em outro
momento, que a função do juiz é ‘ser defensor dos direitos humanos’.
Também em entrevista, a juíza Fátima Clemente afirmou que odo Departamento Estadual do
Sistema Penitenciário é “o único responsável pelos presos, os juízes não tem a menor interferência no
sistema penitenciário (...)”[287]. Afirmou também que é uma grande dificuldade dos magistrados lidar
com a falta de recursos humanos e técnicos da polícia, o que dificulta a aproximação à verdade, além da
corrupção policial.
Assim, o discurso dos funcionários para com as ás árduas críticas que o documentário levanta é o
da confirmação do ordenamento enquanto justo – o problema é ou a forma como os juízes, pessoas
físicas, conduzem os processos, ou os outros poderes, ou mesmo a sociedade em geral. Seus comentários
demonstram a cegueira deste Estado de Direito, que estreita cada vez mais seu ciclo de influência.
REFLEXÕES FINAIS
Justiça retrata um Direito como simples reafirmação de uma ordem social injusta, e não como
instrumento justiceiro. Através dele, afirmam-se valores de uma elite que se fechou nela mesma, dando as
costas aos problemas coletivos da sociedade, e que é incapaz de se identificar com o miserável enquanto
ser humano. Aos delinquentes, pouco importa o que sofrerão, já que foram excluídos do espectro de
legitimidade do Estado. Há um profundo descaso com as práticas de espancamento por parte da polícia e
com a situação deplorável dos presídios.
Esse tipo de exclusão, contudo, tem uma reação igualmente violenta por parte destes
desumanizados, que acabam criando suas próprias organizações nas quais podem ser incluídos. Nesse
ínterim, desenvolvem-se poderes informais desconfirmadores da ordem jurídica, e que com ela
competem em legitimidade.
O Poder Judiciário, contudo, segue cego a essas conclusões, acreditando que a solução para a
delinquência é o descarte dos indivíduos em celas superlotadas, nas quais são esquecidos, alimentando
ainda mais as mesmas práticas que procura sufocar.
Mais ainda, parece ter havido um abandono da própria necessidade de justificativa fática das
decisões. A construção de uma realidade histórica, ainda que inatingível em sua plenitude, é parte
importante da legitimidade de uma decisão pelo fato de nela incluir-se a noção de justiça do direito
aplicado. O que vemos no documentário, porém, é um descaso mesmo com uma construção plausível dos
fatos, que justificaria uma condenação.
Nesse contexto, o documentário não apresenta uma possível saída, ou esperança de mudança. A
perspectiva é de profundo pessimismo em relação à autoridade do Direito, e de possível agravamento da
situação. Ainda, o documentário sugere, no nascimento das filhas de Carlos Eduardo, que a situação
permanecerá a mesma.
Sem expectativa de mudança, a saída que as mulheres encontram, enquanto os homens são
encarcerados aos borbotões, é a esperança religiosa. A cena do culto em que participa a mãe de Carlos
Eduardo é de uma devoção fervorosa, em uma total entrega. Afinal, se a Justiça não vem pelo Estado de
Direito, a esperança é que venha de Deus.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANETTI, Elias. Massa e Poder. Companhia das Letras: São Paulo, 1995
COSTA. Jurandir Freire. A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência pública, in
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FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes. 1997.
NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005.
OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder, obediência
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RAMOS, Maria Augusta. Justiça, 2004. Disponível no site Youtube em https://www.youtube.com/watch?
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TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Documentário Moderno In MASCARELLO, Fernando (org.) “História
do Cinema Mundial”. Campinas, SP: Papirus, 2006.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: Editora Universidade de Brasília. Vol. 1 1991.
A INTERFACE ENTRE “JUSTIÇA”, “LEI” E “DIREITO”: UMA ANÁLISE DO FILME
JUÍZO DE MARIA AUGUSTA RAMOS
Danjone Regina
Meira[*]
INTRODUÇÃO
C onsidera-se a importância do diálogo entre filosofia do direito e cinema, como caminho hermenêutico
interdisciplinar para a compreensão de termos fundamentais na dinâmica do “direito” e para uma
leitura da aplicação do texto constitucional pelo “Estado-juiz” na sociedade democrática brasileira. Para
tanto, elege-se o filme “Juízo” de Maria Augusta Ramos como obra relevante para o desenvolvimento de
uma leitura dialogal das relações de poder, dentro da perspectiva de cumprimento/descumprimento da
“lei”.
A forma estética do filme está relacionada à um conteúdo político e jurídico, sob a perspectiva da
legitimidade de instituições, órgãos de justiça. A diretora Maria Augusta parece demonstrar interesse em
evidenciar a ineficácia da concretização das normas constitucionais. Verifica-se ao longo do presente
trabalho que no filme há a presença de um discurso de violência. Vale ressaltar, que a forma estética do
filme é de documentário. Considera-se que os “atores” sociais demonstrados no filme, tais como a
“juíza”, “defensores públicos”, “agentes” como personagens reais, no entanto, o trabalho se direcionará a
eles exatamente como personagens de uma análise da realidade brasileira apresentada na forma de
documentário pela diretora Maria Ramos.
É importante destacar que o filme “Juízo” de 2007, sequência de “Justiça”, compõe uma trilogia
de documentários da diretora. A trilogia fecha com o documentário sobre as “Unidades Policiais
Pacificadoras instaladas” - UPPS nas favelas do Rio de Janeiro. Os personagens no filme “Juízo” são
apresentados por uma câmera que destaca o caráter de documentário. O contexto de cena é definido, mas
a imagem é dinâmica na apreensão de detalhes do cenário. A partir do olhar de Maria, as relações de
poder entre os sujeitos e as autoridades são evidenciadas com riqueza de detalhes. Uma linguagem de
"comando" aos jovens. Os cenários por onde a câmera passa destaca, sobretudo, o esforço de mostrar a
disparidade entre realidade e direito. Acerca do espaço de filmagem, ressalta-se o momento das
audiências realizadas na II Vara de Justiça do Rio de Janeiro. Há também o cenário de visitas ao Instituto
Padre Severino por parte dos familiares dos menores infratores. Bem, como o Instituto Padre Severino
representa o local de cumprimento de medidas socioeducativas retratadas no documentário. O filme
também mostra o cenário de favela, logo nas últimas cenas, apresentando a realidade dos menores
infratores em destaque no documentário.
Se verificará, adiante, que o filme retrata como temática fundamental a interface entre “justiça”,
“lei” e “direito” dando ênfase para a vigência e eficácia ou ineficácia da norma constitucional. Com base
nisso, pode-se refletir: até que ponto num “Estado democrático de direito” a hermenêutica jurídica é
considerada sob o viés da práxis social e jurídica? No caso do cenário brasileiro, que atribui a si o título
de “Estado democrático de direito”, onde a Constituição Federal de 1988 é a Carta Magna que mais
ampliou os direitos fundamentais do ser humano, destacando princípios constitucionais em toda a sua
conjuntura, como o devido processo legal, o princípio de presunção de inocência, de individualização da
pena, havendo também um avanço preponderante dos direitos humanos, se irá analisar a partir do filme a
temática dos menores infratores, seus julgamentos e o processo de cumprimento de medidas
socioeducativas, seguindo o itinerário proposto no filme.
É importante ressaltar que o filme “Juízo” contribui para instaurar a questão do pensamento: como
os julgamentos de menores infratores se apropriam dos conceitos de “justiça”, “lei” e “direito”? A partir
dessa pergunta fundamental, verifica-se com base no próprio título do filme, que há um “juízo” sobre os
menores infratores. Um “juízo” que é evocado como “juízo final” que sentencia suas condutas a serem
moldadas e adequadas às normas do texto constitucional e às condutas socialmente válidas, caso
contrário, tais menores infratores estarão condenados à perpétua exclusão social ou até ao pleno
anonimato, como figuras invisíveis e marginalizadas em uma sociedade democrática de direito. Outra
questão importante para a análise do filme é: de que forma é aplicado esse “juízo” sobre os menores
infratores?
Verifica-se que esse “juízo” é aplicado mediante um discurso abusivo, uma violência simbólica
que já se mostra na relação entre poder e comunicação nos julgamentos. A linguagem jurídica do
“Estado-juiz”[288], incorporada na pessoa da magistrada, expressa a força da lei e o poder jurídico-
político do Estado. Verificam-se as seguintes expressões ao longo do filme, especialmente, no momento
dos julgamentos: “sim, senhora!”, denotando-se o discurso de submissão por parte daquele que está
sendo julgado na audiência. Também pode-se constatar uma violência simbólica, mediante, um discurso
de ameaça por parte do "Estado-juiz" e dos agentes do espaço de internação.
É exatamente isso que representa a personagem "juíza" enquanto aquela que exerce o poder
punitivo. A partir de sua sentença, os infratores são agarrados, onde quer que se encontrem. Isso também
ressalta a força da lei. Outro aspecto importante a se ressaltar é a prisão enquanto contato definitivo,
segundo Canetti. Destacam-se algumas cenas no filme de contato definitivo. A personagem "juíza" dispõe
de autoridade legítima para prender o menor infrator, no caso, para que este cumpra a medida
socioeducativa. Outro aspecto, os personagens "agentes" no Instituto exercem grande coação, força e
poder do Estado, a fim de dominar a situação do menor infrator, inibindo sua resistência. O menor
infrator se demonstra claramente no filme, como presa capturada pelo "Estado-juiz".
Nesse sentido, é importante ressaltar os “aspectos do poder” a partir da personagem “juíza” e dos
personagens “menores infratores” na audiência de julgamento. Verifica-se as posições do ser humano.
Cada posição, por meio da linguagem corporal, expressa algo específico dentro da ótica das relações de
poder. Quando se observa a cena em que a personagem “juíza” adentra na sala de audiência, se verifica a
constituição da hierarquia do poder jurídico-político, expressas nas posições dos atores sociais. Todos
os presentes na sala de audiência fazem reverência à personagem “juíza”, como representação do
símbolo de poder. A personagem “juíza” representa o símbolo de poder na forma do “Estado-juiz”.
Destaca o prestígio simbólico do poder. Desse modo, as posições dos homens e as reverências enfatizam,
segundo Canetti, a configuração muda que o poder representa.
O menor infrator passa por etapas de incorporação. O caminho que o menor infrator percorre
desde a sua “captura”, até a pronunciação da sentença, e o processo de cumprimento da medida
socioeducativa, representa todo o itinerário que a “presa” percorre pelo corpo. Nesse processo, o menor
infrator é consumido lentamente, todas as suas peculiaridades que relembram a conduta típica devem ser
retiradas. Nesse caso, conforme atesta Canetti, “o que sobra é lixo e fedor”[302]. O espaço de internação
onde o menor infrator se encontra é um lugar sem esperança.
Nessa perspectiva, a sentença pronunciada pela “juíza” representa o ato do “Estado-juiz” agarrar
a presa, levando da mão para a boca. Com base nessa metáfora de Canetti, a prisão seria a boca e se
destacaria como prestígio secreto do poder. A boca constitui o modelo de todas as prisões. Tudo o que
cai nela está sem esperança. Num estado de exclusão social. No momento em que os menores infratores
percorrem os corredores adentrando no espaço de internação, isso representa a “estreita garganta”, a
partir da ótica de Canetti, onde aos poucos os menores infratores vão sendo consumidos. A prisão é,
desse modo, o poder em concentração máxima. O cumprimento da medida socioeducativa pelo menor
infrator, a privação de sua liberdade, causa neste adolescente, sob a ótica de Canetti, um aguilhão. O
menor infrator fica marcado para sempre por estar cumprindo sua medida socioeducativa, por estar
cumprindo a ordem. O aguilhão simboliza as marcas do poder punitivo do “Estado-juiz”.
Nesse sentido, o simbolismo da prisão é constituído de elementos do poder. A força que o
“Estado-juiz” emprega sob o menor infrator no momento de sua “captura” denota que o poder punitivo do
Estado está próximo e presente. A força exerce mais coerção do que o poder, visto que é imediata. Dessa
forma, a força representa o poder em seus estágios mais profundos. Ao longo do tempo, a força
transforma-se em poder. O poder é constituído por universalidade e dessa maneira é mais amplo. Canetti
aborda a metáfora do “gato” e “rato” para evidenciar a diferença fundamental entre força e poder.
Suponha-se que o “rato” represente o menor infrator, o menor infrator uma vez capturado encontra-se
totalmente à mercê da força do “Estado-juiz”. O “Estado-juiz” o agarrou e o mantém cativo.
Quando o menor infrator cumpre sua medida socioeducativa sendo liberado do espaço de
internação, denota o caráter da dinâmica da força do “Estado-juiz”. O Estado solta novamente o menor
infrator, permite que ele goze de um pouco de liberdade, porém, dispõe de poder para agarrá-lo de volta.
O menor infrator ainda se encontra dentro da esfera de poder do “Estado-juiz”, nesse caso. O Estado
representando o “gato”, nesse sentido, permite que o menor infrator corra (após o cumprimento de sua
medida socioeducativa), mas, o menor infrator ainda está sob a vigilância do Estado, se, porventura,
perde-se o controle sob a sua liberdade, o menor infrator não estará mais a mercê da força do Estado.
De acordo com Canetti,
O espaço sobre o qual o gato projeta sua sombra; os instantes de esperança que permite ao rato,
mas tendo-o sob sua estrita vigilância, sem perder o interesse nele e em sua destruição - tudo isso
junto (o espaço, a esperança, a vigilância e o interesse na destruição) poder-se-ia designar como
o corpo propriamente dito do poder, ou, simplesmente, como o poder em si.[303]
O filme retrata que alguns menores infratores fugiram do espaço de internação. Nesse sentido, a
fuga é a desconfirmação da autoridade jurídica. Desconfirmação também do poder do “Estado-juiz”. No
contexto do filme, a fuga se realizou em face do abuso de poder normativo, o que provocou reações
subversivas dos sujeitos. No contexto do jogo jurídico “lícito/ilícito”, a confirmação do poder da
autoridade jurídica representa a licitude, a rejeição da mensagem normativa enfatiza a ilicitude. Isso
ressalta o cometimento meta complementar da norma jurídica. Desse modo, a fuga se demonstra como
confronto entre direito e poder. Representa, sobretudo, a situação-limite dentro do contexto das relações
de poder. Isso caracteriza, segundo Mara de Oliveira, a crise de legitimidade do poder jurídico.
A partir da noção de crise de legitimidade do poder jurídico, reflete-se também sobre a função
simbólica dos textos constitucionais, ou seja, a insuficiente concretização jurídica de diplomas
constitucionais. Com base nisso, a Constituição teria por finalidade, em sua estrutura normativa, o
exercício do controle social, mediante a manutenção da ordem e tranquilidade. Em face do poder da
Constituição há a iminência de um direito de necessidade, consubstanciado na natureza humana. Por isso,
pergunta-se: o direito de necessidade é um direito natural? Se for um direito natural, inerente ao ser
humano, é, portanto, anterior a norma, anterior à escritura da lei. Seria a necessidade, fonte primária do
direito natural? O que seria, então, mais seguido pelo coração humano, seu direito natural ou a norma
positivada? Tais questões dentro da dimensão de "direito", "lei" e "justiça" fazem refletir sobre a
complexidade da vigência e significado da Constituição no contexto da sociedade.
A norma positivada não alcança toda a dimensão do direito, nesse sentido, presencia-se no
ordenamento jurídico o fenômeno jurídico de "lacunas do direito". Diante desse fenômeno, se faz
necessário o preenchimento das lacunas por meio de disposições excepcionais. Seriam, de fato,
disposições excepcionais, ou o preenchimento de lacunas é um exercício constante do "Estado
democrático de direito" em países, como o Brasil? O preenchimento de lacunas ressalta o emprego da
hermenêutica jurídica como dimensão do próprio direito. Não há aplicação do direito sem hermenêutica
jurídica. A hermenêutica é o caminho para que o direito se concretize no cenário brasileiro, na medida
em que não restringe o direito à normatividade do texto constitucional, mas, abrange uma compreensão da
práxis jurídica. Portanto, da hermenêutica jurídica irrompe a práxis jurídica, tão necessária para a
vigência e o significado da norma.
A partir do filme, reflete-se acerca da constatação no cenário político-jurídico de países da
América Latina, tais como o Brasil, um país dito democrático, a presença do estado de exceção.
Conforme Giorgio Agamben, "a teoria do estado de exceção não é de modo algum patrimônio da tradição
antidemocrática".[304] Tal autor constata as raízes do estado de exceção e apresenta, mediante um
método de correlação, as características primordiais desse fenômeno. O estado de exceção representa no
bojo da sociedade brasileira, também, a repressão das desordens. As condutas que não se adequam à lei
são classificadas como manifestações de desordem e, assim, punidas e marginalizadas. Não somente
condutas típicas, antijurídicas, mas condutas que não adequam à totalidade normativa social. Com base
nisso, vemos no contexto brasileiro, condutas atípicas como o funk, o "rolezinho", ainda marginalizadas
por uma classe burguesa dominante.
Todo esse cenário de uma "sociedade democrática emergente" retrata personagens sociais que são
anônimos, pois, vivem à margem da sociedade. Desse modo, pode-se falar numa estrutura binária da
sociedade brasileira, caracterizada pela inclusão e exclusão social, não diretamente relacionada ao
caráter típico ou atípico de condutas do ordenamento jurídico. Ressalta-se, ao se considerar aspectos do
ordenamento jurídico a dinâmica social. Tal relação é extremamente relevante, ao se pretender
compreender o caráter de inclusão/exclusão social e estado de exceção no Brasil.
O cenário político, cultural, social e jurídico apresenta no filme, demonstra as características
fundamentais do estado de exceção. Nesse sentido, vale ressaltar que o estado de exceção demonstra em
tempos de crise política uma restrição aos direitos do cidadão, a partir, de um fundamento na lei. Nesse
contexto, a estrutura da divisão dos poderes apresenta caducidade, onde o poder executivo atribui a si
"plenos poderes" operando a lei em face do direito, abrangendo em sua função muitas características do
poder legislativo. O poder executivo, com base no próprio aparato legal, insere os próprios princípios
democráticos numa caducidade, onde o que mais importa é o exercício do poder para manter determinada
ordem social. As relações de poder político-jurídica medem forças e se rendem em busca da
operacionalização do direito como controle social. É interessante notar a apreensão da noção de "Estado
democrático de direito" por parte da sociedade brasileira. Há o emprego de uma transformação da ordem
da constitucional própria do cenário brasileiro.
Verifica-se, então, a partir do filme “Juízo”, a interface entre princípios democráticos e ordem
constitucional. A partir da irrupção de tensões sociais, o ordenamento jurídico sofre transformações
interpretativas com vistas a aplicação da lei de modo mais eficaz. No entanto, as tensões sociais são
reações à uma normatividade que já se encontra em distanciamento do direito humano. Por haver
constantes alterações substanciais da ordem constitucional, emana o poder dominante com força de lei em
um superestrutura que visa exercer toda a força necessária para a manutenção da ordem.
Segundo Agamben,
o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico. [...] A suspensão
da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo
menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica.[305]
Desse modo, o estado de exceção se constitui como anomia no contexto social e jurídico. A
anomia irrompe a partir da suspensão do direito. Nesse sentido, no estado de exceção ocorre um
distanciamento entre a norma e o direito, também entre a norma e a vida. A ação humana da autoridade
jurídica sem relação com o direito representa uma norma sem relação com a vida. Assim sendo, o filme
representa o estado de exceção presente na realidade brasileira. Vale ressaltar que, diante disso, o
Estado enquanto “máquina estatal” ainda permanece eficaz. Ele continua a exercer o seu poder, quase
sempre sem interrupção.
Verifica-se na obra “Juízo” que o estado de exceção constitui-se de violência e ausência de
direito. Não existe nenhuma relação entre a vida e aplicação da norma. O que provoca tensões sociais e
reações subversivas por parte do sujeito, no caso o menor infrator, em face da autoridade jurídica.
Quando, por exemplo, observou-se a fuga como reação subversiva do sujeito, assim como, uma nova
prática de condutas típicas.
A detenção do menor infrator representa uma repressão por parte do Estado em face da tensão
social causada. Tanto as tensões sociais quanto a repressão punitiva do Estado denotam o caráter de
ineficácia do texto constitucional. Na obra “A constitucionalização simbólica”, o jurista Marcelo Neves,
apresenta uma questão primordial acerca da concretização normativo-jurídica de textos constitucionais, a
saber: a discrepância entre a função hipertroficamente simbólica e a insuficiente concretização jurídica
de diplomas constitucionais. Em suma, o autor dá ênfase à um fenômeno jurídico que ele nomeia
"constitucionalização simbólica", onde se verifica um distanciamento da "letra da lei" em face da
aplicabilidade da norma. Ele refere-se, sobretudo, à ineficácia das normas constitucionais.
Os textos constitucionais apresentam uma função meramente simbólica, onde o que predomina é o
simbolismo do poder da "escritura" da lei, a norma em si positivada, o poder da autoridade da lei, no
caso, o Estado representado, por exemplo, no magistrado, o poder constitucional de forma,
especialmente, simbólica. A Constituição é um símbolo que aponta para algo diferente de si mesma,
aponta para relações de poder político-jurídicas no contexto da sociedade moderna. Desse modo, a
função simbólica dos textos constitucionais refere-se à carência de concretização normativo-jurídica da
Constituição.
O debate sobre constitucionalização simbólica ressalta, em primeiro lugar, o conceito de
"Constituição" e em segundo lugar, a sua função simbólica. Para Neves, a significado de "Constituição" é
pluridimensional, pode-se afirmar também que é polissêmico, dotado de uma dimensão de sentidos e
significados que propicia interpretações diversas. O jurista se apropria do significado de "Constituição"
enquanto acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico, mas principalmente enquanto
mecanismo de autonomia operacional do direito na sociedade moderna.
O significado da Constituição é, sobretudo, uma estratégia das relações de poder político-jurídica
dentro da perspectiva do ordenamento jurídico. O autor verifica casos de constitucionalização simbólica
e o significado de "Constituição" para tal fenômeno. Como em casos de constitucionalização simbólica se
compreende e se aplica a Constituição? Essa é uma das perguntas fundamentais nesse contexto.
O jurista apresenta alguns aspectos da relação entre ineficácia normativo-jurídica e função
político-simbólica da Constituição. A norma positiva do direito ressalta o caráter primordial do texto
constitucional e evidencia a autonomia operacional do sistema jurídico. No entanto, a autonomia
operacional do sistema jurídico tem limites dentro das relações de poder político-jurídica. No contexto
de uma constitucionalização simbólica, a autonomia se restringe à função simbólica da normatividade que
se mostra ineficaz em face da concretização do direito. Isso evidencia a disparidade entre norma e
direito, como uma das características principais da constitucionalização simbólica.
Com base no jurista Marcelo Neves, ressalta-se uma característica predominante no ordenamento
jurídico brasileiro: uma forte contradição entre direito e realidade constitucionais. O Brasil por se tratar
de um país "subdesenvolvimento" apreende a constitucionalização de forma não eficaz, porque não
considera a função social do "direito". Modelos jurídicos não devem ser copiados sem levar em conta a
relação fundamental do direito e realidade.
Há uma ausência de normatividade jurídica do texto constitucional como estrutura democrática.
Nesse sentido, não há um desenvolvimento operante do processo de concretização do direito
constitucional. A própria construção do direito constitucional no cenário brasileiro é insuficiente. No
entanto, conforme verifica Marcelo Neves, o que tem força de lei e eficácia jurídica é a linguagem
constitucional. A linguagem do texto constitucional apresenta a construção de um direito simbólico, uma
legislação simbólica e constituição simbólica. Isso evidencia a importância do papel político-simbólico
da linguagem constitucional como estratégia político-jurídica do sistema jurídico.
Nessa perspectiva, toda a legislação, permeada por uma linguagem constitucional, é uma
legislação simbólica. Pois, por não existir concretização efetiva do direito constitucional, a legislação
manifesta a força do texto constitucional enquanto norma, apenas como lei sem aplicabilidade do
"direito" e da "justiça" de forma igualitária. O aspecto simbólico reside no fato de que por existir um
texto constitucional já se acredita que o direito é garantido, e a partir dessa linguagem constitucional da
lei, o Estado procura convencer os cidadãos de que há o exercício do direito e do bem-estar social,
quando, na verdade, há apenas um texto constitucional carente de eficácia social.
O jurista Marcelo Neves ao dialogar em sua obra com a perspectiva sociológica do direito de
Niklas Luhmann apresenta uma crítica à noção de "direito" unilateral. A função do direito não deve ser
reduzida à garantia ou asseguração das expectativas. O direito é um conceito amplo, não unilateral, ele
tem a dimensão de influenciar em reações e ações jurídicas, contribuindo para a criação de novos
direitos, novas condutas típicas. Isso é a dimensão do caráter pluridimensional do direito.
Em contrapartida, a legislação simbólica como estratégia política e jurídica, de que o direito será
garantido porque há um texto constitucional, exerce a função de produção da aceitação do status quo. Na
legislação simbólica há a prevalência de um significado "político-ideológico" relevante em face do
sentido normativo-jurídico aparente. Desse modo, a legislação simbólica serve-se ao discurso jurídico
do Estado de que os cidadãos estão sendo protegidos e seus direitos assegurados.
Por outro lado, tratando-se da legislação enquanto instrumento do sistema jurídico, vê-se que ela
tem o propósito de exercer o controle social mediante a percepção da lei como instrumento da
manutenção da ordem, que dita normas sociais vigentes. Com base nisso, verifica-se um problema
filosófico no contexto do direito: a questão da vigência da lei como instrumento do poder do Estado e a
questão da ineficácia das normas jurídicas. Ambos os aspectos do poder jurídico-político estão
relacionados, visto que a insuficiência da função social da lei como instrumento consequentemente gera a
ineficácia da norma. Todavia, o texto constitucional exerce outras funções sociais relevantes, embora
apresente ineficácia normativo-jurídica. A aplicabilidade da lei não consegue desenvolver o sentido
jurídico manifesto no texto constitucional.[309]
Conforme Marcelo Neves: "A legislação simbólica[310] [...] serve, primária e hipertroficamente,
a finalidades política de caráter não especificamente normativo jurídico".[311] É, pois, instrumento
ideológico-político. Há um aparente sentido normativo-jurídico, mesmo que, porventura, posteriormente,
esta legislação simbólica alcance força normativa. Diante disso, a partir do filme, reflete-se na
necessidade de criação de pressupostos jurídicos para a eficácia da norma constitucional. A pergunta
relevante, nesse caso é: há alguma preocupação quanto à concretização normativa da legislação?
Se não são criados novos resultados com o propósito de concretização normativa na atividade
legislativa, isso gera um enfraquecimento do poder legislativo, onde se questiona as próprias intenções
do legislador na construção da norma, gera desafios ao exercício do direito pelo poder judiciário e
coloca a lei à serviço do poder executivo, como mera estratégia política. A legislação simbólica se
presta a aparência de tutela jurisdicional, a aparência de solução de conflitos. Dessa maneira, é
necessário que o poder judiciário considere a hermenêutica jurídica coerente com a pragmática jurídica
em face das lacunas da lei.
Entende-se, nessa perspectiva, que a legislação simbólica representa também uma legislação-
álibi[312], segundo Neves. O propósito da legislação simbólica seria também o de fortalecer uma certa
confiança dos cidadãos no governo vigente, e de modo mais amplo uma confiança no Estado.
A legislação-álibi se mostra como um instrumento viável para a manipulação dos cidadãos por
parte do Estado. Desenvolve uma perspectiva ideológica e política do texto constitucional, tratando-o
como texto simbólico. Tudo isso com vistas à provocar uma aparência de bem-estar social e de que os
direitos previstos no texto constitucional estão sendo cumpridos, o que na realidade não ocorre. O
emprego da legislação-álibi se presta tão somente à uma função simbólica.
Partindo dessa reflexão, é importante ressaltar que na visão de Marcelo Neves a
constitucionalização simbólica se apresenta como alopoiese do sistema jurídico. Isso caracteriza um dos
problemas típicos do Estado periférico, como, por exemplo, o Brasil.[313] O autor reconhece no Brasil,
em se tratando da Constituição de 1988, uma função hipertroficamente simbólica. Nesse sentido, o texto
constitucional não se desenvolve enquanto instrumento de orientação e reorientação das expectativas
normativas e, portanto, não funciona como instituição jurídica de legitimação generalizada do Estado.
[314]
O que caracteriza a função hipertroficamente simbólica da Constituição de 1988 é a ausência de
concretização normativo-jurídica do texto constitucional que está diretamente relacionada à sua função
simbólica. Desse, a Constituição é instrumento de poder dos discursos políticos do governo. O texto
constitucional é invocado pelos governantes como álibi, com vistas de imunizar o poder político. A culpa
da não concretização dos direitos é lançada para os outros poderes, imunizando-se o governo
constitucional.
Marcelo Neves confere devida ênfase ao direito como sistema autopoiético[315]. Nessa
perspectiva o sistema jurídico tem como fundamento o código binário “lícito/ilícito”. Há um controle
social desenvolvido a partir deste código de poder. A positividade do direito representa o domínio sob o
código-diferença “lícito/ilícito” pelo sistema jurídico. Isso caracteriza o fechamento operativo do
sistema jurídico. A positividade da norma se autodetermina e exerce o fechamento operacional do
direito. Desse modo, o direito adquire uma perspectiva de “auto-observação” do ambiente. O sistema
jurídico torna-se diferente do seu ambiente.
Em face disso, o autor faz a seguinte afirmação: “o direito constitui [...] um sistema
normativamente fechado, mas cognitivamente aberto”.[316] Nesse sentido, o fechamento normativo do
sistema é condição para a sua abertura, porém o direito é restrito à operacionalização conforme o
próprio código lícito/ilícito. No pensamento de Marcelo Neves, todavia, o que prevalece na maior parte
da sociedade moderna é a determinação alopoiética do direito, onde há uma ausência de autonomia
operacional do direito positivo estatal.
Nas palavras de Marcelo Neves:
Isso significa a sobreposição de outros códigos de comunicação, especialmente do econômico
(ter/não-ter) e do político (poder/não-poder), sobre o código “lícito/ilícito”, em detrimento da
eficiência, funcionalidade e mesmo racionalidade do direito.[317]
Desse modo, na visão da alopoiese do direito, o sistema jurídico é determinado por circunstâncias
do mundo exterior, perdendo sua dinâmica jurídica e sua própria diferença entre sistema e meio
ambiente.
Em face disso, conforme Marcelo Neves:
A alopoiese afeta a auto-referência de base (elementar), a reflexividade e a reflexão como
momentos constitutivos da reprodução operacionalmente fechada do sistema jurídico. Atinge
também a heterorreferência, ou seja, a função e as prestações do direito.[318]
REFLEXÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. Sao Paulo: Boitempo, 2004.
CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Paulo Osório de Castro & Jorge Telles de Menezes,
Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014.
RAMOS, Maria Augusta. Juízo. Direção de Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007. DVD (90min)
colorido.
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder, obediência
e subversão. Rio de Janeiro: Corifeu, 2006.
[*]✽ Mestre e Doutora em Filosofia do Direito, pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, onde leciona a disciplina Direito e Cinema, na condição de Professora Assistente
Doutora. É Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde leciona, no
curso de pós-graduação, a disciplina Cinema e Filosofia do Direito: um estudo sobre as relações
existente entre direito, poder e violência no Brasil.
[1] ROCHA, Glauber, frase retirada de texto de sua autoria presente no encarte do DVD Deus e o Diabo
na terra do sol.
[2] XAVIER, Ismail, O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 118
[3] Op. cit., p. 121.
[4] Op. cit., p. 138.
[5] MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita, repensar a reforma, repensar o pensamento. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2000 - Cap. 4 Aprender a viver, p. 50.
[6] BERNARDET, Jean-Claude, O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006, Coleção primeiros
passos, 18ª reimpressão.
[7] Idem, p. 20.
[8]XAVIER, Ismail, O discurso cinematográfico, a opacidade e a transparência. São Paulo, Paz e
Terra, 2005, p, 17.
[9] BERNADET, Jean-Claude, op. cit., p. 36 e 37.
[10] Op. cit., p. 37.
[11] Op. cit., p. 41.
[12] Op. cit., p. 48.
[13] BALAZS, Bela, Nós estamos no filme, in A Experiência do cinema: antologia/Ismail Xavier
organizador. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 2008, p. 85.
[14] MAUERHOFER, Hugo. A psicologia da experiência cinematográfica, in A Experiência do
cinema: antologia/Ismail Xavier organizador. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 2008, p.378.
[15] BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006, Coleção primeiros
passos, 18ª reimpressão, p. 49.
[16] Op. cit., p. 17.
[17] Op. cit., p. 18.
[18] EPSTEIN, Jean. O cinema do diabo-excertos, in A Experiência do cinema: antologia/Ismail
Xavier organizador. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 2008, p.294.
[19] CABRERA, Julio, op. cit., p. 21.
[20] MUNSTERBERG Hugo. As emoções, in A Experiência do cinema: antologia/Ismail Xavier
organizador. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 2008, p. 52 e 53.
[21] CABRERA, Julio, op., cit., p. 23.
[22] Op. cit., p. 24.
[23] Op. cit., p. 26.
[24] Op. cit., p. 31 e 32.
[25] Op. cit., p. 34.
[26] Op. cit., p. 37.
[27] Op. cit., p. 39.
[28] Op. cit., p. 42.
[29] CABRERA, Julio, op. cit. p. 40 e 41.
[30] FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica: ensaio de pragmática da comunicação
normativa, Rio de Janeiro: Forense, 1978.
[31] FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação,
São Paulo: Atlas, 2003, p. 43.
[32] FERRAZ JR., Tercio Sampaio, op. cit., p. 109.
[33] FERRAZ JR, Tercio Sampaio, op. cit., p. 107.
[34] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão, Rio de Janeiro: Corifeu, 2006, p. 104.
[35] Op. cit., p. 120 a 122.
[36] FERRAZ, JR. Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o poder, a
liberdade, a justiça e o direito, São Paulo: Atlas, 2002, p. 56.
[37] Op. cit., p.60 a 63.
[38] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o poder, a
liberdade, a justiça e o direito, São Paulo: Atlas, 2002, p. 265.
[39] Op. cit., p. 266.
[40] Op. cit., p.268.
[41] Op. cit., p.269.
[42] Op. cit., p 269.
[43] Op. cit., p.270.
[44] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica, Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.19.
[45] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão, Rio de Janeiro: Corifeu, 2006, p. 140.
[46] VIANY, Alex. O processo do Cinema Novo, Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999, p. 65.
[47] Todas as reflexões de DARCY RIBEIRO são extraídas da obra O povo brasileiro: a formação e o
sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. Ver p. 66.
[48] Op. cit., p. 40.
[49] Op.cit., p. 71.
[50] Op. cit., p. 126 e 172.
[51] Op. cit., p. 340.
[52] Op. cit., p. 342.
[53] Op. cit., p. 347.
[54] Op. cit., p. 348.
[55] Op. cit., p.353.
[*]✽ Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Graduado em Direito pela
Faculdade de Direito do Largo São Francisco (Universidade de São Paulo); Mestre em Direito pela
Faculdade de Direito do Largo São Francisco (Universidade de São Paulo), na área de concentração de
Filosofia e Teoria Geral do Direito.
[56] Frase de Plinio Sussekind Rocha citada por Walter Salles, ao apresentar o filme Limite, restaurado,
em São Paulo - 2015.
[57] Mário Peixoto, Limite (RJ, 1931, pb, LM). Cia produtora: Mario Peixoto (produtor);
Direção/argumento/roteiro: Mario Peixoto; Montagem: Edgar Brasil, Mario Peixoto; Dir. fotografia:
Edgar Brasil; Elenco: Raul Schnoor, Olga Breno, Taciana Rei, D. G. Pedrera, Mario Peixoto.
[83] A esse respeito, Kierkegaard afirma: “Que espécie de ser é aquele que posiciona todos na linha
sistemática? É ele um ser humano ou é ele a especulação? Porém, se é um ser humano, então é afinal
um existente. Mas, em última análise, para o existente há dois caminhos: ou bem ele pode fazer tudo
para esquecer que é um existente e, com isso, chegar a tornar-se cômico (a contradição cômica de
querer ser o que não se é, por exemplo, que um ser humano queira ser um pássaro, não é mais cômica
do que a contradição de não querer ser o que se é, como in casu, um existente, tal como na linguagem
comum a gente acha cômico quando alguém esquece como se chama, o que não é tão significativo
quanto esquecer a característica própria de seu ser), porque a existência possui a notável propriedade
de que o existente existe, quer queira, quer não; ou bem ele pode voltar toda sua atenção para esse
fato: de que ele é [um] existente. É a partir desse lado, em primeiro lugar, que se deve fazer a objeção
contra a moderna especulação, de que ela tem, não uma pressuposição equivocada, mas uma
pressuposição cômica, ocasionada pelo fato de ter se esquecido, numa espécie de distração histórico-
universal, o que significa ser um ser humano, não aquilo que significa ser um homem em geral, pois os
especuladores ainda poderiam concordar sobre tais coisas, mas sim o que significa que tu e eu e ele
sejamos seres humanos, cada um por si”. Kierkegaard, Pós-Escrito não Científico às Migalhas
Filosóficas (São Paulo: Vozes, 2013), p. 126-127.
[84] Cf. O Conceito de Angústia, de Kierkegaard, particularmente um dos capítulos mais notáveis já
escritos sobre o tempo até hoje, o Caput III – Angústia como Consequência deste Pecado que Consiste
na Ausência da Consciência do Pecado.
[85] Isto está de acordo com Aristóteles, para quem o tempo é “o número do movimento segundo o antes
e o depois” (Física, 4, XI, 219 b1-2) e o tempo é “o movimento enquanto possui um número” (Física,
4, XI, 219 b3). Aristóteles, Physics, op. cit. (tradução nossa do inglês).
[86] Kierkegaard faz uma metáfora para a eternidade: “Os hindus referem-se a uma linhagem de reis que
teriam reinado por 70.000 anos. Dos reis nada se sabe, nem ao menos os seus nomes […]. Se
quisermos tomá-los como um exemplo para o tempo, então os 70.000 anos serão, para o pensamento,
um sumir infinito, mas para a representação a linha se expande, espacializa-se compondo um
panorama ilusório de um nada infinitamente vazio”. Kierkegaard, O Conceito de Angústia, op. cit., p.
91.
[87] Isto está de acordo com Aristóteles: “[…] pelo modo de ser, os eternos são anteriores aos
corruptíveis, e nenhum eterno é em potência. A explicação é esta: toda capacidade é ao mesmo tempo
capacidade de contradição, pois aquilo que não é capaz de ser o caso não pode se dar em nada, mas
tudo aquilo que é capaz pode não estar em atividade. Portanto, aquilo que é capaz de ser pode tanto
ser como também não ser; assim, a mesma coisa é capaz de ser e de não ser. Mas aquilo que é capaz
de não ser pode não ser; e aquilo que pode não ser é corruptível, ou sem mais, ou em relação àquilo
mesmo pelo que se diz que pode não ser (ou pelo lugar, ou pela quantidade ou qualidade); e é sem
mais corruptível aquilo que o é em sua essência”. Aristóteles, Metaphysics (Loeb Classical, London:
Harvard University Press, 1933, Vols. XVII e XVIII) IX, 8, 1050 b6-15. (Tradução nossa do inglês).
[88] “Se, porém, as coisas devem ser colocadas de outra maneira, o instante no tempo precisa ter uma
significação decisiva, de modo que eu não possa esquecê-lo em nenhum instante, nem no tempo nem
na eternidade, porque o eterno, que antes não existia, vem-a-ser nesse instante”. Kierkegaad,
Migalhas Filosóficas, op. cit., p. 32.
[89] “Seja lá como for, a Lógica que veja como se socorrer. Na Lógica, o termo passagem é e será
sempre uma tirada espirituosa. Na esfera da liberdade histórica, aí sim a passagem tem o seu lugar,
pois a passagem é um estado, e é efetivamente real. Platão entendeu muito bem a dificuldade de
colocar a passagem no puramente metafísico, e por isso a categoria de instante lhe custou tantos
esforços”. Kierkegaard, O Conceito de Angústia, op. cit., p. 88.
[*]✽ Mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade de São Paulo. Advogado.
[90] Campos de migrações: Fabiano, Manuel, Ranulfo e os anônimos do sertão In Significação – revista
de cultura audiovisual. Vol. 33. Nº 26. 2006, p. 27.
[91] Os Donos do Poder. 3ª Ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 791.
[92] O cinema pensa: uma introdução à Filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, pp.
20 e 23.
[93] Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book kindle. Amazon, 2015, posição 5639 de 8651.
[94] O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.
326.
[95] Essa mesma dura realidade sertaneja foi descrita com sensibilidade inigualável pelo poeta
PATATIVA DO ASSARÉ em Vida Sertaneja: “Sou matuto sertanejo, / Daquele matuto pobre; / Que não
tem gado nem quêjo, / Nem ôro, prata, nem cobre. / Sou sertanejo rocêro, / Eu trabaio o dia intêro, /
Que seja inverno ou verão. / Minhas mão é calejada, / Minha péia é bronzeada / Da quintura do
sertão. / (...) Sou sertanejo e me gabo / e já tê visto o vaquêro, / Atrás do novio brabo / Atravessá o
tabulêro. / Amo a vida camponesa, / Nunca invejei a beleza / E a fantasia da praça. / Eu sou irmão do
cabôco, / Que ri, que zomba e faz pôco / Da sua própia desgraça. / Cabôco que não cubiça / Riqueza
nem posição / E nem aceita a maliça / Morá no seu coração. / Cabôco que, nesta vida, / Além da sua
comida, / O que mais estima e qué, / É a paz, a honra e o brio, / O carinho de seus fio / E a bondade da
muié. / O que mais preza e percura / O matuto camponês / E não quebrá sua jura, / Que, no casamento,
fez. / Sem enfado e sem preguiça, / Quando vai uvi a missa, / De paz, amô e alegria, / Leva o seu
coração cheio, / Prumode uvi os consêio / Do padre da freguezia. / E assim, na sua peleja, / Com a
famia que tem, / Não inveja nem deseja / O gozo de seu ninguém. / Mas, por infelicidade, / Cronta seu
gosto e vontade, / Munta vez, o pobre vê / A muié morrê de parto, / Gemendo dentro de um quarto, /
Sem ninguém lhe socorrê. / Morre aquela criatura, / Depois, a pobre coitada, / No rumo da sepultura,
/ Vai numa rêde imbruiada. / Um adjunto de gente, / Uns atrás, ôtros na frente, / Num apressado rojão,
/ Quando um sorta, o ôtro pega: / É assim que se carrega / Morto pobre, no sertão. / Fica, o viúvo,
coitado! / De arma triste e dilurida, / Para sempre separado / Do mió de sua vida, / Mas, porém, não
percebeu / Que a sua muié morreu, / Só por fartá um dotô. / E, como nada conhece, / Diz, rezando a
sua prece: / Foi Deus que ditriminou! / Pensando assim desta forma, / Resignado, padece; / Paciente,
se conforma / Com as coisa que acontece. / Coitado! Ignora tudo, / Pois ele não tem estudo, / Também
não tem assistença. / E por nada conhece / Em tudo o camponês vê / O dedo da Providença. / Só a
coisa que o matuto / Conhece, repara e vê / É tê que pagá tributo / Sem ninguém lhe socorrê, / É
derramá seu suó, / Com paciença de Jó, / Mode botá seu roçado, / Esperto, forte e disposto / E tê que
pagá imposto / Sem ninguém tê lhe ajudado. / Às vez, alegre e contente, / Quanto é tempo de fartura, /
Ele diz pra sua gente: / Nossa safra tá segura! / Mas, de repente, intristece, / Pruquê magina e
conhece / Que os home de posição / Só óia para o seu rosto / Pra ele pagá imposto / Ou votá nas
inleição. / Quando aparece um sujeito, / De gravata e palitó, / Todo alegre e sastifeito, / Como quem
caça xodó, / O matuto experiente / Repara pra sua gente / E, sem tê medo de errá, / Diz, com um certo
desgosto: / <<Ele vem cobrá imposto / Ou pedi pra nóis votá>>” ( Cante lá que eu canto cá: filosofia
de um trovador nordestino. 5ª ed. São Paulo: Vozes, 1984 ).
[96] XAVIER, Ismail. Campos de migrações: Fabiano, Manuel, Ranulfo e os anônimos do sertão In
Significação – revista de cultura audiovisual. Vol. 33. Nº 26. 2006, p. 38.
[97] Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 303 e 304.
[98] Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book kindle. Amazon, 2015, posição 5601 de 8651.
[99] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o Poder, a
Liberdade, a Justiça e o Direito. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 83.
[100] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, pp. 25-26 e 35-36.
[101] BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 12.
[102] CABRERA, Júlio. O cinema pensa: uma introdução à Filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro:
Rocco, 2006, pp. 12 e 13.
[*]✽ Bacharel em Direito, mestrando em Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo.
[103] Cf. OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em diálogo (e-book Kindle). São
Paulo: Edição do Autor, 2015. Posição 505.
[104] Cf. BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2006. Coleção primeiros
passos, 18ª impressão. P. 37.
[105] Cf. OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. cit. ibid.
[106] Cf. OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. cit. Posição 541.
[107] Cf. OLIVEIRA, Mara Regina. Op. cit. ibid.
[108] Cf. MAUERHOFER, Hugo. A psicologia da experiência cinematográfica, in A Experiência do
cinema: antologia (org. XAVIER, Ismail). Rio de Janeiro: Edições Graal/Embrafilme, 2008. P. 378 e ss.
[109] Encaramos as investigações sobre o mens legislatoris e o mens legis como nada mais que técnicas
de interpretação voltadas a fins exclusivamente dogmáticos, isto é, a solucionar conflitos sociais. O
emprego de uma ou de outra não decorre de seu valor “enquanto tal”, mas de sua utilidade momentânea
para fins de se alcançar o resultado desejado. Trata-se de uma opção pragmática e utilitarista. Ambas
possuem o mesmo valor, podendo ser mais úteis ou menos úteis conforme o caso. Esse o porquê de
dizermos inúteis (pointless) de disputas sobre qual das duas técnicas seria a melhor.
[110] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. cit. ibid.
[111] “A afirmação de que uma norma é válida e a afirmação de que é eficaz são, é verdade, duas
afirmações diferentes. Mas, apesar de validade e eficácia serem dois conceitos inteiramente diversos,
existe, contudo, uma relação muito importante entre os dois. Uma norma é considerada válida apenas com
a condição de pertencer a um sistema de normas, a uma ordem que, no todo, é eficaz. Assim, a eficácia é
uma condição de validade; uma condição, não a razão da validade. Uma norma não é válida porque é
eficaz; ela é válida se a ordem à qual pertence é, como um todo, eficaz. A relação entre validade e
eficácia é cognoscível, porém, apenas a partir da perspectiva de uma teoria dinâmica do Direito que lide
com o problema da razão de validade e o conceito de ordem jurídica” (KELSEN, Hans. Teoria Geral do
Direito e do Estado (trad. Luís Carlos Borges). 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P. 58.)
[112] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002. PP. 23-71 (Parte 1 – Lógica da Soberania).
[113] Idem. Op. cit. PP. 79–121 (Parte 2 – Homo Sacer).
[114] Idem. Op. cit. P. 121.
[115] Idem. Op. cit. PP. 125-194 (Parte 3 – O campo como paradigma biopolítico moderno).
[*]✽ Mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo sob a orientação da Professora Doutora Mara Regina de Oliveira.
[116] BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasilense, 2006, p. 15.
[117] Ibidem, p. 12.
[118] Ibidem, p. 16.
[119] Ibidem, p. 20.
[120] Ibidem, p. 93.
[121] Ibidem, p. 100 – 101.
[122] CABRERA, Júlio. O Cinema Pensa: uma introdução à Filosofia através dos Filmes. Rio de
Janeiro: Rocco, 2006, p. 16.
[123] Ibidem, p. 20 e 45.
[124] NARDIN, Ana Luísa, Et al.. Caracterização e Análise de “O Céu de Suely” de Karim Aïnouz,
como narrativa de viagem. Revista RUA, UFSCAR. Disponível em
<http://www.rua.ufscar.br/caracterizacao-e-analise-de-o-ceu-de-suely-de-karim-ainouz-como-uma-
narrativa-de-viagem/>. Acesso em 18 de outubro de 2015.
[125] CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 303.
[126] Ibidem, p. 305.
[127] OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book Kindle, Amazon, 2015, Cap. 2 (6).
[128] Ibidem.
[*] Mestranda em Direito do Estado, na subárea de Direito Constitucional, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2015-) e
Bacharela em Direito mesma Faculdade (2013). É Pesquisadora Assistente do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (CEBRAP).
[129] O fragmento citado é o título de uma notícia impressa em jornal da década de 1960. JORNAL ÚLTIMA HORA. “Monstruoso:
criança de 4 anos raptada e assassinada na Penha”. Rio de Janeiro, sexta-feira, 01º de julho de 1960. Edição 03070, pp. 02. Disponível
em <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=60923>. Acesso em 24 de novembro de 2015.
[130] Coimbra, Fernando. Entrevista: "O Lobo atrás da Porta": o subúrbio fora dos padrões. São
Paulo: TV Estadão, 2014. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=noMPqsT0Tio> (com
transcrição automática). Acesso em 24 de novembro de 2015.
[131] Conforme a tendência apontada por Jean-Claude Bernardet, “muito mais do que o enredo,
interessam aos cineastas aprofundar o comportamento dos personagens e as significações e implicações
das situações em que se encontram”. BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo:
Brasiliense, 2006, Coleção primeiros passos, 18ª reimpressão, p. 111.
[132] Conforme explica Julio Cabrera, pluriperspectiva e manipulação de tempos e espaços são
particularidades da técnica cinematográfica que embaralham as noções de subjetividade e objetividade e
pelas quais se criam os conceitos-imagem. A pluriperspectiva é “a capacidade que tem o cinema de
saltar permanentemente da primeira pessoa (o que vê ou sente o personagem) para a terceira (o que vê a
câmera) e também para outras pessoas ou semipessoas que o cinema é capaz de construir”. CABRERA,
Júlio. O cinema pensa – uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006,
pp. 31-32.
[133] A proposta de alargamento cognitivo em sentido amplo (ou seja, sem tratar especificamente da
contribuição do cinema) também é encontrada na epistemologia feminista, na crítica ao “realismo
metafísico”, ao “objetivismo” e à “teoria da síntese”, ao “viés racionalista” e à “neutralidade
axiomática” (MATOS, Marlise. Feminismo e teorias da justiça. In: AVRITZER, Leonardo...[et al.].
Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, pp.143-144).
[134] OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e filosofia do direito em diálogo. E-book Kindle, Amazon,
2015, posição 1076.
[135] CABRERA, Júlio. Op. Cit., pp. 15-47.
[136] CABRERA, Júlio. Op. cit., pp. 15-47.
[137] Conceito desenvolvido pela socióloga brasileira Heleieth I.B. Saffioti. SAFFIOTI, Heleieth I.B.
Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cad. Pagu, 2001, nº 16, pp.115-136.
Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n16/n16a07.pdf>. Acesso em 24 de novembro de 2015.
[138] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. cit, posição 2386.
[139] RIOT-SARCEY, Michèle. Poder(es). In: HIRATA, Helena…[et al.] (orgs.). Dicionário Crítico do
Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 187.
[140] FURLIN, Neiva. Relações de gênero, subjetividades e docência feminina: um estudo a partir do
universo do Ensino Superior em teologia católica. Tese de Doutorado. Curitiba, UFPR, 2014.
Disponível em <http://www.humanas.ufpr.br/portal/pgsocio/files/2014/05/R-T-NEIVA-FURLIN-2010-
2014.pdf>. Acesso em 24 de novembro de 2015.
[141] Outra possibilidade é que o ato de Rosa seja mais impactante porque, de alguma forma, passamos a
compreendê-lo, o que causa um estranhamento, já que é um ato moralmente condenável.
[142] Embora seja vasta a literatura feminista e de estudos de gênero relativas à questão da violência,
não recorremos a ela a fim de permanecer nos limites analíticos propostos para o trabalho.
[143] FREIRE COSTA, Jurandir. A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência
pública. In: BETTO, Frei …[et al.]. Ética. Rio de Janeiro: Garamond, 1997, pp. 67-69. O título
transcrito nessa referência inspirou o título do presente artigo.
[144] FREIRE COSTA, Jurandir Op. Cit., pp. 70-71.
[145] FREIRE COSTA, Jurandir. Op. Cit., pp. 72-78.
[146]e cultivo da beleza. Embora não seja o foco do artigo, parece-nos que esse é um aspecto interessante a ser explorado mediante o uso
da ideia de dupla moral sexual, delineado por Alexandra Kollontai para analisar a relação entre casamento e o exercício da
sexualidade pelas mulheres que não aderem a esse modelo (KOLLONTAI, A. A Nova Mulher e a Moral
Sexual, Coleção Bases, n. 6, 5ª ed., 1982).
[147] OLIVE O relacionamento de ambas tem um aspecto bastante ambíguo, já que parece incoerente
afirmar que essa aproximação tinha como objetivo inicial estrito uma vingança premeditada. Pelo
contrário, Rosa parece seduzir-se e almejar ocupar o papel ocupado por Sylvia, enquanto essa é atraída
por sua juventude IRA, Mara Regina de. Op. Cit, posição 2426. O trecho citado discorre sobre as
reflexões de Elias Canetti (CANETTI, Elias. Massa e poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1983, p. 248).
[148] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. Cit, posição 7397.
[149] CANETTI, Elias. Massa e poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983, pp. 307 e 311.
[150] CANETTI, Elias. Massa e poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983, pp. 307 e 311.
[151] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. Cit, posição 6023.
[152] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. Cit, posição 6927. Os apontamentos da autora citados se referem
ao filme “Notícias de uma guerra particular” (NOTÍCIAS de uma guerra particular. Diretor: João
Moreira Salles. VideoFilmes, 2005. DVD 1 Filmes, 54 minutos). Dessa forma, devem ser lidos com
precaução, a fim de preservar o sentido pretendido pela autora.
[153] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. Cit, posição 5938.
[154] OLIVEIRA, Mara Regina de. Op. Cit, posição 2950. Nesse trecho, a autora discorre sobre a obra
de Freire Costa (FREIRE COSTA, Jurandir. A ética e o espelho da cultura. Rio de Janeiro: Rocco,
1994).
[155] FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o poder, a
liberdade, a justiça e o direito. São Paulo: Atlas, 2002, p. 269.
[156] CABRERA, Júlio. Op. Cit., pp. 33 e 35.
[*]✽ Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo, Mestre em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina, professora na Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo,
advogada.
[*]✽✽ Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, campus de Poços de
Caldas. Advogada. Aluna ouvinte da disciplina “Cinema e Filosofia do Direito: um estudo sobre as
relações existentes entre direito, poder e violência no Brasil”, cursada junto ao programa de pós-
graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
[157] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3ª edição. Tradução Roberto Cabral de
Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.
[158] A maior parte do filme foi rodada na cidade de Curitiba-PR e o restante na cidade de São Paulo-
SP. Contudo, o filme não deixa claro qual é a cidade em que Raimundo Nonato se encontra.
[159] Importante ressaltar, já em um primeiro momento, “[...] a força física não constitui o poder, visto
que por meio dela uma ação elimina a outra, e isso impede a transmissão das premissas decisórias de um
para outro, base constitutiva do poder como meio de comunicação. Apesar disso, embora a força não seja
poder, ela é constitutiva do poder enquanto alternativa a evitar”. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio.
Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 2ª ed. São
Paulo: Atlas, 2003, p. 55.
[160] CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 208-209.
[161] De acordo com Ferraz Junior, “O poder que não é percebido é, de todos, o mais perfeito: aquele
cujo processo chegou a um fim; alter e ego, dominante e dominado, são um só, embora continuem como se
fossem distintos. A unidade que é identidade perverte a diversidade, não porque a suprime, mas porque a
mantém como se ela não se alterasse”. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do
direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 15.
[162] FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto
Machado. 25ª ed. São Paulo: Graal, 2012, p. 45 e 215.
[163] Acerca do aguilhão, Canetti explica que é um dos elementos que compõe a ordem. Assim, “Toda
ordem compõe-se de um impulso e de um aguilhão. O impulso obriga o receptor ao seu cumprimento, e,
aliás, da forma como convém ao conteúdo da ordem. O aguilhão, por sua vez, permanece naquele que a
executa. Quando o funcionamento das ordens é o normal, em conformidade com o que se espera delas,
nada se vê desse aguilhão. Ele permanece oculto, e não se imagina que exista; antes do cumprimento da
ordem ele talvez, quase imperceptivelmente, se manifeste numa ligeira resistência”. CANETTI, Elias.
Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 305-306.
[164] FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos. V. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
[165] Nesse sentido, Darcy Ribeiro, ao comentar sobre a antropofagia ritual dos tupis, ressalta que: “O
caráter cultural e co-participado dessas cerimônias tornava quase imperativo capturar os guerreiros que
seriam sacrificados dentro do próprio grupo tupi. Somente estes – por compartilhar do mesmo conjunto
de valores – desempenhavam à perfeição o papel que lhes era prescrito: de guerreiro altivo, que
dialogava soberbamente com seu matador e com aqueles que iriam devorá-lo. Comprova essa dinâmica o
texto de Hans Staden, que três vezes foi levado a cerimônias de antropofagia e três vezes os índios se
recusaram a comê-lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência. Não se comia um covarde”.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995, p. 34.
[166] MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da
Silva e Jeanne Sawaya; rev. técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF:
UNESCO, 2000, p. 52. De acordo com o autor (p. 58): “O século XXI deverá abandonar a visão
unilateral que define o ser humano pela racionalidade (Homo sapiens), pela técnica (Homo faber), pelas
atividades utilitárias (Homo economicus), pelas necessidades obrigatórias (Homo prosaicus). O ser
humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, caracteres antagonistas: Sapiens e demens (sábio
e louco) Faber e ludens (trabalhador e lúdico) Empiricus e imaginarius (empírico e imaginário)
economicus e consumans (econômico e consumista) prosaicus e poeticus (prosaico e poético)”.
[167] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2072.
[168] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2081.
[169] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a
liberdade, a justiça e o direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 44.
[170] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2224
[171] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2328.
[172] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica: ensaio da pragmática da
comunicação normativa. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1997. p. 1-5; FERRAZ JUNIOR, Tércio
Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, Técnica, Decisão e Dominação. São Paulo, Editora Atlas,
2003. p. 257-259.
[173] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2081.
[174] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2267.
[175] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2258.
[176] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 2302.
[177] COSTA, Jurandir Freire. A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência pública.
In: NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do (Org.). Brasília: capital do debate – o século XXI – Ética. Rio
de Janeiro/Brasília: Garamond/Codeplan, 1997, p. 70.
[178] BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução Plínio
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 105 e 115.
[179] COSTA, Jurandir Freire. A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência
pública. In: NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do (Org.). Brasília: capital do debate – o século XXI –
Ética. Rio de Janeiro/Brasília: Garamond/Codeplan, 1997, p. 70.
[180] THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 23.
[181] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 35. ed. Rio
de Janeiro: Vozes, 2008, p. 221.
[182] AZEVEDO, José Eduardo. As relações de poder no sistema prisional. Revista da Associação de
Pós-graduandos da PUC-SP. São Paulo, Ano VIII, n.º18, p. 29-35, 1999.
[183] AZEVEDO, José Eduardo. As relações de poder no sistema prisional. Revista da Associação de
Pós-graduandos da PUC-SP. São Paulo, Ano VIII, n.º18, p. 29-35, 1999.
[184] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 5694.
[185] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 5701.
[186] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 5677.
[187] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015.
[188] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Kindle Version, 2015, location 5661.
[189] AZEVEDO, José Eduardo. As relações de poder no sistema prisional. Revista da Associação de
Pós-graduandos da PUC-SP. São Paulo, Ano VIII, n.º18, p. 29-35, 1999.
[190] AZEVEDO, José Eduardo. As relações de poder no sistema prisional. Revista da Associação de
Pós-graduandos da PUC-SP. São Paulo, Ano VIII, n.º18, p. 29-35, 1999.
[191] AZEVEDO, José Eduardo. As relações de poder no sistema prisional. Revista da Associação de
Pós-graduandos da PUC-SP. São Paulo, Ano VIII, n.º18, p. 29-35, 1999.
[192] Explica Canetti que: “Mais fácil é que se modifique a aparência de um homem, aquilo em função
do qual os outros o reconhecem – a postura de sua cabeça, a expressão de sua boca, seu jeito de olhar -,
de que a forma da ordem que, na qualidade de um aguilhão, nele permaneceu armazenada e inalterada. E,
igualmente inalterada, essa ordem é expelida, bastando que se apresente a oportunidade para tanto; a
nova situação, na qual ela se desprende, há de ser idêntica à antiga, na qual ela foi concebida. A
reprodução invertida de tais situações antigas constitui uma das grandes fontes de energia psíquica na
vida do homem.” CANETTI, Elias. Massa e poder. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p. 306.
[193] FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto
Machado. 25ª ed. São Paulo: Graal, 2012, p. 284.
[*]✽ Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – Universidade de São
Paulo, é mestranda no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da mesma faculdade.
[194] No original: “states of affairs that combine the absence of insuperable obstacles with the presence
of means – internal or external – that give one a chance to overcoming the obstacles that remain.”
(NICKEL, 1988, p. 110, apud YOUNG, 1990, p. 26).
[195] No original: “This focus on possession tends to preclude thinking about what people are doing,
according to what institutionalized rules, how their doings and havings are structured by institutionalized
relations that constitute their positions, and how the combined effect of their doings has recursive effects
on their lives.” (YOUNG, 1990, p. 25)
[196] Conferir em http://primeirainfancia.org.br/wp-content/uploads/2015/03/1-
por_ser_menina_resumoexecutivo2014.pdf último acesso em 23 de novembro de 2015.
[*]✽ Mestre e Doutora em Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito pela USP-SP. Especialista em
Direito Constitucional pela UEL-PR. Advogada. Professora do Curso de Direito das Faculdades
Integradas Padre Albino (FIPA) e do Centro Universitário de Rio Preto (UNIRP). E-mail:
polacchini@usp.br.
[197] Cronicamente Inviável . BRASIL, 2000. 35mm. 101’. Direção: Sérgio Bianchi. Roteiro: Sérgio
Bianchi e Gustavo Steinberg.
[198] Compõem a filmografia de Bianchi: Omnibus (1972), Segunda Besta (1977), Maldita coincidência
(1981), Mato eles? (1982), Divina previdência (1983), Entojo (1985) Romance (1988), A causa secreta
(1994), Cronicamente Inviável (2000), Quanto vale ou é por quilo? (2005), Os inquilinos (2009) e Jogo
das decapitações (2013).
[199] OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Diálogo. E-book Kindle: Amazon,
2015, Capítulo 1, Seção 1, pos. 485.
[200] VIEIRA, João Luiz. Câmera-faca: o cinema de Sérgio Bianchi. Festival de cinema luso brasileiro
de Santa Maria da Feira. Portugal, 2004, p. 164.
[201] Fala de Sérgio Bianchi à Revista Istoé, apud SOLER, Marcelo et. al. Quanto Vale um cineasta
brasileiro: Sérgio Bianchi em palavras, imagens e provocações. São Paulo: Garçoni, 2005, p. 23. O
livro-documentário organizado por Marcelo Soler, diretor de teatro, dramaturgo e teatro-educador. O
livro contou com a participação de Roberto Schwartz, Ismail Xavier, Iná Camargo Costa, Jean Claude
Bernadet, Eduardo Benaim (roteirista) e Claudia Mello (atriz). O organizador os lançou a indagação que
serve de título para a obra e cada qual, ao seu modo, discutiu a proposta de Bianchi e os filmes por ele
dirigidos, dentre os quais o Cronicamente Inviável.
[202] Idem, p. 12.
[203] Ibidem, p. 25.
[204] In SOLER, Quanto Vale um cineasta brasileiro...op. cit.
[205] É possível que o número da casa, de portas fechadas, seja simbólico no filme da ironia debochada
de Bianchi, representando tanto a noção de verdade oculta, os problemas de convivência quanto uma
corda de 81 e um nós e o amor entre irmãos.
[206] CABRERA, Júlio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de
Janeiro: Rocco, 2006, p. 20.
[207] Idem, p. 13.
[208] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed., 2ª. tiragem. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 311.
[209] OLIVEIRA, Nezi Heverton Campos de. O cinema autoral de Sérgio Bianchi: uma visão crítica e
irônica da realidade brasileira. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo,
2006, 213pp., p. 13.
[210] XAVIER, In SOLER, Quanto vale… op. cit., p. 39.
[211] NOVAES, Sylvia Caiuby. Imagem e ciências sociais: trajetória de uma relação difícil. In
BARBOSA, A; CUNHA, E; HIKIJI, R. (orgs.). Imagem-conhecimento: antropologia, cinema e outros
diálogos. Papirus: pp. 35-59, p. 53.
[212] XAVIER, Ismail In SOLER, Quanto Vale um cineasta brasileiro...op. cit., p. 37.
[213] Idem., pp. 21-23.
[214] COSTA, Jurandir Freire. Ética democrática e seus inimigos - o lado privado da violência pública,
In BETTO, F.; BARBA, E.; COSTA, J. Ética. Rio de Janeiro: Garamond, 1998, pp. 70-76.
[215] CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 208.
[216] RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2ª. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995, p. 448.
[217] XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. 2a. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 21.
[218] SOLER, Quanto vale… op. cit., pp. 15-17.
[219] Idem, pp. 17-22.
[220] Ibidem, p. 21.
[221] OLIVEIRA. Mara Regina de. O Desafio à Autoridade da Lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. 2a. ed. São Paulo: Edição do autor, E-book Kindle: Amazon 2015.
[222] GONÇALVES FILHO, José Moura. Humilhação social: humilhação política. In SOUZA, Beatriz
de Paula. Orientação à queixa escolar. 2a. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, pp. 187-221, p. 194.
[223] Idem, p. 195.
[224] In SOLER, Quanto vale… op. cit., p. 18.
[225] OLIVEIRA, O cinema autoral... op. cit., p. 13.
[226] SOLER, Quanto vale… op. cit., p. 38.
[227] RIBEIRO, O Povo Brasileiro...op. cit, p. 254.
[228] VAZ E SILVA, Neusa. Teoria da Cultura de Darcy Ribeiro e a filosofia intercultural. São
Leopoldo: Nova Harmonia, 2009, p. 23.
[229] RIBEIRO, Os Brasileiros...op. cit., p. 137.
[230] GONÇALVES FILHO, Humilhação social: humilhação política... op. cit., p. 208.
[231] Idem, p. 208.
[232] GONÇALVES FILHO, Humilhação social: humilhação política... op. cit., p. 209.
[233] Idem, p. 215.
[234] Ibidem.
[235] COSTA, Jurandir Freire. Ética democrática e seus inimigos - o lado privado da violência pública,
In BETTO, F.; BARBA, E.; COSTA, J. Ética. Rio de Janeiro: Garamond, 1998, p. 81.
[236] GONÇALVES FILHO, Humilhação social: humilhação política... op. cit., p. 215.
[237] Idem, p. 215.
[238] Ibidem.
[239] SOLER, Quanto vale… op. cit., p. 18.
[240] Idem, p. 41.
[241] RIBEIRO, O Povo Brasileiro...op. cit, p. 261.
[242] Idem.
[243] OLIVEIRA, Mara Regina de, O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. 2a. ed. São Paulo: Edição do autor, E-book Kindle: Amazon 2015, Capítulo 1,
seção 1.1, pos. 392.
[244] ARISTOTELES, De Anima, livros I, II e III. Trad. Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: 34,
2006, 416b33.
[245] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução Márcia Sá Cavalcante Schuback. 13ª. ed.
Petrópolis: Vozes, 2004, p. 199.
[246] Idem.
[247] GONÇALVES FILHO, Humilhação social: humilhação política... op. cit., p. 207.
[*]✽ Mestranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo.
[248] AGUILERA, Yanet. “Sana’a versus Milán y San Pablo” (no prelo).
[249] OLIVEIRA, Mara Regina. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. E-Book Kindle, Amazon, 2015.
[250]http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/07/homicidios-contra-jovens-negros-continua-
crescendo-no-brasil-violencia-contra-brancos-diminui-8115.html
[251] http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/primeiraedicao.pdf
[252] AGAMBEN, Giorgio. O Aberto – O homem e o animal. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro,
2013, p. 51
[253] Ibidem, p. 43.
[*]✽ Mestra e Doutoranda em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Advogada em São
Paulo.
[254] Encontram-se na trilha sonora do filme: Que Maravilha, de Jorge Ben; Madalena, de Elis Regina;
Ovelha Negra, de Rita Lee; Pérola Negra, de Luiz Melodia, etc.
[255] CANETTI, Elias. Massa e Poder. Cia das Letras, p. 323.
[256] OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Dialógo. São Paulo: Edição do
Autor, 2015 . Edição Kindle Posição (5%) 414-415.
[257] COSTA, Jurandir Freire. Ética democrática e seus inimigos - o lado privado da violência pública,
In. Ética. Rio de Janeiro: Garamond, 1998, p. 70 e 71
[258] COSTA, Jurandir Freire. Ética democrática e seus inimigos - o lado privado da violência pública,,
p. 71
[259] OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Dialógo. São Paulo: Edição do
Autor, 2015 . Edição Kindle
capitulo 1
[260] COSTA, Jurandir Freire. Ética democrática e seus inimigos - o lado privado da violência pública,
p. 75 e76
[261] OLIVEIRA, Mara Regina de. O Desafio à Autoridade da Lei: A relação existente entre poder,
obediência e subversão, 2a ed., São Paulo: Edição do Autor, 2015 . Edição Kindle. (6%) Posição 413.
[262] OLIVEIRA, Mara Regina de. O Desafio à Autoridade da Lei: A relação existente entre poder,
obediência e subversão, 2a ed., São Paulo: Edição do Autor, 2015 . Edição Kindle. (7%) Posição 455-
463
[263] CANETTI, Elias. CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
322 e 323
[264] CANETTI, Elias. CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
p 323
[265] OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito em Dialógo. São Paulo: Edição do
Autor, 2015 . Edição Kindle Posição 5800-5803
[*]✽ Mestranda em Direito do Trabalho e Seguridade Pessoal, na Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo.
[266]
[*]✽ Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da PUC-SP. Mestranda em Teoria e Filosofia do
Direito pela Universidade de São Paulo.
[267] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. 1ª Ed. São Paulo: Corifeu, 2006. Pp. 20.
[268] Disco 2 do DVD Justiça. Menu “Entrevistas” – “Maria Ignez Kato”.
[269] TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Documentário Moderno In MASCARELLO, Fernando (org.)
“História do Cinema Mundial”. Campinas, SP: Papirus, 2006. P. 253.
[270] NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005.
[271] Op. Cit. PP. 20.
[272] Disco 2 do DVD Justiça. Menu “Entrevista com a diretora”.
[273] FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª
Ed. São Paulo: Atlas, 1994.
[274] Disco 2 do DVD Justiça. Menu “Entrevistas” – “Fátima Clemente”.
[275] WEBER, Max. Economia e Sociedade. TRADUÇÃO DE REGIS BARBOSA E KAREN ELSABE
BARBOSA, R. T. D. G. C. Brasília: Editora Universidade de Brasília. Vol. 1 1991. Pp. 147.
[276] COSTA. Jurandir Freire. A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência
pública, in Ética, Rio de Janeiro: Garamond, 1997, p. 67 a 83.
[277] Op. Cit. P. 71.
[278] Op. Cit. p. 71.
[279] Op. Cit. p. 72.
[280] Op. Cit. p. 73
[281] CANETTI, Elias. Massa e Poder. Companhia das Letras: São Paulo, 1995. Pp. 306.
[282] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. 1ª Ed. São Paulo: Corifeu, 2006. p. 19.
[283] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. 1ª Ed. São Paulo: Corifeu, 2006. p. 26.
[284] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes. 1997. p. 124.
[285]
[286] Disco 2 do DVD Justiça. Menu “Entrevistas” – “Geraldo Prado”.
[287] Disco 2 do DVD Justiça. Menu “Entrevistas” – “Fátima Clemente”.
[*]✽ Doutoranda em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP. Mestre em Ciências da Religião
pela Universidade do Estado do Pará – UEPA. Bacharel em Direito pela Faculdades Metropolitanas
Unidas – FMU. Bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Batista Equatorial – FATEBE. E-mail:
danjonemeira@hotmail.com
[288] Empregamos a expressão “Estado-juíz” para nos referirmos ao fato de que o juiz é o Estado no
momento em que é provocado para exercer tutela jurisdicional em face dos litigantes. A partir da
provocação do “Estado-juiz” requer-se que este cumpra seu dever de proporcionar aos litigantes uma
adequada prestação jurisdicional. Este filme “Juízo” nos faz pensar justamente na personificação da
justiça e do papel do Estado na figura do “Estado-juíz”, fazendo refletir sobre o “Estado-juíz” na
democracia brasileira.
[289] JUÍZO. Direção de Maria Augusta Ramos. Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007.
DVD(90min) colorido.
[290] JUÍZO. Direção de Maria Augusta Ramos. Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007.
DVD(90min) colorido.
[291] JUÍZO. Direção de Maria Augusta Ramos. Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007. DVD
(90min) colorido.
[292] CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Paulo Osório de Castro & Jorge Telles de
Menezes, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p.13
[293] Idem
[294] JUÍZO. Direção de Maria Augusta Ramos. Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007.
DVD(90min) colorido.
[295] JUÍZO. Direção de Maria Augusta Ramos. Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007.
DVD(90min) colorido.
[296] JUÍZO. Direção de Maria Augusta Ramos. Brasil, 2007. Produção Diler Trindade 2007. DVD
(90min) colorido.
[297] OLIVEIRA, Mara Regina de. O desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder,
obediência e subversão. Rio de Janeiro: Corifeu, 2006.
[298] Idem
[299] CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Paulo Osório de Castro & Jorge Telles de Menezes,
Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p.202
[300] Trata-se aí de uma questão que, em boa parte, manifesta-se no duplo sentido da palavra agarrar
[angreifen]. Nesta encontram-se contidos ao mesmo tempo tanto o contato inofensivo quanto o ataque
perigoso, e algo deste último sempre ecoa no primeiro. (Cf. CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução
de Paulo Osório de Castro & Jorge Telles de Menezes, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p.202).
[301] Idem
[302] CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Paulo Osório de Castro & Jorge Telles de
Menezes, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p.206
[303] CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Paulo Osório de Castro & Jorge Telles de
Menezes, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p.281
[304] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. Sao Paulo: Boitempo,
2004, p.30.
[305] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. Sao Paulo: Boitempo,
2004, p.39
[306] Idem
[307] Idem
[308] Idem
[309] Nem sempre o direito e a legislação exercem hipetroficamente uma função simbólica,
sobressaindo-se em muitos casos a sua dimensão instrumental. (Cf. NEVES, Marcelo. A
constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p.26).
[310] O jurista Marcelo Neves emprega o termo “legislação simbólica” sob a ótica de um sentido estrito
e diferenciado.
[311] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007,
p.30.
[312] Marcelo Neves apresenta a percepção do Harald Kinderman, quando destaca a expressão
"legislação-álibi". Através dela o legislador procura descarregar-se de pressões políticas ou apresentar
o Estado como sensível às exigências e expectativas dos cidadãos. (Cf. NEVES, Marcelo. A
constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, pp.36-37).
[313] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p.183
[314] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p.185
[315] Esse conceito foi proposto por Luhmann. A concepção luhmanniana da autopoise afasta-se do modelo biológico Maturana, na medida
em que nela se distinguem os sistemas constituintes de sentido (psíquicos e sociais) dos sistemas não-constituintes de sentido (orgânicos e
neurofisiológicos). No caso de sistemas constituintes de sentido, a "auto-observação torna-se componente necessário da reprodução
autopoiética”. A auto-observação como "momento operativo da autopoiese". Na teoria dos sistemas sociais autopoiéticos de Luhmann, o
ambiente não atua perante o sistema nem meramente como "condição infra-estrutural de possibilidade da constituição dos elementos", nem
apenas como perturbação, ruído, "bruit"; constitui algo mais, "o fundamento do sistema". (Cf. NEVES, Marcelo. A constitucionalização
simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, pp.128-129).
[316] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p.136.
[317] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007,
p.146
[318] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007,
p.147
[319] O sistema jurídico autopoiético é composto de uma correlação entre os elementos sistêmicos:
procedimento jurídico (processo), ato jurídico (elemento), norma jurídica (estrutura) e dogmática
jurídica (identidade).
[320] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007,
p.187