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18 JUSCELINO
Jurista e cientista político

JANEIRO ‡ FEVEREIRO ‡ MARÇO 2017 19


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

RIO DE JANEIRO, UM PROBLEMA NACIONAL rachaduras da vitrine. Desde a década de cartas, antes que se descobrisse ter sido
No auge da euforia do segundo manda- 1980, a cidade passou a se notabilizar ele cúmplice do ex-governador e fosse
to do presidente Lula, em 2009, a revista pelos arrastões nas praias e vias expres- fazer-lhe companhia atrás das grades.
inglesa The Economist estampou na capa sas, equipamentos públicos sucateados, Atualmente, é no Rio de Janeiro que
de um de seus números a célebre imagem favelização descontrolada, insegurança a mais grave crise política, econômica,
do Rio de Janeiro visto do alto do Corco- pública, domínio territorial de comunidades social e fiscal da história do Brasil revela
vado, com o Cristo Redentor, em primeiro carentes pelo tráfico de drogas, esvazia- seus contornos mais dramáticos. A de-
plano, levantando voo como um foguete: mento provocado pela transferência de cretação do estado de calamidade foi o
era o Brasil que “decolava”, afinal.1 De órgãos públicos para Brasília e a fuga de reconhecimento público da ressaca dos
modo simétrico, quatro anos depois, ao importantes empresas para São Paulo. anos de bonança: bibliotecas e universi-
final do primeiro mandato de Dilma Rous- dades fechadas; salários de servidores e

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seff, quando já se prenunciavam os sinais mbalado pelo frenesi petroleiro, o prestadores de serviços por pagar; falência
da catastrófica crise que se avizinhava, a Rio de Janeiro de Sérgio Cabral pa- do projeto de segurança pública, com as
revista repetiu a mesma imagem do Rio de recia ter revertido as expectativas taxas de criminalidade voltando a disparar
Janeiro, com o Cristo em primeiro plano. negativas: as contas públicas esta- e, com elas, a rotina das balas perdidas,
A diferença era que, agora, a estátua se vam em dia; a estrutura da máquina estatal das favelas dominadas por traficantes de
comportava como um foguete avariado: se renovara; a capacidade de investimento droga; dos turistas e cidadãos baleados ou
teria o Brasil “estragado tudo”?2 fora recuperada. Do ponto de vista do esfaqueados à luz do dia; de estudantes
Como num longevo casamento de mercado, a bonança generalizada tinha por sequestrados em estacionamentos de
quase 300 anos, o Rio de Janeiro tem símbolo o empresário Eike Batista, dono de universidades. A cidade acaba de ser
fielmente servido ao Brasil como seu um vasto conglomerado econômico que, objeto de nova reportagem da revista The
principal símbolo, tanto na alegria e na chamando a si a responsabilidade social Economist, alusiva ao longo declínio por ela
tristeza, quanto na saúde e na doença. É de investir na cidade e em sua combali- atravessado, e que os jogos olímpicos não
sua principal cidade turística; a segunda da autoestima, se apresentava como o teriam sido capazes de reverter.3
em renda e população; seu principal polo sucessor de uma plêiade de empresários Tais considerações se fazem neces-
universitário e de ciência e tecnologia. beneméritos do Rio. Era o novo Guinle, sárias diante dos estreitos limites por
Por isso, tem sido sempre escolhida Paula Machado, Rocha Miranda, Mayrink que o debate atinente à crise fluminense
como “sala de visitas” do país nos mais Veiga, Azevedo Antunes ou Larragoiti. Hoje vem sendo tratado pelo governo federal.
importantes eventos internacionais por se sabe como a aventura da recuperação O presidente da República e seu ministro
ele sediados, como a Conferência das do Rio terminou. da Fazenda sustentam que, no contexto
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente As fotografias de Cabral e Eike de da atual crise, o Rio precisa ser tratado
e o Desenvolvimento (ECO 92), em 1992; cabelo raspado e vestidos de detentos no como “um estado como outro qualquer”.
os Jogos Pan-Americanos, em 2007; a presídio de Bangu falam por si mesmas. O Aos seus olhos, cuida-se tão somente de
Conferência das Nações Unidas sobre governante que redimira o estado e che- uma crise fiscal pontual, que será resolvida
Desenvolvimento Sustentável (Rio +20), gara a ser cogitado para a presidência da pela venda de uma estatal, a suspensão
em 2012; foi sede do Comitê Organizador República não passava de um cleptocrata de algumas dívidas e a contratação de ou-
da Copa do Mundo de 2014, abrigando que nada devia a ditadores africanos, com tras. A verdade, porém, é outra. O estado
a partida final e a cerimônia de encerra- seu estilo de vida nababesco, composto apresenta uma crise específica, muito
mento; por fim, a integralidade dos Jogos por dúzias de contas no exterior, centenas mais profunda e duradoura. Suas causas
Olímpicos de 2016. de diamantes e outras joias, ternos italia- são históricas e não apenas econômicas,
Mas nem tudo é felicidade na sala de nos, latrinas polonesas e, suspeita-se, até mas também políticas. Se pretendemos
visitas da Nação. Sua beleza não escon- um iate de 75 pés. Já o império do novo compreender por que o Rio parece enfia-
de a decadência de sua mobília, nem as Guinle desmoronou como um castelo de do em uma crise crônica e não pontual,

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incapaz de comportar-se como “um estado de campo neutro entre elas, como Brasília. tornam seu funcionamento mais complexo
como outro qualquer”, é preciso ir fundo Trata-se, diversamente, de um lugar onde e disfuncional, fato que ajuda a explicar sua
na questão: o que deu errado? Quais as aquelas partes se reúnem para produzir decadência econômica e política.
causas desse declínio? Ele é reversível? uma unidade, na forma de uma síntese
Que saídas políticas definitivas podem do conjunto. Por esse motivo, sua crise RIO DE JANEIRO: DOIS SÉCULOS
ser pensadas para reverter esse quadro? específica não se limita a um problema DE CAPITAL DO BRASIL
É o que o presente artigo pretende estadual ou municipal. A questão é um A atual capital do estado do Rio de
discutir. A situação do Rio de Janeiro problema nacional fluminense e, como tal, Janeiro foi capital do Vice-Reino de 1763
interessa a todo o Brasil. Na condição será tratada aqui. a 1808; do Reino Unido de 1808 a 1822;
de vitrine da nacionalidade, tudo o que do Império de 1822 a 1889; da República
nela se passa ecoa no restante do país e 1. DE DISTRITO FEDERAL A CAPITAL DO NOVO de 1889 a 1960. Por 203 anos foi capital
afeta sua imagem no mundo. Se Brasília ESTADO DO RIO DE JANEIRO: A PRODUÇÃO oficial do Brasil e, até muito recentemen-
é hoje a capital federal, entendida como DE UMA INSTITUCIONALIDADE FRACASSADA te, sua única “metrópole nacional”. Sua
um espaço neutro em relação ao conjunto (1955-1975). centralidade decorreu do fato de sempre
de estados que compõem a União, o Rio Nesta primeira parte do trabalho, dese- ter sido, desde a origem, porto, centro
segue sendo percebida como a única jo mostrar que o problema fundamental do de logística e de articulação política e
capital nacional do Brasil. Não está iden- Rio de Janeiro, que o impede de comportar- cultural nacional (Lessa, 2000, p. 128).
tificada com uma parte ou região do país, -se como os outros estados da federação, Desse fato decorreu seu atributo único
perfeitamente definida em sua identidade, é que ele não é “um estado como outro e não compartilhado por nenhuma outra
como São Paulo, Porto Alegre, Belém ou qualquer”. Ele tem uma história e uma cidade brasileira até a consolidação de
Recife. Também não se limita à condição cultura política muito particulares, que Brasília: aquele de “capitalidade”, ou

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seja, “de função de representar a unidade tal pouco ou nada significava de concreto. rico Nacional, (1922), a Escola Nacional de
e síntese da nação, que ainda hoje é o As constituintes só serviam para que as Música e o Banco do Brasil (1926).
elemento fundamental da identidade oligarquias estaduais manifestassem seu Ao longo das décadas de 1930 e 1940,
política do Rio de Janeiro” (Motta, 2001, desejo demofóbico de subtrair o governo o investimento na capitalidade do Rio de
p. 17). Essa “capitalidade” se exprime federal às injunções da única metrópole Janeiro republicano continuou célere. O
por meio de determinada cultura política, brasileira daquele tempo, pondo-a a salvo eclipse do sistema oligárquico-federativo
devido à presença material dos símbolos em um ponto diante, “neutro” e “seguro” em 1937 levou o nacionalismo do Estado
do poder e por um imaginário ideológico (Motta, 2001, pp. 38-51; Lynch, 2014). Novo a suprimir o dispositivo mudancista
de representação da totalidade da nação. Mas os muxoxos oligárquicos não eram em sua nova Constituição. Getúlio Vargas
Ajudou na composição específica daquela levados a sério.4 decidiu transformar a Esplanada do Castelo
“capitalidade” a geografia peculiar da em bairro ministerial. Fez concursos de

Q
cidade, que remetia à natureza luxuriante uinze presidências de três regi- arquitetura para construir os novos palá-
do país. Tudo isso contribuiu para que o Rio mes sucessivos os ignoraram cios destinados a abrigar os ministérios
de Janeiro se tornasse desde a chegada solenemente. A Primeira Repú- do Trabalho, da Aeronáutica, da Fazenda e
de Dom João VI a vitrine da Nação. blica investiu pesadamente na da Educação – este, símbolo primeiro da
Existe uma lenda, inventada pelos organização da antiga Corte tendo em arquitetura modernista no Brasil. Fez igual-
defensores da mudança da capital para vista sua condição de capital do Brasil. Os mente erigir, nas cercanias, as igualmente
Goiás, durante o governo JK, segundo a palácios do Itamaraty e do Catete foram monumentais sedes dos ministérios da
qual o Rio seria uma espécie de capital do comprados para servirem à Presidência, Marinha e do Exército. Construiu a Escola
Brasil provisória, encarregada de guardar o respectivamente, em 1890 e 1897, quando de Educação Física do Exército, na Urca;
tesouro do governo nacional, enquanto não o primeiro passou a sediar o Ministério das Escola de Saúde do Exército, no Centro; e
se erigisse a capital verdadeira e definitiva. Relações Exteriores. O novo palácio do Escola do Estado-Maior, na Praia Verme-
De acordo com essa narrativa fantástica, Supremo Tribunal Federal foi inaugurado na lha. Fez construir a Cidade Universitária, a
porque vista em sonhos por beatos es- Avenida Rio Branco recém-construída em Estação Dom Pedro II da Estrada de Ferro
trangeiros ou cogitada a cada 50 anos por 1909; o Palácio Guanabara, antiga residên- Central do Brasil; o Entreposto de Pesca; a
um ou outro político ou historiador isolado, cia da princesa Isabel, foi reformado para nova Alfândega; a nova sede da Imprensa
Brasília teria supostamente existido em se converter em residência presidencial, Nacional (Reis, 2015, pp. 58-77).5 O Palácio
potência cerca de dois séculos antes que em 1922. O Legislativo também recebeu das Laranjeiras foi adquirido para servir de
ela existisse de fato. Seu “espírito” teria novas acomodações: o Palácio Monroe residência a visitas estrangeiras ilustres em
somente aguardado o momento em que o foi luxuosamente adaptado para servir ao 1947 e logo se tornou residência oficial.
herói destinado pela Providência – Jusceli- Senado Federal, em 1925; no ano seguinte, Tudo isso foi feito com ânimo definitivo por
no – nascesse para cumprir o seu destino a Câmara dos Deputados inaugurou sua quem acreditava que o Rio de Janeiro era a
e construí-la. nova sede, o Palácio Tiradentes. A reforma capital definitiva do Brasil. Os palácios mi-
A verdade é que o Rio de Janeiro era do Itamaraty, com a construção do monu- nisteriais e as sedes das mais importantes
uma capital nacional plena, sem sombras mental edifício da Mapoteca, se concluiu repartições federais estavam estalando de
e sem medos, e como tal foi tratada pelo em 1930. Isso sem falar nos investimentos novos, quando Juscelino tirou da cartola a
Brasil e por seus governos. Durante o na reforma ou construção de outras repar- ideia de abandoná-los para recomeçar a
Império, a mudança da capital jamais foi tições e equipamentos culturais como o construí-los pelo sertão de Goiás.
levada a sério por nenhum gabinete da Museu Nacional (1892), o Silogeu Brasilei-
monarquia; nem nunca foi mencionada em ro, sede do Instituto Histórico e Geográfico A MUDANÇA DA CAPITAL E A ILUSÃO DA
qualquer Fala do Trono. O fato de que as e da Academia Brasileira de Letras (1905); AUTOSSUFICIÊNCIA
constituições republicanas de 1891 e 1934 a Escola Nacional de Belas Artes (1908), a A obsessão federalista de mudança
previssem liricamente a mudança da capi- Biblioteca Nacional (1910), o Museu Histó- da capital, esquecida pelo nacionalismo

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do Estado Novo, foi relembrada na Consti- pressão do “populismo” da capital federal, No nível do antigo Distrito Federal,
tuinte de 1946 por Arthur Bernardes, velho ao qual Juscelino, político mineiro e afeito parece também não ter havido grande
oligarca da Primeira República hostilizado aos métodos tradicionais, tinha verdadeira resistência à ideia. Por quê? Em primeiro
durante seu mandato presidencial pela alergia. lugar, os políticos cariocas estavam mais
população carioca. A ideia voltara depois preocupados com a autonomia do então
ao costumeiro banho-maria quando resga- Sendo o Rio de Janeiro a mais cosmopolita Distrito Federal, cujos governantes eram
tada por Juscelino Kubitschek, do Partido das cidades brasileiras, polo de atração desde 1891 nomeados pelo Presidente da
Social Democrático (PSD). Ele calculava junto aos demais estados por suas ideias República e cujos vereadores eram tutela-
que a mudança da capital poderia lhe renovadoras, era visto pelos governantes dos pelo Senado Federal (Ferreira, 2006,
atrair a simpatia dos estados do Norte federais como um lócus sobre o qual o p. 174). Para o grosso da opinião pública,
e do Centro-Oeste, além de consolidar controle político deveria ser mantido. a mudança não se efetivaria e, caso se
sua posição em Minas. Para conquistar o (...). A população carioca nem sempre se efetivasse, além de lenta, nunca seria
eleitorado de São Paulo, onde sua votação mostrou ‘ordeira’ e, volta e meia, explodia definitiva. Seria impossível que órgãos que
havia sido pouco expressiva, Juscelino em manifestações de violência e protesto dependiam da interação com a sociedade
acenava com a criação do primeiro polo que podiam ser consideradas ameaçado- civil e o mercado, como bancos estatais,
metalomecânico do Brasil, no ABC. Pre- ras. Assim, a justificativa para o exercício comissões mobiliárias, bibliotecas e mu-
feriu investir, portanto, fora do Rio, cuja do controle sobre a cidade estaca no seu seus de arte e história, sobrevivessem em
cultura “populista” propendia a polarização papel de capital do país (Ferreira e Dantas, Brasília. Na condição de principal, mais
entre a esquerda trabalhista e a direita 2015, p. 85). rica e populosa cidade do país, “coração
udenista. Seu partido, que era o mais do Brasil”, o Rio de Janeiro continuaria
oligárquico e tradicional dos três, nunca Um jovem diplomata encarregado pelo como capital de fato. Além disso, naqueles
gozara de “grande densidade eleitoral, governo Juscelino de fazer a defesa da anos de euforia, ninguém imaginava que
sempre tendo que disputar espaço com mudança argumentava em 1958: a cidade fosse dependente da presença
uma miríade de pequenos partidos, alguns federal na escala que se revelou depois.
mais e outros nem um pouco relevantes” Uma grande cidade, com suas influên- Havia difusa a percepção de que o Rio
(Amorim Neto e Santos, 2003, p. 481). cias, suas paixões, os exageros de uma era tão autossuficiente que permaneceria
Para convencer o mundo político e a imprensa por vezes leviana e os perigos em relação a Brasília como Nova York em
sociedade brasileira da necessidade da constantes que podem surgir de uma po- relação a Washington. Por isso mesmo,
mudança, Juscelino reuniu uma rede de pulação mestiça, altamente emotiva, num a Lei San Tiago Dantas (3.752/1960),
propagandistas. Alguns argumentos, como ambiente irritante de estufa, não parece que determinou a conversão do antigo
a necessidade de desenvolver o interior do ser a sede mais indicada para uma admi- Distrito Federal em Estado da Guanabara,
país, visavam a angariar prosélitos à sua nistração eficiente, capaz de se exercer suprimiu o subsídio federal que contribuía
esquerda, junto ao nacionalista Partido com âmbito nacional (Penna, 1958, p. 308). para o sustento dos órgãos de justiça e
Trabalhista Brasileiro. Outros eram de na- segurança pública e mandou que o Estado
tureza geopolítica: levar a capital para um Dos grandes partidos, apenas o favo- da Guanabara passasse a arcar sozinho
lugar mais seguro em caso de guerra. Este rito da classe média urbana oposicionista, com toda a despesa.6 O governo federal
era um argumento destinado a convencer a União Democrática Nacional (UDN), também não se previu à cidade do Rio de
os militares, sem o qual nada era possível torceu o nariz para a ideia. Mas deixou o Janeiro qualquer espécie de indenização,
(o “partido militar”). As razões de fundo, barco seguir viagem, na esperança de que nem simbólica nem financeira, pelo golpe
porém, eram as mesmas de sempre e ele adernasse, e com ele, o timoneiro. A mortal que lhe vibrava.
calavam fundo no seu próprio partido, o torcida do “quanto pior melhor” acabou Da mesma maneira que é um erro acre-
conservador Partido Social Democrático: servindo também de incentivo para não ditar no providencialismo da propaganda
era preciso subtrair o governo federal da obstar a medida. mudancista, segundo a qual o Rio teria

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sido uma capital provisória durante mais de do seu mandato – oito meses – fora de por uma inflação galopante e que era
duzentos anos, esperando pacientemente Brasília (Mendes, 1995, p. 26) devido, em grande medida, à execução
a materialização de Brasília, também é erro atabalhoada e improvisada do seu Plano
supor que a cidade teria deixado de sediar Durante os governos Jânio Quadros de Metas – e, sobretudo, a construção de
o poder federal no dia 21 de abril de 1960. e João Goulart, o ritmo da transferência Brasília, sua “meta-síntese”.
Conforme o previsto, a nova Cidade-Estado da capital foi quase paralisado. A política O resultado foi que, na prática, o Brasil
passou a fazer as vezes de distrito federal democrática que se disseminava entre continuou governado do antigo Distrito
oficioso, ao lado do oficial, transferido os novos políticos udenistas e petebistas Federal, tornado oficialmente Estado da
para Goiás. Eram duas capitais e assim, exigia a presença das massas, e isto era Guanabara, sede formal e real do BNDE e
imaginava-se, continuaria a ser: precisamente o que não havia na Novacap. real do Banco do Brasil e do Banco Central
Difíceis e incertos foram tais tempos para (Osório, 2005, p. 217). Por isso, quando
Os poderes legislativo e judiciário se insta- Brasília. A grande imprensa e nomes de eclodiu o movimento militar de abril de
laram, de fato, na nova Capital e aqui pas- destaque da vida nacional defendiam, 1964, as tropas do general Mourão não
saram a funcionar, desde o primeiro dia. Já abertamente, o retorno da capital para se dirigiram para Brasília, mas para o Rio.
o Poder Executivo era o grande ausente. o Rio de Janeiro (Mendes, 1995, p. 27). Quatro anos depois, a reunião ministerial
Ministros de Estado vinham aqui [ao novo A perspectiva da eleição presidencial de que resultou a edição do sinistro Ato
D.F.] apenas despachar com o Presidente de 1965 também era pouco auspiciosa. Institucional nº 5 pelo general Costa e Silva
e, às vezes, nem vinham, ficando semanas Juscelino enfrentaria Leonel Brizola (PTB) não teve lugar no Palácio do Planalto, mas
fora de Brasília, despachando de seus e Carlos Lacerda (UDN), líderes popula- no das Laranjeiras. Daí que a célebre pre-
gabinetes no Rio, onde os ministérios res sem interesse no projeto de Brasília. visão do tempo publicada no dia seguinte
mantinham suas instalações e a maior Mesmo Juscelino teria dificuldade em pelo Jornal do Brasil, alusiva ao evento,
parte do seu pessoal. O próprio presidente consolidar a cidade, tendo em vista o referia-se à temperatura política nas duas
Juscelino passou grande parte do resto dramático cenário econômico marcado capitais: “Tempo negro. Temperatura su-

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focante. O ar está irrespirável. O país está da repressão, do milagre econômico e da MDB, era considerado colaborador pelo
sendo varrido por fortes ventos. Máxima desconfiança crônica com a sociedade regime preocupado em impedir o retorno
de 38ºC em Brasília. Mínima de 5ºC nas brasileira: o Ministério das Relações Ex- da oposição “populista” (Ferreira, 2006,
Laranjeiras”.7 teriores deixou a Guanabara em 1970; os pp. 171-174).9
Entretanto, com a supressão do re- Ministérios da Fazenda e do Exército, assim

S
gime democrático e a cassação de suas como o Tribunal Superior do Trabalho, em ob o governo Geisel, a ditadura
principais lideranças “populistas”, o projeto 1971; o Ministério da Justiça e o Superior resolveu dar um passo além.
periclitante de Brasília ganhou uma aliada Tribunal Militar, em 1972. A primeira reunião Preocupados com a influência ex-
inesperada: a ditadura militar. Orientada por do Banco Central em Brasília se daria em cessiva de São Paulo no conjunto
uma mentalidade autoritária e tecnocrática, 1970, embora a nova sede só ficasse pronta da federação, os mandarins do regime
que impunha uma redistribuição do espaço em 1981. Começou então a remoção de entenderam ser necessário mobilizar a má-
territorial brasileiro a partir de um centro órgãos da administração indireta, como o quina da União para fortalecer os estados
decisório insulado por razões de “segurança Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, a fim
nacional”, a ditadura decidiu investir pesa- Educacionais (INEP), que resistiu no Rio até de servir-lhe de contrapeso. Em conso-
damente na transferência da administração 1975, e o Instituto Rio Branco, até 1976:8 nância com esse pensamento, o II Plano
para Goiás. O artigo 183 da Constituição Nacional de Desenvolvimento deliberou
de 1967, enviado ao Congresso para mera O fechamento do regime a partir de 1968 criar em Belo Horizonte um segundo polo
chancela, determinava que, dentro de seis apontou para um processo de investimen- metalomecânico capaz de rivalizar com o
meses, o governo lhe enviaria “projeto de lei to na capitalidade de Brasília (...). Não foi de São Paulo. Ao Rio de Janeiro seria des-
regulando a complementação da mudança, por acaso que, no período correspondente tinada a missão de sediar indústrias novas
para a Capital da União, dos órgãos fede- ao governo do General Médici (1969- e atividades tecnológicas de ponta, como
rais que ainda permaneçam no Estado da 1974), se realizou a transferência dos a nuclear (Lessa, 2001, p. 349).
Guanabara”. Com a promulgação da Lei nº principais órgãos decisórios do estado [da A estratégia geopolítica da seguran-
5.363/1967, assinada pelo general Costa e Guanabara] para o novo Distrito Federal ça nacional exigia, porém, uma medida
Silva, a maior parte dos novos edifícios mi- (Motta, 2001, p. 262). preliminar: a eliminação do estado da
nisteriais brasilienses começou a ser cons- Guanabara. O general Geisel e seu círculo
truída a toque de caixa. A decisão coincidia A FUSÃO DA GUANABARA COM O ANTIGO íntimo, encabeçado por Golbery do Couto
com o recrudescimento da contestação ao ESTADO DO RIO: UM ATO IMPERIAL e Silva, consideravam a Cidade-estado
regime pela sociedade civil e pela guerrilha Mas a ditadura militar não se satisfez uma “aberração” no quadro federativo.
urbana, cujo emblema foi o episódio do em esvaziar a Guanabara dos centros Argumentava-se que a Guanabara era uma
sequestro do embaixador americano, na decisórios do poder. Como vimos, com o cabeça sem corpo, e o estado do Rio, um
saída de sua residência, em Botafogo, em golpe militar a “ex-capital da República, corpo sem cabeça. O depoimento é do
1969. Eventos como aqueles só reforçavam sua polarização ideológica e sua influên- próprio Geisel:
o desejo do governo de providenciar a saída cia sobre a política nacional tornaram-se
do Rio de Janeiro o mais rápido possível, na alvos preferenciais de intervenção do Isso já estava nas minhas cogitações antes
busca do máximo de isolamento social. O novo regime autoritário” (Amorim Neto e de assumir a presidência da República. Já
milagre econômico aliado ao autoritarismo Santos, 2013, p. 481). Durante o governo era um assunto que se analisava e desde
político criava o ambiente propício para que Médici, o esforço passou a girar em torno então foi acertado. Depois se aprofundou
a mudança se processasse sem protestos dos meios de despir a Guanabara de sua o estudo. Golbery [do Couto e Silva], Heitor
e em uma velocidade de deixar o próprio cultura de capital a fim de enquadrá-la em [Ferreira] e Petrônio [Portela] preparam a
Juscelino pasmado. uma lógica “estadualista”. Daí a relação solução. Estudou-se como se tinha de fa-
Assim, Brasília se consolidou justamen- ambígua mantida com Chagas Freitas, zer e preparou-se a legislação (In: D’Araújo
te no governo Médici, época do apogeu governador que, embora pertencesse ao e Castro, 1997, p. 385).

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Praticamente ausente em 1960, em encerrado: “Reclamam de eu não ter feito porque o estado já o havia tombado e nada
meio à euforia desenvolvimentista do um plebiscito”, comentou Geisel. “Ia ser seria construído em seu lugar. Diversas
governo JK e à ilusão de autossuficiência dispendioso e eu não pretendia mudar associações e o próprio município, que
da cidade do Rio de Janeiro, o tema da a minha opinião” (In: D’Araújo e Castro, nascera sem imóvel nenhum, solicitaram
decadência ou do esvaziamento já então 1997, p. 385). Imposta do alto, a fusão sua cessão. Tudo em vão: o venerando
dava o ar de sua desgraça. A Federação foi acertada pela lei complementar nº 20 palácio foi posto abaixo, e seus objetos
das Indústrias do Estado da Guanabara de 1975. Para executá-la, Geisel escolheu decorativos, vendidos a preço vil como
(FIEG) e o Centro Industrial do Rio de um interventor militar, o almirante Faria ferro-velho. O mesmo destino teve o an-
Janeiro (CIRJ) se manifestaram favorá- Lima, encarregado de não prestar contas a tigo edifício do Ministério da Agricultura,
veis à fusão. Cientes de que a Guanabara ninguém senão a ele mesmo. Era conforme de grande solidez e em perfeito estado
vinha sofrendo um esvaziamento econô- o depoimento de Ronaldo Costa Couto, de conservação. Geisel também mandou
mico desde a transferência da capital, admirador de Brasília, mas auxiliar do novo demoli-lo, para que em seu lugar se cons-
atribuíam-no, todavia, ao fato de que a interventor: “Estávamos em pleno regime truísse outra praça vazia:
Cidade-Estado carecia de um “espaço militar, e o presidente Geisel mandava e
vital” para o consumo de seus produtos. desmandava” (Moraes e Sarmento, 2001, A partir do governo Geisel, a transferência
Já a Associação Comercial e Industrial do op. 119). da capital para Brasília estava definitiva-
antigo Estado do Rio se opunha à fusão, Em 15 anos, a cidade do Rio, de distrito mente consumada. A fusão e o desejo de
alegando que, se Niterói deixasse de ser federal, descera à condição de estado transformar o Rio em ‘um município como
a capital, as empresas fluminenses se para terminar como “um município como outro qualquer’ aprofundavam a política de
mudariam imediatamente para o Rio, re- outro qualquer”. Pela segunda vez, a União esvaziamento da cidade como tradicional
petindo em escala menor o que acontecera não indenizava a região fluminense pelas vitrina do país. O processo de municipaliza-
com a transferência do distrito federal decisões que lhe impunham e compro- ção, que implicou a subordinação do poder
para Goiás, aprofundando a decadência da metiam o seu futuro. Tal qual se passara local ao governo do estado e a irracional
velha província. O economista liberal Eugê- com a criação do Estado da Guanabara, redistribuição dos bens e serviços da ex-
nio Gudin demonstrou longamente, pelas a lei complementar que regulou a fusão -Guanabara (o estádio do Maracanã e o
páginas dos jornais, o desastre que seria não concedeu qualquer compensação ou Teatro Municipal ficaram, por exemplo,
a fusão de um estado do Rio empobrecido indenização a nenhum dos lados. Houve sob a responsabilidade da administração
com uma Guanabara já combalida. Ela fartas promessas de investimentos, estadual), expressa as contradições do
não traria nenhum benefício ao primeiro e naturalmente descumpridas – fato que projeto da fusão, ao querer retirar da antiga
terminaria de esmagar a segunda (Ferreira provocou um incidente entre Faria Lima e o capital a simbologia de cartão postal do
e Grynzspan, 2015, p. 144). então ministro da Fazenda, Mário Henrique país, mas ao mesmo tempo concebê-la
Simonsen, que os levou quase à ruptura como um dínamo incumbido de levar

A
ideia da fusão entre a Guanabara (Motta e Sarmento, 2001, p. 76). Ao mes- energia para o novo estado. A fusão, em
e o antigo estado do Rio não era mo tempo, o governo federal prosseguia nome de um projeto de desenvolvimento
nova, mas sempre encontrara transferindo os órgãos da administração nacional, implementou estratégias políti-
resistência e havia sido derrotada direta e indireta para Brasília. cas de disciplinarização da cidade do Rio
em ambiente de discussão democrática.10 Mas a política de esvaziamento do e de diluição de uma identidade ancorada
O líder da oposição, o deputado Ulysses Rio passava também por desvalorizar e num passado de capital do país (Ferreira,
Guimarães, chamara a medida de “ato apagar os símbolos de sua “capitalidade”. 2006).
imperial” e se movimentou no sentido de A decisão de mandar demolir o Palácio
consultar as populações afetadas (idem, Monroe, antiga sede do Senado Federal, O projeto geopolítico da ditadura, de
ibidem, p. 148). Mas, para a União Federal foi tomada pessoalmente pelo general Gei- equilibrar o poder paulista pela criação de
refestelada em Brasília, tratava-se de caso sel. A opinião pública se sentiu afrontada, um novo estado do Rio, foi tão bem-suce-

26 JUSCELINO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

dido quanto aquele outro mais famoso, o da da industrialização brasileira, criando uma econômico da região Sudeste como um
Transamazônica. É o que veremos a seguir. diferenciação estrutural em relação ao Rio todo (6,7% a.a.).
que se revelou irreversível dali por diante Os governos do estado da Guanabara
UMA DECADÊNCIA CADA VEZ MENOS (Lessa, 2001, p. 348). e, depois, do novo estado do Rio de Janei-
ELEGANTE Igualmente ilusória era a ideia de ro não foram capazes de suprir o vazio dei-
Há mais de 20 anos, os estudiosos que a cidade do Rio poderia se sustentar xado pela ausência crescente da União. A
da história econômica do Rio de Janeiro sozinha. A condição de capital federal crise ficou longamente maquiada, graças à
vêm apontando para a existência de uma lhe assegurava a condição de sede de demora da efetiva transferência da capital
crise específica no estado, cuja causa efi- “serviços sofisticados, como o núcleo de e ao “milagre econômico”, que propiciou
ciente teria sido a transferência da capital, comando do sistema bancário, sediando investimentos como a Ponte Rio-Niterói e o
seguida pela fusão sem indenizações ou os escritórios centrais da maioria das Metrô (Osório, 2005, p. 95). A decadência
compensações, como reconheceu Ronaldo grandes empresas, sendo portal de visi- só ficou visível na década de 1980, quando
Costa Couto: tantes nacionais e estrangeiros, alimen- a crise que atingiu a região fluminense de-
tado por contínuas e crescentes injeções sarticulou seus setores mais tradicionais,
“Para o Rio foi horroroso. Deixou de ser o de gasto público” (Lessa, 2000, pp. como a indústria de transformação e o
Distrito Federal, perdeu órgãos públicos, 237-238). A dependência das atividades setor têxtil. Por um lado, percebeu-se o
investimentos, renda, status. Mas não do governo federal se estendia ao antigo fracasso da estratégia industrializante dos
perdeu nenhum problema nem ganhou Estado do Rio. A predisposição da União, governos da Guanabara e do novo Estado
renda alguma” (Motta e Sarmento, op. desde a Revolução Constitucionalista de do Rio; por outro, “patenteou-se o efeito
cit., p. 110). 1932, de criar um contraponto ao forta- corrosivo da transferência da capital. A
lecimento vertiginoso do estado de São expressão ‘esvaziamento do Rio’ tornou-
Em primeiro lugar, era ilusória a ideia, Paulo, atraiu para a “velha província” – que -se lugar comum” (Lessa, 2001, p. 351).
difundida pelo governo JK, de que a cidade orbitava política e economicamente em Começou, então, o êxodo do setor finan-
do Rio “tiraria de letra” a saída da adminis- torno do Distrito Federal – uma série de ceiro para São Paulo, sangria equivalente
tração federal. O Distrito Federal perdera grandes investimentos, como a Compa- na economia àquela operada por Brasília
a condição de nau capitânia da industria- nhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Fábrica no campo político. Até então, os bancos
lização brasileira para o estado de São Nacional de Motores (FNM), a Companhia sediados no Rio representavam 66% dos
Paulo na década de 1920, mas mantivera a Nacional de Álcalis e a Refinaria Duque créditos fornecidos ao público do país. A
posição de sede da mais importante, rica e de Caxias (REDUC). Esses investimentos superioridade da Bolsa carioca se manteve
populosa cidade do Brasil. Foi precisamen- contribuíram para que a atual região flu- até o final da década de 1970 e daí em
te quando Juscelino tirou da manga a ideia minense acompanhasse o crescimento diante começou a ceder até quebrarem-na
de transferi-lo para Brasília – nem antes,
nem depois – que a cidade de São Paulo

TABELA 1
ultrapassou o Rio de Janeiro como maior

POPULAÇÃO DO RIO X POPULAÇÃO DE SÃO PAULO, DE 1920 A 1970


cidade do país. Foi, assim, um duplo golpe
que JK desfechou sobre a Velhacap: com
uma mão, providenciou a retirada da ad-
POPULAÇÃO DO POPULAÇÃO DO MUNICÍPIO
PERÍODO
RIO DE JANEIRO (DF-GB) DE SÃO PAULO (SP)
ministração federal; com a outra, ignorou
a necessidade de compensá-la e mandou
1920 1.157.873 579.033
instalar os complexos metalomecânicos e 1940 1.764.141 1.326.261
eletroeletrônicos no ABC paulista. Esta úl- 1950 2.377.451 2.198.096
tima medida determinou a centralidade de 1960 3.307.163 3.825.351
São Paulo como principal centro irradiador 1970 4.315.746 5.978.977

JANEIRO ‡ FEVEREIRO ‡ MARÇO 2017 27


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

em 1987 (Osório, 2005, p. 245; 2013, p. 33,34 %. Da mesma forma, de maio de extremamente necessários para a região
3). Em apenas cinco anos, de 1980 a 1985, 2004 a maio de 2005, sua região metro- (Pereira,1995, p. 166).
a participação do Rio no setor financeiro politana apresentava uma taxa de cres-

M
nacional caiu 37,4 %, enquanto a queda cimento ridícula, comparada às demais ais recentemente, Mauro Osó-
em São Paulo foi de apenas 2,3 % (Pereira, capitais brasileiras: 0,99 %, quando Porto rio, atual presidente do Instituto
1995, p. 165). Alegre, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo Pereira Passos, resumiu os fato-
e Recife, respectivamente, apresentaram res da decadência da economia
A região metropolitana do Rio de Janeiro, taxas de 5,63%, 5,45%, 5,40 %, 4,62% fluminense. Das cinco principais causas
ao invés de atrair indústrias, perdeu e 2,22% (Osório, 2005, p 25). Mesmo a elencadas, três delas podem ser imputa-
importantes unidades industriais. A forte ampliação da extração de petróleo das ao governo federal. As duas primeiras
Fábrica Nacional de Motores encerrou em alto mar não aumentou a participação e mais fatais foram de JK: transferir a
suas operações; o mesmo fez a Standard da economia fluminense na brasileira, capital e instalar o polo metalomecânico
Eletric. A indústria de construção naval, porque os demais setores econômicos em São Paulo. O Rio ficou privado dos
desfinanciada, penetrou numa crise seto- do estado se mantiveram com uma taxa investimentos federais na escala a que es-
rial que se estende até os nossos dias. A de crescimento muito inferior ao do país tava habituado e perdeu a oportunidade de
indústria têxtil mudou de endereço (...). (Osório, 2013, p. 5). garantir sua posição industrial. A terceira
Acabou-se a indústria de computadores: A que os economistas atribuem se- decisão foi de Geisel, que depois de orde-
a Cobra fechou as portas. Foi desativado melhante decadência? Segundo estudo nar a fusão da Guanabara com o antigo
o programa da Nuclebrás. A generosidade de André Pereira, no que diz respeito ao estado do Rio determinou a instalação do
federal com os programas de ciência e estado do Rio, o declínio data da perda segundo polo metalomecânico em Belo
tecnologia se converteu, nas décadas de importância da agricultura, desde a Horizonte. A região fluminense ficou assim
seguintes, num sufoco humilhante. Ao abolição da escravatura sem indenização especialmente suscetível ao impacto da
mesmo tempo, continuou a transposição decretada pelo Império. Quanto à trans- reestruturação produtiva internacional na
das funções sediadas no Rio para Brasília. ferência da capital, ele afirma: “A sua virada da década de 1970 para a de 1980:
O Rio, considerada capital turística do país, economia estava profundamente marcada
assistiu inerte à transferência da Embratur pela existência da capital do país, fato que A partir dos anos 1970 e 1980, a região
para Brasília. A representação política do acabou por diferenciar a cidade-capital do fluminense apresenta a mais baixa taxa de
Rio não foi capaz de impedir esta violência interior fluminense” (Pereira, 1995, p. 154) crescimento do PIB regional entre todas
(...) o setor financeiro contraiu-se desde as unidades da federação, fato que se
1970, tendo hoje reduzida a menos da A transferência do Distrito Federal para pode associar a um conjunto de fatores:
metade sua participação no PIB regional. Brasília acarretou o abandono da cidade a) a consolidação do processo de trans-
Dos 50 maiores bancos brasileiros, nove do Rio de Janeiro, como centro econômico ferência da capital para Brasília (década
tinham sede no Rio em 1970; em 1991, financeiro do país, marcando-a profunda- de 1970); b) a crise econômico-fiscal
só restavam cinco (Lessa, 2001, p. 350).11 mente quanto à queda nos investimentos, brasileira (década de 1980), que atinge
anteriormente canalizados para a região, mais fortemente essa região, dadas as
A decadência econômica pode ser retirados de órgãos públicos federais, e características históricas marcadas pela
medida em números. O Estado do Rio de deterioração da relação agricultura-in- conformação militar, pelo grande peso
Janeiro foi aquele em que sofreu a maior dústria-serviços. O Rio de Janeiro (Distrito das indústrias voltadas para o mercado
perda reativa no PIB total do país: passou Federal), na verdade, absorveu notáveis interno e pela presença expressiva de
de uma participação de 16,7 %, em 1970 fluxos de investimentos enquanto Capital serviços públicos e funcionários ativos e
para 10,8 % em 2010. Nesse meio tempo, Federal, porém, após a transferência da inativos; c) a crescente importância, na
a participação de São Paulo reduziu-se capital para Brasília, não soube de onde economia brasileira, dos complexos meta-
muito menos, passando de 39,43 % para tirar tal quantidade de investimentos, lomecânico, eletrônico e químico, a partir

28 JUSCELINO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

da retomada do crescimento em 1968, ministeriais, 5,3%. No período de 1985 a consolidação de Brasília promovida pelo
os quais se encontravam, nesse período, 2010, o peso médio do Rio nos gabinetes general Médici, seguida pela fusão entre
instalados, sobretudo, em São Paulo e, a presidenciais caiu novamente, para 4,6%, a Guanabara e o antigo Estado do Rio,
partir dos anos 1970, também em Minas muito próximo ao nível do Paraná (4,0%) imposta por Geisel a fim de transformar
Gerais; d) a reestruturação produtiva da e de Pernambuco (3,9%) (Amorim Neto e a cidade em “um município como outro
economia internacional, que ocorre a partir Santos, 2013, p. 475). qualquer”; e o novo ente federativo, em
de meados dos anos 1970 e atinge mais “um estado como outro qualquer”.
fortemente indústrias como a naval, a si- Embora a participação de outros esta-

P
derúrgica e a têxtil, com significativo peso dos também tenha oscilado ao longo dos ara além da responsabilidade
na economia da região fluminense; e e) a três períodos, Amorim Neto e Fabiano do governo federal, não haverá
falta de estratégias regionais adequadas Santos mostram que apenas o Rio caiu também uma parcela específica
ao desenvolvimento econômico-social de modo constante ao longo de todos. de responsabilidade das elites flu-
(Osório, 2005, pp. 24-25). Comprovam, também, que a região ca- minenses nessa assombrosa decadência?
rioca/fluminense foi a que sofreu a mais É certo que muito se deve à sua incom-
A decadência do Rio de Janeiro não drástica redução em sua presença nos petência estratégica e sua inépcia política
se deu somente no nível econômico, gabinetes presidenciais entre a primeira e administrativa. No período posterior a
mas também político. Embora uma não experiência democrática (1946-1964) e a 1960, não foram implementadas estra-
decorra automaticamente da outra, elas atual (1985-2013). O declínio da partici- tégias consistentes de desenvolvimento
certamente se inter-relacionam. Essa pação política do Rio na composição dos regional, nem políticas setoriais consisten-
decadência política pode ser aferida ministérios se inicia na mesma época da tes que empregassem as potencialidades
pela queda expressiva da participação decadência econômica, isto é, quando e vantagens comparativas disponíveis
no governo federal. Em recente estudo, os órgãos federais são transferidos em (Osório, 2005, p. 64). Apostou-se que o
Fabiano Santos e Octavio Amorim Neto le- massa para Brasília. futuro estava em competir pela vanguarda
vantaram dados referentes à participação da industrialização e que o problema da
de cariocas e fluminenses nos ministérios O ponto de inflexão que inaugura o de- Guanabara estava na falta de terrenos
da Terceira República (1946-1964), da clínio político do Rio de Janeiro foram as disponíveis e na infraestrutura (Osório,
ditadura militar (1964-1985) e da Nova presidências de Médici e Geisel, pois, a 2005, pp. 157-159). Tratava-se de uma
República (1985-2013), incluindo compa- partir desses 10 anos, nunca mais o Rio estratégia mimética e desfocada, incapaz
rações com outros estados. O resultado viria a ter uma cota do Executivo federal de compensar a perda ocorrida a partir
é estarrecedor: comparável aos picos que se observam da transferência da capital. No recente
entre 1946 e 1968 (Amorim Neto e San- período de bonança, durante o governo
O dado mais impressionante é o declínio tos, 2013, pp. 472-474). Cabral, também houve a notória falta de
da participação ministerial do Rio de Janei- coordenação e estratégia na aplicação de
ro. Em 1946-1964, o ex-Distrito Federal e Em síntese, a decadência da cidade renda do petróleo, de que era amostra a
os antigos estados do Rio de Janeiro e da e do estado do Rio têm como causas dilapidação dos recursos do petróleo em
Guanabara ficaram com 15,7% das nome- eficientes decisões diretas da União obras suntuárias na Costa Verde.
ações ministeriais, abaixo apenas de São Federal. A administração Juscelino Ku- O que o reconhecimento da incompe-
Paulo, com 20,7%. Sob o regime militar, o bitschek optou por consolidar a primazia tência gerencial das elites estaduais não
antigo Estado do Rio de Janeiro e o então econômica de São Paulo em detrimento explica é a sua longa duração. É que ela
recente Estado da Guanabara (até 1974) do Rio e privou-lhes dos investimentos é consequência estrutural da proximidade
e o novo Estado do Rio de Janeiro (a partir federais ao transferir a capital para Goiás, e da longa experiência de dependência
de 1975) receberam uma percentagem sem qualquer compensação. O declínio do Rio em relação ao governo federal.
consideravelmente menor de nomeações fluminense se tornou irreversível com a Ela nos leva a duvidar de que o estado

JANEIRO ‡ FEVEREIRO ‡ MARÇO 2017 29


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

nascido em 1975 possa algum dia cumprir exclusivamente na “luta ideológica”. uma série de dificuldades quando de sua
as expectativas de tornar-se “um estado redução forçada à condição de “qualquer”.

C
como outro qualquer”, como São Paulo ou ariocas e fluminenses estavam A mudança de status lhes impunha que
Minas Gerais. São duas principais razões também acostumados a ser ad- passassem a se comportar, não mais
desta descrença. ministrados por elites recrutadas como centro, mas como parte ou periferia,
em todo o país. A condição de articulando a defesa de seus interesses a
RAZÕES DA ANOMALIA FEDERATIVA (1): A centro nacional atraía para o Rio políticos partir dessa nova premissa. Mas isso não
PERSISTÊNCIA DA CULTURA POLÍTICA DE das mais variadas procedências, que se aconteceu. Seus deputados continuaram
“CAPITAL NACIONAL” faziam aqui eleger com plataformas que deixando de lado os interesses estaduais
O fato de ter o Rio de Janeiro sido nada tinham de municipais ou estaduais. em prol dos nacionais, ou a fazer a mais
capital do Brasil orientou o seu desenvolvi- Na eleição de 1958, por exemplo, as miserável das políticas de clientela local.
mento e modelou sua identidade de modo eleições para senador do Distrito Federal Seus governadores continuaram a oscilar
irreversível. O processo data da chegada foram disputadas por um mineiro (Afonso entre dois papéis básicos: ou o de “oposi-
de Dom João VI, quando a cidade se tornou Arinos de Melo Franco, candidato da UDN) tor radical e candidato à presidência”, inau-
sede do Império Português. Separada da e um gaúcho, Lutero Vargas (filho de Getú- gurado por Lacerda e seguido por Brizola
antiga província do Rio (1834), a cidade lio, pelo PTB). Nas eleições da Guanabara, e Garotinho, ou o de “prefeito nomeado”,
homônima, tornada Corte, foi submetida a em 1962, alguns dos principais candidatos retomado por Chagas Freitas e seguido
um duradouro regime destinado a diferen- eram perfeitos forasteiros: Aurélio Vianna, por Moreira Franco, Marcello Alencar
ciá-la das demais províncias e subordiná-la alagoano; Juracy Magalhães, baiano; e e Sérgio Cabral.12 O ex-deputado José
ao governo central. Na República, o Rio foi Leonel Brizola, gaúcho. O processo de Talarico deixou um notável testemunho a
convertido em Distrito Federal e passou construção da “capitalidade” do Rio de respeito das consequências deletérias da
a ser governado por prefeitos nomeados Janeiro também se faria sentir sobre o persistência da cultura política “de capital”
pela presidência da República. A cidade antigo estado homônimo, que servia de no novo estado do Rio:
dispunha, é certo, de uma Câmara Mu- caixa primeira de reverberação das de-
nicipal, mas as decisões dos vereadores cisões federais, com seus governadores Parece que os cariocas e os fluminenses
não eram terminativas e ficavam sujeitas e deputados trabalhando em Niterói, do não se deram conta de que o Rio deixou
à confirmação do Senado. Criou-se assim outro lado da Baía de Guanabara. Parte de ser capital da República. O carioca até
uma cultura cívica marcada pela presença significativa de suas lideranças também agora continua pensando no Rio de Janeiro
do poder federal e por sua interferência possuía dimensão nacional, e não esta- como capital do Brasil, como capital cul-
contínua no jogo municipal. Esse tipo de dual. O fenômeno seguiu até a década de tural, como capital de irradiação, e ainda
imbricação fez com que o espaço político 1950, quando estavam no primeiro plano não se deu conta de que nos tornamos
local sofresse um processo de diminuição da política figuras como Prado Kelly, Raul uma província, uma região, um estado que
social de relevância, inversamente propor- Fernandes, os dois Macedo Soares (José tem que disputar com os outros 22. E não
cional àquele concedido ao nacional. O Rio Eduardo e Edmundo), todos ministros de temos a experiência da luta regional que
se habituou a ser tutelado por um prefeito Estado várias vezes (Osório, 2005). Era os outros estados obtiveram durante todos
nomeado e nunca valorizou o voto para a “lógica nacional”, ideológica, progra- esses anos. Anteriormente, e até agora,
vereador. A cidade viu seus interesses mática, que orientava a política carioca/ exatamente pelas invenções que o gover-
serem atendidos sempre subordinados à fluminense. no federal continua fazendo aqui no Rio de
função maior da nação. Da mesma forma, Esse histórico de sede do poder Janeiro, não disciplinamos uma política
centro da política nacional, não precisando federal por séculos, gozando de todos regional, não disciplinamos uma adminis-
disputar investimentos com os estados, os privilégios e males a ele inerentes, tração regional, não sabemos até como
o Rio pôde se dar ao luxo de desenvolver imprimiu nas elites cariocas/fluminenses postular, como reivindicar determinadas
uma cultura política nacional, centrada uma mentalidade política que lhes trouxe vantagens e proventos que são dados aos

30 JUSCELINO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

estados. Enfim, ao carioca e ao fluminense Brasil, são nacionais, ninguém faz cam- federal, decorrente de sua conformação
está carecendo de uma definição regional. panha pelo estado. Na Bahia, não se fala histórica de capital, é uma das maiores
Ainda não houve assim o convencimento em petroquímica sem dizer quem é o pai: responsáveis pela sua decadência do Rio.
de que passamos a estado ou passamos a a briga lá é saber se é o Antônio Carlos Basta imaginar, analogicamente, ao que
província. (Talarico, 1979, p. 122). Magalhães ou o Luís Viana Filho. Aqui no ficaria reduzida Brasília se a capital fosse
Rio de Janeiro, a gente fala de indústria hoje removida de lá e entregue aos seus
Nem se imagine que este seja um petroquímica e ninguém dá bola (Moraes péssimos governadores, como Joaquim
fenômeno puramente político. Até hoje, a e Motta, 2001, p. 60-61). Roriz, Paulo Octávio e José Roberto Ar-
despeito da multiplicidade de universida- ruda, que nada ficam a dever aos seus
des em seu território, o estado não dispõe Assim, diferentemente dos outros equivalentes fluminenses, como Anthony
de nenhum programa oficial de pesquisa estados, o Rio de Janeiro não tem como Garotinho e Sérgio Cabral. Imagine-se, por
permanente em economia regional, ao ser ou se comportar como outro qualquer, fim, caso Brasília se tornasse capital de
contrário do que se passa nos estados porque nenhum outro Estado ou capital da Goiás, o que seria de Goiânia. Estaria como
limítrofes (Osório, 2013, p. 8). Quando federação passou pela experiência que o Niterói, reduzida, também ela, à condição
indagado, na década de 1990, por que o diferenciou. O estado do Rio não desenvol- de município “como outro qualquer”.
empresariado carioca pensava apenas em veu oligarquias autônomas, estruturadas
termos nacionais, o antigo interventor Faria em torno da defesa dos interesses regio- RAZÕES DA ANOMALIA FEDERATIVA (2): O RIO
Lima respondeu: nais. Seja no estilo “combativo-ideológi- DE JANEIRO AINDA É UM DISTRITO FEDERAL
co”, seja no de “política de bica d’água”, DISFARÇADO DE CAPITAL ESTADUAL
Mas isso não é exclusividade do empre- tudo continua a girar em torno do governo É o caso de se perguntar, a esta altura,
sariado. Ninguém dá bola para o estado. federal. Essa incapacidade de articular a se o desenvolvimento de uma mentalidade
Os jornais, como O Globo e o Jornal do defesa dos interesses estaduais no nível estadualista na região fluminense não

JANEIRO ‡ FEVEREIRO ‡ MARÇO 2017 31


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

seria mera questão de tempo. Para simbólica e cultural, como a Floresta da um verdadeiro distrito federal disfarçado
que os agentes políticos e econômicos Tijuca, a Ferrovia do Corcovado e os an- de capital estadual elimina qualquer
fluminenses se comportassem de modo tigos palácios ministeriais do Itamaraty, esperança de que a região fluminense
análogo às oligarquias mineiras, paulistas do Exército, do Trabalho, da Educação possa em qualquer tempo vir a perder a
ou capixabas, seria preciso esperar um e Cultura, da Fazenda e da Marinha. No “capitalidade” que alimenta sua cultura
pouco mais. atual município do Rio e arredores, ainda política. Como se percebe, é impossível
É claro que o futuro é insondável. Mas se assentam dezenas de autarquias, exigir que o Rio se comporte como um
o certo é que, mantidas as atuais condi- fundações e empresas públicas federais “estado como outro qualquer”, pela razão
ções, a probabilidade de que o Rio venha de pelo menos 14 ministérios, além de muito elementar de que ele não é “um
a perder sua “capitalidade” é nenhuma. quatro universidades federais. Os dados estado como outro qualquer”.
A experiência estadual já dura 57 anos, são impressionantes, porque demonstram

P
contados da mudança oficial da capital, ou que, no ranking das capitais estaduais que or outro lado, essa presença maci-
de 42, contada da fusão. O problema não é mais sediam órgãos federais, o Rio de Ja- ça de servidores públicos federais,
de tempo, pois que este já foi o bastante. neiro está disparado na frente, possuindo empresas públicas e fundações ou
O Rio não perdeu sua condição de capital oito vezes mais do que Recife, a segunda autarquias, muitíssimo superior
simbólica, cultural, ou cidade síntese do colocada (gráfico 1).14 às demais capitais estaduais, tem se
Brasil. Não perdeu e, bem se vê, não a Da mesma forma, é surpreende o fato revelado insuficiente do ponto de vista
deixam perder. Não foi por outra razão que de que o Rio de Janeiro continue sendo o de sustentação e ordenamento da região
ela foi escolhida pela própria União Federal estado da federação com o maior número conforme o figurino estadual em que a
– no lugar de Brasília ou São Paulo – para de servidores públicos civis federais do União a enfiou na década de 1970. Sua de-
servir de sede das primeiras Olimpíadas Poder Executivo, aí incluso o próprio cadência tem obrigado o governo federal
organizadas na América do Sul. Para que Distrito Federal!15 (gráfico 2) Sem falar a cada vez mais frequentes “intervenções
a perda da “capitalidade” ocorresse, seria no imenso contigente de militares lota- brancas” para resolver problemas locais.
preciso acontecer com o Rio o cataclisma dos no Rio de Janeiro, que no começo Assim foi quando das crises nos hospitais
que aconteceu com Ouro Preto no final do do século XXI correspondiam a cerca de municipalizados, que tiveram de voltar em
século XIX: perder a condição de capital, 60% dos servidores da Marinha, 38% da 2006 à esfera federal;17 para amenizar
cair num abismo de decadência econômica Aeronáutica e 28% daqueles do Exército crises de segurança pública decorrentes
e no completo esquecimento de tudo e (Lessa, 2001, p. 354). do domínio de extensas áreas da cidade
de todos. Mais espantoso ainda é verificar que pelo tráfico de drogas e pela perspectiva
Ainda que assim não fosse, a men- o Rio de Janeiro é o único estado da fede- de anarquia em época eleitoral. Hoje
talidade estadualista é virtualmente ração cujo número de servidores federais estamos a assistir mais uma intervenção
impossível de ser adquirida em uma nele lotados supera o próprio número dos velada, com o governador implorando aos
região que de estado só tem o nome. A servidores estaduais. O perfil do Rio, no poderes federais por mais dinheiro e mais
despeito do esvaziamento gerado pela tocante à presença do funcionalismo fede- tropas. Isto sem falar em empréstimos ou
transferência de todos os órgãos políticos ral, é idêntico ao do atual Distrito Federal, transferências de renda para embelezar a
dos três poderes e de todos aqueles da nada tendo de ver com aquele de estados cidade e maquiar os problemas urbanos
administração direta, o Rio de Janeiro limítrofes como São Paulo e Minas Gerais mais agudos por ocasião dos eventos
continua a ser um Distrito Federal dis- (gráfico 3).16 internacionais que a própria União resol-
farçado de capital de estado. A União Esse peso extraordinário do governo ve sediar no Rio de Janeiro. O resultado
continua sendo a maior proprietária da federal no Rio de Janeiro torna o estado dessa incapacidade para o autogoverno
cidade, com mais de 1.200 imóveis,13 completamente anômalo no conjunto municipal e estadual foi aquele descrito
entre as quais equipamentos icônicos da federação. O fato de que a antiga há dez anos pelo segundo prefeito do Rio,
de sua identidade, de grande densidade Guanabara, em particular, continue a ser Israel Klabin:

32 JUSCELINO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O que vejo hoje é uma cidade amedrontada

GRÁFICO 1
com a violência, desesperada com a falta

DISTRIBUIÇÃO DOS ÓRGÃOS FEDERAIS DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA E INDIRETA,


de serviços básicos, marcada muito mais
EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA PELO DISTRITO pela favela e pela queda da qualidade de
FEDERAL E PELAS CAPITAIS DOS ESTADOS vida do que por uma esperança de vida

140
melhor. As diferenças sociais são gritantes
e, pior, o Rio não é mais o centro da elite

120
pensante do país (Motta e Sarmento,
2001, p. 206).

100
2. A SOLUÇÃO LÓGICA DO PROBLEMA
80 NACIONAL FLUMINENSE: O
REENQUADRAMENTO JURÍDICO DO
60 MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO COMO
SEGUNDO DISTRITO FEDERAL
40

UMA SOLUÇÃO REALÍSTICA E PRAGMÁTICA


20
6 7 8 6 6 7 6 5 7
4 4 2 2 4 3 3 2 5 3 2 3 2 3
Na primeira parte deste trabalho,
0 buscamos mostrar que a crise fluminense
Campo Grande
Rio de Janeiro

Salvador
São Paulo

Macapá

João Pessoa

Natal
Goiânia

Porto Velho

Florianópolis
Brasília

Belém
Manaus
Recife
Fortaleza
Belo Horizonte

Porto Alegre
Cuiabá
Curitiba

Boa Vista
Rio Branco

São Luís
Teresina

Maceió

Vitória

não decorre apenas de uma “crise fiscal”.


Trata-se de uma crise específica que tem
sua principal causa na decisão da União
de remover a capital para Goiás e que
acarretou a perda de centralidade, de um
lado, para São Paulo (a econômica), e de
outro, para Brasília (a política). Essa crise
GRÁFICO 2 foi agravada pelas tentativas posteriores
QUANTITATIVO DOS SERVIDORES PÚBLICOS FEDERAIS CIVIS DO PODER EXECUTIVO
SEGUNDO AS UNIDADES DA FEDERAÇÃO
da União de esvaziar, domar ou disciplinar
a região pelo seu enquadramento em uma

300.000
lógica estadual na qual nunca conseguiu
funcionar de modo satisfatório. Habituado
250.000 à tutela federal, o novo estado inventado
200.000 pela ditadura em 1975 não dispõe de uma
150.000 cultura política “estadual”, nem de oligar-

100.000
quias próprias, concertadas e harmoniza-

50.000
das, habituadas a lutar pelos interesses
regionais como os demais estados, como
0 São Paulo e Minas Gerais.
Rio de Janeiro

São Paulo
Rio Grande do Sul
Pernambuco

Paraíba
Rio Grande do Norte
Minas Gerais

Bahia
Ceará
Paraná
Pará
Santa Catarina

Goiás
Maranhão

Rondônia
Piauí
Amazonas
Alagoas
Amapá
Mato Grosso
Mato Grosso do Sul
Sergipe
Acre
Distrito Federal

Espírito Santo

Tocantins

Também não há também expectativa


de que o Rio venha no futuro a se com-
portar “como os demais”. Ele continua a
se ver e a ser visto, pela própria União
Federal, como a cidade nacional do Brasil.

JANEIRO ‡ FEVEREIRO ‡ MARÇO 2017 33


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Além disso, a presença do governo federal e meia aventa-se a hipótese de desfazê-la. da administração federal continua lotada
na região continua estratosférica quando É duvidoso, porém, que a medida fosse no estado, cujo número de funcionários
comparada aos demais estados, tendo capaz, por si só, de reverter uma deca- ainda é superior ao do próprio Estado do
mais servidores federais do que o próprio dência preexistente à fusão, provocada Rio; se, por fim, o município do Rio de
governo estadual. Essa presença tem sido pela remoção do polo irradiador de dina- Janeiro ainda é, por si mesmo, um verda-
insuficiente, porém, para reverter seu mismo econômico causado pela presença deiro distrito federal disfarçado de capital
acentuado declínio. A consequência é que da capital. Por outro lado, uma solução estadual, contando com mais servidores
o Rio se tornou uma vitrine nacional cada realista não pode admitir a possibilidade públicos federais do que a própria Brasí-
vez mais deteriorada, a exigir crescentes de reverter a transferência da capital de lia, só existe uma única solução lógica,
intervenções do poder federal. Nesta Brasília, que é um um fato largamente do ponto de vista político e jurídico, ao
segunda parte do artigo, gostaríamos consumado. Ainda que assim não fosse, problema nacional fluminense: elevar o o
de propor medidas políticas e jurídicas, a hipotética remoção da administração Rio de Janeiro à condição formal de um
capazes de contribuir realisticamente pública em bloco de volta para o Rio só segundo Distrito Federal, na qualidade de
para a resolução do “problema nacional faria repetir o erro de 1960, despindo um segunda cidade capital do Brasil. Haveria
fluminense” a partir das informações e santo para vestir o outro. assim dois distritos federais, o de Brasília,
materiais anteriormente mencionados. no Centro-Oeste, e o do Rio de Janeiro, no

O
O primeiro ponto passa por admitir ra, se a causa da decadência do Sudeste do país. A medida faria com que
o fracasso do modelo do estado do Rio Estado do Rio de Janeiro foi a o epicentro da região fluminense voltasse
criado em 1975, que é impraticável. O mudança da capital para Brasília, a ficar sob a tutela permanente da União,
propósito da ditadura de criar um estado efetuada sem compensação; se o como outrora, sob o mesmo regime hoje
poderoso contraposto a São Paulo foi um novo ente federal fluminense, criado por vigente em Brasília.
completo fiasco. O novo estado do Rio ato ditatorial, claudica invariavelmente Quais seriam os benefícios decorren-
elege mal e se administra pior. Mas que em suas tentativas de agir conforme uma tes dessa mudança de estatuto para a
fazer, então, com a região fluminense? De- lógica estadualista, devido à persistência cidade e o Estado do Rio de Janeiro?
vido ao caráter autocrático da fusão, volta da cultura de “capitalidade”; se um terço O governo do distrito federal do Rio
de Janeiro (GDF-RJ) elegeria seu gover-
nador, tal como o município escolhe hoje
seu prefeito, e teria uma câmara distrital,
GRÁFICO 3
tal como hoje a tem de vereadores. Mas
QUANTITATIVO DE SERVIDORES PÚBLICOS FEDERAIS E ESTADUAIS NO DF, RJ, MG E SP as competências legislativas e tributárias
do GDF-RJ, ao exemplo do que se passa
600.000 em Brasília (GDF-BSB), compreenderiam

500.000
aquelas de nível municipal e estadual. A
oficialização do município do Rio como o
400.000 que é de fato – um segundo distrito federal
300.000
– acabaria com o famoso “jogo de empur-

200.000
ra” entre estado e município, decorrente
da fusão.18 Ela capitalizaria enormemente
100.000 a cidade, que passaria a dispor da receita

0
decorrente, não apenas os impostos mu-
Distrito Federal Rio de Janeiro Minas Gerais São Paulo nicipais, como o imposto predial (IPTU), o
sobre serviços (ISS) e o de transmissão
Servidores federais Servidores estaduais de bens imóveis (ITBI), mas também dos

34 JUSCELINO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

estaduais, no perímetro de seu território:


GRÁFICO 4 GRÁFICO 5
o de transmissão causa mortis e doação,
DISTRIBUIÇÃO DOS ÓRGÃOS FEDERAIS QUANTITATIVO DOS SERVIDORES
o imposto sobre circulação de mercadorias
e serviços (ICMS) e aquele que recai sobre E EMPRESAS PÚBLICAS ENTRE O PÚBLICOS FEDERAIS CIVIS DO PODER
MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO E O EXECUTIVO DIVIDIDOS ENTRE O DISTRITO
DISTRITO FEDERAL FEDERAL E O RIO DE JANEIRO
a propriedade dos veículos automotores
(IPVA). A cidade voltaria a dispor do nu-
merário necessário às suas necessidades
de ordenação urbana, provendo principal-
mente a manutenção do seu patrimônio,
RIO DE DISTRITO
JANEIRO FEDERAL
o investimento em educação pública e,
DISTRITO RIO DE
37% FEDERAL JANEIRO 41%
principalmente, em política habitacional.

63% 59%
Estaria mais bem equipada para promo-
ver políticas essenciais à reversão de
sua decadência econômica, garantindo a
segurança pública e políticas de reforma
urbana de natureza habitacional, voltada
para urbanização de favelas.
Além do patrimônio herdado do atual
município do Rio de Janeiro, o futuro A criação de um segundo distrito uso gratuito da cidade como sua segunda
GDF-RJ passaria a administrar também o federal no Rio de Janeiro converteria a capital oficiosa há mais de meio século,
patrimônio do hoje Estado do Rio situado atual situação de intervenção intermitente além compensá-la e à sua região por
em seus limites. As escolas públicas de da União por uma intervenção definitiva. todos os prejuízos advindos da mudança
ensino médio se integrariam às de ensino Conforme disposto no art. 21 XIII e XIV da capital e pela fusão imposta em 1975.
fundamental na rede pública distrital. A da Constituição, a União Federal voltará a É preciso lembrar que a Lei San Tiago
Universidade do Estado do Rio de Janeiro ficar encarregada, como ocorre hoje em Dantas (3.752/1960), que determinou a
(UERJ) e a UEZO (Universidade Estadual Brasília, de organizar e manter o Poder conversão do antigo Distrito Federal em
da Zona Oeste), hoje paralisadas e falidas, Judiciário, o Ministério Público e a Defen- Estado da Guanabara, não só lhe retirou
passariam também à órbita do GDF-RJ, soria Pública no Distrito Federal do Rio de aquele fundo como não previu nenhuma
tornando-se uma única Universidade do Janeiro, bem como a polícia civil, a polícia compensação ao Rio de Janeiro. Enquanto
Distrito Federal do Rio de Janeiro (UDFRJ). militar e o corpo de bombeiros militar. De- isso, na Alemanha, a pequenina cidade de
O mesmo aconteceria com todos os verá lhe prestar assistência financeira por Bonn foi regiamente recompensada pela
equipamentos culturais e esportivos do meio de fundo próprio, previsto na lei nº transferência da capital oficial da Alema-
Estado do Rio situados no atual perímetro 10.633/2002 para execução dos serviços nha para Berlim: recebeu, por determina-
do município: o Teatro Municipal, a Casa públicos de saúde e educação. Em 2016, ção legal, nada mais nada menos do que
de Cultura Laura Alvim, o Museu da Ima- através desse fundo, o governo federal be- 1,5 bilhão de euros por ano e o direito de
gem e do Som, a Sala Cecilia Meireles, o neficiou Brasília com cerca de treze bilhões continuar a sediar dois quintos de todos
Estádio do Maracanã, o Teatro Gláucio Gil, de reais – quase metade de todo o orça- os ministérios, que lá permanecem até
etc. Toda a rede hospitalar ficaria na esfera mento previsto pela prefeitura do Rio de hoje. Além disso, a mudança foi lenta, e
distrital e federal. O novo distrito federal Janeiro para o seu município para aquele o Parlamento levou quase dez anos para
acumularia a cobrança de impostos muni- mesmo ano, que possui mais que o dobro funcionar em Berlim.19
cipais, como impostos de transmissão de da população. O Fundo Constitucional do A reconversão da cidade do Rio de
propriedade e o ISS, com os estaduais, Distrito Federal do Rio de Janeiro serviria Janeiro em capital federal não beneficia-
como o IPVA, heranças e ICMS. de contrapartida do governo federal pelo ria apenas o atual município, mas, como

JANEIRO ‡ FEVEREIRO ‡ MARÇO 2017 35


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

outrora, o conjunto da região fluminense. moldura jurídica. Assume-se o distrito constitucional e sede do judiciário, fican-
No que tange ao Estado do Rio, as vanta- federal como oficial, de modo a regularizar do La Paz como sede do executivo e do
gens recaem principalmente sobre Niterói, de modo definitivo a tutela administrativa e legislativo. Na Holanda, Amsterdã é sede
cidade que sofreu com a fusão imposta financeira até agora intermitente e oficiosa da monarquia, mas administração funciona
pela ditadura militar, voltando a sediar o da União. A medida interromperia a sangria em Haia. No pequeno Montenegro, Pod-
governo estadual, recebendo seus órgãos de órgãos públicos para Brasília e serviria gortisa é a capital oficial, mas Cetinje é a
decisórios e administrativos. O governo para de reparação material e moral pelos capital histórica e sede da presidência da
estadual voltaria a gozar dos benefícios prejuízos decorrentes da mudança da República. Na África, o caso mais notório
da proximidade da parte do poder federal capital e pela fusão imposta pela ditadura. é o da África do Sul que, saído do regime
restabelecido na cidade do Rio e deixaria O reconhecimento do Rio de Janeiro como de apartheid, estabeleceu três capitais:
de arcar com as despesas que drenam segunda capital do Brasil contribuiria Pretória, administrativa; Cidade do Cabo,
verbas de saúde e segurança do interior. para atenuar e reverter os efeitos da legislativa; e Bloemfontein, judicial.
A separação político-administrativa for- decadência de toda a região fluminense, Também Benin, Costa do Marfim, Saara
mal, restabelecendo a situação anterior a especialmente a metropolitana – aí inclusa ocidental, Tanzânia e Suazilândia possuem
1960/1975, não acabaria com a sinergia Niterói, nova capital do estado do Rio. Por duas capitais. O fato se repete na Ásia, em
econômica hoje existente na região fim, a medida exigiria uns pouco acertos e países como a Malásia e Sri Lanka.
metropolitana, e que só se tornaria mais não hostilizaria a posição de Brasília como Para além dos países que possuem
positiva na medida em que melhorasse principal centro administrativo do país.20 mais de uma capital oficial, há dois casos
o ambiente de negócios do novo distrito que interessam por envolverem estados
federal, decorrente dos investimentos em POR QUE NÃO DUAS CAPITAIS? EXEMPLOS federativos igualmente populosos e regio-
saúde, educação e segurança pública. Por ESTRANGEIROS nalmente complexos como o brasileiro, e
fim, há maior esperança de funcionalidade A ideia de duas capitais foi sugerida à que os levaram a ter, na prática, mais de
na gestão estadual, na medida em que época dos debates sobre o que se fazer uma capital oficiosa ou de fato, sediando
a maioria esmagadora dos servidores com a cidade do Rio de Janeiro, diante da relevantes órgãos públicos federais.
públicos federais ficaria fora de sua ju- iminência da transferência da capital, pelo Refiro-me à Rússia e à Alemanha.
risdição territorial, do outro lado da Baía então deputado José Talarico (PTB-DF): A Federação Russa é composta por oi-
de Guanabara, como ocorria até 1975. O tenta e cinco estados. Suas duas principais
perfil administrativo do Estado do Rio se Possa o Rio de Janeiro, mesmo com a cidades, porém, não se submetem àquele
aproximaria assim daquele dos demais transferência da capital da República para regime, sendo dotadas de autonomia
entes federativos. Brasília, continuar como Distrito Federal. político-administrativa: são elas Moscou
Não há incompatibilidade, nem proibição, e São Petersburgo. Esta última foi capital

E
m síntese, a proposta de conversão nem veto, na Constituição relativamente da Rússia até 1918 e a primeira o é desde
do atual município do Rio de Janeiro à existência de dois Distritos Federais na então. A mudança não pacificou a questão
em um segundo distrito federal é comunidade brasileira (In: Motta, 2001, do papel de Petersburgo no regime federa-
uma solução realista e lógica, que p. 87). tivo, conhecida como a “capital do Norte”.
transforma em vantagem aquilo que até Os prejuízos advindos da transferência
agora tem sido desvantagem. Ela reco- A ideia não é amalucada. Há pelo da capital têm suscitado desde o fim da
nhece a sua situação de cidade que per- menos quinze países espalhados por todos União Soviética medidas reparatórias. Nos
manece como emblema da nacionalidade; os continentes que possuem mais de uma últimos anos, a antiga capital não apenas
que possui mais servidores federais que capital oficial (tabela 2). No Chile, Santiago passou a gozar do mesmo regime jurídico
Brasília e que ainda sedia um terço de sua é sede dos poderes executivo e judiciário, de Moscou, na qualidade de “região de
administração pública. A realidade político- permanecendo Valparaíso como sede do interesse federal”, como de outras iniciati-
-administrativa volta a coincidir com a legislativo. Na Bolívia, Sucre é a capital vas do governo russo. No intuito declarado

36 JUSCELINO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de garantir a independência do Poder Judi- mais interessante. Embora a capital oficial Desenvolvimento; e Correios e Telecomu-
ciário e aproveitar os prédios públicos da do país seja Berlim, reconsagrada depois nicações (extinto em 1998).22 Além disso,
antiga capital, o governo federal promoveu da reunificação do país, a antiga capital, a crença de que a autonomia do poder judi-
recentemente a transferência de Moscou Bonn, não ficou de mãos abanando, como ciário passa pela sua distância geográfica
para Petersburgo dos dois tribunais da ficou o Rio de Janeiro em 1960. Uma lei em relação à capital política determinou
Rússia: a Corte Constitucional e a Corte promulgada três anos depois decisão que os dois principais tribunais do país, o
Suprema Federal. A descentralização de remover a capital (1994) ficou uma Tribunal Constitucional Federal e da Corte
político-administrativa se justifica tanto indenização anual de 1,5 bilhão de euros Federal de Justiça, fossem instaladas na
pela necessidade de reparar Petersburgo, a Bonn, deu-lhe o título de Cidade Federal pequena cidade de Karlsruhe. Em suma, o
quanto de melhor aproveitar o patrimônio e determinou que 2/5 da administração fato de Berlim ser a sede oficial não elide o
da União na antiga capital, bem como pela pública lá permanecesse. Estão lá até hoje fato de que, tendo em vista o modo por que
de descentralizar os órgãos federais por os ministérios dos Alimentos, Agricultura os órgãos da administração se encontram
outras regiões relevantes do país.21 Daí que e Proteção ao Consumidor; da Defesa; da repartidos, a Alemanha acabe na prática
se possa afirmar que, na prática, a Rússia Saúde; do Meio-Ambiente, Conservação com três capitais, como a África do Sul.
tem duas capitais federais. da Natureza e Segurança Nuclear; Educa-
O caso da Alemanha é igualmente ção e Pesquisa; Cooperação Econômica e IMAGINANDO O RIO COMO SEGUNDA
CAPITAL: POSSIBILIDADES
Do ponto de vista da administração
federal, uma das consequências imedia-
TABELA 2 tas do reconhecimento constitucional da
RELAÇÃO DOS PAÍSES DO MUNDO COM MAIS DE UMA CAPITAL OFICIAL cidade do Rio de Janeiro como segunda
capital do Brasil seria interromper a sangria
Bolívia
La Paz da transferência para Brasília de órgãos
Sucre
AMÉRICA
Santiago
públicos nela instalados. Mas nada impede
Chile
Valparaíso que seja possível imaginar que papel o Rio
Comayaguela
Honduras
Tegucigalpa de Janeiro poderia efetivamente servir ao
Amsterdã Brasil como segunda capital, tendo em
EUROPA
Países Baixos
Haia
Cetinje vista suas potencialidades econômicas
Montenegro
Podgorica e políticas. Não se deve esquecer que
Kutaisi
Geórgia as principais sociedades culturais do país
Tbilisi
Kuala Lumpur – todas elas “nacionais” –, a maioria de
ÁSIA
Malásia
Putrajaya
Seul caráter paraestatal, continuaram sediadas
Coréia do Sul
Sejong no Rio de Janeiro: a Academia Brasileira
Colombo
Sri Lanka de Letras (ABL), o Instituto Histórico e
Kotte
Bloemfontein Geográfico Brasileiro (IHGB), a Academia
África do Sul Cidade do Cabo
Pretória Brasileira de Medicina (ABM), a Academia
Cotonou Brasileira de Filosofia (ABF), a União Na-
Benin
Porto Novo
Abidjan cional dos Estudantes (UNE) e a Academia
ÁFRICA
Costa do Marfim
Yamoussoukro Brasileira de Ciências. O mesmo pode ser
Lobamba
Suazilândia dito de associações corporativas como a
Mbabane
Dar es Salaam Sociedade Brasileira de Agricultura (SBA)
Tanzânia
Dodoma
Laayoune e a Confederação Nacional do Comércio
Saara Ocidental
Tifariti (CNC).

JANEIRO ‡ FEVEREIRO ‡ MARÇO 2017 37


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Além da interrupção da transferência A esquadra está fundeada na Baía de econômico, estão em torno do que de-
dos órgãos públicos, vitais para a pre- Guanabara e, em torno dela, estão o Ar- nominamos de complexo de petróleo e
servação da identidade e do dinamismo senal de Marinha, as bases e batalhões de gás; complexo da economia da saúde;
da cidade, conviria negociar o retorno da fuzileiros navais, o batalhão de comando complexo da construção civil; complexo
sede oficial de alguns dos ministérios, no e controle, o centro de adestramento, o da economia e inovação na área de de-
montante correspondente à participação centro de catalogação, o comando geral fesa; e o complexo do turismo, esporte,
do Rio na divisão atual dos órgãos públicos, dos fuzileiros, o centro de mísseis e armas entretenimento, cultura e mídia” (Osório,
que é de cerca de um terço. A definição submarinas, o colégio naval, o comando 2013, p. 15). A comparação dessas áreas
de quais os ministérios que deveriam ser de controle naval do tráfego marítimo, de investimento preferenciais com a lista
reinstalados na região Sudeste não po- os comandos das divisões de escolta, de dos órgãos federais presentes no Rio im-
deria ser arbitrária, devendo obedecer a esquadra, de apoio, de submarinos, de porta em uma extraordinária sobreposição,
critérios de razoabilidade e racionalidade, operações navais; o comando da tropa de que não é exatamente uma coincidência.
orientados pela economia e pela utilidade. reforço, o centro tecnológico dos fuzileiros, Parece ter havido uma lógica no regime
Primeiro, por medida de economia, deve- a diretoria de aeronáutica, a diretoria de militar: deixar no Rio tudo que dependia da
riam ser ministérios cuja presença no Rio ensino, os depósitos de materiais, as presença da sociedade civil, como órgãos
de Janeiro ainda fosse hoje expressiva. Se- diretorias de hidrografia e navegação, de pesquisa, ensino e cultura e empresas
gundo, por medida de utilidade, deveriam obras civis, de pessoal, a escola naval, o públicas. Todos os órgãos decisórios da
corresponder àquelas cujas atividades laboratório farmacêutico; a procuradoria alta administração, ao contrário, deveriam
são apontadas pelos estudiosos da especial, o presidio etc. O mesmo se pode estar em segurança, longe da sociedade
economia fluminense como estratégicos dizer do Comando do Exército: de suas civil e da população, em Brasília. Da mes-
para a reversão da decadência econômica sete escolas militares, quatro ficam no Rio ma maneira, há uma série de órgãos fede-
ocasionada pela mudança da capital. A e nenhuma em Brasília: Academia Militar rais que assentam melhor ao atual distrito
tabela contém a relação de órgãos federais das Agulhas Negras, Instituto Militar de federal. Tudo ponderado, uma proposta
que remanescem no Rio (tabela 3). Engenharia (IME), Escola de Sargentos de razoável e racional passaria por retornarem
Aqui cabem algumas informações Logística e Escola de Saúde do Exército. ao Rio de Janeiro as sedes formais de oito
explicativas e complementares à tabela. Sem falar na própria Escola Superior de dos atuais 22 ministérios hoje existentes
Apesar de o Instituto Brasileiro de Museus Guerra (ESG). Por fim, o Ministério da em Brasília (tabela 4).
(IBRAM) estar formalmente sediada em Saúde tem um departamento só para gerir

A
Brasília, ele mantém um forte escritório os seis hospitais do Ministério da Saúde repartição das sedes dos ministé-
no Rio que tem a maioria dos museus no Rio de Janeiro (Hospital Federal de rios acima proposta teria o efeito
sob sua jurisdição, incluindo aí aqueles Bonsucesso, do Andaraí, dos Servidores benéfico adicional de reaproveitar
mais icônicos para a história da arte da do Estado, de Ipanema, da Lagoa e Car- as instalações da União na Espla-
nacionalidade, que se encontram na ci- doso Fontes). Por fim, encontram-se no nada do Castelo, antigo bairro ministerial
dade do Rio e em seus arredores: Museu Rio duas antigas empresas estatais que carioca, desinchando a Esplanada brasi-
Nacional de Belas Artes (MNBA), o Museu foram privatizadas, mas que continuam liense, na qual em um mesmo edifício se
da República (MR), o Museu Histórico com grande percentual de participação do acotovelam duas ou três pastas. Quanto
Nacional (MHN), Museu do Índio, Museu Estado e são do interesse dos ministérios ao presidente da República, uma vez que
Imperial etc. Da mesma forma, a referên- de Minas e Energia e da Ciência e Tecno- lhe seriam restituídos os antigos palácios
cia, na tabela, a apenas duas empresas logia, Inovação e Comunicações: a Vale do presidenciais da Guanabara e das Laranjei-
públicas da Marinha no Rio de Janeiro Rio do Doce e a Embratel. ras, ele poderia voltar a se alternar entre o
oculta o fato de que, na verdade, quase Os estudiosos da economia fluminense Rio e Brasília, como acontecia entre 1960
toda a administração daquele comando entendem que “as maiores possibilidades e 1975. Cerimônias cívicas como posses
e suas instalações permaneceram aqui. do Estado do Rio de Janeiro, no campo presidenciais, desfiles de 7 de setembro,

38 JUSCELINO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

poderiam ter lugar preferencialmente no


Rio. Já os poderes Legislativo e Judiciário TABELA 3
fariam de suas antigas sedes históricas, na RELAÇÃO DOS ÓRGÃOS FEDERAIS NO RIO, SEGUNDO INFORMAÇÕES OBTIDAS NO SITO DO
Cinelândia e na Praça 15 de Novembro, MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO E O DECRETO Nº 8872/2016
o uso cultural e administrativo que lhes
Instituto Nacional de Tecnologia (INT)
aprouvesse. A transferência de algum
Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (INPA)
deles de volta para o Rio, em caráter Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST)

MINISTÉRIO DA CIÊNCIA,
permanente, também seria vantajosa para Observatório Nacional (ON)
TECNOLOGIA, INOVAÇÃO E
Centro de Tecnologia Mineral (CTM)
COMUNICAÇÕES
o conjunto do país. O Congresso resta- Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN)
belecido na região Sudeste assentaria o Indústrias Nucleares do Brasil (INB)
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF)
Legislativo em local geograficamente mais Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP)
acessível à população em geral, de que ele Nuclebrás equipamentos pesados (NUCLEP)
Agência Nacional de Cinema (ANCINE)
é o principal órgão de representação, o que
Fundação Biblioteca Nacional (FBN)
MINISTÉRIO DA CULTURA
contrabalançaria a ação dos lobbies e das Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB)
corporações. A situação ficaria semelhan- Fundação Nacional de Arte (FUNARTE)
Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM-Rio)
te à do Chile, em que o Poder Executivo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN -Rio)
está sediado em Santiago, e o Legislativo, Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)
Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ)
MINISTÉRIO DA SAÚDE
em Valparaíso. Já o retorno de tribunais Instituto Nacional do Câncer (INCA)
como o Supremo Tribunal Federal e o Tri- Instituto Nacional de Cardiologia/SAS (INC)
Departamento de Gestão Hospitalar no Rio de Janeiro (DGH-RJ)
bunal Superior Eleitoral representaria um
Agência Nacional do Petróleo (ANP)
duro golpe tanto na advocacia administra-
MINISTÉRIO DE
Petróleo Brasileiro (PETROBRAS)
MINAS E ENERGIA
tiva quanto no ativismo judiciário. A volta Centrais Elétricas Brasileiras (ELETROBRÁS)
Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM)
para o Rio lhes daria maior independência Pré-Sal Petróleo (PPSA)
e ajudaria para despolitizá-los, afastando Colégio Pedro II
Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ)
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
seus juízes do convívio permanente e qua- Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
se exclusivo com deputados e senadores Fundação Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-RIO)
Instituto Federal do Rio de Janeiro
que os pressionam nos processos que
Fundação Osório
MINISTÉRIO DA DEFESA
envolvem assuntos de seus interesses Empresa Gerencial de Projetos Navais (EMGEPRON)
políticos, e sobretudo naqueles, cada vez Caixa de Construção de Caixas para o Pessoa da Marinha (CCCPM)
Caixa de Financiamento Imobiliário da Aeronáutica (CFIAe)
MINISTÉRIO DO
mais numerosos, em que figuram como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
PLANEJAMENTO,
ORÇAMENTO E GESTÃO
réus. Não foi por outro motivo que as Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA-Rio)
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
Cortes constitucionais foram transferidas Comissão de Valores Mobiliários (CVM)
MINISTÉRIO DA FAZENDA
para fora das capitais oficiais na Alemanha Superintendência de Seguros Privados (SUSEP)
Casa de Moeda do Brasil (CMB)
e, mais recentemente, na Rússia.
Brasil Resseguros S/A (IRB)
MINISTÉRIO DA
Como se disse antes, esta seção do
INDÚSTRIA E COMÉRCIO
Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI)
artigo foi redigida apenas para imaginar Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (INMETRO)
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES
as muitas possibilidades abertas pela Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD)
criação do segundo distrito federal do Rio MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
E SEGURANÇA PÚBLICA
Arquivo Nacional (AN)

MINISTÉRIO DO
de Janeiro. Nenhuma delas é indispensá-
MEIO AMBIENTE
Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IJBRJ)
vel, porém, à promoção do projeto aqui
defendido, como modo de solucionar o MINISTÉRIO DAS CIDADES Companhia Brasileira de Transportes Urbanos (CBTU)
MINISTÉRIO DOS
problema nacional fluminense, que pode TRANSPORTES, PORTOS E
AVIAÇÃO CIVIL
Companhia Docas do Rio de Janeiro (CDRJ)
e deve ser feito de forma independente.

JANEIRO ‡ FEVEREIRO ‡ MARÇO 2017 39


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

CONCLUSÃO querer trazer “a capital de volta”. É reco- atraso, os catastróficos prejuízos oriundos
Uma vez demonstrado que a crise nhecer que ela nunca saiu de fato; que o da transferência da capital, dando-lhe
econômica do Rio teve por fator eficiente Rio continua a ser a cidade nacional do compensação simbólica e efetiva: es-
a mudança da capital para Brasília e a Brasil; que a situação anômala da região tanca a sangria de recursos e acena com
fusão imposta entre o antigo Distrito Fe- fluminense impede seu funcionamento soluções financeiras duradouras para os
deral e o antigo Estado do Rio; que o ente regular conforme a moldura estadualista. graves problemas de segurança pública,
federativo resultante da fusão se revelou É admitir que, na medida em que um terço educação e saúde, que seriam assumidos
duradouramente incapaz de autogestão no dos órgãos federais ainda se encontram pelo governo federal. O aumento da arre-
novo regime jurídico-político, em virtude da no município do Rio, que possui mais cadação do Rio de Janeiro, pela superposi-
permanência da cultura de capitalidade e servidores federais que Brasília, ele já é ção das competências tributárias, estadual
de dependência do governo federal; que um distrito federal de fato, disfarçado de e municipal, lhe permitirá desenvolver a
este último deve reparar os prejuízos capital estadual. Sua elevação formal à infraestrutura indispensável à melhoria
decorrentes da mudança da capital e condição de segunda capital da República, do ambiente de negócios, por meio de
da fusão forçada sem compensações, a com o correspondente regime jurídico de investimentos em transportes públicos,
criação de um segundo distrito federal distrito federal, se limita a reconhecer a in- especialmente em trens e metrô; saúde
no atual município do Rio emerge como capacidade de autogestão e dependência pública e, principalmente, uma reforma
a única solução política lógica, definitiva da região fluminense em relação à União, urbana destinada à urbanização de favelas,
e realista para a região fluminense. Para providenciando o retorno de sua presença com a necessária ocupação social e cons-
problemas federais, soluções nacionais. e de sua tutela financeira e administrativa. trução de bairros populares nos vazios na
Não se trata de passadismo, ou de Ela repara, com mais de meio século de zona norte. A proposta não é extravagante:
mais de quinze países do mundo possuem
mais de uma capital oficial e os exemplos
recentes da Rússia e da Alemanha indicam
TABELA 4

PROPOSTA PARA RETORNO AO RIO DE JANEIRO DAS SEDES FORMAIS


a tendência à descentralização. Mas não

DE 8 DOS 22 MINISTÉRIOS HOJE EXISTENTES EM BRASÍLIA


se pode perder de vista que, conforme re-
conhecido pelo juscelinista e entusiasta de

BRASÍLIA RIO DE JANEIRO


Brasília, Ronaldo Costa Couto, o problema
carioca/fluminense é nacional:
Desenvolvimento Social e Agrário Saúde
Direitos Humanos Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações Para mim, a União tem um compromisso
Educação Cultura especial com o desenvolvimento da cida-
Fazenda Planejamento de do Rio de Janeiro. Mais ainda, há um
Indústria Minas e Energia interesse nacional em tudo o que beneficie
Comércio Exterior e Serviços Esporte o seu desenvolvimento, até porque o Rio
Integração Nacional Turismo é a própria imagem do Brasil no exterior.
Justiça e Segurança Pública Defesa (Comando da Marinha) Quando o Rio se arruma, o país ganha duas
Meio Ambiente Relações Exteriores vezes. É um país que deve cuidar bem de
Trabalho e Previdência Social sua principal vitrine, ainda mais quando é
Transparência, Fiscalização e CGU linda e charmosa (In: Motta e Sarmento,
Transportes, Portos e Aviação Civil 2001, p. 132).
Defesa (Comando do Exército
e da Aeronáutica)
O Brasil precisa tanto do Rio quanto o
Cidades
Rio do Brasil. Recapitalizada, segura, com

40 JUSCELINO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

suas favelas urbanizadas, seu patrimônio


ANEXO
histórico e cultural assegurado, suas uni-
PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL – CRIAÇÃO DO DISTRITO FEDERAL
versidades e hospitais funcionando, seus
DO RIO DE JANEIRO
servidores recebendo em dia, a Velhacap e
o seu entorno deixariam de ser um proble-
Ementa: Altera o Título III, capítulo “Art. 115. Lei complementar disporá
ma nacional. A um custo globalmente muito
I da Constituição da República – Da sobre a criação do Distrito Federal do
baixo, o país teria de volta a sua vitrine, que
organização político-administrativa Rio de Janeiro, versando, entre outros
deixaria de ser matéria de preocupação,
–, para elevar o município do Rio de assuntos, sobre a transferência e re-
raiva ou pena para o seu povo e para a
Janeiro à condição de segundo Distrito partição de bens, servidores, direitos e
comunidade internacional. A consagração
Federal, e dá outras providências. obrigações, ai inclusas dívidas e restos
do Rio de Janeiro como segunda capital
Art. 1º. O Título III, capítulo I da a pagar, em sistema de cota parte, entre
oficial do Brasil seria uma bela bandeira
Constituição da República passa a o Estado do Rio de Janeiro e o novo
nesse período turbulento de nossa história,
vigorar com a seguinte alteração: Distrito Federal, sucessor do antigo
que impõe a refundação da República em
“O art. 18 § 1º: Brasília e Rio de município do Rio de Janeiro; e sobre
bases mais democráticas. Ela seria a “me-
Janeiro são as Capitais Federais”. a criação de mecanismos de compen-
tassíntese” do projeto político mais amplo
Art. 2º. A expressão “Distrito Fe- sação e auxílio para a reinstalação do
de que o país está carecendo: o de uma
deral”, no singular, será substituída ao governo do Estado do Rio em Niterói”.
república renovada, reintegrada com suas
longo de todo o texto constitucional por “Parágrafo primeiro. O atual prefeito
tradições nacionais, menos tecnocrática,
“Distritos Federais”, no plural, adaptada e a atual câmara de vereadores do
menos oligárquica, mais próxima do povo
a redação onde couber. município do Rio de Janeiro assumi-
e de sua sociedade civil.
Art. 3o. Os Atos das Disposições rão automaticamente os cargos de
Transitórias conterão artigo com a governador do Distrito Federal do Rio
O autor é Professor do Instituto de Estudos Sociais
e Políticos (IESP-UERJ) e pesquisador da Fundação
seguinte redação: de Janeiro e de deputados distritais”.
Casa de Rui Barbosa (FCRB)
clynch@iesp.uerj.br

BIBLIOGRAFIA

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-federativa da Primeira República e o tema da mudança e visões da crise carioca e fluminense. Rio de Janeiro,
SENAC, 2005.

JANEIRO ‡ FEVEREIRO ‡ MARÇO 2017 41


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ

1. Brazil takes off: now the risk for Latin America’s 8. Os dados foram colhidos dos sítios eletrônicos de 16. Dados extraídos do Boletim Estatístico de Pessoal
big success story is hubris. The Economist, Nov tais instituições. e Informações Organizacionais do Ministério do Pla-
12th 2009. nejamento, Orçamento e Gestão para o mês de maio
9. Chagas orientava sua administração conforme uma de 2016 e do sítio eletrônico do Jornal O Estado de
2. Has Brazil blown it? A stagnant economy, a bloated lógica “estadualista”, diversa daquela que marcara as São Paulo (http://blog.estadaodados.com/veja-quais-
state and mass protests mean Dilma Rousseff must administrações anteriores de Lacerda e Negrão de Lima, -estados-tem-mais-e-melhores-funcionarios-publicos/).
change course. The Economist, Sep 27th 2013. que davam sequência à ideia de um “estado-capital” Acesso em 17 de março de 2017.
(Motta, 2015, pp. 128-129).
3. Rio’s long decline: the Olympic games will not revive 17. O episódio aconteceu em 2005. Quatro hospitais
the host’s fortunes. The Economist, Aug 2nd 2016 10. “Ao longo de nossa história republicana, sempre públicos federais que haviam sido municipalizados seis
que dependeu do livre jogo dos agentes políticos, de anos antes tiveram de ser re-federalizados em virtude da
4. O desejo de subtrair a ação do governo da presença suas articulações e alianças, a questão da separação incapacidade da gestão da prefeitura do Rio de Janeiro.
das massas era assim a razão determinante para a ou incorporação da cidade ao estado do Rio de Janeiro Crise nos hospitais provocou intervenção do governo
mudança da capital, como ainda é em países em que tendeu à primeira alternativa. Foi apenas a partir do federal. Leia mais sobre esse assunto em: http://oglobo.
a ideia oligárquica persiste, mas não vingou, como na regime militar que aqueles que se batiam pela fusão globo.com/rio/crise-nos-hospitais-provocou-interven-
Argentina do “projeto Patagônia. Em 2016, o ministro puderam ver seus anseios atendidos” (Ferreira e cao-do-governo-federal-4605530#ixzz4bQy0yFTf
da Justiça argentino relançou a ideia de levar a capital Grynszpan, 2015, p. 140).
de Buenos Aires para Viedma com as mesmas razões 18. Equipamentos tipicamente municipais, como o
que a lançaram no Brasil: na cidade de Buenos Aires, 11. Hoje, em 2017, só restam dois: BNDES e BTG Teatro Municipal e o Estádio do Maracanã, pertencem
há “una cosa muy exacerbada en relación a todo”. Pactual. ao governo do Estado. Há quase meia dúzia de hospitais
Caso algum dia a ideia vingue, também não faltará federais, que levam o Ministério da Saúde a ter um de-
quem sustente que, porque um ou outro caudilho 12. Nas décadas que se seguiram à abertura da ditadura partamento só para geri-los. O controle do trânsito ficou
cogitou da ideia em 1813, Buenos Aires não seria a militar, permaneceu o ciclo vicioso do oposicionismo superposto entre a Companhia de Trânsito, municipal,
capital “legítima do país” e que esta seria uma “antiga crônico nas relações entre o Rio de Janeiro e o gover- e a Polícia Militar, estadual. A maioria esmagadora
aspiração nacional”. https://es.wikipedia.org/wiki/ no federal, instalado desde a época de Lacerda. Esse ainda pertence à União Federal, o município do Rio
Proyecto_Patagonia. Acesso em 17 de março de 2017. círculo vicioso contribuiu a um substancial declínio da e o estado têm poucos imóveis. A responsabilidade
http://www.lacapitalmdp.com/el-gobierno-reflota-la- presença do Rio nos gabinetes presidenciais, dificultan- pelos serviços públicos é absolutamente indefinida
-idea-de-trasladar-la-capital-a-viedma/. Acesso em do o respectivo entrosamento e, no limite, à queda nas no Rio, embaralhando-se tudo numa entidade vaga e
17 de março de 2017. transferências orçamentárias da União para o estado. indefinida: “o governo”.
“Este resultado, por sua vez, acabou por justificar, em
5.Esta última é hoje a sede da Superintendência da ‘bases objetivas’, uma quase permanente disposição 19. Informação retirada do sitio da emissora oficial,
Polícia Federal no Rio de Janeiro. oposicionista no seio de eleitores e líderes cariocas Deutsche Welle (http://www.dw.com/pt-br/o-dia-
fluminenses para com o governo federal, aumentando -em-que-bonn-foi-derrotada-por-berlim/a-19344019).
6.“Artigo 3º. Serão transferidos ao Estado da Guanabara, mais ainda a distância entre o Rio e Brasília”. (Amorim Acesso em 10 de março de 2017.
na data de sua constituição, sem qualquer indenização, Neto e Santos, 2013, p. 480).
os serviços públicos de natureza local prestados ou 20. Os dados referentes às empresas públicas foram
mantidos pela União, os servidores neles lotados e todos 13. Dados da Secretaria do Patrimônio da União (SPU). colhidos da lista de dirigentes e endereços elaborada
os bens e direitos neles aplicados e compreendidos. § para o ano de 2013, disponível no sítio eletrônico do
1º Os serviços ora transferidos e o pessoal neles lotado, 14. Os dados acima, referentes às empresas públicas, Ministério do Planejamento. Aqueles referentes, por sua
civil e militar, passam para a jurisdição do Estado da foram colhidos da lista de dirigentes e endereços elabo- vez, aos órgãos da administração direta, autárquica e
Guanabara, e ficam sujeitos à autoridade estadual, rada para o ano de 2013, disponível no sítio eletrônico fundacional, foram fornecidos pelo Sistema de Adminis-
tanto no que se refere à organização desses serviços, do Ministério do Planejamento. Aqueles referentes, por tração dos Recursos de Tecnologia da Informação – SISP
como no que respeita às leis que regulam as relações sua vez, aos órgãos da administração direta, autárquica e (http://www.sisp.gov.br/ct-gcie/lista-orgaos-sisp).
entre esse Estado e seus servidores. Incluem-se nesses fundacional, foram fornecidos pelo Sistema de Adminis-
serviços a Justiça, o Ministério Público, a Polícia Militar, tração dos Recursos de Tecnologia da Informação – SISP 21. http://www.jurist.org/paperchase/2008/05/russia-
o Corpo de Bombeiros, os estabelecimentos penais (http://www.sisp.gov.br/ct-gcie/lista-orgaos-sisp). -constitutional-court-begins-work.php.
e os órgãos e serviços do Departamento Federal de
Segurança Pública, encarregados do policiamento do 15. Dados extraídos do Boletim Estatístico de Pes- 22. Informações retiradas do sítio eletrônico da emis-
atual Distrito Federal”. soal e Informações Organizacionais do Ministério do sora oficial alemã, a Deutsche Welle (http://www.
Planejamento, Orçamento e Gestão para o mês de dw.com/pt-br/o-dia-em-que-bonn-foi-derrotada-por-
7. Jornal do Brasil, edição de 14 de dezembro de 1968. maio de 2016. -berlim/a-19344019). Aceso em 14 de março de 2017.

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