Você está na página 1de 11

O FEMINISMO DE ANA MENDIETA NO CAMPO DAS ARTES VISUAIS

Elena de Oliveira Schuck1


Carolina Gallo Garcia2

Resumo: A comunicação guia-se pelas obras de Ana Mendieta (1948-1985), artista visual cubana
que viveu grande parte de sua vida nos Estados Unidos, e integrante da vanguarda artística e feminista
do início dos anos 1970. A partir da análise de duas obras da artista, Rape Scene (1973) e Siluetas
Series (1973-1980) buscamos identificar expressões de uma estética feminista que levam ao
questionamento de opressões da ordem de gênero, etnia e raça, temas tão caros à produção de
Mendieta que permeiam toda sua obra.

Palavras-chave: Ana Mendieta; Feminismo; Artes Visuais; Gênero, Estética feminista

Nascida em uma família católica de Havana, Cuba (1948), a artista Ana Mendieta foi enviada
aos Estados Unidos pelos pais, contrários ao regime castrista, junto a sua irmã Raquelín em 1961.
Ana e sua irmã chegaram ao país através da operação Peter Pan, organizada pela Igreja católica norte
americana para salvar crianças do comunismo e do regime “anti-católico” de Fidel Castro em Cuba.
A cidade de acolhimento foi Miami, na Flórida, e após um curto período as irmãs cubanas foram
enviadas a uma família adotiva em Dubuque, Iowa. O doloroso isolamento da família cubana bem
como o exílio em uma idade precoce marcou a formação artística de Ana Mendieta. Suas obras
refletiam essa experiência, as memórias da cultura cubana, as quais tomam forma de um diário íntimo
visual onde tem lugar a fusão de memórias de infância com o contexto norte-americano.
A carreira artística de Ana Mendieta foi curta (1972 - 1985), mas muito produtiva e
diversificada, passando por performances, body art, vídeos, fotografias, desenhos, instalações e
esculturas (DZIEDZIK, 2015). Teve sua formação artística iniciada nos anos 1970, na Universidade
de Iowa, onde começou a usar seu corpo para criar arte a partir da influência de Hans Breder. A obra
de Mendieta conecta a natureza com a humanidade, expressa elementos de feminismo e
espiritualidade, e reflete a própria experiência como exilada e como mulher (BIDASECA, 2014).

1
Doutora em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Instituto Latino-
Americano de Economia, Sociedade e Política (ILAESP) na Universidade Federal da Integração Latino-Americana
(UNILA), Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil.
2
Mestranda em Planejamento Urbano na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Brasil.
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O desfecho trágico de sua vida deu-se em 1985, quando caiu da sacada de seu apartamento
no 34º andar em Manhattan, Nova York, após ter brigado com seu marido, o pintor minimalista Carl
André. O que parecia ter sido resultado fatal de violência doméstica, acabou sendo considerado
suicídio com base nos argumentos da defesa do marido, os quais apontavam para as referências à
morte no trabalho artístico de Mendieta. Depois de alguns indiciamentos, André foi absolvido da
acusação pela insuficiência de provas que ele a teria empurrado. Muitas mulheres artistas
mobilizaram-se pela morte de Ana Mendieta, denunciando a falta de reconhecimento do seu legado
artístico e apontando a conivência da classe artística androcêntrica de Nova York com a absolvição
de Carl André.
Mendieta foi uma artista cuja obra impactou profundamente a performance e a body art dos
anos 1970, a arte intermídia, a arte latino-americana, a arte terra-corpo, e a estética feminista
(DZIEDZIK, 2015). Seu envolvimento com a vanguarda artística feminista iniciou-se nos anos 1970,
período em que o sangue era reivindicado enquanto material feminino - e feminista - de arte
(O’HAGAN, 2013). Ao chegar em Nova York em 1978, inseriu-se em um círculo de artistas
feministas, tornando-se amiga de Nancy Spero, Mary Beth Edelson, Carolee Schneemann e também
de Louise Bourgeois. A vontade de igual reconhecimento de seus trabalhos em comparação aos pares
masculinos era a agenda unificadora das artistas à época.
A obra e a vida de Ana Mendieta inspiraram muitos coletivos feministas de artistas a contestar
a dominação masculina no mundo da arte. Em 1992, sete anos após sua morte, mais de 500 mulhere,
dentre as quais as artistas feministas do coletivo Guerrilla Girls, reuniram-se em frente ao show de
inauguração da galeria em SoHo do Museu Guggenheim de Nova York carregando cartazes onde se
lia “Onde está Ana Mendieta?” (O’HAGAN, 2013). As mulheres presentes na manifestação
criticavam o esquecimento da morte da artista por parte estabelecimento de arte, dominado por
homens. O estopim para a ação política foi a inclusão no show inaugural do trabalho de Carl André,
o qual foi absolvido das acusações de assassinato de Mendieta com base nos argumentos misóginos
dos advogados de defesa.
Em junho 2016, o movimento WHEREISANAMENDIETA, projeto de arquivamento que
combate a glorificação de homens violentos e o silenciamento e opressão de mulheres e pessoas não
binárias no mundo da arte, organizou uma intervenção no Tate Modern Museum em Londres. A
intervenção política ocorreu na galeria, onde artistas protestaram contra a exclusão do trabalho

2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
artístico de Ana Mendieta, acusaram Carl André pela sua morte e também chamaram a atenção pela
forma como mulheres são tratadas pela indústria.
Ao longo deste artigo, buscamos identificar linguagens artísticas em sua obra que levem ao
questionamento da opressão de gênero, considerando o posicionamento situado da artista enquanto
mulher de cor, deslocada de seu país natal, em permanente exílio, e submetida a violências estruturais
sistêmicas ao longo de sua vida. Pretendemos aqui abordar o olhar crítico e político de Ana Mendieta
sobre as diversas formas opressão e violências contra a mulher, sobre o exílio e o colonialismo.
Verificamos igualmente a contribuição da artista para uma ressignificação estética guiada pela
perspectiva feminista, bem como seu legado para questionar as estruturas opressivas a partir da
potência política artística e feminista. Selecionamos duas obras da artista - Rape Scene (1973) e
Siluetas Series (1977-1980) - onde identificamos algumas ressignificações estético-políticas trazidas
por Mendieta com relação à estética feminista, à subversão do prazer visual masculino, e à articulação
arte-política no combate às estruturas patriarcais opressivas.

Ana Mendieta: vida e obra entrelaçadas

Referir-se à produção de Ana Mendieta (1948-1985) como um entrelaçamento entre vida e


obra é simultaneamente uma platitude e uma constatação indubitável. Temas como gênero, etnia,
terra, morte e exílio estão profundamente imbricados em sua realização artística. Embora o conjunto
da obra não se esgote na biografia da artista, a apresentação de um breve contexto torna-se basilar à
compreensão de sua produção.
Ana Mendieta nasceu em Cuba, em 1948 em uma privilegiada e tradicional família de origem
espanhola. Em 1961, dois anos após a revolução cubana, Ana e sua irmã são enviadas para exilarem-
se nos Estados Unidos a fim de escapar do cenário político instável do país. Alocadas em Iowa, um
estado do centro-oeste norte-americano e predominantemente habitado por descendentes de
imigrantes do norte europeu, Mendieta enfrenta um racismo institucionalizado até então
desconhecido, reconhecendo-se, pela primeira vez, como latina e a partir do estigma sofrido por sua
cor. A partir de 1972, Mendieta passa a estudar na Universidade de Iowa, onde inicia seus estudos de
graduação e mestrado em artes visuais e intermídia experimental.
Ao longo de treze anos, entre 1972 e 1985, ano de sua trágica e precoce morte aos 36 anos de
idade, Mendieta produziu um extenso corpus artístico a partir de vídeos, filmes super-8, séries
fotográficas, performances, earth art, esculturas e instalações site-specific. Tais produções,
3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
profundamente marcadas pelo caráter efêmero e transitório de esculturas marcadas na terra, tornam-
se assim seu tema central.
A formação de Ana Mendieta é impregnada de um caráter político disruptivo que contaminava
quase toda a produção artística dos anos 1960 e 1970, onde, sobretudo a arte feminista, tomará os
espaços urbanos e externos em detrimento da ocupação dos espaços institucionalizados das artes. O
interesse na eliminação tanto do objeto artístico como do espaço de legitimação dos museus e galerias
subvertia a autoridade do artista ao envolver o espectador ativamente na produção de sentidos.
Eis aqui dois eixos distintivos de Mendieta: o uso de seu corpo e a efemeridade, onde sua obra
é, ao mesmo tempo pautada pelo corpo feminino e seu respectivo desaparecimento. Como destaca
Merewether (1996) para Mendieta o corpo enquanto objeto do erotismo, da violência e da morte é
um corpo feminino, e portanto, seu uso permite a construção de uma estética feminista e crítica, de
caráter emancipatório frente à uma ordem simbólica dominante.
No que tange ao desaparecimento, Blocker (1999) ao perguntar ”onde está Ana Mendieta?”
nos sugere que o termo “onde” pode ser uma arma poderosa contra alguns estabelecimentos fixados
pela cultura ocidental contemporânea. Determinações como gênero, etnia, nacionalidade e a situação
de exílio contribuíram de forma decisiva para a ausência da artista em espaços de produção de
discursos legitimados - neste sentido, Mendieta é obliterada pelo “mapeamento normativo”3
(BLOCKER, 1999, p.3), tornando-a irrepresentável e, inerentemente, uma figura em movimento, em
desaparecimento.
Trata-se, portanto, de uma obra que demonstra resistência onde a artista escapa de tais disputas
produzindo espaços intersticiais de identidade e evidenciando a instabilidade das categorias
identitárias a partir de raça, gênero e etnia. Para compreendê-la, deve-se ir além da constatação da
obra como um registro do trauma do exílio: Mendieta produz uma “dialética do exílio”
(MEREWETHER, 1996), onde evidencia-se que a estabilidade do conceito de nação é intrínseca à
noção de exílio - para existir, depende de um “outro” como elemento constituinte das narrativas
nacionais e binárias que estabilizam a cultura moderna ocidental. Neste sentido, Mendieta trabalha
em favor e contra sua posição de exilada, associando-a com sua posição feminina: “A mulher é um
estrangeiro familiar, um outro irreconciliável”4 (BLOCKER, 1999, p.80, 81). Ao passo que a artista

3
No original “normative mapping”.
4
“No original “The female is a familiar foreigner, an irreconcilable other.”
4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
constata esta ambígua co-implicação, aborda o exílio como posição discursiva, posicionando-se em
um espaço intersticial e limiar de enunciação.

Rape Scene (1973): corpo e violência

Nos primeiros anos de produção artística em Iowa City, Mendieta explorou diversos meios e
suportes e combinando filmes, fotografias e performances realizando obras evidenciando processos
verdadeiramente experimentais através da manipulação e intervenção em seu próprio corpo. Em
1973, Ana Mendieta realizou três ações artísticas sobre o tema do estupro e a violência de gênero.
Profundamente afetada pelo caso de estupro e feminicídio sofrido por uma estudante da Universidade
de Iowa, a artista produziu uma performance que tem destaque dentre as suas produções
contemporâneas sobre o estupro: convidou colegas da universidade para um evento em seu
apartamento. Ao adentrar a porta entreaberta, o espectador vislumbrava a artista nua da cintura para
baixo, deitada sobre uma mesa de jantar com marcas de sangue pelo corpo e no chão, bem como
objetos quebrados: a cena remetia ao caso de violência retratado pelos meios de comunicação locais.
Identificando-se com a vítima ao encenar o episódio, a performance não apenas testemunha tal
violência, mas, através do ato de repetição e reiteração constitui a audiência enquanto testemunhas
participantes, implica-nos como testemunhas imediatas de uma cena de violência deslocando o foco
do incidente para além da vítima, mas também para o testemunho do ocorrido (MEREWETHER,
1996). Trata-se de um rearranjo na centralidade da obra para o espectador, tema caro à produção
artística dos 1970 que evidenciava a necessidade do receptor para constituição da arte: o rechaço à
arte retiniana, de apreciação do belo, resulta na produção da arte como experiência, de um processo
estético que não se esgota no sentido da visão, mas transbordam à questões sociais, políticas e ético-
estéticas.
Para Mendieta, tratava-se de uma resposta pessoal à situação (MOURE, 1996), e,
posteriormente, a artista chegou a declarar abertamente o caráter reativo da performance como
enfrentamento à violência contra mulheres (VISO, 2004).

5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Figura 1: Untitled (Rape Scene), 1973. Fotografia colorida sobre papel. Documentação de performance em
Iowa. Coleção Tate e cortesia da Latin American Acquisitions Committee 2010

É válido destacar que a questão de violência de gênero reporta-se inerentemente à vida da


artista. Levando em conta sua morte bastante trágica, caindo do 34º andar de seu apartamento em
Manhattan após uma relatada discussão com seu marido, também artista, Carl André, suas obras com
sangue na calçada e silhuetas femininas remetem a um quase presságio de sua morte. O caso torna-
se ainda mais complexo, uma vez que André foi absolvido do processo de homicídio e permanece
um artista renomado e ainda em franca atividade no circuito institucional das artes visuais. Tal
contexto nebuloso frente à morte de Mendieta resultou em diversos protestos de feministas contra
Andre em aberturas de exposições do artista em instituições como o Museu de Arte Contemporânea
de Los Angeles (MOCA) em 2017, bem como nos já mencionados Guggenheim Soho em 1992 e
Tate Modern de Londres em 2016.
Em produções seguintes neste mesmo período, Ana Mendieta explorou a questão do sacrifício
- animal - como uma certa metáfora à situação feminina na sociedade ocidental. Para a artista, nos
parâmetros sociais contemporâneos, o objeto de sacrifício é a mulher, expondo a questão da violência
repressiva vigente onde a morte e natureza são condições constitutivas dadas à mulher: isto é, mantê-
la sempre deslocada, fora dos termos culturais, em permanente estado de exílio (MEREWETHER,
1996). Assim, o corpo feminino tem papel instrumental, uma base material para a produção artística
6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
revela-se, deste modo, uma forma transgressiva de reinscrição deste corpo sexuado nos parâmetros
culturais.
Durante este período, que remonta principalmente à época em que Mendieta era estudante na
Universidade de Iowa, seu trabalho foi marcado por uma intensa experimentação, onde o corpo da
artista se apresentava como objeto artístico, de modo mais explícito que sua fase de Siluetas. Deste
momento em diante, seu trabalho segue um novo rumo decisivo que consiste na omissão de si como
suporte material de sua arte e substituindo-se de modo fantasmagórico a partir da inserção de silhuetas
de seu corpo na natureza. Nos termos de Merewether (1996, p.107) “Essa mudança em seu trabalho
a libertou de uma polaridade entre uma forma de essencialismo e a ideia de que todas as coisas serem
uma construção social5.”

Siluetas Series (1973-1980) paisagem e deslocamento

A partir de sua legalização como cidadã norte-americana na década de 1970, Ana Mendieta
pôde deixar o país para realizar viagens a sítios pré-colombianos no México, no momento em que as
paisagens da natureza passam a ganhar crescente relevância em suas obras, bem como a temática das
relações com as religiões nativas da América Central e Caribenha.
Ao longo de sua breve vida, produziu mais de duzentos trabalhos onde fez da terra seu meio
escultural, onde seu corpo está ausente de um espaço vazio, erodido. As séries de Siluetas consistem
em diversas replicações de seu corpo como pegadas, marcadas por uma tipologia de formas femininas
abstratas e pela efemeridade, esculpindo seus contornos como “seus duplos inquietantes”6
(BLOCKER, 1999, p.97).
As séries foram produzidas tanto no interior de Iowa quanto no México, porém, para
Mendieta, este último representava um território neutro, liminal, onde sua condição de exilada ou
cidadã tornavam-se temporariamente suspensas. Na medida em que seu trabalho enfrenta a natureza
da identidade, a artista compreende a possibilidade de existência no interlúdio da presumida fixidez
identitária. Ocupando militantemente o interstício, sua presença é disruptiva frente aos termos
binários nacional/exílio, cultura/natureza aos quais a artista é frequentemente alocada (BLOCKER,
1999).

5
No original, “This shift in her work freed her from a polarity between a form of essentialism and the idea of all things
being a social construction”
6
No original, “uncanny doubles”.
7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Figura 2: Untitled (from Silueta Series), 1978. Impressão de gelatina de prata. Documentação de performance
em Iowa. Coleção MCA Chicago.

Ana Mendieta afirmava que, ao produzir sua imagem na natureza, ela podia lidar com as duas
culturas na quais encontrava-se “entre”. Em suas próprias palavras: “Fazer minha silhueta na natureza
faz a transição entre minha pátria e minha nova nação. É um modo de reivindicar minhas raízes e
tornar-me uma com a natureza7” (Mendieta apud Merewether, 1996, p.108).
Neste contexto, é preciso explicitar a visão de Mendieta sobre a terra: esta é processo vivo e
fonte essencial da vida e, culturalmente associada ao feminino. Porém, sua obra não opera em direção
à reiteração de um lugar-comum, mas antes destaca como a terra também é um constructo
ideologicamente marcado como uma metáfora de feminilidade, é um campo semiótico de inscrições
culturalmente fixadas (BLOCKER, 1999). Trata-se de um duplo trabalho: ao essencializar a terra,
remove-a dos termos da cultura, da linguagem e sua ideologia para remarcá-la.
Diversas leituras do corpus artístico de Mendieta apontam para uma visão essencialista e
limitada de feminilidade, ao passo que Blocker (1999) sugere que a terra evidencia uma relação
antitética com a nação, evidenciando as fragilidades sob as quais os conceitos de nação estão
assentados. Na medida em que “terra” e “nação” são partes integrantes de um conjunto de binarismos
a eles associados, sendo a primeira associada ao feminino, ao primitivo e ao corpo, ao passo que o
segundo associa-se ao masculino, ao colonial e à mente, é possível afirmar ambos termos dentro de
um essencialismo/naturalismo e seu oposto, construção/artificialismo. (BLOCKER, 1999) Ao se

7
No original: The making of my silueta in nature keeps (make) the transition between my homeland and my new home.
It is a way of reclaiming my roots and becoming one with nature.
8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
utilizar de binarismos, Mendieta reivindica não um reforço de seus termos, mas antes sua inerente
integralidade: as oposições são artificiais, não há divisões, somente o todo. Nos termos de
Merewether (1996, p.84)
Através de seu trabalho, ela busca desfazer o realismo para dividir um espaço entre
o corpo e o texto do corpo, a totalidade imaginária da relação entre artista e obra, tornando a
sua verdade provisória e contingente. A identidade está sempre em andamento e Mendieta
perturba radicalmente o seu posicionamento perpétuo, colocando resíduos na sua idealização
e autorizando uma imagem de diferença fundada em um espaço de ausência, um mise-en-
abîme. Nestes termos, o trabalho representa uma crítica profunda da esfera social e uma
tentativa de pensar o exterior, o heterogêneo como o local imediatamente de restituição e
dissolução. 8

Como característico de sua obra, a série de Siluetas é provavelmente sua expressão máxima
de um borramento de fronteiras, onde reivindica um espaço ao qual escapa, criando um profundo
sentido de ausência e transitoriedade das coisas. Seus trabalhos persistem no tempo somente através
de filmes e fotografias, evidenciando a natureza fantasmagórica destes suportes: não são mais que
resíduos. Willoughby Sharp denominou os experimentos da earth art como uma “arte impossível”,
onde Blocker (1999) situa a obra de Mendieta: trata-se de um trabalho impossível dentro dos termos
institucionalizados de interpretação das artes visuais, que balizam-nas como algo finito e tangível.
Assim, o deslocamento das identidades, que é central à discussão na modernidade tardia,
evidencia-se nas obras da artista para além de uma recusa ao colonialismo ou a um anti-colonialismo,
mas antes, refere-se à desconstrução de uma suposta pureza predominante nas identidades ocidentais,
asseguradas pela contínua e repetitiva representação dos subalternos enquanto “outro”, desprovido e
vitimado. Deste modo, o uso recorrente da terra simboliza a essência na qual e contra a qual as
subjetividades são sistematicamente construídas.
O corpo feminino permaneceu, em ambas as fases aqui abordadas, como o elemento mais
central e consistente de sua produção. Ainda que diversas leituras de sua obra tendem a uma platitude
de uma resposta ao trauma da expatriação, às quais Merwether (1996) e Blocker (1999) reportam
como simplificações marginalizantes e feminilizantes de uma produção complexa acabam por
despolitizar sua produção. Deste modo, selecionamos duas obras de Mendieta que evidenciam tal

8
No original: “Throughout her work, she seeks to unwrite realism, to wedge a space between the body and the text of
the body, the imaginary wholeness of the relation between artist and the work, making her truth provisional and
contingent. Identity is always in the making and Mendieta radically disturbs its perpetual positioning by laying waste to
its idealization and authorizing an image of difference founded within a space of absence, a mise-en-abîme. In these
terms, the work represents a profound critique of the social sphere and an attempt to think the outside, the
heterogeneous as the site at once of restitution and dissolution.”

9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
potencial desestabilizador das artes visuais e das noções identitárias de gênero. O olhar crítico de Ana
Mendieta problematiza diversas formas de opressão e politiza o colonialismo e a subalternidade. A
partir da subversão do olhar masculino, termo suscitado por Laura Mulvey (1999) para designar o
prazer visual masculino, Mendieta desloca a mulher de sua posição de objeto a ser olhado com prazer
erotizante. A artista propõe uma ressignificação estética crítica feminista, onde o corpo feminino
extravaza a única possibilidade de prazer ao olhar masculino, deixando um legado para questionar as
estruturas sócio-políticas opressivas a partir da potência artística.

Referências

BIDASECA, Karina. Lo bello y lo efímero como configuraciones de emancipación.Una retrospectiva


de la obra de la artista cubana Ana Mendieta. Revista Internacional de Pensamiento Político, I Época,
Vol. 9, 2014 - p. 131-138

DE LAURETIS, Teresa. Aesthetic and Feminist Theory: Rethinking Women's Cinema. New German
Critique, No. 34, Winter, 1985, p. 154-175.

DZIEDZIC, Erin. Ana Mendieta: Earth Body, Sculpture and Performance 1972-85: One Universal
Energy Runs Through Everything. Drain Magazine, 2015.

GARGALLO, Francesca. Ideas feministas latinoamericanas, historia de las ideas, Universidad de la


Ciudad de México, México, 2004.

HEIN, Hilde. The Role of Feminist Aesthetics in Feminist Theory. The Journal of Aesthetics and Art
Criticism, Vol. 48, No. 4, Feminism and Traditional Aesthetics, Autumn, 1990, p. 281-291.

LIPPARD, Lucy. Trojan Horses: Activist Art and Power. In: Art After Modernism: Rethinking
Representation. WALLIS, Brian & TUCKER, Marcia. New York: New Museum of Contemporary
Art, 1984.
MEREWETHER, Charles. From Inscription to Dissolution: An Essay on Expenditure in the Work of
Ana Mendieta. In: Ana Mendieta. MOURE, Gloria (Ed,). Número da edição. Local de Centra Galego
de Arte Contemporanea, Barcelona: Ediciones Poligrafa, 1996.

MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. In: Film Theory and Criticism:
Introductory Readings. Eds. Leo Braudy and Marshall Cohen. New York: Oxford UP, 1999: 833-44.

10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O’HAGAN, Sean. Ana Mendieta: death of an artist foretold in blood. Art The Observer. The
Guardian. 22 september, 2013. Disponível em:
https://www.theguardian.com/artanddesign/2013/sep/22/ana-mendieta-artist-work-foretold-death.
Acesso em: 29/6/2017.

SOUSA, Edson Luiz André de. Por Uma Cultura da Utopia. E-topia: Revista Electrónica de Estudos
sobre a Utopia, n.12, 2011.

Outras fontes

Ana Mendieta, A retrospective, The New Museum of Contemporary Art, New York, 1987.

Ana Mendieta: The Aesthetic-Political Resignations of Feminist Art

Abstract: This communication is guided by the artistic work of Ana Mendieta (1948-1985), a Cuban
visual artist who lived most of her life in the United States and made part of the 1970´s feminist avant
gard art movement. Departing from the analysis of two art pieces, Rape Scene (1973) and Siluetas
Series (1973-1980) we sought to identify expressions of an early feminist aesthetic that lead to the
questioning of oppressions of the order of gender, ethnicity and race, valuable themes to Mendieta's
production that permeate all her art work.

Keywords: Ana Mendieta; Feminism; Visual Arts; Gender, Feminist Aesthetics

11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Você também pode gostar