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ANTROPOFAGIA E O DESTINO DAS IMAGENS:

um banquete entre Grud e Rancière

Glória Diógenes e Aparecida Higino

Figura 1 - Together .
Fonte: Narcélio Grud

Produzir une ao ato de fabricar o de tornar visível, define uma


nova relação entre o “fazer” e o “ver”. A arte antecipa o trabalho
porque ela realiza o princípio dele: a transformação da matéria
sensível em apresentação a si da comunidade.
Jacques Rancière

A inspiração antropofágica teve seus primeiros sinais entre


alguns povos indígenas. O ato de devorar o corpo de inimigos extrapo-
lava tanto a lógica do mero rito sacrificial da vingança como a do impe-
rativo da fome e da saciedade. O banquete era servido por pedaços de
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guerreiros, de desbravadores em porções de carne e sangue mescladas


de bravura e coragem. A cena antropofágica alberga uma alquimia, uma
mistura entre corpos separados. É exatamente a junção de universos
variados incorporados, como pontua Rolnik (1998), mesclados à von-
tade no mesmo caldeirão que compõe a cartografia singular dessa ceia
extravagante. Os corpos confundem-se uns nos outros.
Obviamente, esses vetores de fusão e de mistura vão de encontro
ao que Le Breton (1995, p. 64) assinala como sendo o modo de funcio-
namento do corpo nas culturas ocidentais, estando ele “fundado num
fechamento da carne sobre ela mesma”. Assim sendo, o corpo atua
como “vetor de individualização” e, de forma decisiva, como condição
de existência. Essa mistura operada no palco dos banquetes antropofá-
gicos põe em xeque a própria estrutura do corpo e de seus modos de
funcionar e de existir.
Tal preâmbulo nos remete, neste texto-aula, novamente, aos es-
critos de Serres (2001, p. 264) acerca do enlace de corpos misturados.
Segundo ele, “falta-nos uma grande filosofia das misturas e mestiça-
gens, da identidade soma ou combinação das alteridades: o discurso e a
abstração estão mais atrasados que o corpo que sabe fazer e pratica o
que a boca não consegue dizer”.
Em que medida essa dinâmica das mestiçagens, dos liames entre
corpos que se misturam antropofagicamente se traduz nas cenas da arte
contemporânea que se propagam em múltiplas vias das cidades?
Primeiramente, nos cabe sublinhar aquilo que entendemos por contem-
porâneo quando falamos de arte. Enfatizar que, nesse caso, não se trata
de uma sucessão histórica linear, entre gerações e fases sucessivas dos
processos que instituem cronologias e práticas sociais. Como situa
Agamben (2010, p. 27) “aqueles que procuraram pensar a contempora-
neidade só puderam fazê-lo na condição de a cindirem em vários
tempos, de introduzirem no tempo uma des-homogeneidade essencial”.
Significa falar em partição, em descontinuidade e, novamente, em mis-
tura, em descolamento, em dissolvência. Rancière, numa conferência26

26 No Senac, São Paulo.


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realizada no Brasil em 2005, assinala ser a mistura uma característica


consubstancial do regime estético da arte, no que diz respeito ao en-
contro dos heterogêneos.
Diferentemente da arte que povoa os museus, as galerias, as es-
colas de formação, o que figura nas ruas é um fazer artístico marcado
por um regime estético de descontinuidade, da ausência de nomeação e
de um critério de gosto, que acolhe a não arte, qual seja, a sua sombra,
da forma em que pontua Agamben. Há uma energia vital, há uma cor-
rente que agita a experimentação, sopros poéticos das obras ativas que
fazem pulsar os atos de criar e recriar o urbano.
A antropofagia compõe uma fusão de corpos e de gostos hetero-
gêneos. Após sucessivos festins de corpos orgânicos, da ingestão entre
regimes de corporeidades diversas entornadas entre si, é a arte das ruas
que passa a ensejar esse campo de absorção, de mutações de qualidades
e sentidos das experiências antropofágicas. As imagens que pontuam as
marcações que se graduam nas ruas, nas ambiências das redes sociais,
emitem o lugar de contração entre planos e signos: uma parede pode ter
a função de dividir propriedades, funcionar como suporte para publici-
dade de um produto qualquer e, ao mesmo tempo, ser utilizada como
tela de um graffiti ou como folha de um “pixo”. As imagens, por elas
próprias, dizem da cidade, falam de modos de ocupação, expressam
seus arranjos e misturas.
É nessa perspectiva de que as imagens, como pontua Rancière
(2011, p. 9), “não nos remetem para nenhuma coisa, imagens que são,
elas próprias, desempenho”, que me detive a observar, por meio de ras-
tros deixados no ciberespaço, os regimes de visibilidade de um artista
urbano do Ceará, Narcélio Grud.27 E um dos elementos que me sal-
taram aos olhos, como bem enfatiza o diário de campo abaixo desta-
cado, narrava acerca da ordem da composição e mistura de elementos

27 Narcélio Grud é artista e inventor, graduado em design de interiores, e mora em


Fortaleza. Iniciou sua carreira com arte urbana, pichando muros no início dos anos
1990. Hoje desenvolve trabalhos de pinturas, esculturas e sons. Com uma forma sin-
gular em suas pinturas e invenções, Grud vem ganhando cada vez mais reconheci-
mento de admiradores e profissionais do Brasil e do mundo, com intervenções até em
outros países.
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diferenciados, da cisão de meios heterogêneos no plano de uma mesma


cena, aparentemente linear e previsível. Dois vídeos-instalações, pro-
duzidos pelo artista citado, põem em relevo os traços acima realçados.
A primeira intervenção28 que aqui evidenciamos ocorre na ci-
dade de Manchester; nesse caso, redes tradicionais cearenses foram ar-
madas no centro dessa cidade, e nelas pessoas diversas podiam deitar e
participar. A segunda29 transcorre na Feira da Gentilândia de Fortaleza,
e a tônica foi a transmudação de restos de frutas, que iriam para o lixo,
em tinta artística. O diário de campo, registrado no Antropologizando30
do dia 29 de junho, destaca essa fusão:

A ação artística de Grud move-se entre lugares, entre línguas,


entre territórios, entre técnicas. Um vídeo denominado “tro-
pical hungry” exibe o processo em que frutas, jogadas fora em
uma feira de Fortaleza, são reutilizadas por Grud na qualidade
de tintas de todas as tonalidades. O bagaço, a borra, o lixo, o
“desútil” transforma-se em arte. O título do vídeo ilustra o hí-
brido entre restos de uma cultura e os signos de uma língua he-
gemônica, o idioma inglês (A ARTE..., 2010).

Em ambas as intervenções, Grud sinaliza, sem que nada seja dito


nessa direção, que a alteridade das imagens, como bem pontua Rancière
(2011, p. 10) “entra na própria composição das imagens [...]”. Significa
dizer que a imagem nunca é uma realidade simples. Uma enunciação
que cola o visível à coisa dita. As imagens são operações “que ligam e
disjuntam o visível e a sua significação ou a palavra e o seu efeito, que
produzem e derrotam expectativas” (RANCIÈRE, 2011, p. 12). É como
se não possível fosse cogitar que o epicentro de Manchester pudesse ser
coberto com artefatos próprios de uma cultura nordestina brasileira. É
(des)imaginar que o lixo é aquilo que deve ser descartado de qualquer

28 Disponível em: http://vimeo.com/24997085. Acesso em: 24 abr. 2014.


29 Disponível em: http://vimeo.com/65418845. Acesso em: 24 abr. 2014.
30 A ARTE antropofágica de Narcélio Grud. 2010. Disponível em: http://antropologizz-
zando.blogspot.com.br/2013/06/a-arte-antropofagica-de-narcelio-grud.html?q=Grud.
Acesso em: 24 abr. 2014.
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potencialidade na paisagem industrial, e que, ao contrário, pode render


cores, formas e reapropriações. Silva (2013, p. 116), na sua dissertação
acerca dos itinerários do grafitti em Fortaleza, destaca a característica
multifacetada do artista:

Os graffiti de Grud [...] mostram uma profusão de cores e re-


velam que, enquanto experiência urbana, o graffiti intensifica
a interação com o clima e o espaço da cidade. Essa interação
parece que sempre esteve presente na vida de Grud. É algo que o
acompanha em suas escolhas esportivas, artísticas, profissionais
e acadêmicas até hoje [...].

O ato de inverter usos, de deslocar fazeres, de contrariar utili-


dades materiais e simbólicas, de improvisar em cima do que existe, tão
bem exemplificado nas ações de Grud, implica destacar impactos não
apenas figurativos/estéticos das intervenções e artes no urbano, mas
também fundamentalmente irruptivos de dissensos, de desagravos, de
irritações.31 Por isso, a arte urbana e suas imagens guardam sempre
ubiquidades, tal qual enfatiza Campos (2010, p. 83):

O graffiti denuncia um duplo sentido comunicacional. Em pri-


meiro lugar, a mensagem em si (o conteúdo), de natureza verbal
ou icônica, que transporta um determinado significado. Em se-
gundo lugar, a transgressão em si (a acção), transmitindo dissi-
dência e recusa de norma.

A recusa é o que agita o deslocamento da arte das telas e suportes


usuais de museus e galerias para o terreno compósito das ruas. A natu-
reza das mesclas efetuadas por Grud, de uma antropofagia de corpus
culturais, provoca um tecido de dissemelhanças. Tal qual propõe
Rancière, embora a imagem designe duas diferentes coisas, “há o jogo
de operações que produz aquilo que chamamos arte, ou seja, precisa-
mente uma alteração de semelhança” (RANCIÈRE, 2011, p. 14). Essa
é a pulsão do criador que escapa da passividade cativada nos museus e

31 Ver texto de Bringhenti sobre Imaginacções, 2011.


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se move para um chamamento; convocação que provém da arena do


heterogêneo, do que demanda um efeito de mostrabilidade, nas combi-
nações executadas em ato pelo artista urbano.
Nem sempre o que é visto, alcançado pela visão, efetua no espec-
tador reações de visibilidade. Grud perfaz nos dois vídeos um ato de
exposição de alteridades compostas em solos de conexões, de mútua
contaminação e situações de contrações. Assim como ressalta Rancière,
essas dissemelhanças entre imagens e funções não são exclusividades
do visível, tendo em vista que “há visibilidade que não faz imagem, há
imagens que são feitas de palavras” (RANCIÈRE, 2011, p. 15). Nesses
ligamentos de planos heterogêneos, frutas que, de princípio, existem
apenas na condição de alimento e redes que sinalizam uma situação de
conforto privado numa cultura distante mobilizam Grud a recriar quali-
dades e recompor a natureza das imagens, conforme diário de campo
dessa mesma data: “o artista produz rupturas e continuidades na dila-
tada paisagem da arte urbana em meio digital, promove redes em rede,
entre a Praça do Ferreira e o centro de Manchester”.
É nesse esteio de propagação e conexão entre ambientes, aparen-
temente inalcançáveis e nada contíguos, que arte urbana transita entre
planos e dobras de cidades digitais e materiais, em encaixes de lugares
e imagens. Weisseberg (1993, p. 118), ao discorrer sobre aproximações
entre “real” e “virtual”, sinaliza que nesses planos simétricos “a imagem
não é mais representação, mas presenteação, a imagem não é mais figu-
rativa, mas também funcional”, Weisseberg (1993, p. 118). Há entre
imagens e o que delas se faz silêncio e presença.
São as palavras mudas da arte que dão abrigo ao duplo, à sombra
que possibilita que uma obra de arte urbana possa receber o epíteto de
contemporânea. É a palavra que falta, o oco do que poderia ser explici-
tado, a sombra de uma materialidade ausente que perfaz a dupla função
pendular, como sinaliza Rancière, entre visível/dizível, semelhança/dis-
semelhança. Nessa feita, arqueja um desígnio no fazer arte, mesmo que
nem sempre visível, “entre um sentimento e os tropos de linguagem que
o exprimem, mas também os traços de uma expressão pelos quais a mão
do desenhador traduz esse sentimento, transpondo esses tropos”
(RANCIÈRE, 2011, p. 21). O olhar do artista, a mão do desenhador
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deixa ver na cidade aquilo que parece disjuntivo, dissemelhante, impos-


sível de qualquer conjunção pictórica e situacional. Esse é o destino das
imagens metamórficas que jogam com a ambiguidade das semelhanças
e a instabilidade das dissemelhanças.
Como ressalta Rancière, as imagens metamórficas “assentam
num postulado de indiscernibilidade. Propõe-se apenas deslocar as fi-
guras imagéticas, mudando-lhes o suporte, colocando-as num outro
dispositivo de visão, pontuando-as ou narrando diferentemente”
(RANCIÈRE, 2011, p. 41). Por tal razão, o regime de produção de ima-
gens de Grud, ressaltadas por meio dos citados vídeos-instalações, con-
densam sentidos e percepções daquilo que Rolnik denomina de subjeti-
vidade antropofágica:

Numa primeira aproximação, restrita ao visível, a subjetividade


antropofágica define-se por jamais aderir absolutamente a qual-
quer sistema de referência, por uma plasticidade para misturar
à vontade toda espécie de repertório e por uma liberdade de
improvisação de linguagem a partir de tais misturas (ROLNIK,
1998, p. 7-8).

A mistura de ingredientes ocorrerá ao acaso, como em um jogo de


apostas, onde não se prevê um resultado antecipado. O visível não é um
blefe, mas, segundo Rancière (2005, p. 53), uma ficção, porque “fingir
não é propor engodos, porém elaborar estruturas inteligíveis”; é como a
composição de “determinado arranjo dos signos da linguagem” Rancière
(2005, p. 54), uma combinação de temperos, que não levará ao conheci-
mento da receita, tal a sua intangibilidade, mas a uma espécie de degus-
tação imanente e transcendente, uma espécie de “manjar dos deuses”.
O banquete de signos está servido: os comensais devoram de
forma intempestiva a superabundância de iguarias. O paladar já se ha-
bitua a experimentar a profusão de sabores, reinventando as formas de
cumprir os rituais da deglutição. De cada imagem alimentada, o movi-
mento do ato de consumir se transmuda não em perfeita síntese, mas
em digestão desdobrada do sentido do comer. A apreciação não resulta
na mera acumulação do gosto, mas na indescritível sensação de sacie-
dade insatisfeita.
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Devorar a imagem pode suscitar catarses a respeito do sentido


do infinito, da potência de um devir do signo, das possibilidades inau-
ditas da “pura presença icônica” (RANCIÈRE, 2011, p. 45), aguçando
a percepção não para discernir as imagens em movimento, mas teste-
munhar a presença do acontecimento para transformá-lo em “[...] te-
atro da memória e fazer do artista, um colecionador, um arquivista ou
um expositor [...]” (RANCIÈRE, 2011, p. 38). Nesse sentido, o choque
do encontro inusitado, da agressiva ostensividade imagética, da bruta-
lidade do emaranhado dos silêncios das mensagens, nos remete, por
exemplo, ao ato de imaginação da brincadeira infantil.
O paradoxo do modo de estar da imagem artística não só cria
ambivalências, mas “a incapacidade para a transferência adequada
das significações – a sua própria potência” (RANCIÈRE, 2011, p.
23). A confusão instalada nos sentidos sofre da abstinência do di-
zível. Não saber o que falta, o que acresce, o que decifrar. A expres-
sividade da imagem contemporânea supõe “[...] uma viagem pela
paisagem dos traços significativos dispostos na topografia dos es-
paços, na fisiologia dos círculos sociais, na expressão silenciosa dos
corpos” (RANCIÈRE, 2005, p. 55), o que não só cria novos mapas
mentais, mas heterotopias.

Os enunciados se apropriam dos corpos e os desviam de sua


destinação na medida em que não são corpos no sentido de or-
ganismos, mas quase corpos, blocos de palavras circulantes sem
pai legítimo que os acompanhe até um destinatário autorizado.
Por isso não produzem corpos coletivos. Antes, porém, intro-
duzem nos corpos coletivos imaginários linhas de fratura, de
desincorporação (RANCIÈRE, 2005, p. 60).

A estupefação diante da impossibilidade de classificação, a fra-


tura da “partilha já dada ao sensível” (RANCIÈRE, 2005, p. 60), im-
plica, talvez, a luta contra as formas de totalização da vida. Essa recon-
figuração controvertida do sensível põe em causa, justamente, a
existência tradicional da arte. Não se está falando da expressão do nii-
lismo, da negação da vida, do fim das formas culturais, mas da alegria
da aventura nômade, do se fazer leve, sem a carga dos sentidos a priori
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atribuídos para poder transbordar, escapar, vazar a expressividade da


arte que se faz corpo circulante.
A complexidade inerente ao campo imagético nos faz pensar no
buraco negro, na impossibilidade de deciframento do enigma, de qual-
quer chave certa para abrir a porta; remete-nos muito mais ao princípio
da incerteza de Heisenberg, em que o átomo se desloca incessante-
mente, na medida em que há deformação do espaço-tempo, emergindo
daí a singularidade da matéria. Nesse sentido é que “[...] a imagem não
é uma ideia ou conceito enfraquecidos, é uma ideia complexificada, é
um desenvolvimento do conceito e não um enfraquecimento do con-
ceito” (DIDI-HUBERMAN, 2014). Ou, como nos diz Rancière, “o
modo estético do pensamento é bem mais do que um pensamento da
arte. É uma ideia do pensamento ligado à ideia da partilha do sensível”
(DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 68).
O descentramento do sujeito nas suas formas perceptivas também
contribuiu para a necessidade de embaralhamento, de entrelaçamento
das cores, objetos, técnicas, suportes, experiências artísticas e dos pró-
prios sujeitos da produção cultural. Nesse sentido, o trabalho da arte
sofre a refração da luminosidade do jogo das imagens, dos vetores de
forças reveladas no visível e dos desdobramentos nas afecções produ-
zidas pelos corpos. Nesse caso, a dessemelhança operaria como neces-
sária dissipação tanto do mimetismo como do simulacro, como pro-
dução da diferença, da alteridade.
O esplendor do insignificante, o libertar o gozo das imagens da
empresa semiológica, como nos diz Rancière (2011), é um processo de
estremecimento da lógica sensível. A desregulação e a indeterminação
nos chegam como sintomas de um espírito do tempo, em que a fabri-
cação das identificações sofre camadas de inscrições móveis. A busca
nostálgica pelo tempo perdido da aura da obra artística revela o medo
da ausência das referências cimentadas. Trabalho de Sísifo, já que a
virtualidade das imagens ganha força com a ancoragem da arte digital
no mundo contemporâneo. A petrificação da arte pelos olhos da Medusa
seria antes a sentença de morte da produção criadora. Nesse caso, o
processo antropofágico traz a semente da destruição da fruição artística
como pensada e vivida na modernidade, provocando um abalo sísmico,
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uma crise de fundamentos na arte modernista. “O que se chama ‘crise


da arte’ é essencialmente a derrota desse paradigma modernista sim-
ples, cada vez mais afastado da mistura de gêneros e de suportes, como
das polivalências políticas das formas contemporâneas das artes”
(RANCIÈRE, 2005, p. 38).
O ser e o se fazer artista, produtor e ao mesmo tempo destina-
tário, espectador e receptor das formas-imagem contemporâneas, traz à
tona o torvelinho do movimento, a possibilidade do acesso fácil aos
modos de produção estética, da experiência partilhada de poder criar
imagens icônicas, seja através da fotografia, do cinema, do grafite ou de
qualquer outra forma pictórica. É nessa perspectiva que podemos alçar
a arte das ruas ao ponto máximo dessa passagem talvez traumática
porque aniquiladora do já criado, talvez redentora no sentido de demo-
cratizar a expressão e o consumo artísticos.
E assim podemos vislumbrar as artes urbanas, das ruas, das
praças, becos e vielas, como expressão criadora labiríntica e multitudi-
nária. Revela um modo de circulação da imagética potencialmente ati-
vadora da dimensão imaginária coletiva. A arte seria como uma ferra-
menta de cultivo da visibilidade, nas intervenções estéticas pela cidade.
As performances como eventos onde a imagem de si se conjuga com a
imagem produzida pela experiência comum, as maneiras de fazer
criando interface com a matéria da qual se extraem pertencimentos,
marcas distintivas do modo de constituição do eu-nós.

Figura 2 – Escora.
Fonte: Intervenção de Grud.
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A história da produção, da circulação e da destinação das ima-


gens sofre, assim, uma fratura fundamental: a dessacralização inten-
siva, a alteração dramática das formas nas quais se apresenta, uma alte-
ração significativa na capacidade humana de fabricá-las, uma
exponenciação da potência expressiva, o que demarcaria o necessário
fim de um mundo onde as imagens representariam uma espécie de re-
positório de ideias consagradas.
As imagens artísticas, nesse sentido, não são mais tão condi-
cionadas pelo tempo e espaço, já que a sensibilidade criadora e frui-
dora detém agora imensas possibilidades de disputar a ocupação no
mundo. A liberação das imagens e dos poderes para sua manipulação
alteram fundamentalmente a ordem do discurso, as formas de repre-
sentação da realidade, até dos estilos de vida, principalmente nas ci-
dades. A arte urbana seria, então, mais um campo de batalha pela
emancipação contemporânea.
E, assim, nos indagamos sistematicamente: o que pode a imagem?
O que pode a arte urbana? Que deslocamentos, fissuras, reconhecimentos
atravessam os regimes imagéticos? Que fronteiras são expandidas, que
diálogos são travados em torno das imagens artísticas? Que multiplici-
dades são engendradas, quais os afetos emergentes no mundo antropofá-
gico que potencialmente constroem outros modos de ser e estar?

Figura 3 – Namaster.
Fonte: Intervenção de Grud em Londres.
126 Estudos da Pós-Graduação

Referências

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