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Universidade Federal do Ceará - UFC

Departamento de Ciências Sociais


Doutorado em Sociologia
Disciplina: Tópicos especiais em Sociologia III. Narrativas biográficas como
método de pesquisa sociológica
Período: 2017.1
Professor: Crístian Paiva
Aluno: Igor Moreira de Sousa Pinto
Data: 17/07/2017

“Caminhadas”

“Se Harry tentasse estabelecer em cada momento determinado de sua vida, em


cada um de seus sentimentos, a parte correspondente neles ao homem e a parte
que corresponde ao lobo, acabaria por encontrar-se num dilema, e toda sua bela
teoria do homem-lobo cairia por terra. (...). Harry compõe-se não de dois, mas de
cem ou de mil seres. Sua vida não oscila (como a vida de cada um dos homens)
simplesmente entre dois polos, tais como o corpo e o espírito, o santo e o libertino,
mas entre mil, entre inumeráveis polos.” (Herman Hesse, “O lobo da estepe”)

Minha pesquisa de mestrado foi sobre um acontecimento, ou uma “série de


acontecimentos conectados1”: a ocupação e o conflito que deram origem à
“comunidade” Morro da Vitória. Eu já tinha uns quinze anos de imersão no universo
pesquisado, seja o universo de “ocupações” e “movimentos sociais”, seja a região onde
1
“Série de acontecimentos”, em diálogo com a noção de “acontecimento” em Foucault (2010, 2008),
mas também com Goffman (2012) e Deleuze e Guatarri (1995).
o acontecimento se inscreveu: litoral leste de Fortaleza ou “grande” Mucuripe. Mas não
vivi o conflito da “derrubada” (termo com o qual os interlocutores locais designam os
quatro dias de despejo promovido pelo governo do estado) das casas e “barracos”, no
início de 2001, que desencadeou o conflito e os arranjos organizativos emergidos no
decorrer da “luta”. Conheci as meninas do Morro em 2002 e, desde então, engajamo-nos
em vários “empreendimentos micropolíticos2” juntos. Criamos também laços de
amizade3. Tudo isso me ajudou a compor os relatos e as narrativas ligadas ao
acontecimento, e ajudaram a embasar análises. Narrativas que minhas interlocutoras me
contavam e nas quais, em geral, eram personagens ativas. Acredito que consegui reunir
um bom material em entrevistas, com bom nível de profundidade – elas e eles (dois
homens, um pescador e um padre, também foram interlocutores entrevistados)
mostraram disposição para falar, boa vontade como fosse para me ajudar, comportaram-
se como estivessem à vontade para falar de suas vidas, tanto das suas participações na
luta, como as conexões entre esta e suas vidas pessoais. Faço, por exemplo, o capítulo
de “contextualização sócio-espacial” do acontecimento a partir das trajetórias
residenciais delas, com forte vinculação àquela região de intensa mobilidade (na própria
região do grande Mucuripe, mas às vezes ampliando para outras cidades como Icapuí ou
Belém). Nomeei tal capítulo: “Uma cartografia riscada a corpos”. Obviamente, não
mobilizei tudo que consegui colher delas, nem todas as possibilidades analíticas daquilo
que usei.

Por outro lado, a vida dessas pessoas continuou após a “vitória” que resultou na
criação e consolidação do Morro da Vitória. Durante alguns anos, suas vidas ficaram
fortemente conectadas ao desenvolvimento do Morro da Vitória – seja como realidade
sócio-espacial seja como comunidade política – e das articulações (redes, coletivos)
com as quais se relacionam; em ambos, suas agências cumpriram papel central. Liduina
até hoje é presidente da Associação do Morro da Vitória, Lucirene mora atualmente em
São Gonçalo do Amarante, onde ajudou a organizar uma ocupação, Assis mora e é da

2
Ver Sá (2009): “Reflexões sobre o trabalho de campo como empreendimento micropolítico”.
3
Ecléa Bosi (1994, p. 37-38) afirma que “a formação de um vínculo de amizade e confiança com os
recordadores”, com quem a autora compartilha uma “comunidade de destinos”, foi o seu principal
“método de abordagem”. A comunidade de destinos: “Significa sofrer de maneira irreversível, sem
possibilidade de retorno à antiga condição, o destino dos sujeitos observados” (BOSI, 1994, p. 38).
Goldman (2006) fala numa antropologia do afetivo baseada numa noção peculiar de “afeto” no sentido
de os sujeitos se transformar (noções, valores, sensibilidades) na relação de pesquisa: “...o movimento
pelo qual um sujeito sai de sua própria condição por meio de uma relação de afetos que
consegue estabelecer com uma condição outra” (2006, p. 31).
associação da ocupação/comunidade Raízes da Praia (junho de 2009), Graça voltou a
morar em Icapuí (mas só fala em voltar pro Morro). Certamente, tais vidas e suas
relações sociais ou políticas ainda têm muito a me dizer nessa nova pesquisa.

No doutorado, decidi não estudar um acontecimento nem uma região


específicos. Meu interesse agora é falar de “movimentos” num sentido mais amplo,
entender o que é isto hoje. E pretendo fazê-lo partindo da questão: o que significa ser
um militante ou ativista de “movimentos” atualmente? Entendo que não dá para estudar
“movimentos sociais urbanos” tendo como objeto de problematização um movimento
enquanto “instituição de longa duração”. Simplesmente porque não funciona assim.
Movimentos são processos sociais – como uma ocupação, por exemplo – que envolvem
arranjos coletivos variados. Os agentes que dedicam partes das suas vidas para a luta
coletiva por condições estruturais e reconhecimento participam de diferentes arranjos
coletivos ao longo do tempo. Logo, a meu ver, seria equivocado buscar entender os
“movimentos sociais” da atualidade, escolhendo, por exemplo, algumas formas
“clássicas” de organização que são facilmente reconhecíveis como “movimentos
sociais” justamente porque fazem todo esforço performático para isso – siglas,
bandeiras, camisas, bonés, gritos de guerra, intervenções midiáticas etc. Tal caminho
pode até ser mais fácil, pois é mais fácil identificar o “objeto” a pesquisar, mas também
é mais fácil errar se você pretende estudar os processos sociais dos coletivos e suas
agências, as criações e transformações agenciadas, os acontecimentos originários ou
desencadeados e suas conexões com as relações sociais das pessoas envolvidas.

Se minha hipótese é que “movimentos sociais” são coletivos que lutam por
reconhecimento, além de necessidades ou condições estruturais, com diferentes arranjos
ao longo do tempo, o melhor é buscar compreendê-los a partir dos agentes que tecem
tais arranjos.

Seguindo rastros

Toda caminhada deixa rastros. Ainda que tais rastros possam ser apagados com
o tempo, eles também ajudam a manter a trilha existindo (quando ou enquanto isto
ocorre), alterando-a em diferentes intensidades e, às vezes, definindo-a em diferentes
graus.
Essa metáfora também ajuda a perceber a dupla temporalidade desta pesquisa,
que busca perseguir os rastros de experiências vividas e contadas (Benjamim, 1987),
por meio dos meandros da memória e da fala, mas que também segue os contadores
numa etnografia coetânea à vida presente e seu permanente devir.

“Caminhada”, como estou a usar, é uma categoria “nativa”. É como muitos


“lutadores sociais” (para escolher uma de muitas terminologias possíveis), assim
percebidos por si e por outros, falam da sua vida “militante” (para uns) ou “missionária”
(para outros) ou “ativista” ou, ainda, “comunitária” (para quem tem a caminhada de luta
mais enraizada nas “comunidades”). Apreendi tal termo, como alguns outros que serão
usados ao longo da pesquisa, na minha própria caminhada. Como marco de percepção
na memória, recordo de ter atentado e refletido sobre o termo quando era recém-
formado em direito (2002) e atuava como assessor jurídico de alguns sindicatos de
trabalhadores rurais. Entre estes, o STR de Aracoiaba. Seu presidente chamava-se
Silvanar. Ele era, ou aparentava ser, mais jovem do que a média dos dirigentes,
principalmente presidentes e tesoureiros, de sindicatos que eu lidava. Um dia ele me fez
um convite – tratava-se de celebrar o “aniversário de 20 anos de caminhada do
Silvanar”. Era um evento público mobilizado nas suas redes de relação, não só por ele
mas por seus “companheiros de caminhada” nas “bases” sindicais e comunitárias onde
atuavam. Silvanar tinha 34 anos, sua “caminhada”, como ele me explicou, começou aos
14 anos na Pastoral da Juventude da Igreja Católica. Depois veio a participação nas
Comunidades Eclesiais de Base-Cebs, onde sua ação comunitária se destacou, e ele
também foi se transformando num homem cada vez mais envolvido nas “lutas” dos
trabalhadores rurais e suas famílias e comunidades, bem como com a arena pública da
política local. Silvanar filiou-se ao PT e foi candidato a vereador antes de se tornar
presidente do Sindicato. É a isso que ele se referia quando falava de sua “caminhada”.
Silvanar tem a vida bastante intricada à “caminhada” já que fez da “militância” ou
“missão” um projeto de vida (Velho, 2013) e galgou espaços em instituições de “longa
duração”. Nem sempre é assim, principalmente quando a caminhada se dá junto a
“movimentos” em meios urbanos, onde a instabilidade dos movimentos e, mesmo, das
comunidades é maior, a dinâmica política mais potente e a capacidade de abrangência
das agências de “militantes” de origem “popular” menor.

Já devia ter ouvido o termo antes, afinal, é moeda corrente naquele universo.
Nesta pesquisa busco, com o termo “caminhada”, dialogar com uma vasta gama de
abordagens que, com diferentes tratamentos metodológicos e concepções, ou situações,
científicas, têm em comum mobilizarem epistemologicamente narrativas conectadas a
vidas concretas de pessoas no universo social pesquisado. Há variações de abordagens
disciplinares no campo das “ciências humanas” e diferenças metodológicas nas ciências
sociais. Vimos no curso várias abordagens e as discussões terminológica-conceituais:
Histórias de vida (Poirier, 1995), trajetórias, percursos, itinerários, História oral
(Albertini, 2004), relatos de vida, narrativas biográficas, etnobiografia (Gonçalves;
Marques; Cardoso, 2012), etnossociologia (Bertaux, 2010), abordagem biográfica com
intenção etnográfica (Kofes, 2001)... Neste trabalho, não optei por realizar uma revisão
bibliográfica da disciplina, mas estou escrevendo em profundo diálogo com aulas e
autores, pois me ajudaram a conceber (ainda incipiente) uma estratégia metodológica
viável para o tipo de pesquisa que quero realizar e textos que quero desenvolver.

Na minha dissertação, falei de trechos da “caminhada” de mulheres que


transformam o mundo à sua volta com suas agências e que são transformadas pelas
mesmas, bem como pelos acontecimentos que ajudam a gerar ou dos quais participam, e
seus desdobramentos na sociedade/comunidade e nas suas vidas “pessoais”.

Pretendo, no doutorado, continuar a perseguir4 “caminhadas”. De algumas


tratadas na dissertação, cujas vidas prosseguem – fazer a seleção de quais dessas
pessoas continuarei interagindo e escrevendo é um processo em andamento. Mas
também há novos interlocutores – alguns com interlocução em andamento, outros ainda
a procurar restabelecer.

Trago a este texto, mais na frente, algumas experimentações, levando em conta


que busco um universo mais amplo de “caminhadas representativas do agir militante”,
no campo dos “movimentos populares”, e como essas pertenças – que são muito mais
relacionadas a “processos” e pessoas do que a “instituições” – transbordam para outras
dimensões das suas vidas e para outros “espaços sociais”, e como essa água misturada
volta ao leito de suas vidas e influenciam o agir político e as relações cotidianas (Das,
2011).

4
Em diálogo com Marques (2012) que diante da dificuldade de circunscrever seu “objeto” a um campo
espacializado, optou por “perseguir” os percursos do “corpo-em- festa” (logo em “movimento”):
“...como não descrevo o campo em que realizei o trabalho etnográfico, o forró como ritmo ou mesmo a
região do Cariri a partir de limites fixos capazes de estabelecer uma relação ‘fora/dentro’ (...) – resta-
nos, como aporte metodológico, perseguir um sujeito. Falo, portanto, de Alexandre para falar de forró
eletrônico, Cariri, Nordeste, como também para falar de gênero, festa e criação” (p.66).
Transformações

Ao realizar a pesquisa sobre acontecimentos e arranjos, mediado pela relação de


com pessoas que deles participaram, surge a questão: como a participação nesses
agenciamentos coletivos transformadores influenciaram transformações nas suas vidas?
Sem cair na tentação de imprimir quadros de causa-efeito. Mas pensando em
acontecimentos irruptivos, desdobramentos, mudanças, desejos, poderes.

Relaciono-me na pesquisa com pessoas que participaram de diferentes


acontecimentos (com diferentes desdobramentos em escalas variadas), de processos
constitutivos, de coletivos e de redes de relações sociais e políticas variadas, mas não
desconectadas. Pertencem a um universo comum, cujo novelo pude encontrar em
“movimentos” de luta por melhores condições estruturais de vida e por reconhecimento
social e político.

Neste sentido, na dissertação, dialoguei principalmente com Honneth (2009),


que interpreta a “luta por reconhecimento” como força motriz moral dos conflitos e
movimentos sociais. Mas Judith Butler (2015) vai além, ou aquém, da luta por
reconhecimento quando diz que há pessoas e populações que sequer conseguem ser
“apreendidas” como vidas dignas de proteção diante da precariedade que marca
existencialmente a condição humana em geral. Isso impede que elas lutem por
reconhecimento. Não são passíveis de ser reconhecidas. Questão de biopolítica e de
dominação pela distribuição desigual da precariedade da vida, levando a condições de
extrema precariedade que beira, ou imerge, à descartabilidade. Vidas que podem ter a
condição de precariedade agravada pela ação de quem devia justamente minorá-las: o
Estado. Certamente é o caso das pessoas que sofrem a violência do despejo, como no
caso do Morro da Vitória, mas também a negação de infraestrutura urbana e social
básicas para viver bem; além da própria descartabilidade da vida, sobretudo os mais
jovens, passíveis de ser exterminados – tudo isso sem gerar comoção na sociedade.
Tentar provocar tal comoção – seja diante de um despejo, de péssimas condições
estruturais de moradia ou do extermínio físico – é uma das principais agências que
percebo nas pessoas que lutam coletivamente em “movimentos”. Isso implica um agir
político extremamente potente, pois situados em condições adversas de quem resiste
numa condição de dominados, que buscam melhorar suas condições existenciais.

Para Butler (2012), a luta por uma “vida boa” passa pela “apreensão social” de
tais vidas, o que só é possível por meio do agir discursivo e corporal em lutas políticas,
o que a leva a um profícuo debate com a noção de vida plena, ação política e arena
pública em Hanna Arendt (2013). Nesse sentido, a noção de “arena pública” em Arendt
– a qual articulei na minha dissertação, em diálogo com Nancy Fraser (1990) e sua
noção de “arenas públicas” alternativas e mesmo em oposição “à esfera pública
burguesa” – cria uma dificuldade, como vemos na crítica de Judith Butler (2012). Isto
porque a luta por uma “vida boa” está ligada à capacidade de se fazer “apreender” como
uma vida digna de ser vivida, ou seja, de conquistar politicamente condições de lidar
com a situação de precariedade à qual toda vida é exposta, havendo contudo uma
distribuição desigual das condições, ao ponto de haver vidas não protegíveis e mesmo
descartáveis. Acontece que Harendt, segundo Butler, separa a vida do corpo da vida da
mente, e relega as atividades da primeira à esfera privada do animal laborians. Já a
“arena pública” é o lugar da ação, do discurso, onde a vida se faz plena e reconhecida.
“A esfera privada inclui o domínio da necessidade, a reprodução da vida material,
sexualidade, vida, morte e transcedência.” (Butler, 20012, p. 12). Arendt percebia que a
esfera privada dá suporte à esfera pública da ação e do pensamento, do discurso e da
política. Assim essa esfera pública caracterizada pelos atos de discurso (mais do que um
lugar) encobria, na Grécia Antiga, a situação de não reconhecimento do trabalho dos
escravos (desprovidos de discurso) e da mulher (desprovida de ação política). Assim,
pude perceber como as agências, por exemplo, daquelas mulheres na luta do Morro da
Vitória transformaram a realidade. Elas “chutaram a porta” e participaram da “esfera
pública” convencional, dando entrevistas, indo para Assembleia Legislativa,
“Cambeba”, demandando tribunais, acessando (por mediadores) juízes,
desembargadores ao ponto de conseguir uma liminar de suspensão do despejo. Mas
também criaram “arena pública” com a realização de assembleias, reuniões, animando o
movimento de resistência ao despejo, a ocupação, a criação do Barracão e do Morro da
Vitória, inclusive o nome e sua encorporação numa região e numa comunidade política
dadas.

Vislumbro aqui algo em comum aos sujeitos que participam dos “movimentos”
que pesquiso. Abaixo, buscarei apresentar o perfil de alguns desses agentes, a partir da
minha relação com eles. Primeiro, duas das mulheres do Morro que participaram
ativamente da minha pesquisa no mestrado e continuam minhas interlocutoras. Depois
de um interlocutor que não aparece como personagem no mestrado, mas que já me
ajudou naquela pesquisa, pois participou da, hoje extinta, União das Comunidades da
Grande Fortaleza e esteve presente nos conflitos do Morro da Vitória, e em muitos
outros eventos de luta como, recentemente, o Ocupe Cocó – diferentes arranjos
coletivos na “caminhada” de uma vida recheada de lutas.

Liduina, Graça e Chicão

Uma das questões que emergem dos debates sobre narrativas de vida, como
vimos no presente curso, é até que ponto uma vida pode ser representativa de um
universo social. Bourdieu problematiza essa possibilidade, mas passa da crítica à ilusio
biográfica ao manuseio de narrativas de vida como método de compreensão das
realidades de certos “campos” (Bourdieu, 2012); contudo, afirma que para tal
empreendimento é necessário ouvir várias narrativas de diferentes sujeitos que
“coabitam” no campo pesquisado, e seus pontos de vista precisam ser “confrontados”,
por isso ele aproxima depoimentos de sujeitos que vivem em espaços ou realidades
aproximadas. Para Tony Parker (“The twisting lane”) seus narradores não são modelos
representativos de tipo algum, mas apenas deles mesmos. Já para Kofes (2001)
narrativas sobre trajetórias de vida podem servir como ponte para compreensão de
tramas políticas nas quais se enredam.

Minha preocupação é compreender como essas vidas influenciam o mundo onde


existem (em escalas variadas) e como são influenciadas por ele. Parto do desafio de
superar “modelos estáticos” que não ajudam muito a apreender as dinâmicas sociais.
Elias (1994) critica os “modelos estáticos” de pensamento. Ao esforço de superar a
dicotomia “sujeito-objeto”, soma-se a superação da dicotomia “indivíduo-sociedade5”.
Passamos à “rede humana”, formada pela “tensão de fios individuais”, que por sua vez
5
“Então se constata – ao se adotar um ponto de vista dinâmico mais amplo, em vez de uma
concepção estática – que a visão de um muro intransponível entre um ser humano e todos os
demais, entre os mundos interno e externo, evapora-se e é substituída pela visão de um
entrelaçamento incessante e irredutível de seres individuais, na qual tudo o que confere a sua
substância animal e qualidade de seres humanos, principalmente seu autocontrole psíquico e
seu caráter individual, assume a forma que lhe é específica dentro e através de relações com
os outros.” (Elias, 1994, p.35).
altera a “forma do fio” – metáfora para as relações de interdependência e conflito a
conectar as pessoas que formam as sociedades.
Quero agora neste doutorado aprofundar a reflexão e a pesquisa empírica partindo da
premissa que, da mesma forma que há um continum entre indivíduo e o mundo social
de suas relações, há um continum, na “caminhada” cotidiana dos agentes, entre “espaço
público” e “espaço privado”, fazendo esboroar a “fronteira” entre ambos.

Liduina e Graça podem passar por “atores típicos” do meu universo de pesquisa,
mas isso só se abrirmos bem a lente de observação. Conforme aproximamos o olhar, as
diferenças saltam à vista, mas as semelhanças também são ressaltadas – semelhanças de
condições, valores, noções e, em alguma mediada, de “caminhadas”. O que há em
comum entre as duas é que participaram de processos de luta coletiva e ambas se
transformaram ou tiveram as vidas transformadas enquanto agiam. O que essas vidas
tem a dizer, no que são em comum e no que são diferentes, sobre o universo social no
qual vivem e atuam, os acontecimentos que emergem, as formas sociais e políticas que
constituem? As transformações e continuidades nas condições de vida e nas vidas
condicionadas que levam – condicionadas por precariedades, por déficits estruturais ou
materiais, mas também por outros agentes com quem interagem, relacionam-se.

Toda ocupação, para além do espaço físico, é ocupação de espaço político. A


ocupação, em qualquer contexto que aconteça, empodera os ocupantes em processos de
disputas e negociações, às vezes tão assimétricas que sem a ocupação nem existiriam. E
tal empoderamento transforma às pessoas. Liduina, por exemplo, teve sua vida
transformada no dia em que recebeu uma ligação do então companheiro falando da
ocupação do Morro, saiu do trabalho numa lanchonete perto do HGF, subiu o Morro
andando atrás de pegar “um canto” para si. Ao chegar lá deparou-se com a confusão do
início da “derrubada”. Buscou se envolver, e continua envolvida até hoje.
Liduina continua no Morro da Vitória, como presidente da Associação de lá,
cada vez mais articulada politicamente, tanto com “gringos” de ongs e benfeitores
locais, como com agentes do poder público. Liduina tornou-se uma “liderança
comunnitária”. Ela continua exercendo um papel mediador fundamental nas relações
internas e externas da comunidade – esse é sem dúvida o principal foco das suas ações,
do seu trabalho. É como Graça diz:
Qualquer briga que tem de vizinho aqui, o pessoal num vai na
delegacia não, vem chamar a Liduina pra resolver, já tô cansada de ver
isso aqui acontecer... que um vizinho invade um pedaço de chão do
outro, o outro vem aqui pra Liduina resolver, que fulano de tal invadiu
meu quintal – isso aí, no momento que nós tamo hoje já, em dois mil e
quinze, num é mais pra vim pra Liduina, porque o Morro em si já
expandiu já, eu acho que é uma coisa pra ir na delegacia, sei lá
procurar outros métodos, mas eles, ainda tem gente que tem muita
consideração por ela que vê assim a importância dela na comunidade,
porque se eu tenho um problema que pode ser resolvido por um, pela
polícia, e eu invés de chamar a polícia eu vou atrás dela, é porque ela
tem um importância muito grande na comunidade, e as vezes ela vai lá
conversa apazigua e resolve só no queixo dela na conversa na lábia
dela, ela consegue resolver, muitas vezes acontece... Por isso que eu te
digo, se Liduina sair dessa associação, vai ser um baque muito grande
pra certas... algumas pessoas vão sentir muito. A não ser que a pessoa
que venha a substituir ela, faça igual ela faz ou um pouquinho
melhor... (entrevista Graça)

E a própria Liduina admite sentir essa legitimidade ou reconhecimento dos


primeiros tempos ainda hoje: “Eu acho que até hoje tem muito respeito comigo”. Mas
ao contrário de Graça, Liduina acha que no dia que sair, haverá pessoas “capacitadas”
para tocar o barco adiante: “Num acaba a Associação de jeito nenhum! eu acho, e é
nesse meu entender que eu tô acreditando e torcendo por isso”.
Mas também no campo das relações íntimas sua vida passou por transformações.
A mais intensa, pelo menos em termos de sofrimento para ela, foi a separação com o
Louro. Pelo que pude observar diretamente, este nuca conviveu bem com a condição de
liderança de Liduina – e vários depoimentos de interlocutoras que os conheciam
ratificam a mesma impressão. Tinha ciúmes perante o grande arco de relações que ela ia
estabelecendo6 e, a meu ver, sentia-se diminuído diante da condição acedência da
mulher, ainda que se beneficiasse, inclusive com emprego que ela conseguiu pra ele –
enfim, grosseiramente falando, agora ela era a “chefe”. As implicâncias e brigas foram
aumentando, até que ele “arranjou outra mulher” e a deixou. Nas conversas que tivemos
num período recente, antes que eu ligasse o gravador, suas mágoas em relação ao Louro
eram o assunto predominante.
Diário de campo 16/07/2015
A conversa segue agitada com assuntos se atropelando, e dispersa, na medida
que ela atende ligações e conversa aos gritos e risadas. Também pessoas vêm a porta
da associação para falar com ela, como um motoqueiro representante comercial de
uma ótica a oferecer consultas grátis na associação para a população, ela dispensa, ele
diz que dão óculos grátis para a liderança ou uma cesta básica se quiser fazer um bingo
coisa e tal, ela vacila mas mantém a dispensa – sempre tem um custo pro Barracão, luz

6
Sobretudo relações com atores de outros “universos simbólicos”, típicas das agência mediadoras nas
quais Liduina se envolveu (Velho, 2013).
água, depois vão embora e nunca mandam o óculos, explicou-me. Mulheres entram
para falar com ela, assuntos do Barracão ou conversas delas, no caso da Graça também
comigo. Graça era uma das mais ativas no Movimento quando este estava mais ativo,
convivíamos muito e ficamos amigos. Fizemos as festas por nos revermos e ela me veio
perguntar “orientações” para uma amiga que quer se separar, mas a casa em que
vivem é construída nos fundos da casa da mãe dele, como ela faz pra ter direito,
porque quer se separar, não tem filhos, e ele tá com outra que teve uma filha dele e
“fica fazendo hora com ela no face, postando foto da filha”. Outra novidade, dessa vez
na fala delas: estão sempre falando em face, redes sociais, aquelas mulheres na casa
dos quarenta pra cinquenta que assimilaram a nova forma de se comunicar que
interage nas conversas delas. Liduina dá opinião que e a moça devia era abandonar o
casamento, sair de casa nem que perca tudo, ela é jovem bonita pode trabalhar,
arrumar outro homem, é como ela, Liduina, sempre diz nas redes sociais: “tem que ser
mulher forte, dar volta por cima quando sofre”, ela recebe muitos elogios dessas
postagens que faz, disse-me. Quando ficamos a sós de novo ela passou a falar das
superações na sua relação com o Louro, como sofreu na separação anos atrás. Ele e a
família dele “ficaram tudo besta” pro lado dela, que ele tava com uma mulher “rica”,
pararam de falar com ela. Sofreu, mas superou, hoje ele tá só, procura-a, usa as filhas
pra isso, a família dele voltou a tratá-la “assim ó”, e ela convive com ele bem, mas
aceitar de volta – jamais.

Diário de campo 11/10/2015


Antes de começar a entrevista propriamente dita – gravada e roteirizada –
conversamos algum tempo, a maior parte deste sobre o Louro, o ex-marido. Ela
falando e eu ouvindo, é claro. Conta-me que já disse para a filha Adriana (a caçula,
adotada por Liduina e por ele, com quem ela não pôde ter filho, para sua tristeza como
deixou transparecer na entrevista, e cuja “criação”, que coincide em parte com a
“infância” do Morro da Vitória, foi um dos períodos mais felizes de Liduina, como ela
veio a dizer, e que é querida e quer muito bem ao pai, como gosta de ressaltar), disse
assim: “deixe um cantinho pra ele lá na sua casa, reserve um canto na parede pra ele
pendurar a rede quando tiver véi que pra cá ele num vem não, de jeito nenhum! Já tá
aí cheio de doença e eu num vou cuidar não. Jajá fica véi e se encosta, mas aqui não!
Num quis ir embora, num disse que a fila anda... foi, ele disse desse jeito: ‘Lidu a fila
anda!’, pois andou e agora não volta mais... fiquei magoada, num tenho raiva não, mas
sinto aquela coisa num sabe... não precisava ter falado assim, o Louro foi muito cheio
de coisa, muito arrogante, assim se achando num sabe... agora tá aí só ficando véi,
cheio de doença, e eu mais de jeito nenhum, segui minha vida não preciso dele... mas
a Adriana disse que pode deixar que o cantim da rede do meu paizim, óia como ela diz
(Liduina fala debochando), o cantim dele pra ele pendurar a rede tá guardado.” E
Liduina cai na gargalhada, seu riso sempre escrachado, dessa vez foi mais.

Graça nunca se considerou “liderança” e nunca foi assim considerada. Mas


conta como a participação na ocupação do Morro e, depois, da Raízes da Praia mudou
sua vida. Diz considerar que antes era “meio abestada”, não sabia das coisas, não
reclamava e que a participação nas duas ocupações, principalmente na segunda,
transformaram sua pessoa. Hoje, Graça, está morando em Icapuí. Foi por causa do
marido e do filho jovem. Já há alguns quando a entrevistei em 2015 ela falava sobre a
mudança iminente e não-desejada. Ela estava mesmo contrariada, não queria, diz que
que os anos no Morro da Vitória foram os melhores de sua vida. Tenho me comunicado
com ela por watsap e facebook. Também está se separando. Diz que vai voltar. Graça
viveu a vida toda à sombra de homens, como me narrou: o pai viúvo de quem cuidou
adolescente, o marido com quem casou muito jovem, o filho. Quando os dois últimos
voltaram para Icapuí , ela passou um período só no Morro. Foi quando fiz as entrevistas
com ela. Em 2016 foi embora. Agora me conta, e pede orientações jurídicas, que vai
separar e voltar a viver na casa no Morro da Vitória, atualmente. Há meses fala sobre
isso.

Chicão: “Por isso que comunidade é bom”

Essa frase, ouvi de Chicão Oliveira, quando ia com ele para sua casa em
29/06/2017, no Jardim Iracema (bairro próximo a Barra do Ceará). Saímos da
Gentilândia-Benfica e fomos de bicicleta. Chegamos na vizinhança por volta das oito da
noite. Antes de irmos à casa dele, paramos na bodega do Chinês (que não é chinês) para
comprar uns legumes e temperos pra pôr na sopa de feijão que a Nilza (sua
companheira) estava fazendo, e frutas para o café da manhã; a poucos metros paramos
no supermercado “Centerbox” para comprar cerveja e goma de tapioca. Ao sair da
bodega do Chinês, ele disse: “por isso que comunidade é bom”, após comprar fiado 27
reais em quiabo, maxixe, maracujá, mamão, goiaba, tomate, pimentão. Elogiou a
“consideração”, o reconhecimento, a confiança – “anota aí Chinês que sábado passo pra
acertar!”, falou já empolado, com certa galhofa, como interpretando.

Conheci-o em 2014, apesar de já ter estado em espaços e eventos comuns várias


vezes ao longo de anos anteriores. Mas foi naquele ano que nos encontramos em Belo
Horizonte para um evento chamado I “Encontro dos Atingidos: quem perde e quem
ganha com os megaeventos”, ocorrido entre 01 e 03 de maio de 2014. Fui de ônibus
buscá-lo no aeroporto com o padre Álvaro, que hospedou a nós dois e outras duas
pessoas que vieram de Fortaleza para participar do referido Encontro, Chicão era o
último a chegar. Disse que não pôde vir no ônibus com o pessoal de Fortaleza porque
dirigentes do Sindicato de servidores públicos municipais pediram para ele ficar e
ajudar numa greve dos garis da Emlurb, sua categoria de origem (hoje, trabalha “lotado”
na Biblioteca municipal Dolor Barreira, no setor infantil, é “contador de estórias”), e o
sindicato pagou a passagem para ele vir depois. Explicou isso após Álvaro provocar-lhe
com seu sotaque português: “Qual entidade está a te custear hem Chicão”, falava com
ironia, pergunto mais de uma vez, Chicão então respondia: “Vai pra puta que pariu
fulerage, num sou que sou bancado pela Igreja não”, ríamos. Chicão e seu “grupo”
político são contra qualquer forma de entidade representativa, como sindicatos.
Álvaro estava morando em Belo Horizonte, onde fazia mestrado, há uns dois
anos. Ele foi padre no Serviluz, quando ficamos amigos em consequência de
participarmos do “movimento popular-comunitário” daquele bairro e termos várias
afinidades. Antes, ele foi padre no Jardim Iracema, bairro do Chicão, quando ficaram
amigos. Ambos têm mais ou menos a mesma idade, dez anos a mais do que eu – o que
em se tratando de padre fazia com que ele fosse mais jovem que os que eu conhecia e,
consequentemente, mais próximo de mim em termos geracionais. Álvaro é português,
um europeu cosmopolita que gosta de rock, revolucionários latino-americanos,
Saramago, Che Guevara e Revolução dos Cravos. Não tinha o comportamento “típico”
de padres, destoava em muitos aspectos do habitus mais comum em tal “campo”.
Parecia mais arejado em termos de gostos, jeito de se relacionar com os leigos,
politicamente é um “radical”, e isso vale para as relações e posicionamentos na
instituição da qual faz parte. Tudo isso facilitou o estreitamento de relações entre ele e
pessoas como o Chicão, ou comigo. Chicão, diferente de mim, tem uma origem na
“comunidade” religiosa-política do seu bairro. Foi até coroinha, o que é tratado sempre
de forma cômica por ele e por quem o conhece hoje e descobre tal fato. Foi atuando no
espectro político-religioso da “comunidade” que Chicão conheceu Álvaro e ficaram
amigos. Álvaro sabia construir relações pessoais bem além do molde padre-fiel – ou
“pastor-ovelhas/rebanhos”, como ouvi certa vez, em 2006, no Serviluz, uma “fiel”
católica, integrante da Cebs local, reclamar: “o que é que um pastor faz? Pra mim um
pastor cuida das ovelhas do rebanho, né não?!” Para ela, Álvaro não cumpria esse papel.
Ele é o que poderíamos, grosso modo, chamar um padre moderno, que recusa práticas
de viés mais “assistencialista” (na falta de uma palavra melhor) ou formas de relação
patriarcal. Seu comportamento e suas posturas destoavam desse molde de relações – “o
padre garotão”, disse-me uma interlocutora do Morro da Vitória há alguns anos, com
certa ironia. No Serviluz houve mesmo um impacto, seguido de conflito, entre um setor
mais tradicional da Cebs local e o padre Álvaro que passou a se relacionar mais
estreitamente com pessoas que não tinham vínculos com a Ceb, mesmo que católicas
frequentadoras da igreja local, mas que faziam parte do “Conselho Popular” ou
“Movimento Popular” (como às vezes chamavam inclusive em divulgações impressas e
sonoras de reuniões, manifestações, eventos). Além disso, Álvaro estabeleceu intensas
relações com pessoas que não eram da Igreja, mas eram militantes do Movimento –
algumas moradoras, como Meire, Luiz, Dedé; outras não. Álvaro reunia a esses amigos
adquiridos durante o trecho da sua “caminhada” no Serviluz, os mais íntimos e com
maior afinidade política (ainda que diversas) que adquirira em períodos e espaços
anteriores, como na Barra do Ceará, no Grito dos Excluídos (articulação sobre a qual
falarei em outra parte).
Voltemos a Chicão. Ele pertencia a esse círculo de amizades e camaradagens do
Álvaro. Relação inusitada, alguns pensam decerto. Ainda mais quando Chicão participa
de um grupo político, consolidado e relativamente influente na sociedade política de
Fortaleza, que proclama a negação do Estado, da Igreja, do mercado e de todas as
estruturas patriarcais, capitalistas, fetichistas e alienantes. Resumindo, Chicão é alguém
bem passivo de ser chamado de “ateu”. Se o é ou não, é uma discussão para outro
momento, e a faremos. Na verdade, sua caminhada militante não foi percorrida pela
trilha das Cebs, pastorais sociais ou outras formas de militância católica. Suas narrativas
militantes apontam para uma iniciação política por meio do movimento estudantil
secundarista.
Quando, recentemente, visitei sua casa, ele e Nilza, após tomarmos a sopa de
feijão e enquanto conversávamos e bebíamos algumas cervejas, me mostraram o cantor
português Zé Afonso, de quem ganharam dois discos do Álvaro há muito tempo, no
tempo dos cds. Mas agora é no youtube que me mostram. Faziam elogios à música,
comentários políticos, exaltação ao cantor, realce às letras, admiração ao ambiente
(imagens), épocas de luta contra a ditadura e da Revolução dos Cravos, agitação
política, estética de multidões e muitos jovens, liberdade e rebeldia, “esquerda”.
Conversamos sobre isso enquanto ouvimos e comentamos canções e imagens. Depois
mostrei o cantor guineense José Carlos Schwarz, ele fica admirado com músicas e
imagens (Guiné, guerrilha, Amílcar Cabral). Depois ele me mostra vídeos do “Crítica
Radical”.
Chicão é um geminiano que gosta de influenciar as pessoas politicamente, entre
outras dimensões, com seu jeito expansivo, divertido, performático, com discursos
cheios de conteúdo ideológico e narrativas de lutas ou denúncias, ele sempre busca
cativar para suas posições. Fez isso comigo quando estivemos hospedados na casa do
Álvaro. Já conhecia essa sua dimensão, principalmente pela prática dos discursos
públicos em plenária, eventos. Quando estivemos na casa de Álvaro, vi como essa
faceta política age também em espaços íntimos, descontraídos. De dia participávamos
do Evento (relatar algumas atividades em outro momento), à noite debatíamos em casa
ou num bar ou em ambos. Todos os que estávamos na casa. Mas Chicão tinha uma
singularidade em relação aos outros ali, e à maioria dos meus interlocutores nesta
pesquisa: ele pertence a um grupo político de forma “orgânica”. Isso faz com que, às
vezes, seu discurso se articule com a ideologia e as estratégias de ação do grupo. Porém,
ele possui padrões de “organicidade” e de proselitismo bem menor do que a maioria dos
militantes do grupo. Chicão possui outras meta-referências em termos de cosmovisão,
dedicação, organicidade – o Teatro, por exemplo, o grupo “Os Trambecantes” (coletivo
que realiza “contações de estórias”, voltadas principalmente para o público infantil, mas
não só, em performances que articulam narrativas, música e teatro; fazem também
outras intervenções performáticas descoladas desse projeto, como a intervenção “Ação
Ocupa” com poemas, músicas e dramaturgia). Naqueles dias em Belo Horizonte, assumi
algumas tarefas junto à coordenação do Encontro. Chicão iria realizar a performance do
“Balaieiro” na “noite cultural” (descrever). Após a apresentação, Chicão participou de
outros momentos, mas não de todos. Além dele, havia mais três militantes do Crítica
Radical. Eles incidiam nos debates, que ocorriam principalmente em grupos, levando
para plenária sínteses e apontamentos de propostas, posições etc. Para os militantes do
Crítica Radical, duas mulheres e um homem, além de Chicão, é importante conectar as
denúncias e reivindicações mais locais à crise do “sistema”. E eles intervinham nesse
sentido. Outra questão era uma orientação para chamar as pessoas ao Ceará para
participar das manifestações que ocorreriam em Fortaleza por conta de uma reunião de
cúpula do “Brics”. Para os militantes do Crítica Radical, botar a convocatória na “carta
final do Encontro dos Atingidos” era importante. Mas Chicão já quase não participava
das reuniões na reta final do Encontro, saía para passear com Álvaro e Jacqueline, e
depois vinham nos encontrar na escola onde o Encontro acontecia, e saíamos para bares.
Na noite que antecedeu o último dia houve uma espécie de festinha não programada
entre participantes do Encontro numa praça próxima. Foi boa. Chegamos em casa já
bem umas duas horas da manhã. Eu e Chicão bebemos mais um pouco e conversamos –
as conversas giravam muitas vezes em torno das questões políticas do próprio Encontro
e das redes de relações dos coletivos que o sustentava, ou seja sobre uma política
próxima, na qual intervimos, e não a “macropolítica” nacional espetaculosa e distante,
onde somos meros expectadores e sobre a qual só conversamos como uma “assunto” a
mais, tipo futebol, filmes, novelas. Só que eu tinha ficado de juntar as contribuições
para a Carta, a partir dos relatores de cada grupo num texto único, e o fiz – é verdade
que no outro dia refizeram boa parte antes de apresentarem em plenária. Tomei banho e
fui escrever, com os olhos ardendo. Quem entrava no quarto não podia deixar de rir: eu
sentado em frente ao computador, e o Chicão ao meu lado vestido com aqueles roupões
pós-banho e pantufas do Álvaro, de pernas cruzadas, parecia realmente um personagem
– “que diabo é isso?!” – “é o Chicão me fiscalizando, vigiando se eu vou botar as
propostas do Crítica na carta, quem mandou tu não participar da discussão mais cedo
demônio!?” No final não botei, ou tiraram na revisão, não lembro, mas Sandra
(militante do Crítica) defendeu na plenária final que entrassem, não lembro se
conseguiu que as coisas mais específicas ao discurso “categorial” do grupo entrassem,
sei que a convocatória para a reunião dos Brics em Fortaleza entrou.
Assim na minha relação com o Chicão, desde início a fronteira entre “espaço
público”, onde se debate as questões políticas e agências coletivas, e “espaço privado”,
onde vivemos e conversamos apenas as dimensões íntimas das relações pessoais ou das
afinidades afetivas, nunca existiu claramente, foi sempre esboroada. Às dimensões
políticas e pessoais, posso ainda adicionar a dimensão da pesquisa.
Relacionamo-nos em ambientes íntimos, na casa de amigos em comum, nas
nossas próprias casas, onde nossas agências políticas estão constantemente presentes, e
não só nas práticas discursivas, mas também em outras práticas e disposições que
adquirimos ao longo da “caminhada”, além de compartilharmos noções éticas, valores,
visões de mundo, o que se intensifica quanto mais convivemos. Isto por sua vez
influencia nossas relações e agências nos espaços de militância e luta política:
entendimentos comuns são amadurecidos, também as divergências, as parcerias em
ações coletivas ou na construção de espaços de articulação como, por exemplo, o
Comitê Popular da Copa. Tanto ele como a Sandra me ajudou muito na pesquisa do
mestrado, pois participaram, diferente de mim, da luta do Morro da Vitória nos dias da
“derrubada”. E o fizeram tanto em conversas informais, como em momentos mais
ritualizados numa relação pesquisador-interlocutor, mas sem nunca deixar de estar
presente as nossas relações política e de amizade.
Da última vez que encontrei Chicão foi numa atividade realizada no último
sábado (15/07/17), chamada “Percursos Urbanos”, promovida por uma parceria entre o
a ong Mediação de Saberes e o BNB. O título do evento foi: “Na trilha da limpeza, uma
narrativa de garis” – ver em anexo prints de postagens sobre a atividade na internet.
Seguimos em um ônibus saindo do Centro Cultural do BNB, no Centro de Fortaleza,
para a sede da antiga Emlurb (Empresa de Limpeza Urbana) no bairro Benfica, próximo
ao estádio Presidente Vargas. Éramos um grupo de aproximadamente vinte pessoas.
Chicão era o “mediador” da atividade. Lá ele contou histórias de garis, da empresa
pública de limpeza que está em vias de extinção diante da privatização do serviço, do
cotidiano dos trabalhadores, das lutas (paralisações, assembleias, greves,
acampamentos, manifestações). Chicão narra tudo de forma especial, com intimidade e
afeto (rir e chora ao lembrar de pessoas e fatos), mas também com talento e técnica na
performance. Hoje Chicão é “lotado”, na condição de servidor municipal ingresso na
Emlurb, na Biblioteca Municipal Dolor Barreira, no setor infantil. Chicãoé ator e
“contador de estórias” por profissão. Faz “contações” para crianças de escolas públicas,
mas faz também apresentações no tetro.

Na noite anterior a este dia do “Percursos” vi Chicão agenciar outra


performance. Era uma festa promovida pela banda Oco do Mundo (com quem Chicão
possui relações político-artísticas e de amizade) para arrecadar recursos para a gravação
do seu disco. Outras bandas tocaram. Entre elas, uma que já possui discos lançados e
disponíveis na internet, chamada Água de Quartinha. O seu vocalista se chama Zé
Rodrigues, e ele também possui relações políticas e de amizade com o Chicão. Por meio
deste conheci Zé Rodrigues, quando este procurou-o para pedir apoio para uma
ocupação que estavam realizando na Sabiaguaba. Fui visitar a ocupação. Pouco depois
houve um conflito – capangas armados, duas pessoas feridas, incluindo uma criança. Zé
ficou muito assustado, ajudei como pude. Levamos ele a reuniões de redes ligadas à luta
por moradia, mediamos com órgãos de assessoria e proteção aos direitos humanos –
mas a barra pesou e o grupo de ocupantes se dispersou. Zé ficou mal. Agora,
reencontro-o bem – já não é a primeira vez, vimo-nos e conversamos algumas vezes
antes. A banda está numa ótima fase e faz um ótimo show. Zé, de surpresa, chama o
Juca Balaieiro ao palco – performance que Chicão havia desempenhado no referido
Encontro de Atingidos em Belo Horizonte. Ele sobe e encarna o personagem que
interpreta já há alguns anos. Fala o texto ao microfone, ora com a voz grave e empolada
do Juca Balaieiro, ora com gritos rasgados de Chicão Oliveira, o discurso também varia
entre o texto do Balaieiro e trechos de Chicão em livre fluxo de ideia, onde há sempre
insidiosa a sua ideologia e atitude anti-sistêmica, ressaltada pelo instrumental da banda
de rock ao fundo.

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ANEXO
https://www.facebook.com/groups/175779539274074/

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