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VIDA (TRANS)MIDIÁTICA
(TRANS)MEDIA LIFE
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Ramon Queiroz Marlet / João Carlos Massarolo
1. Introdução
que é específica das plataformas midiáticas, conhecida como narrativa transmídia, que consiste em
dispor trechos ou partes de um universo narrativo em distintas plataformas de comunicação,
objetivando que o público obtenha uma experiência coordenada e unificada de entretenimento mais
rica, compartilhando suas descobertas com os demais (JENKINS, 2009). Nesse sentido, as
narrativas transmídia se configuram como uma forma estética particular que se expande através de
diferentes sistemas de significação e meios (SCOLARI, 2013).
A convergência das mídias, assim, é muito mais do que uma simples transformação
tecnológica, já que “altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e
públicos” (JENKINS, 2009, p. 43), podendo ser tanto um processo corporativo – convergência
corporativa – entendido como o “fluxo comercialmente direcionado de conteúdos de mídia”
(JENKINS, 2009, p. 377), de cima para baixo, quanto um processo de baixo para cima, o que
caracteriza a convergência alternativa, ou seja, o “fluxo informal e às vezes não autorizado de
conteúdos de mídia quando se torna fácil aos consumidores arquivar, comentar os conteúdos,
apropriar-se deles e colocá-los de volta em circulação” (JENKINS, 2009, p. 377).
Para que um determinado conteúdo de mídia se torne propagável, ele precisa se concentrar
nos seguintes itens, como apontado por Jenkins, Green e Ford (2014): fluxo de ideias – quando o
conteúdo trocado diz algo significativo sobre as partes envolvidas –, material disperso – criação de
Um conteúdo midiático altamente propagável que possui todos esses itens é a narrativa
transmídia. Simultaneamente, temos a expansão da história através de vários meios/plataformas de
comunicação e a colaboração dos usuários nesse processo. Considerando essas circunstâncias,
Scolari (2013, p. 46) define essa manifestação como “um tipo de relato onde a história se desenrola
através de múltiplos meios e plataformas de comunicação, no qual uma parte dos consumidores
assume um papel ativo nesse processo de expansão”. Essa interação só se torna possível pois a
narrativa transmídia se configura como a arte da criação de universos ficcionais (JENKINS, 2009).
Esses ambientes são dotados de complexidade narrativa e desdobram-se em múltiplas camadas ou
níveis, fornecendo, em cada uma delas, experiências que expandem o universo pessoal do público
ao mesmo tempo em que reforça e enfatiza sua noção de pertencimento a esse universo ficcional
criado, fazendo com que seus habitantes se identifiquem com os textos dispersos em diferentes
mídias, de forma autônoma ou relacionada (MASSAROLO, 2011).
Na busca por refletir sobre a presença midiática na formação dos hábitos e atitudes de
consumo ficcional em nossa atualidade, podemos utilizar a midiatização como conceito-chave para
a compreensão dessa nova dinâmica interacional comunicativa transmidiática, como especificado
em Massarolo e Marlet (2014).
múltiplos processos de mediação têm mudado com o surgimento de diferentes tipos de mídia”
(COULDRY e HEPP, 2013, p. 197).
Trazendo essa associação ao nosso objeto de estudo, temos que a mediação corresponde à
necessidade de se buscar nas diversas plataformas midiáticas o acesso às narrativas e,
consequentemente, ao universo ficcional criado, enquanto que a midiatização decorrente dessas
ações diz respeito à mudança na lógica pela qual a indústria da mídia opera e pela qual os
consumidores processam o conteúdo recebido, caracterizando a cultura participativa e a cultura
underground dos fãs. Nesses processos, a narrativa transmídia e suas expressões se expandem,
tornando-se os grandes protagonistas do consumo midiatizado, e se firmam como elementos
midiatizadores do consumo ficcional em nossa atual cultura da convergência (MASSAROLO e
MARLET, 2014).
4. Vida midiática
De uma maneira geral, a relação entre mídia e cotidiano foi estudada por inúmeros autores,
numa tentativa de reflexão sobre o papel desempenhado por essa instância no dia a dia das pessoas.
À medida em que passamos a acessar nossa realidade por meio da mídia, e unicamente através
dela, temos uma reconfiguração tanto da nossa própria noção do que seria essa “realidade
compartilhada” (COULDRY, 2008), quanto das relações sociais e culturais estabelecidas a partir
disso.
Lev Manovich (2009) traz uma série de exemplos dessas transformações analisando as
principais mudanças nesse cenário, principalmente após o grande boom de conteúdos criados e
gerados pelos usuários da internet a partir de 2005, estabelecendo um novo universo midiático
cujos reflexos se mostram presentes até os dias de hoje. Ao analisar o que ele chama de “prática da
vida (midiática) cotidiana”, podemos ver a proliferação de interfaces criadas principalmente pela
consolidação da Web 2.0, no sentido de que se torna possível e extremamente fácil acessar às
mídias de outras pessoas, configurando uma prática diária comum. Assim, tornam-se públicos não
De acordo com Deuze, Speers e Blank (2010), nós gastamos a maior parte do nosso tempo
usando as mídias, cuja realização de multitarefas com elas tornou-se algo extremamente comum
em nosso cotidiano. De fato, temos de reconhecer como os seus usos e apropriações permeiam
todos os aspectos de nossa vida contemporânea. Esse é o cenário em que autores como Roger
Silverstone (2007), Alex de Jong e Marc Schuilenburg (2006) e Sam Inkinen (1998) chamam de
“midiápolis”, ou seja, “um espaço público totalmente midiatizado no qual a mídia é a base e o
entorno das experiências e expressões da vida cotidiana” (DEUZE, SPEERS e BLANK, 2010, p.
140). Assim, “a vida é vivida na mídia, e não com ela” (DEUZE, SPEERS e BLANK, 2010, p.
140).
Hoje, os indivíduos crescem rodeados pela mídia de maneira que a consideram apenas mais
um componente/elemento natural do seu ambiente. A própria noção de realidade encontra-se
completamente captada pela comunicação midiatizada, afinal, “viver em tal realidade significa uma
vida vivida na mídia” (DEUZE, SPEERS e BLANK, 2010, p. 141). Para esses autores,
Essa midiatização de tudo é estabelecida como premissa pela crescente invisibilidade
da mídia, que por sua vez a torna indissociável da vida cotidiana (e todos os seus
aspectos). No momento em que a mídia se torna invisível, nosso senso de identidade
e mesmo nossa experiência da própria realidade se tornam irreversivelmente
modificados, no sentido de que toda a nossa identidade não é centrada e racional, mas
subvertida e dispersada através do espaço social (DEUZE, SPEERS e BLANK, 2010,
p. 142).
Assim, fica evidente o fato de que toda a nossa existência se encontra dispersa através do
tempo e do espaço por meio da mídia, e que a realidade, por sua vez, não pode ser concebida e
vivenciada em um local separado ou fora dela, já que as barreiras e os limites entre o mundo físico
e o virtual estão se fundindo cada vez mais. De acordo com Beiguelman (2011, p. 38), falar no fim
do virtual não quer dizer apostar numa volta ao mundo analógico, mas, ao contrário, “significa
assumir que as redes se tornaram tão presentes no cotidiano e que o processo de digitalização da
cultura é tão abrangente que se tornou anacrônico pensar na dicotomia real/virtual”.
E em relação aos indivíduos? O quê significa viver plenamente uma vida midiática? A
resposta é dada por Deuze, Speers e Blank (2010, p. 143):
As pessoas na vida midiática inevitavelmente envolvem-se com a realidade em um
constante movimento entre o idealismo (o que percebemos) e materialismo (o que é
aparente), usando as ferramentas e técnicas da mídia contemporânea digital e de
redes de comunicação para selecionar, editar e remixar tanto suas percepções quanto
a aparência daquela realidade.
Uma vez definida a ideia de vida midiática e suas principais características, como podemos
adaptá-la ao nosso objeto de estudo, considerando as manifestações midiatizadas das narrativas
transmídia e o complexo ambiente midiático moldado pela propagabilidade e pela convergência?
5. Vida (trans)midiática
De acordo com Deuze (2009), a mídia é nossa janela para o mundo e também possui uma
função de espelho, já que reflete e nos direciona ao mesmo tempo. Assim, a convergência e a
propagabilidade da produção e do consumo de mídia entre as empresas, canais, gêneros,
tecnologias e pessoas é uma expressão da convergência e da propagabilidade de todos os aspectos
da nossa vida cotidiana: trabalho e lazer, o local e o global, individualidade e identidade social.
Uma perspectiva da vida midiática nesse sentido desestabiliza as tradicionais categorias de
produção, conteúdo e consumo, uma vez que essas esferas se fundem, gerando novas práticas
interacionais, ou seja, as pessoas geralmente não possuem sentido de seus processos de
significação e práticas de uso midiático em termos de produção e consumo, que parecem acontecer
ao mesmo tempo.
Considerando tudo o que foi dito até aqui, o que significa, então, para os fãs viverem uma
vida (trans)midiática? Adaptando a ideia de Deuze, Speers e Blank (2010), temos que os fãs na
vida (trans)midiática inevitavelmente envolvem-se com a realidade ficcional criada em um
constante movimento entre o idealismo (o que é percebido) e o materialismo (o que é aparente),
usando as ferramentas e técnicas da mídia contemporânea digital e de redes de comunicação para
selecionar, editar e remixar tanto suas percepções quanto a aparência daquela realidade ficcional,
propagando o conteúdo desenvolvido, numa busca constante por experiências narrativa que os
compensem. Se, na vida midiática a mídia se torna invisível, na vida (trans)midiática, além disso,
as plataformas nas quais a história se desenrola também se tornam invisíveis, uma vez que os fãs
buscam por experiências narrativas que sejam válidas, independentemente da plataforma em si.
Desse modo, temos a conectividade em rede (que permite a propagação do conteúdo), a
coletividade (no sentido de fazer parte de uma comunidade de interesses compartilhados em
comum), a individualização (o conteúdo propagado é resultado das interpretações individuais dos
fãs) e a cultura participativa (que molda e possibilita as interações) como os componentes
principais da vida (trans)midiática. A seguir, analisaremos alguns exemplos que ilustram a
aplicação dessa definição.
Na “cultura ligada em rede” se torna cada vez maior a difusão de conteúdos pessoais
dispersos por várias mídias e disponibilizados nas nuvens e, por outro lado, as plataformas para
Partindo da máxima de McLuhan, "o meio como extensão do homem", essas tecnologias
potencializam a 'comunicação das coisas' e multiplicam a circulação de conteúdos moldados pela
lógica da participação. Para McLuhan (2003, p.23), é o meio que "configura e controla a proporção
e a forma das ações e associações humanas. O conteúdo ou usos desses meios são tão diversos
quão ineficazes na estruturação da forma das associações humanas”. Na perspectiva deste artigo, o
meio é formado por um ecossistema midiático moldado como uma rede invisível e onipresente,
acessada por diversas mídias. As ações dos usuários são conectadas a uma variedade de mídias e é
nestes 'mundos midiatizados' (HEPP, 2014) que ocorrem os processos de subjetivação em curso
nas redes através de conteúdos propagáveis. Para o autor, os mundos midiatizados podem ser
entendidos como 'mundos sociais' que se entrelaçam entre si e, ao mesmo tempo, se fragmentam
em diversas partes.
Inicialmente, o Instagram foi pensado para fotógrafos amadores, com o objetivo era resgatar a
nostalgia das polaróides e promover o compartilhamento dinâmico em rede. O aplicativo permite a
aplicação de filtros (efeitos), que cria o aspecto envelhecido ou vintage da imagem; realce de cores
e saturação; opções de bordas à imagem e a percepção de foco. Para valorizar o conteúdo são
editadas áreas que se deseja destacar e esconder, inclusive, o que não se deseja mostrar. No
entanto, um aplicativo ou dispositivo não se define apenas pelas funcionalidades que são embutidas
a priori, mas pelas conexões que é capaz de estabelecer com as ações dos usuários e as redes
sociotécnicas que enformam o dispositivo (LATOUR, 2012). Neste sentido, os recursos oferecidos
pelo aplicativo de cortar, editar e aplicar filtros, estão intimamente ligados ao fenômeno recente
denominado nas redes sociais de 'camarotização' da vida. Para o pesquisador Marcos Hiller (2015,
s/p), esta noção "pode ser entendida como um fenômeno de distinção social promovido por meio de
privilégios em acesso a determinados rituais de consumo".
Na primeira internet ainda era possível manter a distinção entre fãs e produtores ou mesmo,
entre blogs amadores e patrocinados por marcas associadas a estilos de vida saudável, mas nos
mundos midiatizados das redes as antigas comunidades de fãs ou de perfis estruturados a partir da
noção de "um para muitos" e com interesses definidos a priori, cede espaço para a comunicação
mais aberta, centrada em conexões contextualizadas e temporárias, resultando em agrupamentos
de fãs/ativistas que se organizam nas redes através de interações que envolvem o engajamento
tanto nos aspectos emocionais quanto políticos e financeiros. Por outro lado, o rastreamento de
hábitos e costumes dos usuários nas redes torna possível identificar o perfil dos consumidores. Para
Lúcia Santaella (2013, p.43), a criação de perfil numa rede social evidencia que na prática os
usuários “passam a responder e atuar como se esse perfil fosse uma extensão sua, uma presença
daquilo que constitui sua identidade. Esses perfis passam a ser como estandartes que representam
as pessoas que os mantêm”. Para Flusser (2007, p.98), o predomínio do mundo codificado pelos
meios de comunicação sobre a experiência de vida gera desequilíbrios e sacrifícios para o ser
humano "apesar da permanente ligação com as chamadas fontes de informação".
7. Considerações finais
onipresença molda e determina as relações construídas entre as pessoas que fazem parte de grupos
midiáticos, estes “fortemente motivados a produzir e fazer circular materiais midiáticos como parte
de suas contínuas interações sociais” (JENKINS: GREEN e FORD, 2014, p.55).
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