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Segurança pública
Espanha, mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), professor da PUC Minas, do
Centro Universitário UNA e do Centro Universitário UNI-BH, e pesquisador do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas da PUC Minas
gustavopaolinelli@gmail.com
Resumo
Dada a falibilidade do modelo repressivo de segurança pública no Brasil, tornou-se cada vez mais usual a elaboração
de políticas públicas de gênese controladora, como forma de prevenção da criminalidade. Em Belo Horizonte,
o programa Olho Vivo, baseado no monitoramento da região comercial do município, por meio de câmeras de
segurança, retrata bem essa prática. Nesse contexto, este artigo visa analisar a legitimidade dessa medida em face do
direito à intimidade no Estado democrático de Direito.
Palavras-Chave
Política pública. Direitos fundamentais. Segurança pública.
os bairros Barro Preto, Savassi, Funcionários, de que são eles os maiores expostos à técnica
Lourdes e o hipercentro, com o objetivo de esti- da vigilância estatal. Isto não quer dizer, entre-
mular a volta da população à área de comércio. tanto, que o estudo e o impacto das câmeras
em outros segmentos da população não têm
É relevante frisar que não há pesquisas relevância para a discussão da videovigilância.
oficiais a respeito da anuência da população Basta ver a importância do debate acerca da
a respeito do programa. Em relação à efeti- legalidade dessa técnica em face dos indivíduos
Política de segurança pública: o direito à
intimidade na Era da videovigilância
Gustavo Almeida Paolinelli de Castro
vidade da medida, a Polícia Militar tem de- que trabalham sob o olhar vigilante do Estado.
fendido sua eficiência, apontando uma redu- À guisa de conclusão, portanto, a opção pelo
ção de 7,91% da criminalidade no primeiro estudo da videovigilância com enfoque nos
semestre de 2005, em comparação com o desabrigados justifica-se pela ausência de uma
mesmo período de 2004, embora tenhamos estrutura para se esconder e exercer o direito de
constatado em trabalho sobre o tema inú- estar só, argumento, aliás, que será retomado
meras contradições a respeito dos critérios quando da verificação do sentido de intimida-
utilizados (CASTRO, 2007). de na contemporaneidade.
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radia), gerando, em razão disso, inúmeros 6º, ou mesmo como direito e responsabilida-
questionamentos acerca da sua legitimidade. de de todos no artigo 144) não significa que
tal questão seja fundamental para o debate
A primeira chave para desvendar essa in- aqui proposto.
cógnita encontra-se na seguinte indagação: a
videovigilância do Olho Vivo fere o direito à in- Em outras palavras, qual a relevância prá-
timidade dos sem-teto em Belo Horizonte? Para tica e científica em se sustentar que o direito
uma colocação desavisada, já bastante refutada o fato de existir ou não o título do domínio
pelo trabalho de Sustein e Holmes apud Galdi- consistiria uma questão de menor relevância,
no (2005) e Cruz (2007), uma vez que todos visto que “os conceitos de intimidade e domi-
os direitos fundamentais exigem prestações do cílio são indissociáveis, de forma que a prote-
Estado para sua efetivação. ção do domicílio constitui uma manifestação
diretamente vinculada à tutela da intimida-
Pensar de forma distinta é imaginar que de” (FONTES JÚNIOR, 2005, p. 125). Isso
Política de segurança pública: o direito à
intimidade na Era da videovigilância
Gustavo Almeida Paolinelli de Castro
o direito fundamental à segurança pudesse significa que a intimidade não estaria neces-
ser garantido sem que houvesse a preserva- sariamente vinculada à idéia de domínio, mas
ção de uma ordem pública, o que parece in- sim à de domicílio, de um lar, enfim, de uma
concebível. Seja como for, tendo em vista a moradia (artigo 6º da Constituição 1988).
terminologia utilizada pela Constituição em
seu artigo 144, adotamos, sem prejuízo do Com efeito, sem um lugar adequado para
emprego de expressões correlatas que se jus- proteger-se a si próprio e a sua família contra
tificam pelos fundamentos aqui deduzidos, a as intempéries, sem um local para gozar de sua
expressão direito à segurança pública como intimidade e privacidade, enfim, de um espaço
referência à tutela tanto do indivíduo quanto essencial para viver com um mínimo de saúde
da sociedade. e bem estar, certamente a pessoa não terá as-
segurada a sua dignidade, aliás, por vezes não
Feitas essas observações, é possível então terá sequer assegurado o direito à própria exis-
retomar a análise do problema aqui proposto, tência física, e, portanto, o seu direito à vida.
qual seja, a concretização do direito à seguran- (SARLET, 2004, p. 432)
ça pública (instrumentalizado pela política de
controle social de vigilância) atenta contra a Segundo esse posicionamento doutrinário,
intimidade dos desabrigados? não há dúvidas de que o direito à intimidade
(inciso X, artigo 5º, CR/88) mantém forte rela-
Para aqueles que comungam da idéia de que ção não só com o direito à propriedade (inciso
o direito à intimidade estaria vinculado ao direi- XXII, artigo 5º, CR/88), mas também com o
to à propriedade, no qual se inclui a concepção direito à moradia (artigo 6º, CR/88).
privatista de Arendt,2 parece nítido não haver
abuso algum na prática da videovigilância, em A dúvida que subsiste é saber se, desse
face daqueles que fazem do espaço público o seu ponto de vista teórico, o espaço público, uti-
lar. A justificativa para os seguidores do man’s lizado como espaço privado pelos desabriga-
home is his castle (SAMPAIO, 1998) é simples: dos, entraria no conceito de domicílio. Em
como o próprio nome sugere, os sem-teto não caso afirmativo, acredita-se que, para esses
possuem propriedade, logo, não gozariam do estudiosos, seria formada uma concorrência
direito à intimidade. entre os princípios da segurança pública e o
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se entenda a mais adequada. Entre as técnicas defesa contra qualquer intromissão da esfera
de hermenêutica mais utilizadas, destaca-se a particular, como também agrega a idéia de um
lei da ponderação de valores de Alexy (2002; direito ativo de controle sobre o fluxo de infor-
2004),3 a qual refutamos, no esteio da teo- mação entre sujeitos públicos e privados.
ria da norma adequada de Jürgen Habermas
(2005) e Klaus Günther. O direito à intimidade trata sempre de de-
fender faculdades de autodeterminação do su-
que o poder público está processando esses Como acentuou o juiz Stewart, que presidia
dados pessoais.4 o caso, the fourth Amendment protects people,
not places:
O direito à intimidade, nesse sentido, ganha Pouco importava, igualmente, ter a grava-
um caráter ativo ao informar que os poderes pú- ção sido realizada em um ambiente público,
blicos estão compelidos a fornecer todas as razões pois haveria de se perquirir, independente
e informações acerca das políticas de segurança do lugar onde estivesse, a intenção do inter-
pública, principalmente quando estas se revela- locutor em manter ou não o assunto em foro
rem atentatórias a qualquer direito fundamental. reservado (SAMPAIO, 1998, p. 102).
Política de segurança pública: o direito à
intimidade na Era da videovigilância
Gustavo Almeida Paolinelli de Castro
Mais do que um right to be alone, o direito à Esse entendimento, entretanto, não conse-
intimidade, sob a perspectiva da autodetermi- guiu lidar com a questão dos atos privados no
nação das informações de Pérez Luño, ganha ambiente público, ao vinculá-la à observância
um sentido ativo de se saber não só quais in- de dois critérios, quais sejam: “a) que houvesse
formações a administração pública possui so- uma atual e subjetiva expectativa de privacidade
bre a sociedade, mas também por quais meios e b) que essa expectativa fosse de tal natureza
ela as obteve (e continua a obter) e qual é a que a sociedade a reconhecesse como razoável”
finalidade das mesmas. (SAMPAIO, p. 172, 1998, grifo nosso).5 O
razoável, como era de se esperar, geralmente
Essa nova feição, além de compelir a admi- não abarcava a idéia de uma expectativa de
nistração ao cumprimento do direito à infor- privacidade de pessoas em ambientes públicos,
mação, desafoga a existência de um espaço físi- mesmo sendo incontroverso para essa corrente
co reservado à esfera da intimidade, precaven- de pensamento que os direitos fundamentais,
do a comunidade jurídica de validar decisões em especial o direito à intimidade, não esta-
no mínimo estranhas, como a proferida no riam limitados a um espaço físico determinado
caso Goldman versus United States, em 1942, (DELGADO, 2005).
em que a Suprema Corte norte-americana não
reconheceu como “violação à quarta Emenda No caso State of Connecticut versus Mooney,
a instalação, numa parede divisória, de apare- lembrado por Sampaio (1998), um morador
lhos de escuta capazes de captar as conversas de rua, condenado por homicídio, contestou a
entabuladas na sala contígua, por não ter ocor- legalidade do procedimento de coleta de pro-
rido, no caso, uma ‘invasão física’ do recinto” vas no seu processo, alegando a ilegalidade da
(SAMPAIO, 1998, p. 70). busca policial realizada em sua casa: uma caixa
de papelão localizada debaixo de um viaduto.
Diante do abandono da “doutrina da in- A Suprema Corte de Connecticut entendeu que
vasão física” no caso Katz versus United States, havia uma razoável expectativa de privacidade
parece que os Tribunais adotaram uma lógica no interior da caixa, a qual representava, com
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cisão, ainda isolada, foi significativa para os concreto para que sejam adequadamente apli-
moradores de rua, no sentido de reconhecer a cados. A partir do momento em que não exis-
possibilidade do direito à intimidade, mesmo tem essas condições, suficientemente depura-
em situações extremamente precárias, dentro das para uma pronta aplicação, não há como se
do espaço público.7 Por outro lado, contudo, falar em supremacia principiológica.
não foi suficiente para desvincular o forte
apego à existência de uma estrutura material Isso não significa, contudo, que medidas
que separe o privado do público (no caso da políticas que visem alcançar metas coletivas
caixa de papelão) para que a intimidade fos- não possam coexistir com um ordenamento de
to infinito, Günther propõe então a famosa dis- (GÜNTHER apud LUIZ MOREIRA, 2004).
tinção entre aplicação e discursos de justificação:
Nos discursos de aplicação, não se pretende Transportada essa distinção para a análi-
apresentar argumentos pragmáticos, éticos se do Olho Vivo, não se pretende dizer que o
ou morais que venham justificar a extensão programa é constitucional ou não por violar a
em grau ótimo da validade/legitimidade ou intimidade daqueles que não gozam de um lar
do ‘âmbito’ jurídicos de uma norma, mas sua no espaço público (embora essa posição pareça
adequabilidade, procedimentalmente justifi- bem atraente). É devido a todos os déficits de le-
cada, a um caso concreto, livre de qualquer gitimação apontados no discurso de justificação
Política de segurança pública: o direito à
intimidade na Era da videovigilância
Gustavo Almeida Paolinelli de Castro
1. Este trabalho faz parte da dissertação de mestrado do autor, cuja defesa se realizou no mês de maio deste ano. As reflexões trazidas
neste artigo, inéditas, são oriundas das pesquisas realizadas pelo autor no Núcleo Jurídico de Políticas Públicas da PUC Minas.
2. Hannah Arendt apresenta duas concepções sobre a privatividade: na conçepção “privativa da privatividade” vincula-se a propriedade ao
direito à intimidade, enquanto na concepção “não privativa da privatividade” a propriedade é vista como uma necessidade vital.
3. Filiam-se à lei da ponderação de valores e do principio da proporcionalidade Luis Pietro Sanchis e Carlos Bernal Pulido.
4. Aqui nos referimos ao fato de que as câmeras do Olho Vivo são colocadas sem avisos que informem a sua existência, ou seja, os
cidadãos desconhecem essa forma de armazenamento de dados por parte do Estado.
5. Essa fórmula também parece guiar a prática da videovigilância na Espanha, autorizada pela Lei Orgânica 4/1997. “Para que se
convalide a sua utilização é preciso demonstrar a existência de um razoável risco para a segurança cidadã (seguridad ciudadana), no caso
das [câmeras] fixas, ou de um perigo concreto, no caso das [câmeras] móveis” (DELGADO, 2005, p. 269)
6. Ver relatório sobre os sem-teto nos Estados Unidos, cujo título é A dream denied: the criminalization of homelessness in U.S. cities,
realizado pela organização The National Coalition for the Homeless e pelo The National Law Center on Homelessness and Poverty (2006).
7. Decisão semelhante foi tomada no Mandado de Segurança 1.203-DF no STF, em 08 de setembro de 1997, ao garantir que “simples
barracos também dispõem da mesma proteção jurídica dispensada pela Constituição ao domicílio” (VIEIRA, 2006, p. 206).
8. Como exemplos, citam-se, no STF brasileiro, o Mandado de Segurança 23.669/DF, da lavra do ministro Celso de Mello, julgado em 08 de
fevereiro de 2001, e, na Corte Constitucional espanhola, as decisões do STC 73/1982, STC 231/1988, e STC 170/1987 (PÉREZ LUÑO, 2004).
Na doutrina brasileira, ver Carvalho Filho (2006) e Di Pietro (2006).
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