Você está na página 1de 8

A pedagogia e a educação infantil

A pedagogia e a educação infantil

Eloisa Acires Candal Rocha


Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas

A ciência [...], longe de mecanizar o artista ou o pro- aproximação a respeito dos limites e perspectivas de uma
fissional, arma a sua imaginação com os instrumentos e re- Pedagogia da Educação Infantil como um campo de co-
cursos necessários para os seus maiores vôos e audácias. nhecimento em construção.1
Desta maneira, parto do princípio de que uma Pe-
Anísio Teixeira (apud Brandão & Mendonça, 1997, p. 203)
dagogia da Educação Infantil caracteriza-se por sua es-
pecificidade no âmbito da Pedagogia (em seu sentido
A reflexão aqui apresentada resulta de “A Pesqui- mais amplo), uma vez que a meu ver o objeto desta está
sa em Educação Infantil no Brasil: trajetória recente e essencialmente ligado a toda e qualquer situação educa-
perspectivas de consolidação de uma pedagogia”, que tiva (como organização, estruturas implícitas, práticas
analisou o conjunto da produção sobre a educação da etc.). De fato, em sua trajetória, o campo pedagógico
criança pequena. Essa análise revelou construções teó- não tem contemplado suficientemente a especificidade
ricas que, sustentando-se em bases empíricas e da educação da criança pequena em instituições não-
teorizações anteriores, vêm permitindo a identificação escolares, tais como a creche e a pré-escola.
de um conjunto de “regularidades e peculiaridades” que Não é novo falar de uma “didática pré-escolar”. O
suscitam novas frentes de investigações. Os construtos próprio aparecimento da pré-escola no Brasil se deu sob
já identificados pelas pesquisas analisadas permitem as bases da herança dos precursores europeus que inau-
afirmar a possibilidade e o nascimento de uma Pedago- guraram uma tradição na forma de pensar e apresentar
gia da Educação Infantil que passa a analisar critica-
mente o real, a partir de uma reflexão sistemática que 1
Não é minha intenção advogar a departamentalização da Pe-
ganha corpo, procedimentos e conceituações próprias. dagogia em campos específicos. O recorte de análise estabelecido
Sem pretender recuperar aqui toda uma extensa tra- não despreza, porém, a necessidade de destacar as singularidades
jetória de discussão sobre o objeto e o estatuto científico presentes nos diferentes níveis de abrangência relacionados à educa-
da Pedagogia, minha tentativa será de estabelecer uma ção e à infância.

Revista Brasileira de Educação 27


Eloisa Acires Candal Rocha

proposições para a educação da criança nos “jardins de técnicas e relações, reduz-se à Didática ou à Psicologia.
infância”, diferenciadas das proposições dos modelos Para ele, a Pedagogia tem um estatuto específico que
escolares. O modelo minuciosamente proposto por tem como objeto os sistemas de ações inerentes às situa-
Froebel orientou muitas das experiências pioneiras no ções educativas – um objeto muito material que permite
Brasil, a exemplo do Jardim de Infância Caetano de à Pedagogia se colocar como uma teoria de estrutura
Campos, tal como mostra o recente estudo de Kuhlmann implícita à experiência educativa (Massa, 1997). Desta
Jr. e Barbosa (em Kuhlmann Jr., 1998, p. 8). Modelos forma, seu relacionamento com as outras ciências deve
como o de Montessori e Decroly também integram gran- ser de apropriação de todos os aspectos de outros cam-
de parte das práticas que proliferaram entre nós com o pos a ela relacionados, “sem complexo de inferiorida-
aparecimento das pré-escolas, nos âmbitos públicos e de”. A Pedagogia pode afirmar-se pelo estudo da expe-
privados, mesmo já na década de sessenta. Esses mode- riência educativa, recolocando-se como Ciência da
los, porém, influenciados por uma Psicologia do Desen- Educação. O que se vê hoje é que as mais diferentes
volvimento, marcaram uma intervenção pautada na pa- práticas sociais recorrem à Pedagogia: “Paradoxalmen-
dronização. Neste sentido, não se diferenciaram da escola te a Pedagogia morre, mas é tudo ‘pedagogizado’ (ex-
tradicional ao constituírem práticas de homogeneização. cessivamente)” (Massa, 1997).
Apesar de suscitarem a busca de uma pedagogia para a De fato, se por um lado a Pedagogia é destituída de
criança pré-escolar, mantiveram as mesmas intenções autonomia por aqueles que consideram a impossibilida-
disciplinadoras das práticas escolares, com vista ao en- de de se estatuir um conhecimento científico de base prá-
quadramento social, através de práticas e atividades que tica, por outro, temos assistido a uma construção da Pe-
se propunham como mais adequadas à pouca idade das dagogia como forma de consolidar seu estatuto e dar
crianças. conta de uma demanda concreta de organização das prá-
Em relação a esta tradição, o novo apresenta-se atra- ticas e das experiências educativas humanas, mas que é
vés de uma produção recente que resulta de influências essencialmente diferente delas.
teóricas e contextuais antes não colocadas. Mudam as Cabe à Pedagogia articular o conhecimento prévio
formas de fazer e de pensar a educação da criança e as experiências práticas na construção do conhecimen-
de 0 a 6 anos nas instituições educativas, estabelecen- to novo, dando voz aos sujeitos envolvidos com o pro-
do-se como um novo objeto das Ciências Humanas e blema e permitindo ao pesquisador uma posição de
Sociais. A identificação da construção de uma Pedago- compartilhamento que eu chamaria de diferenciada. Di-
gia da Educação Infantil, como um campo particular do ferenciada porque entre os conhecimentos prévios e aque-
conhecimento pedagógico, revelada pela trajetória das les obtidos no decorrer da pesquisa (incluindo a voz dos
pesquisas recentes analisadas, situa-se inicialmente tam- sujeitos sobre a questão), o pesquisador se mantém no
bém no âmbito da Pedagogia. Desta forma, interessa- lugar daquele que, se diferencia, como diz Gouveia
nos discutir sua própria delimitação como campo cientí- (1994, p. 68), “por trazer um conhecimento de quem pode
fico. e deve ir além do senso comum, modalidade esta que é
De acordo com Mazzotti (1996, p. 3), a Pedagogia, respeitada mas deve ser superada, exatamente onde a pes-
“tem sido tomada ora como tecnologia, ora como ciên- quisa possibilita ultrapassar a mera inserção prática”.
cia, ora como filosofia aplicada” e raramente como ciên- Assim, se podemos concordar que a Pedagogia não
cia autônoma que examinaria as práticas pedagógicas. seria uma ciência porque “uma ciência é um campo de
Isto porque não se aceita que uma prática possa dar ori- conhecimentos e procedimentos que tem autonomia epis-
gem a uma ciência ou ser uma ciência. temológica” (Freire apud Nogueira, 1994), concorda-
Esta mesma perspectiva é reforçada pelo pesquisa- remos também que todo conhecimento científico é de
dor italiano Riccardo Massa (1997) quando afirma que fato um conhecimento em constante movimento, inde-
enquanto a Pedagogia se prender a valores e ideologias, pendente do grau de “acabamento” de cada campo ou de
ela se reduz à Filosofia; e quando se refere apenas a cada ciência. Tanto as ciências que estão processo de

28 Jan/Fev/Mar/Abr 2001 Nº 16
A pedagogia e a educação infantil

constituição, no sentido de constituir um estatuto teóri- que tem se dedicado ao debate das Ciências da Educa-
co bem definido, como aquelas consideradas “acaba- ção e da formação dos educadores, ao se referir aos de-
das”,2 mantêm uma permanente elaboração no sentido safios atuais impostos ao universo educativo diz:
de estabelecer normas e interpretações que exigem uma
Doravante, não é mais admissível uma acção pedagógi-
construção constante de suas leis, através de processos
ca que não se paute, desde a organização de programas à sua
de definição/redefinição e estruturação/ reestruturação
realização e avaliação, por enquadramentos científicos e teóri-
de suas bases teóricas que apontam para a descoberta
cos e por desenvolvimentos metodológicos extremamente ela-
de novos fenômenos.
borados do ponto de vista conceptual e praxiológico.
Dessa forma, tomarei como princípio fundamental,
como o fez Mazzotti (1996, p. 15), que é possível cons- A Pedagogia, como a Ciência da Educação, distin-
tituir uma ciência da prática educativa, que se coloca gue–se radicalmente da atividade educativa em si, por
como a própria condição de refletir, que se efetiva atra- definir-se como o conjunto de estudos sobre a/da educa-
vés e por meio das diversas Ciências Sociais e Huma- ção e pela reflexão sistemática sobre a prática. Assim, a
nas: “pode-se dizer que a tessitura apresentada pelas Pedagogia, como estudo sistemático, toma como ponto
Ciências do Homem possibilita a exposição dos limites de partida a prática como objeto inconcluso e histórico,
do fazer educativo, mas não é suficiente para estabele- e a ela retorna (Pimenta, 1996, p. 39-70).
cer a efetividade do fazer educativo”. O objeto do campo da Pedagogia define-se, pois,
Entendo que a produção de cada uma das áreas das como o ato pedagógico em determinada situação. No
Ciências sobre o fenômeno educativo, além de se re- caso da educação infantil, este objeto define-se pelo con-
ferirem a um objeto próprio, constituem-se em contri- texto das relações educacionais-pedagógicas e não pela
buições para o campo educativo. Porém, esses conheci- análise de cada um dos fatores determinantes da educa-
mentos dependem de uma elaboração específica ção da criança, de forma isolada. Por exemplo: os pro-
conseqüente, que se configura como o próprio objeto de cessos gerais de desenvolvimento da criança interessam
produção do campo educativo. De acordo com Freitas à Psicologia; já a educação da criança na creche como
(1995, p. 39): um contexto de desenvolvimento, é de interesse particu-
lar da Pedagogia que, a partir do conhecimento psicoló-
A Pedagogia opera em nível qualitativo próprio, que di-
gico, observa, descreve, analisa e critica a intervenção
fere de cada uma das ciências que lhe dão suporte na com-
pedagógica.
preensão do fenômeno pedagógico. Reduzir a Pedagogia ao
Sobre a particularidade do estudo pedagógico, con-
domínio de cada uma destas ciências de fundamentos dilui
cordam até mesmo aqueles que, como Anísio Teixeira
seu objeto de estudo e impede um tratamento do fato pedagó-
(em Brandão & Mendonça, 1997, p. 202), distinguem a
gico no seu nível qualitativo próprio.
educação da ciência, situando nas chamadas ‘ciências-
A centralidade de uma ciência pedagógica se põe fonte’, a responsabilidade por:
como forma de captar o caráter dinâmico das práticas
[...] dar um caráter mais científico à ação desenvolvida no cam-
educativas, como práticas sociais que são e como possi-
po educativo. [Para ele], nenhuma conclusão científica é dire-
bilidade de dar conta de sua dimensão praxiológica, que
tamente transponível em regra operatória no processo de edu-
têm, para além da descrição e da explicação, uma preo-
cação. Todo um outro trabalho tem de ser feito para que os
cupação indicativa e uma produção de saberes caracte-
fatos, princípios e leis descobertos pela ciência possam ser
rizados como instrumentos de ação.
aplicados na prática educacional.
Nóvoa (em Pimenta, 1996, p.74), autor português
De posse dos “instrumentos e recursos necessários”,
a Educação pode então projetar “seus maiores vôos e
2
O uso deste adjetivo: “acabadas” está sendo feito de acordo audácias”. Desta forma, o que se coloca como plausibi-
com Kuhn (1992). lidade de constituição do campo educativo é, sem dúvi-

Revista Brasileira de Educação 29


Eloisa Acires Candal Rocha

da, a criação e o desenvolvimento de pesquisas multi- cia como objeto, desde a Pedologia3 até a moderna Psi-
disciplinares, em que a produção do conhecimento pos- cologia Infantil, sofreram, de fato, uma grande mudança
sa ser o resultado de diferentes olhares sob um mesmo no foco de suas atenções com o advento da universali-
fenômeno. Neste processo de investigação, cabe à Pe- zação da escola e das demandas práticas daí decorren-
dagogia justamente o estudo das relações educativas, seus tes. A criança passa a ser o aluno, o foco das preocupa-
mecanismos de ação e estruturas subjacentes, inevita- ções do ensino e da aprendizagem, tendo em vista
velmente inconclusas e dotadas de um elemento utópi- especialmente a aquisição dos conhecimentos já produ-
co, como característica fundamental do fenômeno edu- zidos, num momento em que ainda não se pôs em pauta
cativo. O que caracteriza a investigação educacional é, a aprendizagem como um processo construtivo.
como já dizia Sacristán (1978, p. 165-166), o fato dela Atualmente, a fronteira dos debates entre os educa-
ir perseguindo a sombra que ela mesma tem que ir dores brasileiros, sobre a própria definição deste cam-
criando. Esta peculiaridade estabelece definitivamente po, quando toma como principal objeto o ensino, no
a união teoria-prática na Pedagogia. âmbito da Didática, limita-se às instituições escolares,
deixando de fora inclusive toda uma pedagogia relativa
A própria ação nos proporciona as pistas para penetrar
aos movimentos sociais que também estabelecem rela-
num objeto tão complexo. Essa ação não pode reduzir-se ao
ções tipicamente pedagógicas nas mais diferentes práti-
espontaneísmo, porém, nunca deverá ser uma realização pro-
cas sociais.
veniente das diretrizes de um plano rigidamente travado, e sim
As pesquisas pedagógicas têm tomado como ponto
de um programa que se vá orientando à medida em que con-
de partida a própria definição da Didática e de seu obje-
fronta as realizações com as própria previsões.
to, traçando uma delimitação que a situa no âmbito das
Entendo que uma colaboração disciplinar na inves- relações de ensino-aprendizagem. Desta delimitação
tigação educacional depende deste caráter utópico (não depende o entendimento do que há de geral na Didática
no sentido idealista ou salvacionista, mas como e o que se coloca nas didáticas específicas.
perspectivação das possibilidades educacionais deseja- No conjunto das reflexões feitas sobre esta especi-
das), e da conexão entre a investigação e a prática peda- ficidade entre os especialistas da área, Magda B. Soares
gógica inerentes aos projetos educativos em constante (apud Warde, em Freitas (org.), 1997), no início dos
transformação, típicos de um fenômeno que se caracte- anos 80, procura definir o objeto da Didática e da Práti-
riza como prática social histórica. ca de Ensino. Para ela, a prática de ensino remete-se à
especificidade de cada área de conhecimento a que se
As possibilidades de uma pedagogia refere e
da educação infantil
[...] à Didática caberia estudar a aula, procurando analisá-la e
descrevê-la como um fenômeno que apresenta certas peculia-
As origens da Pedagogia como disciplina, na mo-
ridades e regularidades, independente da diversidade de con-
dernidade, são marcadas por orientações teóricas de al-
textos em que se dá, e da diversidade de conteúdos que nela se
guns de seus predecessores (como Herbart, Dewey,
desenvolvem, atribuindo, porém, à Didática Geral a função
Claparède) que traziam, de uma forma geral, dois prin-
de subsidiar o professor a compreender a “ação pedagógica no
cípios comuns: a necessidade da alimentação de estudos
contexto escolar” e não apenas restrito ao processo ensino–
pedagógicos por disciplinas auxiliares e a crença no atre-
aprendizagem.
lamento da prática pedagógica à Psicologia para apren-
der com ela “procedimentos experimentais, bem como
seu objeto e destinatário privilegiado: a criança” (Warde, 3
Pedologia – área de estudo que buscou se afirmar na Euro-
em Freitas (org.), 1997, p. 330). pa na transição do século XIX e que pretendia o estudo natural e
Acompanhando a trajetória da constituição da Pe- integral da criança, sob o aspecto biológico, o antropológico e o
dagogia, os estudos que se propuseram a tomar a infân- psicológico.

30 Jan/Fev/Mar/Abr 2001 Nº 16
A pedagogia e a educação infantil

Esta definição, ao extrapolar os limites do ensino, lação extremamente vinculada aos processos gerais de
abre a possibilidade de relacionarmos o objeto da didáti- constituição da criança: a expressão, o afeto, a sexuali-
ca com aquele que vem a ser o objeto da educação infan- dade, a socialização, o brincar, a linguagem, o movi-
til, e que caracteriza a educação da criança de 0 a 6 anos mento, a fantasia, o imaginário, ou seja... as suas cem
em instituições de educação e cuidado. linguagens.5 Não é, portanto, o objetivo final da educa-
Para isto, faz-se necessário em primeiro lugar des- ção da criança pequena, muito menos em sua “versão
tacar que a creche e a pré-escola4 se diferenciam essen- escolar”,6 mas apenas parte e conseqüência das relações
cialmente da escola quanto às funções que assumem num que a criança estabelece com o meio natural e social,
contexto ocidental contemporâneo. Em particular na so- pelas relações sociais múltiplas entre as crianças e des-
ciedade brasileira atual, estas funções apresentam, em tas com diferentes adultos (e destes entre si). Este con-
termos de organização do sistema educacional e da le- junto de relações que poderia ser identificado como o
gislação, contornos bem definidos. Enquanto a escola objeto de estudo de uma “didática” da educação infan-
se coloca como o espaço privilegiado para o domínio til, é que, num âmbito mais geral, estou preferindo de-
dos conhecimentos básicos, as instituições de educação nominar de Pedagogia da Educação Infantil ou até mes-
infantil se põem sobretudo com fins de complementari- mo mais amplamente falando, uma Pedagogia da
dade à educação da família. Portanto, enquanto a escola Infância, que terá, pois, como objeto de preocupação a
tem como sujeito o aluno, e como o objeto fundamental própria criança: seus processos de constituição como
o ensino nas diferentes áreas, através da aula; a creche seres humanos em diferentes contextos sociais, sua cul-
e a pré-escola têm como objeto as relações educativas tura, suas capacidades intelectuais, criativas, estéticas,
travadas num espaço de convívio coletivo que tem como expressivas e emocionais.
sujeito a criança de 0 a 6 anos de idade (ou até o mo- É fato que permanece o problema relativo aos co-
mento em que entra na escola). A partir desta conside- nhecimentos específicos. Se não do ponto de vista do
ração, conseguimos estabelecer um marco diferenciador ensino, pois não é objetivo da Educação Infantil ensinar
destas instituições educativas: escola, creche e pré-es- conteúdos, o problema se coloca pelo menos do ponto
cola, a partir da função que lhes é atribuída no contexto de vista da formação dos professores de creche e pré-
social, sem estabelecer necessariamente com isto uma escola, pois a se considerar a multiplicidade de aspec-
diferenciação hierárquica ou qualitativa. Apesar da qua- tos, saberes e experiências exigidos pela criança, colo-
lidade da educação não ser aqui diretamente objeto de ca-se em questão quais domínios necessariamente devem
preocupação, é, no entanto, uma preocupação inicial fazer parte da formação do professor neste âmbito.7
desta pesquisa. As peculiaridades da criança nos primeiros anos de
Estabelecida a diferenciação supra referida, pode- vida, antes de ingressar na escola fundamental, enquan-
mos, então, por ora, afirmar que o conhecimento didáti-
co (resultante de uma ação pedagógica escolar geral e
5
do processo ensino–aprendizagem em particular) não é Esta expressão foi utilizada referindo-se à poesia de Loris
Malaguzzi: Invece il cento c’è publicada in: Edwards, C., Gandin, L.
adequado para analisar os espaços pedagógicos não-es-
i Forman, G. I cento linguaggi dei bambini. Edizione Junior, Italia,
colares. Isto não significa que o conhecimento e a apren-
1995 e recente mente publicada em português pelas Artes Médicas
dizagem não pertençam ao universo da educação infan-
como: As Cem Linguagens da Criança.
til. Todavia, a dimensão que os conhecimentos assumem 6
Venho trabalhando com esta categoria ‘versão escolar do co-
na educação das crianças pequenas coloca-se numa re-
nhecimento’ para identificar a forma parcializada e fragmentada que
o conhecimento toma ao ser traduzido para o currículo e o ensino na
escola.
7
4
Neste caso, tratarei indistintamente da creche e da pré-esco- Não me cabe aqui discutir os domínios da formação, porém
la como instituições de educação infantil, sem contudo, ignorar a dis- acredito que a identificação da produção que tem contribuído para a
tinção de suas origens e configurações. constituição deste campo pode apresentar indicativos nesta direção.

Revista Brasileira de Educação 31


Eloisa Acires Candal Rocha

to ainda não é “aluno”, mas um sujeito – criança em duzir.8 Se tomar a escola como local privilegiado para a
constituição –, exige pensar-se em objetivos que con- formação significa partir do “conhecimento do mais sis-
templem também as dimensões de cuidado e outras for- temático e desenvolvido” para entender “o menos siste-
mas de manifestação e inserção social próprias deste mático e desenvolvido” (Freitas, 1995, p. 38), fazer o
momento da vida. Estes objetivos não são antagônicos movimento inverso pode revelar características e pecu-
aos objetivos do Ensino Fundamental, principalmente liaridades de outros contextos educativos em processo
se considerarmos as crianças de 7 a 10 anos alunos das de constituição. Esta convicção me leva a compreender
séries inicias. Considero, inclusive, que estes objetivos que cada uma destas instituições (escola e pré-escola)
(e muitos outros definidos para a creche, a pré-escola e detêm especificidades próprias relacionadas a sua his-
o Ensino Fundamental) tenham elos comuns. Ousaria tória, organização, finalidade etc., que merecem abor-
até dizer que uma mesma orientação nesses níveis po- dagens específicas.
deria favorecer o rompimento com parâmetros pedagó- Apresentando componentes de interesse comum,
gicos estabelecidos apenas a partir de uma “infância em esses espaços educativos relacionados à educação e à
situação escolar”, incorporando parâmetros resultantes criança, independentemente de sua limitação etária (es-
das novas formas de inserção social da criança em insti- colar ou não), necessitam, a meu ver, estabelecer maior
tuições educativas tais como a creche e outras modali- diálogo entre si, o que pode inclusive potencializar as
dades nesta faixa etária. Alguns exemplos destes novos influências no sentido inverso do que tem se dado tradi-
parâmetros seriam, o fortalecimento da relação com a cionalmente, ou seja, da educação infantil para a escola,
família na gestão e no projeto pedagógico, bem como a já que o aluno é antes de tudo a criança em suas múlti-
ênfase nos âmbitos de formação relacionados à expres- plas dimensões.
são e às artes. Por ora, a predominância que os estudos da edu-
Não é por acaso que prefiro o termo educar no con- cação brasileira dão à escola indica a necessidade de
texto da Educação Infantil. Este termo parece dar um enfatizar os contextos não-escolares, neste caso, a Edu-
caráter mais amplo que o termo ensinar que, em geral, cação Infantil, ainda como forma de fortalecimento e
refere-se mais diretamente ao processo ensino-aprendi- definição de um campo particular, sem perder de vista,
zagem no contexto escolar. Como já disse, o aspecto contudo, esses relacionamentos mais genéricos, pois o
cognitivo privilegiado no trabalho com o conteúdo es- estudo de uma Pedagogia da Educação Infantil não pode
colar, no caso da Educação Infantil, não deve ganhar desvincular-se do âmbito ao qual pertencem: uma Pe-
uma dimensão maior do que as demais dimensões en- dagogia da Infância e a Pedagogia de maneira geral,
volvidas no processo de constituição do sujeito-criança, uma vez que ela mesma inclui diferentes sujeitos e di-
nem reduzir a educação ao ensino. De fato, em meu en- ferentes contextos educativos, como bem alerta
tender, isto deveria valer também para as séries iniciais Riccardo Massa (1997): “A Pedagogia não se preocu-
do Ensino Fundamental, embora seja o “ensino” o seu pa só com a criança.[...].
objetivo precípuo. Cabe, então, indagar, a esta altura da discussão:
Na educação das crianças menores de 6 anos em valeriam para a Educação Infantil parâmetros pedagó-
creches e pré-escolas, as relações culturais, sociais e gicos escolares, estabelecendo-se apenas diferenciais
familiares têm uma dimensão ainda maior no ato peda- relativos à faixa etária?
gógico. Apesar do compromisso com um “resultado es-
colar” que a escola prioriza e que, em geral, resulta numa 8
A publicação brasileira: M. M. Campos & F. Rosemberg, Cri-
padronização, estão em jogo na Educação Infantil as
térios para um atendimento em creches que respeite os direitos fun-
garantias dos direitos das crianças ao bem-estar, à ex- damentais da criança (MEC/SEF/COEDI, 1995) expressa aqueles
pressão, ao movimento, à segurança, à brincadeira, à direitos os quais se têm colocado entre nós como os indicadores de
natureza, e também ao conhecimento produzido e a pro- uma educação de qualidade para as crianças de 0 a 6 anos.

32 Jan/Fev/Mar/Abr 2001 Nº 16
A pedagogia e a educação infantil

Minha tendência neste momento é responder: defini- ELOISA ACIRES CANDAL ROCHA, doutora em educação
tivamente não, uma vez que a tarefa das instituições de pela Faculdade de Educação da Unicamp, é professora adjunta do
educação infantil não se limita ao domínio do conhecimen- Centro de Ciências da Educação da UFSC, coordenadora do Núcleo
to, assumindo funções de complementaridade e socializa- de Estudos e Pesquisas em Educação de 0 a 6 anos dessa Universida-
ção relativas tanto à educação como ao cuidado e tendo de, e coordenadora do GT de Educação de 0 a 6 anos da ANPEd.
como objeto as relações educativas – pedagógicas9 estabe- Publicou A pesquisa em educação infantil: trajetória recente e pers-
lecidas entre e com as crianças pequenas (0 a 6 anos). pectiva de consolidação de uma pedagogia da educação infantil (NUP/
De fato, a multiplicidade de fatores que estão pre- CED/UFSC, 1999).

sentes nestas relações, sobretudo nas instituições res-


ponsáveis pelas crianças pequenas, exigem um olhar Referências Bibliográficas
multidisciplinar que favoreça a constituição de uma Pe-
dagogia da Educação Infantil e tenha como objeto a pró- BRANDÃO, Zaia, MENDONÇA, A. W. (org.), (1997). Por que não
pria relação educacional–pedagógica, expressa nas ações lemos Anísio Teixeira; uma tradição esquecida. Rio de Janeiro:
intencionais que, diferentemente da escola de Ensino Ravil, (Coleção da Escola e Professores).
Fundamental, envolvem além da dimensão cognitiva, re- FREITAS, Luís C., (1989). A questão da interdisciplinariedade: no-
pito, as dimensões expressiva, lúdica, criativa, afetivas, tas para a reformulação dos cursos de pedagogia. Educação e
nutricional, médica, sexual etc. Acredito que a extensão Sociedade, v. 10, n. 33, p.105-131, ago.
desta perspectiva pode influenciar a escola e passar a
, (1985). Notas sobre a especificidade do pedagogo e
constituir uma Pedagogia da Infância (0 a 10 anos). Mas
sua responsabilidade no estudo da teoria e prática pedagógica.
fiquemos alertas. Por se referir a instituições educati-
Educação e Sociedade, v. 7, n. 22, p. 12- 19, set.-dez.
vas, toda Pedagogia da Educação Infantil traz à tona as
velhas ambivalências: liberdade/subordinação, depen- , (1987). Projeto histórico, ciência pedagógica e “didáti-
dência/autonomia, atenção/controle, inerentes à relação ca”. Educação e Sociedade, n. 27, p. 122-140, set.
infância e Pedagogia. , (1995). Teoria pedagógica: limites e possibilidades.
Acredito que há algo de genérico no conhecimento Idéias. São Paulo, F.D.E., p. 37-46.
pedagógico que sempre estará em relação com suas di-
FREITAS, Marcos Cézar (org.), (1997). História social da infância
mensões mais particulares e vice-versa. A acumulação
no Brasil. São Paulo: Cortez Editora & Bragança Paulista: USF.
da produção científica da Educação Infantil certamente
traz para a Pedagogia questões que são pertinentes aos GOUVEIA, Aparecida J., (1976). A pesquisa sobre educação no Bra-

seus problemas gerais. O mesmo se pode afirmar, por- sil: de 1970 para cá. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Funda-

tanto, sobre o relacionamento de dimensões específicas ção Carlos Chagas, n. 19. dez.

entre si, que também têm uma influência na constitui- , (1994). Notas a respeito das diferentes propostas me-
ção do campo de conhecimento estudado. todológicas apresentadas. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fun-
dação Carlos Chagas, n. 49, p. 67-70, maio.

KUHLMANN JR., Moysés, (1998). Infância e educação infantil:


uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação.

KUHN, Tomás S., (1992). A estrutura das revoluções científicas.


9
O termo “educacional – pedagógico “ tem sido utilizado por São Paulo: Editora Perspectiva.
Maria Lúcia Machado para explicitar as diferentes dimensões desta MASSA, Riccardo, (1988). La fine della pedagogia nella cultura
relação no plano político, institucional e pedagógico propriamente contemporanea, Milano: Unicopli.
dito (com caráter de intencionalidade definida, planejada e sistemati-
, (1990). Instituzioni di pedagogia e scienza
zada da ação junto à criança)., conforme pode ser visto em MEC/
dell’educazione. Roma/Bari: Laterza.
COEDI, 1996.

Revista Brasileira de Educação 33


Eloisa Acires Candal Rocha

, (1997). Entrevista. Gravada em vídeo. Florianópolis – PIMENTA, S.G., (1996). Pedagogia, ciência da educação? São Pau-
SC, out. lo: Cortez.

MAZZOTTI, Tarso B., (1996). Estatuto de cientificidade da pedago- WARDE, Miriam, (1990). O papel da pesquisa na pós-graduação em
gia. In: PIMENTA, S. G. (coord.) Pedagogia, ciência da educa- educação. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos
ção? São Paulo: Cortez, p. 13-37. Chagas, n. 73, p. 67-75, mai.

MEC/SEF/DPE/COEDI, (1996). Propostas pedagógicas e currículo , (1995). O estatuto epistemológico da didática. Idéias.
em educação infantil. Brasília. São Paulo : F.D.E, p. 46-53.

NOGUEIRA, Adriano M. (org.), (1994). Contribuições da interdis- SACRISTÁN, José G., (1978). Explicación, norma y utopía en las
ciplinaridade para a ciência, para a educação e para o traba- ciencias de la educación. In: ESCOLANO, A. et al. Epistemolo-
lho sindical. Petrópolis- RJ: Vozes. gia y educación. Salamanca: Sigueme.

34 Jan/Fev/Mar/Abr 2001 Nº 16

Você também pode gostar