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Antropologia

“LORDS ANTHROPOLOGISTS1” - DEBATE SOBRE A ORIGEM DA


TEORIA CLÁSSICA BRITÂNICA E SUAS INFLUÊNCIAS
TEÓRICAS METODOLÓGICAS NA OBRA DE EVANS –
PRITCHARD

Por Cleiton Machado Maia2

Ideias Chave: Antropologia, Evans-Pritchard, fenômeno religioso

artigo tem como proposta analisar a No debate da fundação da escola

O influência na obra de
Pritchard à luz das teorias clássicas,
em uma breve leitura de suas obras “Bruxaria,
Evans- antropológica britânica demonstrarei
influência que a obra e ideias de Durkheim
exerceram no início da antropologia -
a

oráculos e magia entre os Azande”, “Os Nuer” principalmente sobre a obra de Radcliffe –
e “Religião dos Nuer”, buscando entender Brown – e os debates que se desenvolveram
dentro da formação dos “pais fundadores” da com Malinowski e suas propostas teóricas
antropologia britânica, como o autor metodológicas de trabalho antropológico.
relacionou e fundamentou sua proposta no Demonstrando assim as influências que as
decorrer de suas obras. obras de Durkheim vão exercer sobre os dois
autores, e suas discordâncias teóricas e

1
O “Lords” do título é uma referência à posição que esses primeiros antropólogos exerciam dentro do Império Britânico,
muitas vezes como funcionários ou como “Sir”, o que por muito levanta questionamento sobre seus posicionamentos em
suas obras.
2
Doutorando em Ciências Sociais do PPCIS/UERJ e professor da Universidade Cândido Mendes – Santa Cruz,
profmachadomaia@hotmail.com .
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metodológicas dessa primeira geração de simbólicos da vida social, comum a todos os


antropólogos influentes da escola britânica. grupos humanos. Para Durkheim, essas
imagens seriam socialmente construídas e em
Na segunda parte desse projeto
uma realidade totalizante sendo assim tão reais
pretendo demonstrar o foco principal desse
quanto o mundo material.
artigo: a obra de Evans-Pritchard. No decorrer
de uma releitura sobre as suas principais obras A religião seria um ponto importante de
na área de religião, pretendo demonstrar a sua estudo para Durkheim, pois ela seria, entre
utilização de uma etnografia e teoria clássica todas essas representações coletivas, o
na análise do fenômeno religioso - suas elemento em que os indivíduos estabeleceriam
influências na obra de Malinowski e Radcliffe- e fortificariam – mais do que em qualquer
Brown, e influências indiretas de Durkheim outra parte – essas representações coletivas,
por esses autores - abrindo assim caminho para dando a elas o poder de coesão social,
uma segunda geração de antropólogos da desenvolvendo o apego emocional do
escola britânica que conseguiram conciliar indivíduo as representações coletivas, com
metodologia e teorias de maneira eficaz. grande importância ao ritual.

Demonstrarei como esse novo modelo O ritual, segundo Durkheim, seria


teórico e metodológico de Evans-Pritchard – essencial para exercer a ligação com o físico e
usando influências de seus professores nas corporal – por experiência direta. O ritual seria
universidades inglesas, Malinowski e o lugar sagrado em que o indivíduo se circunda
Radcliffe Brown – nasceu influenciando e teve do mágico, sendo assim separado do profano
continuidade nas obras de autores consagradas dia-a-dia, e são essas diferenças que demarcam
como Mary Douglas e outros autores da e intensificam a experiência que os indivíduos
terceira geração da escola antropológica têm de como o mundo é realmente. Essa
britânica até nossos dias. complexa variedade e necessidades de
entender os símbolos e costumes dos outros foi
o ponto de partida de algumas pesquisas
Durkheim e suas influências sobre a
antropologia antropológicas.

Na sua última – e talvez mais importante Um deus não é unicamente uma


obra – “As formas elementares da vida autoridade de que dependemos, é
também uma força sobre a qual se apóia
religiosa” lança a polêmica, inovadora e até a nossa força. O homem que se obedeceu
hoje atual teoria das “representações a seu deus e que, por essa razão,
acredita tê-lo consigo, enfrentando o
coletivas”. Onde defende essas representações mundo com confiança e com sentimento
coletivas como símbolos, imagens e modelos de energia fortificada” (DURKHEIM,
1989, p. 263-264).
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No início do século XX, os antropólogos dos primeiros trabalhos antropológicos. Em


ingleses aderiram as ideias de Durkheim e torno da I guerra mundial, a disciplina
começaram a usar suas teorias para um grande antropologia se desenvolveu e começou a
número de estudos sobre a religião – ganhar nome com “quatro pais”: Franz Boas,
influenciando várias características da escola Marcel Mauss, Malinowski e Radcliffe-
britânica conhecidas – principalmente os Brown. Estes antropólogos que iniciariam os
sistemas de parentesco e sistemas legais. debates estruturais das principais escolas que
Sendo descrito como “pai fundador” do temos hoje em dia. – um nos Estados Unidos,
estruturalismo-funcionalista que foi um na França e dois na Inglaterra. –
desenvolvida posteriormente por Radcliffe- considerando aqui a grande importância da
Brown usando os fenômenos sociais – coisas – escola alemã e russa que acabou se
e as representações coletivas como ciências transplantando em ideias com Boas e
objetivas. Malinowski – em suas respectivas “novas”
nações – que por motivos políticos de guerra
não conseguiu dar continuidade de suas ideias
Pais fundadores - Antropologia britânica
dentro de suas nações (ERIKSEN, 2007, p.
A antropologia nasce no final do século 51).
XIX – período vitoriano – logo depois das
Cabe aqui uma breve retrospectiva
guerras napoleônica, junto com liderança
destes autores que se tornaram as colunas da
expansionista da Grã-Bretanha. As teorias de
antropologia, antes de entrar no ponto
sonho e subconsciente de Freud e Albert
principal de nossa análise, que é a escola
Einstein desconstruindo a física ofereceram
britânica. Temos Franz Boas nos Estados
uma visão mais aberta da verdade e do
Unidos, Marcel Mauss na França e Bronislaw
progresso.
Malinowski e A. R. Radcliffe-Brown na
Algumas questões de relativismo Inglaterra. Umas das questões que
cultural – ignoradas pelos antropólogos desde influenciaram para a visão “marginal” da
o início do século dezenove – voltaram à tona antropologia nos seus primeiros anos de sua
com a filologia alemã e seus estudos sobre as fundamentação teórica e metodológica. Apesar
línguas indoeuropéias. Isso sem contar com o da influenciada escola britânica sobre a obra de
apoio militar e político que muitos Durkheim, havia uma indefinição nos
antropólogos encontraram nas campanhas parâmetros básicos da disciplina, e o ponto de
neocolonialistas das nações imperialistas vista social dos pais fundadores da
européias, com suas campanhas de expansão e antropologia provirem socialmente de grupos
conquistas que financiaram e muito se usaram estrangeiros aos países que desenvolveram sua
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pesquisa – Mauss era judeu, Radcliffe-Brown destacou nos primeiros anos (ERIKSEN, 2007,
era de classe trabalhadora em uma Inglaterra p. 53).
elitista, Malinowski era estrangeiro e Boas era
estrangeiro e judeu – lutando e tentando
Influências da etnografia e trabalho de
romper com os evolucionistas como Morgan e campo de Malinowski
Tylor e os parâmetro que tinham estabelecido Em sua obra, Bronislaw Malinowski
nas ciências sociais. trabalha com uma visão de sociedade holística,
Na França, os estudos de povos não onde partes se entrelaçam em um todo
europeus de Durkheim, foi à abertura que sincrônico – não histórico – desde seus
Maus encontrou para fundamentar sua entrada primeiros trabalhos e os mais importantes
acadêmica e dar continuidade à obra de seu tio. como “Os argonautas do pacífico ocidental”
Nos Estados Unidos da América, Boas (1984) que teve sua primeira publicação logo
encontrou respeito na transição acadêmica e se após a I Guerra mundial, e considerada a obra
tornou ponto de referência na antropologia. Na mais revolucionária da antropologia, o que lhe
Inglaterra, porém essa transição acabou deu prestígio e atraiu inúmeros pesquisadores
ocorrendo com mais força – sendo vista como para sua universidade, Universidade de
uma revolução intelectual e ruptura, diferente Londres, e que mais tarde seriam conhecidos
da França e Estados unidos da América onde na antropologia.
uma visão de continuidade vigorou – já que a Em “Os argonautas do pacífico
influência dos evolucionistas foi criticada por ocidental” podemos concentrar nosso
Malinowski e Radcliffe- Brown. O que acaba entendimento e análise das principais
sendo à base dos críticos da história características metodológicas e teóricas que
antropológica para sustentarem que a escola Malinowski desenvolveu e influenciou outras
britânica é o local de surgimento da gerações – e são o foco de nossa reflexão sobre
antropologia moderna com Malinowski e esse autor para esse artigo - como em Evans-
Radcliffe-Brown. Onde a “ciência de Pritchard. A obra é extremamente detalhada e
parentesco”, que é um método britânico criado vigorosa, que busca descrever o sistema de
por Malinowski e uma teoria desenvolvida por comércio de Kula 3 e sua relação com outras
Radcliffe-Brown, se consolidou como uma instituições de moradores da ilha da Melanésia
“ciência da sociedade” – em quanto às muitas – como liderança política, economia
áreas da antropologia americana não se

3
“O kula é, portanto, uma instituição enorme e abarca em enorme conjunto de atividades inter-
extraordinariamente complexa, não só em extensão relacionadas e interdependentes de modo a formar um
geográfica mas também na multiplicidade de seus todo orgânico” (MALINOWSKI, 1978, p. 71-72).
objetivos. Ele vincula um grande número de tribos e
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doméstica, posição social e parentesco (grifo individuais e propõe a inter-relação como


meu). essencial para qualquer análise etnográfica,
teoria que os antropólogos consideram menos
Durante dois anos Malinowski ficou
que a sua metodologia posteriormente. O seu
entre os Trobriand – período entre guerras – o
funcionalismo – diferente de Durkheim – põe
que possibilitou uma obra meticulosa e
o indivíduo como objetivo do sistema e não a
sistemática (FIRTH, 1957, p. 56, in
sociedade, as instituições existiriam para as
TEIXEIRA, 2010, p. 128), relacionado com a
pessoas.
sua facilidade de aprendizado de novas línguas
– influência da antropologia alemã já citada Durante algumas décadas, após sua
anteriormente – levando-o a padrões morte, a teoria malinowskiana continuou em
metodológicos rigorosos e a invenção de destaque até as críticas de um “individualismo
método de campo inovador chamado metodológico” disfarçado, mas voltaria com
“observação participante”, que constitui força com a defesa de Radcliffe-Brown para a
participar no máximo possível das vidas e das importância de captar o ponto de vista do
atividades dos “nativos”. Para Malinowski, nativo no que ficou conhecido como campanha
permanecer entre os “nativos” é extremamente “anti-histórica” na antropologia britânica,
importante, assim se pode aprender sua língua transformando Malinowski em obra menos
e costumes, o que dispensaria o uso de criticada.
interpretes e entrevistas – que seria nocivo ao Malinowski se denominava
trabalho -, o que levou-o a morar em uma funcionalista, apesar de críticos e
cabana entre os Trobriand. comentadores colocarem como fundador das
A “observação participante” de ideias de seus rivais estrutural-funcionalista
Malinowski estabeleceu uma nova base para as (ERIKSEN, 2007, p. 58), onde para ele o
pesquisas etnográficas, onde a vida no dia-a- indivíduo era o fundamento da sociedade e
dia devia ser registrada coletando detalhes de tinha agencia por ser criador da sociedade. Já
produções, padrões, trocas e conflitos, os estrutural-funcionalistas viam os indivíduos
demonstrando o universo altamente complexo como um fenômeno da sociedade e de pouca
e multifacetado – contra os autores agencia de interesses – com grande influência
evolucionistas que o precederam nas ciências direta de Durkheim. Essa corrente
sociais britânicas – e rompendo como nova “funcionalista” malinowskiana e “estrutural-
proposta para a antropologia e seu método. funcionalista” de Radcliffe-Brown foram ditas
Com essa obra, Malinowski coloca em xeque como opostas e inimigas por anos, até a obra
projetos comparativos de características de Evans-Pritchard, que as conciliou de
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maneira inovadora e bem eficientes – como para ele as estruturas sociais existem
teoria e metodologia. independentes dos atores individuais que a
reproduzem e contribuem para a manutenção
da estrutura social como um todo.
Influências da abordagem teórica de
Radcliffe-Brown A influência de Durkheim em
Foi seguidor de Durkheim em suas Radcliffe-Brown está principalmente na
ideias e considerava o indivíduo produto da afirmação que as instituições existem porque
sociedade; admirador e grande conhecedor da elas mantêm o social; ele articulou a teoria
obra durkheineana “Formas elementares da social e o método etnográfico gerando uma
vida religiosa” que estudou e lecionou durante disciplina na Universidade de Oxford e
anos na Universidade de Oxford. Apesar de influenciando posteriormente autores como
seus primeiros trabalhos sobre os moradores Morgan, que começaram a ver o “parentesco”
das Ilhas Andaman na Índia terem sido como uma chave da organização social em
considerados no estilo difusionista, quando pequenos grupos sociais. O uso do sistema de
conheceu melhor a obra de Durkheim tentou parentesco começava a se tornar uma entrada
aplicar a sociologia com materiais para Radcliffe-Brown para relacionar o
etnográficos. conceito de Durkheim vinculado com o

Durante o período entre guerras, a parentesco como sistema jurídico de

antropologia britânica teve dois períodos bem Malinowski – sendo assim o parentesco uma

marcantes, o primeiro marcado pelas obras forma de interação social complexo – com

etnográficas detalhadas na região do pacífico direitos e deveres – fundamental para a

sobre influência de Malinowski – e após a sua estrutura social. “(...) estrutural-funcionalistas

partida para os Estado Unidos da América – e passaram a estudar outras instituições em

segunda influência de trabalhos que foram as sociedades primitivas: política, economia,

análises estruturais no estilo durkheimianas religião, adaptação ecológica e etc.”

sobre a África. “Enquanto Malinowski (ERIKSEN, 2010, p. 60), onde o parentesco

preparava seus alunos para irem a campo e serviria para ver como se estrutura e

procurarem as motivações humanas e a lógica funcionam os grupos e as corporações nessas

da ação, Radcliffe-Brown pedia aos seus que sociedades.

descobrissem princípios estruturais abstratos


e mecanismos de integração social”
Evans-Pritchard e sua obra
(ERIKSEN, 2010, p. 59). Esses mecanismos
O período das maiores publicações do
que Radcliffe-Brown procurava encontrar
estrutural-funcionalismo foi na década de 40
eram as representações coletivas de Durkheim,
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do século XX, onde Radcliffe-Brown e Evans- fazer (KUPER, 1999, p. 89). Para melhor
Pritchard estavam em Oxford, que concentrava entender esse teoria de abstração etnográfica
seus estudos nos “mecanismos” e em desenvolvida, podemos dividi-la em três níveis
princípios estruturais da sociedade – dos quais ou fases.
Radcliffe-Brown considerou o sistema de Às vezes ouço dizer que qualquer
parentesco como o motor das sociedades pessoa pode observar e escrever um
livro sobre um povo primitivo. Talvez
“primitivas”, mantendo-a unida. Influenciando qualquer pessoa possa, mas não vai
os antropólogos ingleses que começavam seus estar necessariamente acrescentando
algo à antropologia. Na ciência como na
estudos na década de 40 e 50, como o próprio vida só se acha o que se procura. Não se
Evans-Pritchard que tinha estudado com podem ter respostas quando não se sabe
quais são as perguntas. Por conseguinte,
Malinowski e Radcliffe-Brown, tendo grande a primeira exigência para que se possa
influência na primeira parte do seu trabalho. realizar uma pesquisa de campo é um
treinamento rigoroso em teoria
Destaco Evans-Pritchard como o antropológica, que dê as condições de
saber o que e como observar, e o que é
pesquisador que melhor conseguiu
teoricamente significativo. É essencial
desenvolver a relação entre teoria e trabalho de percebermos que os fatos em si não tem
significado. Para que o possuam devem
campo em sua obra, usando assim a
ter certo grau de generalidade. É inútil
metodologia de trabalho de campo de partir para campo as cegas. (EVANS-
PRITCHAD, 1962, p. 243).
Malinowski e a teoria desenvolvida por
Radcliffe-Brown, o que não lhe limitou a
desenvolver uma crescente e original No primeiro nível de sua teoria, Evans-
construção intelectual partindo do funcional- Pritchard tenta compreender a sociedade e as
estruturalismo a sua análise da “função para o tradições sociais estudadas nos seus níveis
significado” (TEIXEIRA, 2010, p. 126). mais complexos, buscando assim suas
características mais significativas. Depois de
A obra de Evans-Pritchard desenha com
entendida deve ser traduzida para a sua própria
uma experiência metodológica e teórica bem
cultura – o que posteriormente foi muito
particular, usando a influência metodológica
criticado por alguns comentadores e novos
de Malinowski e sua observação participativa
autores. Em um segundo momento, o autor
e a contribuição da experiência teórica de
propõe uma análise com o propósito de
Radcliffe-Brown e seus relatos selecionados e
decodificar as formas – ou estruturas –
articulados para demonstrar a estrutura, para
subjacentes da cultura. Lembrando que para
construir nas suas características uma
Evans-Pritchard essa estrutura não é visível de
abstração estrutural na análise etnográfica,
maneira imediata, mas sim depende de um
que só Evans-Pritchard souber relacionar e
trabalho de abstração do próprio pesquisador
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“Relacionar logicamente essas observações “oposição segmentar” acaba garantindo a


entre si de forma que venham a compor um manutenção do sistema como um todo.
modelo, torna-se possível ver a sociedade em No seu primeiro trabalho de campo
seus elementos essenciais, como um todo “Bruxaria, Oráculos e magia entre os Azande”
(EVANS-PRITCHARD, 1962, p. 23). do Sudão, apresenta a feitiçaria como centro
Chegando assim na sua terceira fase - principal de trabalho. A feitiçaria é abordada
onde após uma grande influência de método de com dois direcionamentos, em uma ela é uma
campo malinowskiano ganha uma força de “válvula de escape - segurança” que
análise comparativa com cunho estruturalista transforma todos os conflitos sociais em
de Radcliffe-Brown – onde o pesquisador deve inofensivos, mantendo a interação social na
comparar as estruturas sociais, de diferentes maneira mais durkheineana possível. E por
sociedades, de maneira explícita ou implícita. outro lado é uma maneira de entender o mundo
As diferenças de objetivos e modelos usados do “outro” – desconhecido - de maneira mais
em “Bruxaria, Oráculos e Magia entre os coerente possível, de dentro, com influência de
Azande” e “Os Nuer” - certamente as obras Malinowski. Sendo assim uma abordagem
mais conhecidas dentre aquelas que compõem complexa e inteiriça onde busca entender a
a produção bibliográfica deste autor - ordem social sem desconsiderar a
representam propósitos e modelos analíticos complexibilidade e racionalidade de uma
distintos, apresentando, cada uma ao seu sociedade que só pode ser entendida de dentro
modo, problemas que se tornaram clássicos dos eventos, sem separar um do outro. Alguns
para a antropologia. Num primeiro momento, comentadores vão dizer que sua análise
sob considerável influência de Malinowski, estrutural-funcionalista vai reduzir a feitiçaria
Evans-Pritchard está preocupado em em as funções sociais e outros (DOUGLAS,
demonstrar como os Azande possuem um 1980) vão dizer que Evans vai ver a feitiçaria
sistema de crenças dotado de uma coerência como “produtos sociais em toda a parte”
interna, capaz de explicar a vida humana e (ERIKSEN, 2007, p. 89).
fornecer solução para os infortúnios do A segunda obra importante de Evans-
cotidiano. Mais tarde, sua etnografia sobre os Pritchard, “Os Nuer” é resultado do trabalho de
Nuer já explicita as interlocuções que campo desenvolvido com o povo Azande,
estabeleceu com a obra de Meyer Fortes – que onde estuda a organização política patrilinear
não é meu foco nesse trabalho - e Radcliffe- desse povo pastoril e “sem estado” - e como se
Brown, caracterizando-se como a descrição de pode ocorrer uma organização política grande
uma estrutura social que contém em sua e complexa sem uma liderança centralizada. O
própria constituição a tensão entre grupos cuja
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livro é uma experiência de campo em que a Os ritos mágicos não formam um


sistema coerente e não há nexo entre um
ciência de parentesco de Radcliffe-Brown é a
rito e outro. Cada um é uma atividade
chave de entendimento das organizações isolada de modo que eles todos não
podem ser descritos de forma ordenada.
sociais e segmentárias, não é à toa que no
[...] Com efeito, ao considerá-los juntos
último capítulo Evans-Pritchard elabora uma conferi-lhes uma unidade por abstração
que não possuem na realidade. Espero
visão de estrutura social na mesma linha de
ter persuadido o leitor de uma coisa —
Radcliffe-Brown “um sistema abstrato de da consistência intelectual das noções
Azande. Elas só parecem inconsistentes
relações sociais que continua a existir
se dispostas como se fossem objetos
inalterado apesar das mudanças de pessoas” inertes de museu. Quando vemos como
um indivíduo as emprega, podemos dizer
(1990, p.80) - assim sendo parentesco e
que são místicas, mas nunca que são
feitiçaria como dois “modos de pensamentos” acionadas de forma ilógica ou acrítica.
(EVANS-PRITCHARD,1992 ,p. 225).
– e em ambos os casos ele estaria interessado
em mostrar como o pensamento tem relação
com o que Bourdieu (2009) chamou de “lógica Concluindo as diferenças entre a obra
prática” “Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande”
demonstra como religião, instituição política e
A obra “A religião dos Nuer” é uma
sistema de crença de uma sociedade, diferente
proposta de etnografia sobre a religião dos
da sua obra “A religião Nuer” onde mostra que
Nuer, discutindo aspectos de religião e
crença e prática religiosa dos Nuer é
sociedade entre os Nuer – onde o autor usa
extremamente fixada na vida material. Em
quatro aspectos etnográficos para relacionar
uma visão não reducionista procura
suas considerações e para entender o diálogo
demonstrar a religião e sistema religioso não
entre razão social e religião: espírito, símbolo,
como autônomos, mas sim complexo e
moral e cosmologia. Dentre essa nova base de
hierarquizado em diversos níveis de estruturas
interpretação de uma etnografia sairá uma de
e construção de sentidos - a religião como um
suas elaborações teóricas “o problema de
reflexo e não um produto. A etnografia de
símbolos” – que mais tarde influenciaria a obra
Evans-Pritchard procura encontrar uma
e discutição de vários autores como Mary
racionalidade na ação dos nativos estudados,
Douglas, como ela mesma diz na entrevista
dentro da lógica de seus sistemas únicos de
feita por Peter Fry (1999) – onde procura
práticas, costumes e razão, construindo assim
perceber a lógica das ações e afirmações
a legitimidade da organização social estudada.
nativas, sendo as ações e afirmações como
“nexos simbólicos” entre a vida real que a
sociedade compartilha.

Conclusão
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A principal contribuição de Evans- exerceu sobre Evans-Pritchard e sua nova


Pritchard às Ciências Sociais e antropologia – visão sobre “estrutura”, claro de que sem o
e aos teóricos de sua geração – é a proposta método de “campo participativo” de
etnográfica de uma contextualização das Malinowski, não seria possível propor uma
“culturas” ditas como primitivas. interpretação de “símbolos sociais”
Revitalizadas posteriormente com a sua culturalmente contextualizados como faz em
proposta de “problema simbólico”, onde sua última importante obra “A religião Nuer” -
propõe uma leitura de todas as complexas que sem dúvida é sua grande pérola teórica-
sociedades e estruturas com os seus metodológica britânica.
respectivos símbolos e as categorias sociais O que pode e deve ser visto com
que estão representando. atenção aos estudantes de Ciências Sociais e
Thomas Hylland Eriksen (2010) Antropologia de hoje em dia como um
considera em um dos seus títulos sobre exemplo de observação e interpretação de
Radcliffe Brown como o autor do “Baluarte do estruturas em grupos sociais mais diversos e
funcionalismo” – não estou a levantar complexos, interpretando e compreendendo os
questionamento sobre essa afirmação - mas símbolos “interações” e “ações” que
sim sobre o resultado da herança teórica que represente a realidade do grupo

Referências MALINOWSKI. B, Argonautas do pacifico


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Zarah, 2005. Machado. “Lords anthropologists” - debate
EVANS-PRITCHARD. E. E. Os Nuer. Editora sobre a origem da teoria clássica britânica e
Perspectiva, 2° edição, 2009. suas influências teóricas metodológicas na
EVANS-PRITCHARD. E. E. Religião dos obra de Evans – Pritchard. In: Revista Digital
Nuer. Oxford: Oxford University Press Simonsen. Rio de Janeiro, n.1, Dez. 2014.
(trad. Espanhol: La religión de losnuer. Disponível em:
Barcelona: Anagrama, 1992. <www.simonsen.br/revistasimonsen>
FRY. P. Entrevista racionalismo e crença.
Revista Mana, 5(2): 145 – 156, 1999.

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