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A partida do Rei do Azevinho e a chegada do Rei do Carvalho –

Um mito de Yule
Por Lulu Saille – Sacerdotisa da Tradição Diânica Nemorensis
Em meio à temível escuridão do Inverno, a Deusa voltou Seus olhos para a Terra. Avistando a
calma, inerte e peculiar beleza que repousava nas árvores sem folhas, na neve que cobria o solo e em
Suas criaturas, agora reunidas em suas cavernas e casas para fugir do frio, resolveu descer ao Mundo
para dar fim ao implacável período mortal que se estendia sobre todas as formas viventes.
Embora soubesse que o florescer e frutificar da Terra, bem como a gestação da nova Criança,
haviam Lhe deixado cansada e que o tempo de escuridão fosse, então, mais do que necessário, a
Senhora sabia que, acima de tudo, os Ciclos da Vida eram tão belos e poderosos quanto os Ciclos da
Morte, e começavam a agitar-se nas profundezas do solo, lutando contra o inverno gelado para
renascer. Ela sabia que era momento de retirar, finalmente, Seu manto branco que se estendia pelas
florestas e vales, abrindo espaço para que estes pudessem tornar-se novamente verdes, pulsantes com
energia vivente.
A noite era a mais longa e mais escura que já havia se visto. Movimentando-se com dificuldade
devido aos avançados estágios de Sua gravidez, a Mãe de todas as coisas adentrou a floresta negra,
buscando Aquele que comandava esta época do ano. Calmo, silencioso e taciturno, o Rei Azevinho
esperava-A em meio às árvores nuas. Sua coroa de viçosas folhas verdes e os rubros frutos que a
cobriam pareciam um tesouro em meio aos galhos secos espalhados por toda a parte, como se uma
estranha magia os tivesse conferido o poder de sobreviver a estes difíceis tempos. Seus olhos eram
firmes, Seus lábios cerrados pareciam esboçar um sorriso incompreensível, resistente, único. A
Portadora da Vida sabia que seria difícil convencê-Lo a retirar-se. No entanto, ao sentir a Criança da
Vida mover-se em Seu ventre, Ela tinha certeza: era chegado o momento.
Após uma breve saudação carregada de poder, a Deusa voltou Seus olhos para o Oeste, mostrando
ao Deus Azevinho a direção que Ele deveria tomar. Não se podia ver nada além de um caminho
tortuoso que terminava em escuridão. “Por que eu deveria ir?”, perguntou Ele. “Os tempos devem
mudar”, respondeu a Deusa, “e aqueles que um dia governaram devem ceder lugar à nova vida, para
que o equilíbrio no mundo seja restabelecido. Você sabe disso tão bem quanto Eu.”
O Deus contemplou a calma da floresta, num gesto que pareceu durar tanto quanto a nota de uma
harpa ecoando em uma sala vazia. “Eu não posso ir”, disse Ele, “não agora. Você, Senhora, que vê
além da tristeza, sabe que este é também um belo tempo. Repare no suave amor com que o gelo beija
a Terra, e na esperança de Minhas verdes folhas, que mostram Minha soberania, exercida com
direito e propriedade”.
A Deusa sorriu. Seus lábios pareciam compreender o Rei do Gelo, mas demonstravam uma
sabedoria ainda maior do que a dele. Ela disse: “Belas são as Suas palavras, Meu filho e amigo. No
entanto, não se esqueça: a Terra deixa-se beijar, mas pode envolvê-Lo no mais mortal e eterno dos
abraços. E o que será de Suas verdes folhas quando a escuridão eterna roubar delas o brilho que as
sustenta? Sem a ajuda da Criança que se prepara para tomar o Seu lugar, você não terá mais coroa,
nem trono.”
“Criança! Minha Amada, Minha Mãe, Minha Senhora! Olhe para Mim; veja a sabedoria dom
tempo estampada em Minha face, em Meus olhos, em Minha barba! Por que Eu, que Sou o Senhor do
Conhecimento, devo ser substituído por uma Criança?” – disse o rei Azevinho, gargalhando. “Que
poder pode tão pequena e inocente criatura ter, que seja maior do que o Meu?”
Ela quase deixou levar-se pelas palavras do Senhor da Morte, mas sabia: Ele podia ser ousado o
bastante para manipular palavras e tentar convencer a Ela, que O havia gerado; mas não havia palavras
que pudessem convencer a Senhora de Todos os Ciclos a agir contra Sua própria natureza. Ela
respondeu-Lhe da maneira mais coerente, e, portanto, mais verdadeira: “O Filho que espero pode ser
agora pequeno, mas tem tanto poder quanto Você próprio, uma vez que ambos foram gerados em
Meu condescendente ventre, e conhecem igualmente Meus Mistérios. Nós sabemos: Ele crescerá. Ele
o faz até mesmo enquanto dialogamos, e torna-se cada vez mais próxima a hora de Seu nascimento. E
à medida que crescer, terá cada vez maior poder para degelar esta neve sobre nossos pés. E então, eu
vestirei Meu manto de beleza para saudá-Lo, para amá-Lo, de modo a restituir a vida e abundância a
todas as minhas Criaturas.”
“Eu não o vejo crescer”, disse o rei do Inverno, estendendo Suas mãos para recolher alguns flocos
de neve que caíam dos céus. “Vejo apenas neve, gelo e frio. Vejo o Inverno.”
“Você mesmo disse que vejo além da tristeza. Pois bem, é verdade. Meus olhos veem além da neve,
e meus ouvidos escutam as árvores sussurrarem enquanto seus galhos se tocam. Preste atenção,
Filho, repare no som dos carvalhos brotando sobre a neve, tão lentamente, tão suavemente!” A Deusa
apontou para baixo, e de Suas mãos pareceram surgir pequenas fagulhas, que desceram até o solo,
abrinsdo espaço na neve e mostrando ao Deus os pequenos brotos quase invisíveis que cresciam sobre
o gelo. “Tudo vai, e tudo vem. Tudo morre, tudo renasce. Enquanto você reina, a vida lentamente
caminha em Sua direção, clamando por espaço. Até mesmo Eu, que Sou a Senhora de Todas as
Coisas, deixo a vida preencher-Me!” E colocando as mãos em Seu ventre pleno, a Deusa convenceu,
enfim, o Rei do inverno de que a Morte e a Vida pareciam ser opostas, mas eram irmãs, filhas Dela
mesma, Senhora daquilo que é, foi e ainda será. “Receba comigo a Criança da Promessa, e recolha-
se, Sábio Azevinho, pois chegará também o Seu momento de retornar.”
A Deusa deu alguns passos em direção ao Leste, e assim permaneceu por alguns instantes, de modo
que o Rei Azevinho via apenas Suas costas. Subitamente, um clarão surgiu em frente à Deusa, que
cantava. A Luz era tão forte que Ele teve que cerrar os olhos. A Senhora então voltou-se para Ele. Nos
braços da Grande Mãe, havia um pequeno bebê, de onde vinha o brilho e a luz da Vida. Ele era tão
belo, que fez o Rei Azevinho sorrir.
“A Criança da Promessa retornou”, disse a Mãe dos Deuses. “Vamos saudá-la, pois agora temos a
certeza de que a vida se derramará novamente sobre a Terra. O Rei Carvalho deve agora governar.
E você, Rei Azevinho, deve ir agora. Nós o agradecemos por ter protegido o mundo durante este
período de escuridão, e desejamos harmonia em Sua jornada rumo às terras além do Oeste. Nós
cuidaremos de Seu Reino, e aguardaremos também o Seu retorno, quando for o momento do Rei
Carvalho despedir-se para que a vida continue, assim como Você agora o faz. Tudo o que vai deve
um dia retornar. Lembremos-nos sempre desta máxima sagrada.”
Com as palavras e as bênçãos da Senhora, o Rei Azevinho entregou sua coroa à floresta e partiu em
direção aos caminhos do Oeste, de onde, como proferiu a Deusa, Ele um dia retornará. Mas isso é
parte de outra história... por enquanto, saudemos o Rei Carvalho e abracemos, com vontade, a nova
vida. Feliz Yule!

O mito do Rei Carvalho e do Rei do Azevinho é um dos mais tradicionais nas épocas de Litha e
Yule. Enquanto em Litha, o Rei Carvalho é desafiado pelo Rei Azevinho, que chega para governar a
metade fria e escura do ano, o contrário ocorre em yule. A noite mais longa do ano nos lembra que a
Luz retorna ao mundo. Os dias serão cada vez mais longos, e em breve o Sol voltará a nos aquecer e
trazer vida de volta à Terra.
Assim como o rei Azevinho finalmente se convence de que a Criança da Promessa deve governar,
deixemos-nos inspirar por este mito e celebrar nossa Criança interior. Vamos celebrar a vida, a
esperança e a promessa de dias mais quentes, melhores, com mais amor e beleza. Sejam abençoados!

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