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MARX 2014| Seminário Nacional de Teoria Marxista – Uberlândia, 12 a 15 de maio de 2014

A questão nacional no socialismo indo-americano de José


Carlos Mariátegui

Autor: Rafael de Ávila Betencourt1

Resumo: O marxismo latino-americano tem no pensamento do peruano José Carlos


Mariátegui um de seus precursores. O heretismo de seu marxismo e a valorização das
tradições indigenas na concepção de uma socialismo original para o continente,
apresentou no campo da esquerda no continente a necessidade de reivindicação de uma
nacionalidade que excluisse a herança colonial. Mariátegui idealiza uma peruanidade
legítima através da recuperação de tradições coletivistas incas, as quais indicam a raiz
histórica de uma socialismo capaz de legitimar um semtimento de nacionalidade. Para
Mariátegui , o processo socialista enfim permitiria a vivência da nação genuína,
divorciada de seu viez criolo.

Palavras- chave: Mariátegui; socialismo latino-americano; tradições incas; nação.

Ao longo do século XX diversos movimentos da esquerda latino americana


reivindicaram a obra de José Caralos Mariátegui como referência teórica, exatamente
por sua tentativa de formular um socialismo autenticamente indo-americano representar
a busca de uma identidade latino americana alternativa, que se desvinculasse da herança
colonial. O pensador peruano apresenta um marxismo readaptado a realidade do
continente,de maneira herética e criativa, o marxismo seria a ferramenta para a
concretização de uma nacionalidade genuinamente peruana. A nação para Mariátegui
era um projeto em andamento e seria plenamente realizada somente a partir das

1
Graduado em História pela PUC-RIO, mestre em História Moderna e Contemporânea pelo ISCTE-IUL
de Lisboa e doutorando em Ciência Política pelo IUPERJ. Email: rafabetenko@gmail.com
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tradições campesinas indígenas . Nesse ponto a originalidade de seu trabalho expressa o


contexto histórico do florescimento de um movimento indigenista revolucionário no
Peru, indicando que a idéia de uma verdadeira nacionalidade peruana fosse alcançada
através do socialismo marxista . A busca por um identidade peruana em Mariátegui
revela o quadro de crise de um Estado oligárquico formado após a independência e seu
projeto anticapitalista apresenta o campesino indígena como o sujeito revolucionário de
uma revolução socialista.

Tido como um dos grandes marxistas latino americanos, a originalidade do seu


trabalho se constituiu em pensar a questão nacional peruana a partir da estrutura teórica
crítica do marxismo, configurou a possibilidade de um socialismo nacional, se
desvinculando da ortodoxia que a Internacional Comunista advogava nas décadas de
1920 e 1930. Para os marxistas europeus a a America Latina seria um continente
atrasado, que para alcançar a efetiva condição da revolução socialista teria que antes de
tudo vivenciar a etapa de uma revolução burguesa. Mariátegui ao romper com tal visão,
admite a possibilidade de uma revolução imediata, tendo o campesinato indigena como
sujeito revolucionário. A importância do estudo de sua obra aparece no silêncio de uma
estrutura definida acerca de seu projeto político, Mariátegui considerava que a idéia de
nação ainda não tinha se realizado plenamente , não sem a incorporação protagônica do
índio em sua conepção. Seu socialismo indo-americano enxergava nas tradições
campesinas indígenas , no chamado “comunismo inca”, a possibilidade de se vivenciar
de fato uma nação genuinamente peruana. Mariátegui conjugou a tradição de um
indigenismo político com as categorias críticas do marxismo, o evidente anticapitalismo
em confluência com um discurso anti-imperialista o fez se tornar uma referência para a
esquerda latino americana.

O pensamento de Mariátegui é formado tanto no debate da esquerda anti-


imperialista peruana , principalmente na figura de Haya de La Torre e da atividade do
APRA2, quanto na ascensão intelectual do indigenismo no desenvolvimento de uma
utopia andina3. Seu marxismo se configura como apenas um instrumento para se
conhecer a realidade latino americana, se torna criativo na medida em que desafia a

2
APRA( Aliança Popular Revolucionária Americana), seu discurso nacionalista e anti-imperialista tinha
como principal ícone Haya de La Torre. Mariátegui rompeu com o APRA em 1928 para fundar o partido
comunista peruano.
3
Conceito trabalhado pelo historiador peruano Alberto Flores Galindo, ele afirma que todo discurso
indigenista, nacionalista que ascendeu no início do século XX tinha como raíz uma utopia andina. Tal
utopia permeava o caráter revolucionário indígena desde as revoltas contra a colonização espanhola.
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ortodoxia europeia e estabelece a possibilidade da revolução socialista sob a conduta do


campesinato indígena. Como a Socióloga Fernanda Beigel afirma:

El indigenismo de José Carlos Mariategui expresó las potencialidades de um marxismo


abierto a las demandas indígenas y comenzó a tener cada vez más importância en las
mentes de muchos, que rastrearon em la historia del marxismo latinoamericano desde
nuevas perspectivas. La búsqueda de aportes originales, que fueron capaces de advertir
nuestra especificidade continental desde la matriz de la filosofia de la praxis, há
ortogado a la obra delensayista peruano un lugar protagónico. (BIEGEL, 2001:37)

Para o pensador peruano, o socialismo seria o único caminho para dar vida ao
“peruanidade” da nação, o “comunismo inca” não seria símbolo de um passadismo mas
sim estaria vivo no presente, nas tradições coletivistas campesinas sobreviventes à
colonização. A criatividade de seu marxismo o faz romper com as premissas
revolucionárias dos soviéticos e com o anti-imperialismo nacionalista dos apristas4,
estabelecendo um novo paradigma teórico e prático para a revolução socialista no
continente. A universalidade do socialismo e a particularidade das tradições indígenas
se fundem na possibilidade da revolução latino americana. Para Mariátegui o marxismo
não expressa um conjunto fechado de diretrizes a serem seguidas, seu caráter
revolucionário e crítico estaria na sua capacidade criativa e na sua maleabilidade
histórica. Em seu texto “ Aniversário e balanço”, se torna latente a idéia dessa
conjunção entre socialismo e tradições campesinas:

E o socialismo , afinal, está na tradição americana. A mais avançada organização


comunista primitiva que a história registra é a inca. Não queremos , certamente, que o
socialismo seja na América decalque e cópia. Deve ser criação heróica. Temos de dar
vida, com nossa própria realidade , na nossa própria linguagem, ao socialismo indo-
americano.Eis uma missão digna de uma geração nova.5

Ao idealizar um socialismo indo-americano, Mariatégui vivenciava a ascensão


do discurso indigenista, um movimento do final do século XIX que pensava tanto na
iteratura quanto nas artes em geral o renascimento de um mundo andino como
verdadeira nação. A formulação dessa utopia andina iria moldar tanto o indigenismo
quanto o aprismo e o socialismo de Mariátegui, e , segundo o historiador Alberto

4
Os apristas eram discordavam do uso do marxismo como instrumento de transformação da realidade
peruana, acusavam a atuação de Mariátegui como sendo eurocentrista.
5
MARIÁTEGUI, J. “Aniversário e balanço”. In LOWY, M. Por um socialismo indo-americano. 2005. P
24.
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Galindo Flores, seriam a raiz de todo futuro debate político daquela país no século XX.
6
A Derrota para o Chile na Guerra do Pacífico no final do século XIX impulsionou a
crise de um Estado criolo oligárquico que fracassou em elaborar um projeto nacional
que unisse uma parte modernizada simbolizada na capital Lima e outra andina,
colonizada e oprimida, simbolizada na cidade de Cuzco. A cisão entre serra e costa
marca o desenvolivmento desse Estado oligárquico no pós independência. Neste
momento o país assistia a efervecência de revoltas populares tanto nas cidades quanto
no campo, trazendo o questionamento do gamonalismo7 para o principal foco deste
embate. A estrutura de poder oligárquica se concentrava nas relações de poder criada
pelos latinfúndios, a questão indígena era sobretudo uma questão de terra.

Uma grande influência para o trabalho de Mariátegui e do aprismo foi o ativismo


do poeta Manuel Gonzalez Prada. Um dos pioneiros de um indigenismo político, o
discurso do poeta urgia pelo processo revolucionário , a partir de um enfoque
antipolítico exaltava a força dos intelectuais na condução da revolução. O dicurso
indigenista é absorvido pelos grupos revoltosos, principalmente pelos grupos rurais,
neles o misticismo assumia papel importante na configuração do embate político. As
raízes de uma politização das tradições incas já podiam ser observadas até mesmo em
um momento anterior a sua obra, como afirma o historiador Alberto Galindo Flores :

This opened new possibilities for Mariategui, who saw that the old could became the new.
Almost intuitively, he discovered a different meaning for tradition. If for oligarchic
intellectuals such as Garcia Calderon brothers, tradition was synonymous with the
colonial era, for Rumi Maqui the only past worth preserving in Peru was the pre-
Hispanic world that Lima either ignored or deemed forever lost. The Incas unexpectedly
became flesh and blood. Mariategui, (…), began to discover a hidden and neglected
aspect of Peru: an Andean world not destroyed by European invasion and that still
weighed heavily on the present.(GALINDO, 2010)

A questão indígena assume então a centralidade no ambiente intelectual no


Peru da década de 1920, ela se torna ao mesmo tempo produção estética e raiz da luta

6
Conflito ocorrido de 1879 a 1883 entre Chile de um lado contra as forças conjuntas de Bolívia e Peru. A
razão para a guerra seria um desentendimento entre Chile e Bolívia a respeito de um pedaço de terra rico
em recursos minerais no deserto de Atacama.
7
Nome dado às relações feudais no campo, faz referência a um parasita que atua em plantas chamado
gamonal.
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política e social. Fernanda Biegel exalta as duas tendências do indigenismo de


Mariategui, política e cultural quando afirma:

Por un lado estaría la dimensión política, relacionada con las organizaciones


reivindicativas y las distintas posiciones ideológicas que el peruano planteófrentea la
incorporación del indio en la sociedad peruana, sus derechos económicos y políticos.Por
el outro aparecería la dimensión cultural, en tanto el indigenismo artístico que impulsó
Mariátegui involucraba el interés por lo autóctono, el pasado cultural y la herencia
incaica.(BIEGEL, 2001:43)

Tão importante para sua formação intelectual quanto o debate indigenista


peruano do inicio do século XX, foi a influência que sua estádia na Itália. Em 1921
Mariategui assiste ao congresso de fundação do partido Comunista da Itália em Livorno,
e apesar de não ter conhecido Gramsci pessoalmente, teve a oportunidade de
compartilhar o mesmo ambiente intelectual do pensador italiano, o que certamente
ajudou no desenvolvimento de seu marxismo heterodoxo antieconomicista e com
grande abertura para as questões culturais. Quando retorna da Europa volta seu dircurso
para a tentativa de indicar a questão indígena como principal problema do país. No seu
artigo “Nacionalismo e Vanguardismo” de 1925 afirmava que o indigenismo
revolucionário que surgia na nova geração peruana era fruto de uma intensa busca por
uma identidade nacional peruana e que tal busca era fundamentada na questão indígena,
nas tradições coletivistas oprimidas pela colonização. A possibilidade da revolução
estaria contida na tradição histórica de todos os povos, no caso peruano, na cultura inca.
Fora da História e da tradição viveria somente a utopia. Nesse ponto Mariátegui cria
uma distinção importante no seu pensamento, a busca de uma cultura inca para a
realização de uma verdadeira nacionalidade seria um ato dinâmico, criativo e
heterodoxo, distinto de uma tentativa de passadismo inerte. A diferenciação entre
tradição e tradicionalismo torna-se imprescindível para se compreender sua lógica:

No hay que identificar a la tradicióncon los tradicionalistas. El tradicionalismo -no me


refiero a la doctrina filosófica sino a una actitud política o sentimental que se resuelve
invariablemente en mero conservatismo- es, es verdad, el mayor ene- migo de la
tradición. Porque se obstina interesadamente en definirla como un conjunto de reliquias
inertes y símbolos extintos.Y encompendiarla en una receta escueta y única. La tradición,
en tanto, se caracteriza precisamente por suresistencia a dejarse aprehenderen una
fórmula hermética. Como resultado de una serie de experiencias-esto es de sucesivas
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transformaciones de la realidad bajo la acción de unideal que la supera consultándo la y


la modela obedeciéndo la-, la tradiciónes heterogéneas y contradictorias en sus
componentes. Para reducirla a un conceptoúnico,es preciso contentarse consuesencia,
renunciando a sus diversas cristalizaciones.(BIEGEL, 2001:46)

Em 1926 Mariategui cria a revista Amauta , era por meio desta pubicação que
ele pretendia canalizar as expressões políticas e artísticas desse novo movimento
indigenista que surgia. O projeto ideológico de Mariategui é de carater estético e
político, abarca um sentido de vanguarda a um indigenismo revolucionário. Sua
reformulação do indigenismo que surgia se justifica na instrumentalização do
socialismo marxista. O Amauta nasce de sua convicção de que o índio representava a
nacionalidade, quebrando com as concepções vigentes de que o nacional se iniciava
com a experiência colonial. Para Biegel o indigenismo :

Expresó una ruptura cultural, que se desarrolló hacia un terreno estético-político y


alcanzó importantes niveles de proyectividad social. En sus distintas expresiones,
especialmente en las revistas, constituyó un cauce importante de la lucha anti-
oligárquica que se desarrolló en el Perúen la década delveinte.(BIEGEL, 2001:47)

Em 1928 Mariategui rompe de vez com a corrente de Haya de La Torre e o


APRA para fundar o Partido Comunista Peruano. Tal rompimento expressa um forte
componente de seu pensamento, o anticapitalismo e o romantismo antimoderno em seu
discurso. Tais caracteristicas foram definidas por Michael Lowy como essenciais para a
construção de seu socialismo indo- americano. O romantismo segundo Lowy seria
definido enquanto:” protesto cultural contra a civilização capitalista moderna em nome
de valores ou imagens do passado pré capitalista.”(LOWY, 2005:9) Historicamente
esse romantismo tanto assumiu formas reacionárias e conservadoras como progressistas
e de esquerda. Sua visão romântico revolucionária aparece principalmente em seu
ensaio “ Duas concepções da vida “ quando advoga por um retorno aos mitos heróicos,
a um espírito de aventura e a um certo quixotismo.. A contraposição romântica a um
socialismo científico marca o trabalho de Mariátegui e sua obra estabelece também uma
forte conciliação entre religião e marxismo, como expressa na passagem de seu artigo “
O homem e o mito”:

A intelectualidade burguesa entretem-se numa critica racionalista ao método, a teoria, a


técnica dos revolucionários. Quanta incompreensão! A força dos revolucionários não está
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na sua ciência , está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa,
mística, espiritual.É a força do mito. A emoção revolucionária … é uma emoção
religiosa. Os motivos religiosos se deslocaram do céu para a terra. Não são divinos ; são
humanos, são sociáveis. (MARIÁTEGUI, 2005: 57)

Lowy coloca a crítica de Mariategui ao positivismo e economicismo da


Internacional Comunista no mesmo registro intelectual que outros pensadores europeus
como Lukács, Gramsci e Walter Benjamin. Um elo possível entre esses nomes seria o
fascínio pela obra de Georges Sorel. O sorelismo de Mariátegui foi muito mais evidente
do que nos europeus, a crítica incisiva sobre o progresso e sua interpretação heróica e
voluntarista do mito revolucionário no sindicalista francês serviram como arma contra o
positivismo do materialismo histórico. Ainda em “o homem e o mito” Mariategui
afirma que Sorel soube reconhecer o elemento místico, religioso e metafísico do
socialismo, sua ideia de revolução e socialismo se fundamentará no elemento místico
de Sorel, o ato revolucionário será para o peruano um ato essencialmente religioso pois
busca um reencantamento do mundo, o combate revolucionário seria uma ação
espiritual e ética, resgatando assim uma certa dimensão heróica para se alcançar a
revolução social.

A conjugação entre Ocidente e o mundo andino se expressa na realização da


nacionalidade peruana através do marxismo, nacionalidade essa fundamentada nas
tradições indígenas campesinas. O resultado dessa combinação para Mariategui é o
surgimento de uma racionalidade distinta da européia, sustentada pela integração entre
modernidade e as relações de solidariedade de uma espiritualidade indígena.

Antes de se desenvolver qualquer debate acerca da questão nacional no


socialismo indo-americano de Mariátegui torna-se essencial lidar com a complexidade
de delimitar algum conceito sobre nação. No mundo acadêmico tal tentativa revela a
controvérsia entre a intenção de um consenso teórico e as distintas realidades que o
trajeto histórico do conceito apresenta. A representação da idéia de nação por
Mariátegui traduz a intencionalidade histórica de seu discurso, o contexto socio-politico
do uso de sua linguagem e o os pontos de diálogo intelectual de sua obra. Para
identificar tal representação será necessário evitar qualquer anacronismo de análise e se
debruçar sobre a primeira tarefa de delimitar como o conceito de nação estava sendo
trabalhado na época. Certamente , a partir deste estudo será possível estabelecer o
caminho intelectual que Mariategui trilhou e especificar as raízes históricas do conceito.
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A nação como uma concepção moderna tem origem no século XVIII, na


tentativa de se classificar grupos humanos e suas possíveis identidades, no entanto, ela
falhou em estabelecer critérios muito objetivos acerca desse conceito. Tal dificuldade
ainda aparece nos atuais debates historiográficos, o trabalho do autor Eric Hobsbawn
caminha no sentido de negar a existência de caracteristicas sólidas capazes de superar as
grandes distinções que a formação de comunidades humanas apresenta. Apesar disso,
Hobsbawn afirma que para além da ausência de uma possibilidade objetiva em tal
classificação, a definição de nação pode ser resolvida através de categorias mais
subjetivas, as quais concebam todo seu espectro de distinções. Como ele afirma:

Pois a principal característica desse modo de classificar grupos humanos é que – apesar
da alegação, daqueles que pertencem a uma nação, de que ela é, em alguns sentidos,
fundamental e básica para a existência social de seus membros e mesmo para a sua
identificação individual – nenhum critério satisfatório pode ser achado para decidir quais
das muitas coletividades humanas deveriam ser rotuladas desse modo. (HOBSBAWN,
2002:14)

O debate historiográfico sobre o conceito de nação nas Américas esteve sempre


seu eixo intelectual deslocado para um debate europeu sobre nacionalismos. Nesse
contexto surge uma certa dicotomia na abordagem do conceito, Maria Elisa de Sá
sublinha tal divisão no campo de estudo:

Uns afirmando que a ideia de nação nas Americas foi desde o inicio utilizada como um
conceito político, moderno, surgido no século XVIII… Para estes a nação é pensada
como um fenomeno politico construído, como uma associação contratual e
voluntária…Outros defendem o caráter “natural” da nação, acreditando na existencia
prévia de atributos biológicos e culturais.(SÁ, 2012:15)

Apesar da clara distinção entre as duas perspectivas de análise o que prevalece


nos dias de hoje é uma interdisciplinaridade , com autores que caminham mais na
contraposição de uma analise naturalista, advogando uma certa artificialidade na
concepção de uma nacionalidade, como é o caso de Benedict Anderson, Eric Hobsbawn
e Ernest Gellner.

No caso de Mariátegui , sua concepção de nação reflete tanto a possibilidade de


uma dimensão voluntarista política quanto assume um determinismo cultural na sua
raíz. De certa forma, o trabalho de Mariategui em conceber uma nacionalidade peruana
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a partir de seu socialismo indo-americano, expressa o voluntarismo de seu projeto


socialista, no entanto, seu desenvolvimento teórico parte do pressuposto de que
tradições indígenas são dadas como caracteristicas fundamentais e naturais dessa nação
.O autor Anthony Smith aborda a tensão entre os dois tipos de análise:

…cada nacionalismo e todo conceito de nação é composto por diferentes elementos e


dimensões, que nós escolhemos nomear como voluntaristas e orgânicos, cívicos e étnicos,
primordiais e instrumentais. Nenhuma nação, nenhum nacionalismo, pode ser visto como
puramente um ou outro, mesmo se me certos momentos um ou outro desses elementos
predomine no conjunto dos componentes de uma identidade nacional. É a pluralidade de
componentes que nós devemos reconhecer como partes inevitáveis do mundo político no
qual vivemos.(SMITH, 2000: 25)

A América Latina foi emblemática na evidência de que a discussão sobre


nacionalidade não pode se ater a uma só dimensão na sua concepção , deve-se evitar o
eurocentrismo do debate para que as distintas dinâmicas históricas possam ter sua
contribuição para o estudo em questão. A formação de um Estado oligárquico após a
independência no Peru revelou a preocupação por parte da elite criolla em desenvolver
as estruturas de um governo, um Estado, deixando em segundo plano a tentativa de
constituição de uma nacionalidade que pudesse de fato unir a costa e o mundo andino.
A autora Maria Elisa de Sá explica tal distinção em se pensar um Estado e uma
nacionalidade na experiência do continente:

Sabemos que nas Américas, na passagem da ordem colonial para uma nova ordem
política independente, estavam se constituindo, ao mesmo tempo, Estados, corpos
políticos autonômos e diferentes idéias e projetos de nação. Em alguns momentos desse
processo , a ênfase dos autores estudados e de seus projetos políticos estará na tarefa da
construção e consolidação desses Estados. Suas ações políticas e textos estarão centrados,
por exemplo, em torno da discussão do melhor tipo de governo ou da mais apropriada
forma de organização política e adminsitrativa… Em outros momentos, a ênfase estará na
formulação de concepções de nação mais centradas no seu caráter cultural e étnico, na
existência prévia ou na criação de atributos culturais comuns e historicamente
determinados, como língua, religião, costumes, território histórico e outros…(SÁ, 2012:
20)

A questão nacional no socialismo de mariategui se materializa através do


reconhecimento das tradições indígenas campesinas como fundadoras de uma
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imaginada “peruanidade” legítima e da crítica ao nacionalismo criollo que moldou o


Estado semicolonial pós independencia. O primeiro caminho revelará as fronteiras entre
o socialismo indo-americano e o socialismo europeu, já o segundo irá colocar
Mariátegui no debate interno acerca do discurso nacionalista e anti imperialista com seu
principal interlocutor histórico, Haya de La torre. Nesse aspecto, a nação em Mariátegui
precisa ser pensada para além da dicotomia tradicional do debate historiográfico
apresentado, sua idealização caminha por um processo também de luta anticapitalista e
da necessidade de uma revolução socialista. A idéia do socialismo indo-americano
pressupõe a criação de uma nova nacionalidade peruana, neste sentido ele aponta as
tradições de um “comunismo inca” como características da verdadeira nação peruana.
Fernanda Biegel fala da tentativa de uma reintegração espiritual da história , da pátria
peruana e da dependência entre a noção de uma nova nacionalidade e a tradição
revolucionária indígena:

Con esta lectura selectiva de la historia, la tradición nacional peruana surgía como un
conjunto de elementos heterogéneos que era necesario aglutinar y el Perú aparecía como
un “concepto por crear”. El “NuevoPerú” surgiría así, de una alianza entre el “nuevo
espíritu” y las tradiciones revolucionarias, que saldrían a la luz como producto de la
revalorización de todo aquello que había sido aniquilado por la Conquista y que todavía
seguía corroyéndo se en la acción de las supervivências colonialistas de la sociedad
peruana. (BIEGEL, 2001: 46)

A criação de um novo Peru se vincula diretamente a experiência do socialismo


indo-americano, para Mariategui, o movimento indigenista, apesar de bastante
heterogéneo, seria a expressão desse anseio por uma nova nacionalidade. O indigenismo
seria a ponte entre marxismo e mundo andino, e no caso do Peru não teria como se
pensar em uma nação sem conceber a massa indígena como seu ator principal.
Mariategui elabora o processo do socialismo indo-americano como um fatalismo
histórico, se torna destino do país transformar-se numa nação através do socialismo,
combinando assim parte da experiência ocidental com as tradições indígenas históricas.
A utopia andina repousava na idéia que tais tradições expressavam a verdadeira
nacionalidade peruana, contudo, a valorização delas não significava um olhar para o
passado, em Marátegui o “comunismo inca” era elemento vivo na sociedade do início
do século XX. As tradições comunitárias teriam sobrevivido a colonização apresentando
a nação como um elemento do presente.
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A disputa por uma nova peruanidade nos revela que o ato de se pensar a nação
em Mariategui caminha para além de qualquer categorização plenamente objectiva. O
autor Otto Bauer já afirmava sobre a importância da existência de uma consciência
nacional para se conceber uma nacionalidade, tal consciência é fruto subjetivo de
experiências sociais históricas e resultado também de expectativias e anseios de uma
classe ou de um movimento. A nacionalidade então é construída socialmente .Bennedict
Anderson diria que ela é imaginada de acordo com as relações culturais e com os
sentimentos e ressentimentos colectivos de uma determinada sociedade8. A limitação de
tal imaginação encontra a fronteira da rivalidade de projectos nacionais distintos. No
caso do socialismo indo-americano , o índio se torna peça chave dessa consciência
nacional, para Mariategui e alguns indigenistas só existiria nação se pensada a partir da
cultura indígena inca. A tensão criada com um modelo de nação oligárquico nos revela
que o consentimento de classes não está em questão, a revolução precisa superar o
modelo da oligarquia criolla de sociedade. Mariategui dá ao ato revolucionário um
carater espiritual, religioso, a cultura indígena se expressaria com a alma de uma nova
nação, dessa forma o projeto do pensador peruano diáloga com a idéia de nação de
alguns estudiosos contemporâneos, principalmente na definição de Ernest Renan:

A nação é uma alma, um príncipio espiritual. Constituem essa alma, esse principio
espiritual duas coisas que para dizer a verdade, são uma só. Uma delas é a posse em
comum de um rico legado de lembranças, a outra, o consentimento actual, o desejo de
viver junto, a vontade de continuar a fazer valer a herança que recebemos
indivisa.(RENAN, 1997: 39)

Estudar a questão nacional no socialismo indo-americano de Mariategui é expor


o debate interno de sua época sobre um pretenso projeto nacional peruano genuíno à
luz do desenvolvimento do indigenismo político.

A questão nacional não só se torna parte integrante do desenvolvimento teórico


do socialismo de Mariategui, como se torna um fim a se estabelecer com ele. Mariátegui
denunciava o nacionalismo criollo construído após a independência, como advogado de
uma falsa nacionalidade peruana.Tal nacionalismo carecia da luta antiimperialista e
utilizava-se da memória da primeira independência para legitimar um modelo de Estado
que trabalha para manter uma estrutura económica semicolonial. Sua crítica a uma falsa

8
ANDERSON, B. “Comunidades Imaginadas.” Companhia das Letras, 2008.
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nacionalidade peruana é , sobretudo, uma crítica a modernidade ocidental, na qual o


Peru teria se inserido após o processo de independência. Mariategui assume uma disputa
pela definição do que é nacional, o nacionalismo então se expressa em uma distinção
clara, um burguês e outro popular, este ultimo sim alinhado a luta anti-imperialista.
Como ele afirma:

La aristocracia y la burguesía criollas no se sienten solidarizadas con el pueblo por el


lazo de una historia y de una cultura comunes. En el Perú, el aristócrata y el burgués
blancos, desprecian lo popular, lo nacional. Se sienten, ante todo, blancos. El pequeño
burgués mestizo imita este ejemplo. La burguesía limeña fraterniza con los capitalistas
yanquis, y aún con sus simples empleados, en el Country Club, en el Tennis y en las
calles. El yanqui desposa sin inconveniente de raza ni de religión a la señorita criolla, y
esta no siente escrúpulo de nacionalidad ni de cultura en preferir el matrimonio conun
individuo de la raza invasora. Tam poco tiene este escrúpulo la muchacha de la clase
media. La ‘huachafita’ que puede atrapar un yanqui empleado de Grace o de la
Foudation lo hace con la satisfacción de quien siente elevarse su condición social. El
factor nacionalista, por estas razones objetivas... no es decisivo ni fundamental en la
lucha anti-imperialista en nuestro médio (MARIÁTEGUI, 1987)

A idéia de vincular o socialismo à ideia de construção da nação o incopora ao


debate de outros autores marxistas, no caso de Otto Bauer o socialismo possibilita a
consciência sobre o futuro da nação, gera o poder de sua transformação e criação:” O
socialismo dá a nação , pela primeira vez, uma autonomia completa, uma autentica
autodeterminação, retirando-a dos efeitos de forças que ela não conhece e de cuja
operação está alienada.”9 Diferente de outros indigenistas, Mariátegui afirmava a
preponderância do socialismo na relação entre o problema do índio e a questão nacional.
Como ele mesmo afirma em uma parte de “Sete Ensaios de interpretação da Realidade
Peruana”: “Neste instante de nossa história, não há como ser nacionalista e
revolucionário sem ser socialista.”(MARIÁTEGUI,2008)

Acusado de produzir ideias européias a respeito do país por apristas e de


populista romântico por socialistas europeus, Mariategui procurou dialecticamente criar
um caminho na busca pela concepção de uma nação socialista vinculada a práticas
comunistas indígenas. Através da análise da realidade, da prática política, das tradições
colectivistas campesinas, a teoria de seu socialismo indo-americano se expressaria na

9
BAUER,O. A Nação . in “Um Mapa da Questão Nacional”. Contraponto, 2008. P. 55.
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urgência de permitir que a verdadeira nação peruana florescesse e assim concretizasse a


real independência do país .Como inimigo dessa nova nação, o capitalismo se
materializava nas relações de feudalidade no campo e na estrutura semicolonial que a
oligarquia criolla havia estabelecido.

Haya de La torre também assumiu um discurso nacionalista anti-imperialista ,


no entanto, não reconhecia no marxismo uma ferramenta teórica capaz de transformar a
realidade latino americana. Apesar de ter influência do leninismo, Haya se afasta da
idéia de revolução proletária e advoga pela constituição de um Estado forte, que
nacionalizasse todas as fontes de produção e realizasse uma aliança entre proletário e
classe media para superar o Estado feudal . Somente assim, segundo Haya, seria capaz
de se lutar contra o imperialismo e dirigir um desenvolvimento capitalista autónomo.
Para Haya , o marxismo de Mariátegui o colocava com uma concepção européia da
realidade do país. Já para os marxistas da Internacional Comunista, o caráter
nacionalista do socialismo de Mariategui e sua contraposição a necessidade de um
etapismo revolucionário, o faria ser enquadrado como um populista romântico. Na
verdade Mariategui estabelece um caminho entre os dois extremos, de um lado o
localismo de Haya e de outro o cosmopolitismo da Internacional. Seu socialismo
concilia universal e particular, internacional e nacional. Socialismo e nacionalismo não
são termo dissociáveis:

Cuando se supone a la juventud seducida por mirajes extranjeros y por doctrinas exóticas,
se parte, seguramente, de una interpretación superficial de las relaciones entre el
nacionalismo y socialismo. El socialismo no es, en ningún país del mundo, un
movimiento anti-nacional (MARIÁTEGUI, 1988)

Para o historiador Alberto Flores Galindo a originalidade do marxismo herético


de Mariategui está na recusa da ideologia do progresso e da imagem linear e
eurocêntrica da história universal. Mariátegui articula um discurso de nacionalismo
revolucionário, onde um socialismo se direcciona para a formação de uma pretensa
nacionalidade peruana genuína, fundamentada principalmente nas tradições indígenas
campesinas. Para entender o local de sua faça torna-se necessário desvendar a
articulação entre cultura, ideologia e raça que o indigenismo revolucionário peruano
realiza e de que forma Mariátegui o formula no seu caminho de construção de uma
nação socialista peruana.
MARX 2014| Seminário Nacional de Teoria Marxista – Uberlândia, 12 a 15 de maio de 2014

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