Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
“Caminhadas”
Por outro lado, a vida dessas pessoas continuou após a “vitória” que resultou na
criação e consolidação do Morro da Vitória. Durante alguns anos, suas vidas ficaram
fortemente conectadas ao desenvolvimento do Morro da Vitória – seja como realidade
sócio-espacial seja como comunidade política – e das articulações (redes, coletivos)
com as quais se relacionam; em ambos, suas agências cumpriram papel central. Liduina
até hoje é presidente da Associação do Morro da Vitória, Lucirene mora atualmente em
São Gonçalo do Amarante, onde ajudou a organizar uma ocupação, Assis mora e é da
2
Ver Sá (2009): “Reflexões sobre o trabalho de campo como empreendimento micropolítico”.
3
Ecléa Bosi (1994, p. 37-38) afirma que “a formação de um vínculo de amizade e confiança com os
recordadores”, com quem a autora compartilha uma “comunidade de destinos”, foi o seu principal
“método de abordagem”. A comunidade de destinos: “Significa sofrer de maneira irreversível, sem
possibilidade de retorno à antiga condição, o destino dos sujeitos observados” (BOSI, 1994, p. 38).
Goldman (2006) fala numa antropologia do afetivo baseada numa noção peculiar de “afeto” no sentido
de os sujeitos se transformar (noções, valores, sensibilidades) na relação de pesquisa: “...o movimento
pelo qual um sujeito sai de sua própria condição por meio de uma relação de afetos que
consegue estabelecer com uma condição outra” (2006, p. 31).
associação da ocupação/comunidade Raízes da Praia (junho de 2009), Graça voltou a
morar em Icapuí (mas só fala em voltar pro Morro). Certamente, tais vidas e suas
relações sociais ou políticas ainda têm muito a me dizer nessa nova pesquisa.
Se minha hipótese é que “movimentos sociais” são coletivos que lutam por
reconhecimento, além de necessidades ou condições estruturais, com diferentes arranjos
ao longo do tempo, o melhor é buscar compreendê-los a partir dos agentes que tecem
tais arranjos.
Seguindo rastros
Toda caminhada deixa rastros. Ainda que tais rastros possam ser apagados com
o tempo, eles também ajudam a manter a trilha existindo (quando ou enquanto isto
ocorre), alterando-a em diferentes intensidades e, às vezes, definindo-a em diferentes
graus.
Essa metáfora também ajuda a perceber a dupla temporalidade desta pesquisa,
que busca perseguir os rastros de experiências vividas e contadas (Benjamim, 1987),
por meio dos meandros da memória e da fala, mas que também segue os contadores
numa etnografia coetânea à vida presente e seu permanente devir.
Já devia ter ouvido o termo antes, afinal, é moeda corrente naquele universo.
Nesta pesquisa busco, com o termo “caminhada”, dialogar com uma vasta gama de
abordagens que, com diferentes tratamentos metodológicos e concepções, ou situações,
científicas, têm em comum mobilizarem epistemologicamente narrativas conectadas a
vidas concretas de pessoas no universo social pesquisado. Há variações de abordagens
disciplinares no campo das “ciências humanas” e diferenças metodológicas nas ciências
sociais. Vimos no curso várias abordagens e as discussões terminológica-conceituais:
Histórias de vida (Poirier, 1995), trajetórias, percursos, itinerários, História oral
(Albertini, 2004), relatos de vida, narrativas biográficas, etnobiografia (Gonçalves;
Marques; Cardoso, 2012), etnossociologia (Bertaux, 2010), abordagem biográfica com
intenção etnográfica (Kofes, 2001)... Neste trabalho, não optei por realizar uma revisão
bibliográfica da disciplina, mas estou escrevendo em profundo diálogo com aulas e
autores, pois me ajudaram a conceber (ainda incipiente) uma estratégia metodológica
viável para o tipo de pesquisa que quero realizar e textos que quero desenvolver.
4
Em diálogo com Marques (2012) que diante da dificuldade de circunscrever seu “objeto” a um campo
espacializado, optou por “perseguir” os percursos do “corpo-em- festa” (logo em “movimento”):
“...como não descrevo o campo em que realizei o trabalho etnográfico, o forró como ritmo ou mesmo a
região do Cariri a partir de limites fixos capazes de estabelecer uma relação ‘fora/dentro’ (...) – resta-
nos, como aporte metodológico, perseguir um sujeito. Falo, portanto, de Alexandre para falar de forró
eletrônico, Cariri, Nordeste, como também para falar de gênero, festa e criação” (p.66).
Transformações
Para Butler (2012), a luta por uma “vida boa” passa pela “apreensão social” de
tais vidas, o que só é possível por meio do agir discursivo e corporal em lutas políticas,
o que a leva a um profícuo debate com a noção de vida plena, ação política e arena
pública em Hanna Arendt (2013). Nesse sentido, a noção de “arena pública” em Arendt
– a qual articulei na minha dissertação, em diálogo com Nancy Fraser (1990) e sua
noção de “arenas públicas” alternativas e mesmo em oposição “à esfera pública
burguesa” – cria uma dificuldade, como vemos na crítica de Judith Butler (2012). Isto
porque a luta por uma “vida boa” está ligada à capacidade de se fazer “apreender” como
uma vida digna de ser vivida, ou seja, de conquistar politicamente condições de lidar
com a situação de precariedade à qual toda vida é exposta, havendo contudo uma
distribuição desigual das condições, ao ponto de haver vidas não protegíveis e mesmo
descartáveis. Acontece que Harendt, segundo Butler, separa a vida do corpo da vida da
mente, e relega as atividades da primeira à esfera privada do animal laborians. Já a
“arena pública” é o lugar da ação, do discurso, onde a vida se faz plena e reconhecida.
“A esfera privada inclui o domínio da necessidade, a reprodução da vida material,
sexualidade, vida, morte e transcedência.” (Butler, 20012, p. 12). Arendt percebia que a
esfera privada dá suporte à esfera pública da ação e do pensamento, do discurso e da
política. Assim essa esfera pública caracterizada pelos atos de discurso (mais do que um
lugar) encobria, na Grécia Antiga, a situação de não reconhecimento do trabalho dos
escravos (desprovidos de discurso) e da mulher (desprovida de ação política). Assim,
pude perceber como as agências, por exemplo, daquelas mulheres na luta do Morro da
Vitória transformaram a realidade. Elas “chutaram a porta” e participaram da “esfera
pública” convencional, dando entrevistas, indo para Assembleia Legislativa,
“Cambeba”, demandando tribunais, acessando (por mediadores) juízes,
desembargadores ao ponto de conseguir uma liminar de suspensão do despejo. Mas
também criaram “arena pública” com a realização de assembleias, reuniões, animando o
movimento de resistência ao despejo, a ocupação, a criação do Barracão e do Morro da
Vitória, inclusive o nome e sua encorporação numa região e numa comunidade política
dadas.
Vislumbro aqui algo em comum aos sujeitos que participam dos “movimentos”
que pesquiso. Abaixo, buscarei apresentar o perfil de alguns desses agentes, a partir da
minha relação com eles. Primeiro, duas das mulheres do Morro que participaram
ativamente da minha pesquisa no mestrado e continuam minhas interlocutoras. Depois
de um interlocutor que não aparece como personagem no mestrado, mas que já me
ajudou naquela pesquisa, pois participou da, hoje extinta, União das Comunidades da
Grande Fortaleza e esteve presente nos conflitos do Morro da Vitória, e em muitos
outros eventos de luta como, recentemente, o Ocupe Cocó – diferentes arranjos
coletivos na “caminhada” de uma vida recheada de lutas.
Uma das questões que emergem dos debates sobre narrativas de vida, como
vimos no presente curso, é até que ponto uma vida pode ser representativa de um
universo social. Bourdieu problematiza essa possibilidade, mas passa da crítica à ilusio
biográfica ao manuseio de narrativas de vida como método de compreensão das
realidades de certos “campos” (Bourdieu, 2012); contudo, afirma que para tal
empreendimento é necessário ouvir várias narrativas de diferentes sujeitos que
“coabitam” no campo pesquisado, e seus pontos de vista precisam ser “confrontados”,
por isso ele aproxima depoimentos de sujeitos que vivem em espaços ou realidades
aproximadas. Para Tony Parker (“The twisting lane”) seus narradores não são modelos
representativos de tipo algum, mas apenas deles mesmos. Já para Kofes (2001)
narrativas sobre trajetórias de vida podem servir como ponte para compreensão de
tramas políticas nas quais se enredam.
Liduina e Graça podem passar por “atores típicos” do meu universo de pesquisa,
mas isso só se abrirmos bem a lente de observação. Conforme aproximamos o olhar, as
diferenças saltam à vista, mas as semelhanças também são ressaltadas – semelhanças de
condições, valores, noções e, em alguma mediada, de “caminhadas”. O que há em
comum entre as duas é que participaram de processos de luta coletiva e ambas se
transformaram ou tiveram as vidas transformadas enquanto agiam. O que essas vidas
tem a dizer, no que são em comum e no que são diferentes, sobre o universo social no
qual vivem e atuam, os acontecimentos que emergem, as formas sociais e políticas que
constituem? As transformações e continuidades nas condições de vida e nas vidas
condicionadas que levam – condicionadas por precariedades, por déficits estruturais ou
materiais, mas também por outros agentes com quem interagem, relacionam-se.
6
Sobretudo relações com atores de outros “universos simbólicos”, típicas das agência mediadoras nas
quais Liduina se envolveu (Velho, 2013).
água, depois vão embora e nunca mandam o óculos, explicou-me. Mulheres entram
para falar com ela, assuntos do Barracão ou conversas delas, no caso da Graça também
comigo. Graça era uma das mais ativas no Movimento quando este estava mais ativo,
convivíamos muito e ficamos amigos. Fizemos as festas por nos revermos e ela me veio
perguntar “orientações” para uma amiga que quer se separar, mas a casa em que
vivem é construída nos fundos da casa da mãe dele, como ela faz pra ter direito,
porque quer se separar, não tem filhos, e ele tá com outra que teve uma filha dele e
“fica fazendo hora com ela no face, postando foto da filha”. Outra novidade, dessa vez
na fala delas: estão sempre falando em face, redes sociais, aquelas mulheres na casa
dos quarenta pra cinquenta que assimilaram a nova forma de se comunicar que
interage nas conversas delas. Liduina dá opinião que e a moça devia era abandonar o
casamento, sair de casa nem que perca tudo, ela é jovem bonita pode trabalhar,
arrumar outro homem, é como ela, Liduina, sempre diz nas redes sociais: “tem que ser
mulher forte, dar volta por cima quando sofre”, ela recebe muitos elogios dessas
postagens que faz, disse-me. Quando ficamos a sós de novo ela passou a falar das
superações na sua relação com o Louro, como sofreu na separação anos atrás. Ele e a
família dele “ficaram tudo besta” pro lado dela, que ele tava com uma mulher “rica”,
pararam de falar com ela. Sofreu, mas superou, hoje ele tá só, procura-a, usa as filhas
pra isso, a família dele voltou a tratá-la “assim ó”, e ela convive com ele bem, mas
aceitar de volta – jamais.
Essa frase, ouvi de Chicão Oliveira, quando ia com ele para sua casa em
29/06/2017, no Jardim Iracema (bairro próximo a Barra do Ceará). Saímos da
Gentilândia-Benfica e fomos de bicicleta. Chegamos na vizinhança por volta das oito da
noite. Antes de irmos à casa dele, paramos na bodega do Chinês (que não é chinês) para
comprar uns legumes e temperos pra pôr na sopa de feijão que a Nilza (sua
companheira) estava fazendo, e frutas para o café da manhã; a poucos metros paramos
no supermercado “Centerbox” para comprar cerveja e goma de tapioca. Ao sair da
bodega do Chinês, ele disse: “por isso que comunidade é bom”, após comprar fiado 27
reais em quiabo, maxixe, maracujá, mamão, goiaba, tomate, pimentão. Elogiou a
“consideração”, o reconhecimento, a confiança – “anota aí Chinês que sábado passo pra
acertar!”, falou já empolado, com certa galhofa, como interpretando.
Referências
ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004.
ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2013.
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea: Rio
de Janeiro: EdUERJ, 2010.
BOURDIEU, Pierre (Coord.). A miséria do mundo. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
Obras escolhidas: magia e técnica, obra e política. São Paulo: Ed Brasiliense. 3ªed. p.
197 a p. 221, 1987 .
BERTAUX, Daniel. Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. São Paulo/Natal:
Paulos/EDUFRN, 2010.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: memória de velhos. 4. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
BUTLER, Judith. Can one lead a good life in a bad life? Radical Philosophy, 176, pp.
9-18, 2012.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2015.
DAS, Vena. O ato de testemunhar. Cadernos Pagu (37) jul-dez 2011: 9-41.
DELEUZE, Giles; GUATARRI, Félix. Mil platôs 2: capitalismo e esquizofrenia.
Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão/ Rio de Janeiro: Ed 34, 1995.
ELIAS, Nobert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2010.
________________. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes,
2008.
FRASER, Nancy. Rethinking the public sphere: a contribution to te critique of
actually existing. In: Social Text. Nº 25/26: 56-80, 1990
GOFFMAN, Erving. Os quadros da experiência social: uma perspectiva de análise.
Petróppolis: Vozes, 2012.
GONÇALVES, Marco Antonio; MARQUES, Roberto; CARDOSO, Vânia (Orgs.).
Etnobiografia: subjetivação e etnografia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais.
São Paulo: Ed. 34, 2009.
KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada
etnográfica. 2ª ed. Rio de Janeiro: 7 letras, 2012.
KOFFES, Suely. Uma trajetória em narrativas. Campinas-SP: Mercado das Letras,
2001.
POIRIER, Jean; CLAPIER, Simone; RAYBAUT, Paul. Oeiras: Celta Editora, 1995.
SÁ, Leonardo. Reflexões sobre o trabalho de campo como empreendimento
micropolítico. In: Política e afetividade: narrativas e trajetórias de pesquisa.
Salvador, São Cristóvão: 2009.
VELHO, Gilberto. Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. Rio de
Janeiro: Zahar, 2013.
ANEXO
https://www.facebook.com/groups/175779539274074/