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A CONCEPÇÃO DE DIREITO EM HART E DWORKIN: ANÁLISE DO

ATUAL ESTÁGIO DA DISCUSSÃO ENTRE OS AUTORES E IMPACTOS NA


JURISPRUDÊNCIA NACIONAL*

THE CONCEPT OF LAW IN HART AND DWORKIN: ANALYSIS OF THE


CURRENT STAGE OF DISCUSSION BETWEEN THE AUTHORS AND
IMPACTS ON NATIONAL CASE LAW

Breno Baía Magalhães

RESUMO

Com o passar dos anos, muito já foi discutido a respeito do embate filosófico travado
entre Hart e Dworkin. Todavia, muitas dúvidas ainda circundam os principais pontos de
divergência entre os autores, em especial após a exposição das ideias de Dworkin na
obra O Império do Direito e da resposta de Hart em seu pós-escrito póstumo. Dessa
forma, observa-se que a discussão central entre ambos é a separação entre Direito e
Moral, assim como a implicação dessa na interpretação do direito e da existência, ou
não, da discricionariedade judicial. Partindo dessa premissa, e analisando alguns
julgados do poder judiciário brasileiro, podemos perceber quais as concepções acerca do
direito adotadas por nossos Tribunais.

PALAVRAS-CHAVES: HART; DWORKIN; POSITIVISMO;


DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL; INTERPRETAÇÃO DO DIREITO;
CONCEITO DE DIREITO; JURISPRUDÊNCIA

ABSTRACT

Over the years much has been discussed about the philosophical clash held between
Dworkin and Hart. However, many doubts still surround the main points of the
disagreement between the two authors, especially after Dworkin published The Law´s
Empire and the response of Hart in his posthumous postscript. Thus, it is clear that the
central debate between them is the separation between law and moral and its
implications on the interpretation of the law and the existence or not of judicial
discretion. On that premise, and considering some jurisprudence from the higher curts
in Brazil, we can see which conceptions of law are adopted by our courts.

KEYWORDS: HART; DWORKIN; POSITIVISM; JUDICIAL DISCRETION;


INTERPRETATION OF LAW, CONCEPT OF LAW, JURISPRUDENCE

INTRODUÇÃO

*
Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo –
SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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Sem dúvidas, o embate filosófico entre Hart e Dworkin foi um dos mais acirrados e
importantes debates travados no mundo jurídico do século XX. Muitos trabalhos foram
escritos acerca deste debate, expondo o pensamento dos autores e apontando as
divergências entre eles. Por isso, pergunta-se: ainda é pertinente revolver este tão
decantado assunto neste começo de século?

Para responder a pergunta acima é necessário, em primeiro lugar, contextualizar


o debate, ou seja, apontar o ponto nevrálgico em que os autores, efetivamente,
divergem. Dessa forma, imperioso analisar as recentes obras dos autores e esclarecer,
desde as sutis, às substanciais alterações que os autores fizeram ao longo dos anos, e
que aparecem descontextualizadas ou não percebidas pela maioria dos autores
nacionais[1]. Nesse sentido, ao encontrar o ponto específico em que divergem os
autores, poderemos analisar de como o judiciário, em especial, nossos Tribunais
Superiores interpretam o direito, ou melhor, qual concepção do direito adotam no
momento da decisão. Através desse exercício, tornar-se-á mais fácil de perceber qual
dos dois autores “venceu” o debate, na medida em que o tema ainda é alvo de muitas
controvérsias no âmbito acadêmico e sua repercussão na prática jurídica é de suma
importância para a legitimidade das decisões do Judiciário.

1. A CONCEPÇÃO DE HART SOBRE O FENÔMENO JURÍDICO

1.1. O que é Direito?

Os primeiros capítulos da obra O conceito de Direito visam superar algumas


formulações positivistas construídas ao longo dos anos sobre o Direito, em especial a de
autores ditos aquelas de Austin e Kelsen (HART, 1986, p.6)[2]. Com efeito, através das
críticas às concepções acerca do Direito em voga na época, Hart propôs um conceito
universal, que pudesse ser adequado a quaisquer sistemas jurídicos vigentes numa
sociedade complexa moderna.

Partindo deste pressuposto, Hart acentua que a profusão de inúmeros conceitos daquilo
que poderia ser considerado direito é perpetrada por equívocos acerca da formulação de
sua natureza essencial (1986, p. 5). Nesse sentido, o problema de definições anteriore é
que estas se ocuparam apenas de alguns aspectos pontuais do fenômeno jurídico,
olvidando de outros focos importantes. Ainda que confirme a impossibilidade de
formular uma teoria que descreva, de forma efetiva, todas as nuances do Direito, Hart se
esforça em abarcar a inteireza do fenômeno jurídico, com o fito de acolmatar algumas
lacunas de certas teorias jurídicas, ou seja, busca fundamentar a existência e o alcance
de todas as espécies de regras existentes e as conseqüências de sua aplicação.

No intuito de esclarecer sua teoria, bem como demonstrar as falhas daquelas que lhe
precederam, o autor lança algumas questões que estão presentes em todos os
ordenamentos jurídicos existentes, quais sejam: Já que algumas condutas humanas não
são mais facultativas, mas sim obrigatórias em certo sentido, como o direito pode se
diferenciar de ordens baseadas em ameaças e como se relaciona com essas? 2) como se
estabelece a estreiteza entre a obrigação jurídica e a moral? Por outras palavras: em que

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condição uma conduta pode ser considerada como obrigatória e não facultativa? 3) o
direito pode ser considerado como uma união de regras? O que elas são e como surgem?
(HART, 1986, p.10-18)

Para responder às questões propostas, Hart argumenta utilizando o exemplo do


assaltante na situação de um assalto à mão armada. Afirma, contrariando a teoria que
identifica o direito com ordens coercitivas, que o assaltante não poderia impor ordens,
uma vez que não dispõe de direito legítimo para tanto. Com efeito, o comando não se
baseia no mal que se pode infligir àquele que o descumprir, mas sim por respeito à
obediência hierárquica existente nas relações interpessoais. Austin diz que a ordem do
assaltante é um comando, uma vez que dirigido a uma única pessoa. Neste passo, a
imposição de condutas por funcionários não é o método padrão do direito, daí existirem
leis gerais e abstratas que dão conta das condutas sociais. O aspecto de ordenação de
condutas específicas a um indivíduo é secundário, pois não é função da lei ordenar que
algo seja feito. Por exemplo, caso o assaltante reproduza sua fala em uma sala vazia,
não lograria êxito por falta de interlocutores, ainda que esta fala se considere como um
comando. Ou seja, o assaltado é obrigado pela conduta do meliante de infligir-lhe um
mal imediato, contudo, não tinha a obrigação jurídica de fazê-lo (HART, 1986, p. 26-
31).

Tem-se que, primeiramente, para configurar uma regra, eleger determinada conduta
como um padrão. Determinar que alguém está sujeito a uma obrigação indica que existe
uma regra. Mas o inverso, nem sempre, é verdadeiro. As regras são concebidas e
referidas como impondo obrigações quando a procura geral de conformidade com elas é
insistente e a pressão social é grande sobre aqueles que se desviam delas. Esta pressão
está intimamente determinada à manutenção de um aspecto importante para a vida
social, ademais, ela determina uma cadeia vinculante que limita as ações humanas
(HART, 1986, p.95-98).

A existência da pressão não determina, todavia, a interiorização das pressões sociais. Há


de se observar o importante aspecto interno das regras, consubstanciado pelo modo
como o grupo social encara seu próprio comportamento, ou seja, seu posicionamento
crítico em relação às regras sociais que praticam (HART, 1986, p.98). Ou seja, a teoria
do direito como ordem coercitiva apenas vislumbra o aspecto externo das regras (dando
a falsa impressão de que as pessoas agem com receio de prováveis retaliações nos
desvios de condutas regradas), mas desconsidera que um sujeito pode não sentir-se
obrigado a realizar uma ação, não obstante tenha de fazê-la em nome da higidez do
regramento social.

Outro aspecto importante eu sua teoria, diz respeito aos diversos conteúdos das
leis e a refutação da tese de que as regras seriam apenas aquelas que estatuem sanções
punitivas no caso de seu descumprimento. Com efeito, ao tratar das diferenças do
conteúdo das leis, Hart (1986, p. 40) afirma que uma lei criminal ou que imponha a
responsabilidade civil se contrapõem às leis que determinam a feitura e a realização de
um contrato, porquanto as últimas não impõem deveres e obrigações. Salienta a
importância de se considerar o caráter relativo à função social da lei para que lhe se
diferencie das demais, como uma lei penal e uma civil, por exemplo. Nesse sentido,
exemplifica o papel informativo e limitador das leis processuais, que, não indicando a
abstenção ou realização de algum comportamento por parte do juiz, apenas apontam
balizas para sua decisão e que não impõem sanções punitivas ao juiz que as descumpre.

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Em função da diferença de conteúdo das regras, existe, igualmente, uma distinção entre
os atos nulos praticados por particulares e as decisões de Tribunais que violam leis
processuais acerca de sua competência jurisdicional. O primeiro ato não produz efeitos
jurídicos, já o outro ato, não sendo impugnado devidamente, será juridicamente válido e
passível de execução. Ou seja, a nulidade se apresenta como o não preenchimento de
uma condição essencial para o exercício de poder outorgado pelas leis, retirando
eficácia jurídica ao ato. Impertinente, portanto, sua identificação com uma sanção
criminal, por instância

Arremata, por fim, que as leis criminais determinam um comportamento indesejado pela
sociedade, por isso que são impostas graves sanções punitivas ao infrator. No caso das
leis civis que regulamentam determinadas condutas, ainda que seja possível nulidade do
ato que exterioriza a conduta, esta é encorajada e prevista pela lei.

Em seguida, o autor expõe sua teoria de que o direito resulta da combinação de regras
primárias de obrigação e secundárias de reconhecimento, mudança e adjudicação
(HART, 1986, p. 89).

As regras, portanto, se dividem em dois tipos: uma regra primária, que se define como
aquela que estatui deveres e direitos e a secundária, que possibilita que sejam criadas as
segundas, ao atribuir poderes. As regras primárias indicam ações que envolvem
movimento; as do segundo tipo conduzem não só ao movimento, mas às alterações de
deveres ou obrigações. Desta forma, para se chegar ao que seria direito, há de se efetivar
a junção destas regras (HART, 1986, p. 103). Salienta que esta compreensão não é
exaustiva do direito, contudo pode ser um caminho importante para se desenvolver
respostas às principais questões que causam perplexidade aos juristas (HART, 1986,
p.109).

Para que um hábito seja considerado uma regra, demandará tempo sem possibilidade de
determinação precisa de seu início, e o inverso também é verdadeiro. Um processo de
enfraquecimento desta regra demandará um tempo enorme, tornando certos hábitos
estáticos. E o terceiro e último problema é o da eficácia. Trata-se da necessidade de
impor os castigos às violações às regras, impostas por órgãos autorizados para dar real
efetividade às regras.

Para que se resolvam esses problemas, e determinar o aspecto jurídico das regras, é
necessário que se incorporem as regras secundárias às primárias (HART, 1986, p. 102).
Para a crise de incerteza, se acoplam às regras primárias, as regras secundárias de
reconhecimento. Estas determinam se uma regra é de determinado grupo social, a qual
deve apoiada pela pressão social que ele exerce. Este reconhecimento, além de dirimir a
incerteza, agrega o fato da validade das regras (HART, 1986, p. 104).

Para o problema da estática, cria-se o regime das regras de alteração. Que, em miúdos,
determina que algumas regras sejam destinadas a alguns indivíduos para que insiram ou
alterem as regras primárias (HART, 1986, p. 105).

Para remediar a ineficácia da pressão social difusa, são necessárias as chamadas regras
de julgamento, que também servem para determinar que alguns indivíduos detenham o
poder de julgar, de maneira definitiva, e com legitimidade, se houve violação à regras
primárias (HART, 1986, p. 106).

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1.2 A interpretação do direito em Hart: a textura aberta das regras e a
discricionariedade judicial.

Após a exposição acerca do entendimento de Hart do que seria o Direito, cumpre


explicitar de que modo esta concepção implica na interpretação das regras por ele
propostas. Antes de prosseguir na explicação da interpretação do Direito em Hart,
entendemos, por oportuno, esclarecer que suas explanações nessa área visam combater
o realismo e o formalismo jurídico e seu cepticismo em relação às regras e à
interpretação do direito[3]

Argumenta que as regras gerais, e não os mandamentos individuais determinados para


cada indivíduo, é que devem ser o principal instrumento de controle social, uma vez que
são importantes a abstração e generalidade das regras jurídicas como forma de
padronização das condutas sociais[4]. A textura aberta das regras advém, por sua vez,
dos termos gerais aplicados para prescrever as condutas. Nesse passo, como modelos de
comunicação de tais padrões de condutas, temos as leis e os precedentes. Todavia,
afirma:

Mesmo quando são usadas regras gerais formuladas verbalmente, podem, em casos
particulares concretos, surgir incertezas quanto á forma de comportamento exigido por
elas. Portanto, os limites de aplicação do âmbito da regra são de linguagem. Esta não
pode enunciar todos os casos em que pode ser aplicada, nem os fatos podem ser
rotulados previamente como sendo subsumidos à regra. No mesmo sentido, os cânones
interpretativos possuem limites igualmente lingüísticos, na medida em que os próprios
precisam ser interpretados para que se extraia o exato significado dos termos
lingüísticos da regra (HART, 1986, p.139).

Hart conclui que, como não há uma convenção acerca das possibilidades de significados
que um termo pode ter, o intérprete deve fazer uma escolha entre qual significado
aplicar (1986, p.140). Nesse sentido, podemos observar que o autor prega um poder
discricionário aberto pelos limites apresentados pela linguagem. Salienta, ademais, que
determinados aspectos dos casos individuais variarão sobremaneira do padrão geral
estabelecido pelas regras, em contextos socialmente importantes (mas imprevisíveis),
que não poderão ser criadas pelo poder legislativo, de forma antecipada, regras
uniformes a serem aplicadas caso a caso. Pondera, afinal, que essa situação implica que
não existe (simplesmente porque não foi anteriormente contemplada) uma resposta certa
e adequada para um caso concreto difícil.

Esta problemática, além de surgir na lei, se apresenta nos precedentes. Neste passo, Hart
atesta a função criadora dos tribunais, pois estes criam o direito na mesma medida em
que os funcionários da administração o fazem com sua competência de editar atos
administrativos para dar concreção a uma determinada lei. Todavia, os juízes devem
manter os padrões estabelecidos pela regras de reconhecimento, sendo impossível a
criação de diretrizes padronizadas pelo próprio judiciário, como quer o realismo
jurídico. Os limites de sua interpretação discricionária estariam, portanto, nas leis. Estas
limitam a discricionariedade, mas não a exclui, afirma o autor (1986, p. 155-161).

2. A CONCEPÇÃO DE DWORKIN SOBRE O FENÔMENO JURÍDICO.

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Em sua obra O império do Direito, Dworkin descreve a concepção que entende que
deve ser aplicada para explicar o fenômeno jurídico. Como ponto de partida, o filósofo
estabelece uma premissa inicial de que, na prática, existe divergência quanto à
interpretação do que seria o direito, ou melhor, uma divergência sobre a interpretação
daquilo que constitui o fundamento do direito em relação a determinadas proposições
jurídicas[5] trazidas pelos atores jurídicos (1999, p. 8-10). Com efeito, aponta o autor, a
divergência pode ocorrer em alguns aspectos, mas não em casos centrais – a maioria das
divergências é teórica e não empírica, ou seja, sobre os fundamentos do direito e não
acerca dos fatos que o constituem. O autor demonstra que na maioria dos casos não
existem divergências quanto aos fatos históricos – todos os juízes estão concordes com
aqueles, porém a divergência quanto à decisão persiste. Esta situação nos faz
demonstrar que o âmbito da divergência é outro, ou seja, o problema está circunscrito às
teorias interpretativas a serem utilizadas pelos juízes na aplicação do direito
(DWORKIN, 1999, p. 55-56).

Nesse passo, e conforme o salientado alhures, Dworkin (1999, p. 46) rejeita


expressamente as teorias semânticas do direito, em especial o positivismo jurídico,
porquanto esta teoria semântica está estabelecida na idéia de incompletude do
ordenamento jurídico, na medida em que não aceita que os indivíduos tenham outros
direitos, fora aqueles que estão previstos por instituições sociais específicas
reconhecidas como produtoras do Direito, além de não poder responder à questão da
divergência teórica existente no Direito.

Ademais, em contraposição à teoria de Hart, o direito deve ser considerado como uma
junção de princípios e regras, na medida em que ambas se conformam como padrões
jurídicos a serem seguidas no caso de obrigações jurídicas (DWORKIN, 2002, p. 36).
Os princípios estabelecem uma direção a ser tomada para promover ou assegurar uma
situação econômica, política ou social considerada desejável, enquanto exigência de
justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade política. Todavia,
necessitam de uma decisão particular para serem aplicados. Devem ser considerados,
nesta medida, como uma inclinação, uma razão para poder decidir algo. Os princípios
têm peso (2002, p. 42), o que as regras não têm. Aqueles não determinam sempre quais
as obrigações que o pleiteante possui, apenas indicam ou prescrevem determinados
comportamentos. Como as regras operam no campo da validade, seus conflitos são
resolvidos pelos critérios de resolução das antinomias (2002, p. 39).

2.1. O direito como integridade.

Dessa forma, a fim de buscar a melhor concepção a ser utilizado pelo direito, Dworkin
(1999, p. 112-120) se propõe a estudar duas concepções do direito que se afastam da
perspectiva semântica e analisa se elas se adéquam ao primado de trazer o direito,
enquanto conceito interpretativo, a sua melhor luz. O autor salienta que para que haja
divergência de concepções acerca de algo, tem de haver, inicialmente, um mínimo de
consenso a respeito de algum elemento constitutivo do objeto interpretado (1999, p. 86-
88). Nesse passo, aquilo que o autor aponta como consenso nas teoria é a força
coercitiva do direito. Portanto, a concepção mais adequada deve apontar uma melhor
justificativa e fundamentação para o uso da coerção por parte do Estado (1999, p.116).

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A primeira destas concepções é a convencionalista. Segundo esta doutrina, o direito está
ligado às convenções sociais, de modo que todo direito está assentado nas decisões
políticas anteriores e os juízes devem, portanto, obrigatoriamente segui-las. Contudo,
diferente das teorias semânticas, não quer dizer que o juiz não possa superar os
paradigmas quando não haja precedente anterior quando for julgar determinado caso.
Nessas situações não existe o direito, o direito é criado e aplicado de forma retroativa de
acordo com uma decisão discricionária do juiz laçando mão de argumentos
extrajurídicos. Como o juiz deve se eximir de decidir de acordo com suas convicções
morais e políticas, deverá buscar a regra que teria pensado o legislador entendido como
legítimo nas convenções sociais. Todavia, esta concepção apresenta falhas
irremediáveis e deve ser descartada. Ademais, os juízes adeptos do convencionalismo
não tomariam uma decisão que pudesse alterar convenções, porque daí surgiria uma
regra diferente, o que limita sua atividade jurisdicional e de interpretação do direito em
face das sempre cambiantes estruturas sociais.

Uma segunda concepção trazida à baila por Dworkin é a pragmática. Trata-se, em sua
essência, de uma concepção cética, porque nega que as decisões políticas do passado
ofereçam justificativas suficientes e plausíveis ao uso da forca coercitiva do Estado em
determinado momento. Sua fundamentação, portanto, está na justiça ou em outros
valores importantes que serão utilizáveis para o progresso da sociedade. Os juízes, por
sua vez, são livres para escolher a regra que vão utilizar no caso em questão. Da mesma
forma que o convencionalismo, o pragmatismo falha em trazer o direito a sua melhor
luz. Nesse sentido, Dworkin pondera que o direito deve levar em consideração a
integridade moral política e considerar esses valores como diferentes do valor justiça,
portanto, para que seja alcançado há de se levar em consideração uma exigência de
preferência entre princípios, seja pelo legislador, seja pelo julgador na aplicação do
direito. Tomando por base as falhas dessas concepções, o autor lança mão de sua
própria, qual seja: o direito como integridade.

A integridade refere-se ao compromisso de que o governo aja de modo coerente e


fundamentado em princípios com todos os seus cidadãos, a fim de estender a cada um
os padrões fundamentais de justiça e equidade (DWORKIN, 1999, p. 201-202).
Segundo Dworkin (1999, p. 203), será mais fácil entender a interpretação construtiva do
Direito, se se aceitar a integridade como uma virtude política, uma vez que as
exigências da mesma se dividem em integridade na legislação (que solicita aos
legisladores que produzam leis coerentes com os princípios) e a integridade no
julgamento (que solicita aos que julgam o façam também de forma coerente com os
princípios).

Conforme o salientado por Dmitruk (2007, p 152-153), o caminho feito por Hércules
para encontrar a melhor resposta a um problema jurídico difícil é, em linhas gerais, o
seguinte: 1) encontrar, uma teoria coerente sobre os direitos em conflito, tal que um
membro do legislativo ou do executivo, com a mesma teoria, pudesse chegar a maioria
dos resultados que as decisões anteriores dos tribunais relatam; 2) Selecionar diversas
hipóteses que possam corresponder à melhor interpretação do histórico das decisões
anteriores; caso elas se contradigam é necessário encontrar uma correta; 3) Encontrar a
hipótese correta, a partir do pensamento de que o direito é estruturado por um conjunto
coerente de princípios sobre justiça e equidade e o devido processo legal adjetivo, e que
esses princípios devem ser aplicados de forma a garantir a aplicação justa e eqüitativa
do direito. A partir de uma teoria coerente sobre política e direito é possível encontrar

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uma resposta satisfatória quando princípios conflitam (DWORKIN, 1999, p. 253); 4)
Eliminar toda hipótese que seja incompatível com a prática jurídica de um ponto de
vista geral. 5) Colocar a interpretação à prova. Perguntar-se-á se essa interpretação é
coerente o bastante para justificar as estruturas e decisões políticas anteriores de sua
comunidade (DWORKIN, 1999, p. 288-294). Neste momento, Dworkin justifica o
nome de Hércules, uma vez que nenhum juiz real poderia aproximar-se da tarefa que a
ele foi confiada. Todavia, esta prática deve ser acentuada no momento de uma decisão,
para que esta se justifique politicamente e possa evitar o poder discricionário do juiz.

2.2. O poder discricionário.

Em franca oposição ao pensamento de Hart, Dworkin rejeita a idéia de que os juízes são
completamente livres para decidir os casos difíceis, como defendem os positivistas,
apoiados apenas em suas próprias considerações acerca daquilo que seria melhor para o
caso. Ou seja, refuta a idéia de que possam agir como legisladores, criando o direito
para o caso concreto de forma retroativa.

O autor, em seguida, define o poder discricionário como o poder de tomar decisões de


acordo com padrões estabelecidos por uma determinada autoridade (2002, p.50). Nesse
sentido, estabelece uma analogia com o espaço vazio dentro de uma rosca, i.e., a
discricionariedade seria um espaço vazio de decisão circundado de restrições. Em
seguida, o autor a divide em três sentidos. Os dois primeiros são os sentidos fracos e
dizem respeito à indeterminação de uma decisão de alguém submetido às ordens de
outrem e a impossibilidade de revisão da decisão que é dada em última instância,
respectivamente (2002, p. 51-52).

As criticas do autor americano se voltam, todavia, para o sentido forte de


discricionariedade. Este, por sua vez, é obtido quando a decisão a ser dada não está
limitada por nenhum padrão de uma autoridade superior (2002, p.52). Em suma, a
discricionariedade não determina que o juiz possa decidir sem seguir padrões mínimos
de bom senso e equidade, mas sempre seguindo os padrões estabelecidos pela
autoridade. No sentido forte, entretanto, a decisão dotada de discricionariedade não
pode ser equivocada por ser desobediente, pois os juízes aplicam seus próprios padrões
nos casos em que as regras não respondem, e os padrões invocados por eles não lhes
vinculam ou impõem obrigações jurídicas (2002, p. 58).

Dworkin arremata que os positivistas têm de considerar o caráter extrajurídico dos


princípios, porque a regra de reconhecimento não poderia dar justificativa a esses
padrões como jurídicos, pois não há regras que determinem sua produção ou existência.
Do mesmo modo, não podem ser elencados quaisquer princípios tomando por base o
entendimento pessoal do julgador, pois poderia significar a justificação da alteração
radical de regras socialmente enraizadas. Ademais, os julgadores não são livres para
escolhê-los, pois nenhuma regra seria obrigatória, caso pudessem elencar os padrões
principiológicos que lhes aprouvessem (2002, p.60).

Nesse sentido, Ikawa (2004, p. 113) conclui que Dworkin propõe a existência de um
dever legal do juiz de analisar de modo mais holístico as fontes da lei, inclusive no que
toca a princípios não convencionais e torna o direito capaz de alcançar mesmo casos
difíceis, fornecendo a ele critérios mais objetivos do que o mero recurso à

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discricionariedade em sentido forte. Tornando, por conseguinte, o direito capaz de
alcançar casos difíceis, sem retirar do juiz a discricionariedade em sentido fraco[6].

3. A RESPOSTA DE HART E A O ATUAL ESTÁGIO DO DEBATE HART-


DWORKIN.

3.1 O pós-escrito de Hart e a resposta a seus críticos

Na ocasião do lançamento da 2ª ed. do Livro The Concept of Law, seus editores,


Penelope A. Bulloch e Joseph Raz, aproveitaram a oportunidade para publicar o pós-
escrito que estava sendo redigido por Hart (que havia morrido poucos anos antes do
lançamento da novel edição) e respondia às críticas feitas por Dworkin, bem como a
outros críticos. De acordo com nota dos editores, o pós-escrito não estava totalmente
finalizado, na medida em que faltaram algumas citações em notas de rodapé,
ratificações de algumas citações, além de constarem alguns erros de digitação que
tornaram, por vezes, o texto incoerente e que escaparam à revisão Hart[7]. Todavia, a
publicação do texto foi a oportunidade do autor, de forma sistemática, responder (ainda
que postumamente) a seus críticos . No próprio texto do pós-escrito, Hart concorda com
alguns críticos, ao afirmar que partes de sua obra são obscuras e incoerentes e aproveita
a oportunidade para esclarecê-las e retificá-las, oportunamente (1994, p. 239).

Hart começa sua resposta, indagando que seu escopo com O Conceito do Direito difere
radicalmente daquele empreendido por Dworkin. Hart afirma que sua concepção é
descritiva (pois é moralmente neutra e não possui objetivos de justificação, ou seja, não
intenciona justificar ou criticar a partir da moral ou outras bases, as formas e estruturas
que surgem na sua discrição do direito) e geral (ao passo que não está ligada a nenhum
tipo de cultura jurídica ou sistema legal). De acordo com Hart, a obra de Dworkin é
avaliativa e justificadora, bem como está endereçada, exclusivamente, ao direito anglo-
americano. Afirma que é avaliativa, na medida em que a tarefa legal da ciência do
direito é interpretativa, e busca justificativa moral às praticas legais, através de
princípios que se encaixam melhor e são coerentes com o sistema, demonstrando o
direito sob sua melhor luz (1994, p.240- 241).

Em seguida, Hart atesta que a visão do positivismo de Dworkin leva em consideração


apenas as divergências no que diz respeito à existência ou não dos fatos (plain-fact
positivism), na medida em que o positivismo os tomaria como fundamentos das
proposições jurídicas e seus padrões estão fixados, previamente, pelo direito (1994,
p.245). Contudo, o que se observa é que, em verdade, existem julgamentos de valor e
controvérsias sobre a moral. Hart rejeita a crítica de que sua teoria estivesse fundada no
erro do positivismo, que Dworkin chama de aguilhão semântico, uma vez que em sua
teoria não está especificado que todos os sistemas legais contêm uma regra de
reconhecimento, ou que, caso o conceito de direito não fosse fixado, cada pessoa teria
uma concepção diferente dele. Aponta que Dworkin também ignora o fato de que regras
de alguns países passam pelo teste de pedigree, na medida em que se validam, também,
pelo conteúdo da regra de reconhecimento, pois tais critérios últimos de validade
incluem princípios substantivos de justiça e valores morais. Ou seja, o teste admite
valores, não apenas fatos (1994, p. 266-267).

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Acerca da discricionariedade judicial, Hart afirma que a margem de criação de direito
que atribui aos juízes é limitada por inúmeros constrangimentos a que não estão
sujeitos, por exemplo, os órgãos legislativos (1994, p. 273). Afirma, ainda, que os juízes
não podem introduzir reformas de larga escala, mas devem agir como um legislador
prudente faria, decidindo com suas próprias crenças e valores. Uma das possibilidades
da justificação da discrição seria o uso da analogia para regular casos semelhantes, pois
o juiz estaria lançando mão de uma regulamentação que está em conformidade com
princípios ou razões subjacentes, baseadas no direito existente (1994, p. 274). Segundo
Hart, sempre que julgam um caso difícil, os juízes não se desatinam a legislar de forma
desmedida, mas realizam uma atitude interpretativa semelhante aquela que Dworkin
defende, uma vez que os juízes citam qualquer princípio geral, ou qualquer objetivo ou
propósito geral, que se pode considerar relevante para determinada área do direito
(1994, p. 275). Todavia, isso não elimina o processo de criação do direito, na medida
em que o juiz deve escolher, por exemplo, a melhor analogia para o caso, confiando em
seu senso do que é melhor para o deslinde do caso. Com efeito, explica, o direito é
incompleto e, em alguns casos, não oferta nenhuma resposta. Os Tribunais devem,
portanto, exercer a função restrita de fazer a lei, chamada discricionariedade judicial.
Mesmo com a crítica de Dworkin, o autor continua a defendê-la, pois aponta que o
argumento daquele de se apoiar em juízos morais, em busca de fatos de uma
objetividade moral, seria relegar ao juiz um julgamento discricionário do que ele julga
mais correto como padrão moral ao julgar um caso. Daí afirmar sua relutância em acatar
teorias controversas acerca do status da objetividade moral.

Hart aceita a crítica de que sua teoria possibilita a aplicação do Direito ex post facto,
bem como entende injusta quaisquer aplicações retroativas do direito. Porém, nos casos
difíceis essa injustiça é mitigada, uma vez que, como esses casos foram deixados sem
regulamentação pelo direito, inexistindo, dessa forma, conhecimento prévio da
sociedade de seus direitos e deveres jurídicos, não há de se falar em expectativas
justificadas frustradas. Complementa que esta possibilidade de criação do direito não
seria antidemocrática ou injusta (1994, p. 275-276)

3.2. O atual estágio da discussão.

Com base no que foi exposto acima, pudemos identificar as formulações teóricas acerca
da concepção de direito de Hart e Dworkin, assim como sua implicação na interpretação
do mesmo para cada autor. Através das distintas formulações, podemos traçar algumas
considerações a respeito dos argumentos expendidos pelos autores e sua principal e
pontual discordância.

À época em que Hart formula suas respostas (1994), Dworkin já havia lançado sua
empreitada mais refinada ao pensamento positivista, representada pela obra The Law´s
Empire (1986), que configura um aprimoramento de seu pensamento, especialmente,
em função das respostas dos teóricos que seguiam a doutrina de Hart[8], bem como do
próprio, as suas teses expostas nos ensaios Model of Rules I e II[9].

Portanto, n ´O Império do Direto podemos observar que Dworkin não mais combate o
positivismo através do argumento de que aquele modelo não comportaria a existência de
princípios jurídicos, uma vez que a regra de conhecimento, tal como formulada por
Hart, impossibilitaria o reconhecimento daqueles padrões como jurídicos, pois seu teste
para aferição de um padrão como jurídico ou não, seria apenas de origem (pedigree) e

80
não de conteúdo. Todavia, Hart nunca limitou sua teoria apenas às regras e fez questão
de salientar isso em sua obra, permitindo que a teoria da regra de reconhecimento
pudesse abarcar princípios e valores morais, que deveriam ser levados em consideração
pelo julgador nos casos difíceis (HART, 1994, p. 263).

O que se depreende desse refinamento na teoria de Dworkin, é que o direito deve ser
considerado como um conceito interpretativo e suas disposições devem ser
interpretadas, de forma construtiva, sob sua melhor luz, para que se possa justificar a
utilização da coerção estatal. Esta interpretação se coaduna com aquilo que o autor
considera como um princípio importante: o da integridade. Nesse passo, o direito como
integridade requer que se interpretem as decisões políticas passadas de maneira a dar-
lhes a melhor interpretação, de acordo com as finalidades do direito.

Nesse sentido, podemos observar que a distinção mais efetiva entre as teorias dos
autores reside nas implicações da divisão entre moral e direito[10]. Dworkin apregoa a
existência de princípios morais vinculantes, que devem ser levados em consideração no
momento da decisão do juiz, não de forma arbitrária, mas que devem ser buscados de
forma construtiva, através do apoio institucional conferido a esse princípio, da busca do
histórico político-institucional das decisões passadas e se elas se coadunam com os
princípios morais da comunidade no momento do julgamento. Hart, por outro lado,
leva em consideração apenas a moral convencional como formadora da regra social,
deixando de lado a concorrencial, que não é fruto do consenso, levando em
consideração apenas a aceitação de uma parte dos deveres a serem assumidos pelo juiz.
Ou seja, dentro de sua regra de reconhecimento, apenas uma parte da moral é
considerada pelo autor, aquela formulada pelo consenso. Ademais, ainda que busque
princípios morais para o julgamento (apenas aqueles considerados jurídicos), o juiz
ainda possui o poder discricionário de invocá-los ou não, bem como de escolher aqueles
que considera mais relevantes, de acordo com sua consciência, e não através de uma
moral objetiva que o vincule como uma obrigação jurídica.

O poder discricionário dos juízes ao interpretar o direito e decidir os casos difíceis é o


principal ponto de divergência entre os autores, em função das distintas concepções que
possuem a respeito da moral no Direito. Hart refuta a possibilidade de valores morais
objetivos vinculantes ou que os juízes tenham uma obrigação jurídica (advinda desses
direitos morais) de julgar um caso de uma determinada forma, a fim de se chegar a uma
resposta correta, como defende Dworkin. O jurista inglês defende que o juiz tem o
poder de criar o direito como um legislador prudente, que leve em consideração os
precedentes como guia, a analogia como maneira de garantir uma espécie de analogia e
que não realiza transformações radicais, com base em padrões e valores morais
presentes na regra de reconhecimento que não o vinculam juridicamente, podendo deles
dispor da maneira que julgar mais correta.

4. O DEBATE HART-DWORKIN E A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA:


QUAL DOS JURISTAS É O “VENCEDOR”?

Tomando como base o que fora salientado acima, podemos, através da análise de alguns
casos pontuais, estabelecer qual concepção de Direito é adotada nas fundamentações
dos juízes. Longe da pretensão de abarcar uma vasta gama de julgados, selecionamos

81
alguns, bem como algumas discussões, que são exemplificativas das divergências
teóricas compartilhadas pelos juízes, além de demonstrar as problemáticas implicações
de determinadas interpretações jurídicas. Com efeito, a adoção de determinada
concepção sobre o Direito condiciona, diretamente, o tipo de interpretação que o
julgador lançará mão para decidir um determinado caso. Em face dessa questão,
perguntamos: em nosso país, os juízes decidem pelo modelo de Hart ou Dworkin?

A adoção de uma concepção de Direito baseado na teoria de Hart pode levar a


resultados indesejáveis e, na maioria das vezes, injusto. De acordo com este autor, os
juízes, em face da textura aberta das regras, deve interpretá-las de acordo com suas
escolhas acerca do que entendem como moralmente relevante, ou seja, os juízes
estariam autorizados a utilizar os princípios jurídicos que julgarem relevante, de forma
discricionária, sem que estejam submetidos a nenhuma parâmetro objetivo de
julgamento ou de obrigações jurídicas de decidir de uma determinada forma.

Como exemplo desses casos, lembramos duas decisões de juízes singulares que
causaram espanto na comunidade jurídica no ano de 2007 (não muito tempo atrás). A
primeira delas, da lavra do Dr. Manoel Maximiano Junqueira Filho, juiz da 9ª Vara
Criminal Comarca de São Paulo, capital, decidiu que não havia nenhuma conduta
criminosa no ato de chamar um jogador de futebol de homossexual. Não satisfeito, o
juiz fundamentou sua decisão no sentido de que “ (...) o futebol é jogo viril, varonil, não
homossexual (....) Quem se recorda da Copa do Mundo de 1970, quem viu o escrete de
outro jogando (Félix, Carlos Alberto, Brito, Everaldo e Piaza; Clodoaldo e Gérson;
Jairzinho, Pelé, Tostão e Rivelino), jamais conceberia um ídolo seu homossexual (...).
Para o juiz, “o que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol
brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o
entrosamento, o equilíbrio, o ideal”.

Outro exemplo de discricionariedade judicial podemos observar na decisão do Dr.


Edílson Rumbelsperger Rodrigues, da Comarca de Sete Lagoas, Minas Gerais, em que
decidiu pela inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha (11.340/06), fundamentando
que a “Lei Maria da Penha — como posta ou editada — é portanto de uma
heresia manifesta. Herética porque é anti-ética; herética porque fere a lógica de
Deus; herética porque é inconstitucional e por tudo isso flagrantemente injusta. Ora! A
desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher — todos nós sabemos —
mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do
homem.” Concluiu que “Ora! Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas
desta lei absurda o homem terá de se manter tolo, mole — no sentido de se ver na
contingência de ter de ceder facilmente às pressões — dependente, longe portanto
de ser um homem de verdade, másculo (contudo gentil), como certamente toda
mulher quer que seja o homem que escolheu amar”.

Julgando sem que padrões morais objetivos ou de uma interpretação construtiva, bem
como sem o guia da integridade, o intérprete utiliza suas concepções morais sobre
aquilo que ele julga correto. Dessa forma, adotando essa concepção, são produzidas
decisões como as descritas logo acima.

Um exemplo de dissídio jurisprudencial atual que diz respeito a esta discussão, envolve
a aplicação do princípio da insignificância nos crimes de descaminho. O STJ e o STF
têm jurisprudências sólidas divergentes em relação a mais adequada aplicação do

82
princípio em testilha. Segundo interpretação do STJ, não é possível utilizar o art. 20 da
Lei n.º 10.522/02 como parâmetro para aplicar o princípio da insignificância, já que o
mencionado dispositivo se refere ao ajuizamento de ação de execução ou arquivamento
sem baixa na distribuição nas execuções até R$ 10.000,00 (dez mil reais), e não de
causa de extinção de crédito. O melhor parâmetro para afastar a relevância penal da
conduta é justamente aquele utilizado pela Administração Fazendária para extinguir o
débito fiscal, consoante dispõe o art. 18, § 1.º, da Lei n.º 10.522/2002, que determina o
cancelamento da dívida tributária igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais) (STJ, 5ª
Turma, AgRg no Ag 873.362 / RS, DJe 29/06/2009, Rel. Min. Laurita Vaz)[11].

O STF, por sua vez, entende que a análise quanto à incidência, ou não, do princípio da
insignificância na espécie deve considerar o valor objetivamente fixado pela
Administração Pública para o arquivamento, sem baixa na distribuição, dos autos das
ações fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União (art. 20 da Lei n.
10.522/02), que hoje equivale à quantia de R$ 10.000,00, e não o valor relativo ao
cancelamento do crédito fiscal (art. 18 da Lei n. 10.522/02), equivalente a R$ 100,00
(STF, 1ª Turma, HC 96.309/RS, DJe 24/04/2009, Rel. Min Carmen Lúcia) [12].

De acordo com o argumento da integridade, podemos buscar um argumento lógico que


aponta para uma resposta no caso em questão. Ora, se o ilícito penal é a mais grave
modalidade de ilícitos no ordenamento jurídico, uma vez que as sanções aos atos
criminosos podem levar à privação da liberdade do indivíduo, não pode ser coerente
com ordenamento jurídico, bem com os princípios constitucionais que informam o
direito penal[13], que um ato indiferente para a administração (impossibilidade de
propor execuções fiscais ou arquivá-las, quando o valor seja igual ou inferior à R$
10.000,00) possa levar a uma reprimenda penal. Ao que parece, o STJ julga o caso da
forma em que o valor fixado na lei, lhe pareça conveniente, sem atentar para princípios
que devem lhe ater juridicamente e para a manutenção da coerência no ordenamento
jurídico.

Por outro lado, o STJ vem fortalecendo jurisprudência muito interessante, que aponta
o extremo cuidado com valores morais da sociedade, bem como a atenção ao peso dos
princípios que dão fundamento a determinadas regras civis substanciais e processuais,
como nos casos em que indefere o cancelamento de registro de paternidade, em ações
negatórias de paternidade, ainda que escoradas por exame de DNA, quando o pleiteante
reconhece a criança espontaneamente, sem nenhum vício de consentimento (como erro,
dolo ou coação). Nesse sentido, cita-se ementa de um desses julgados:

Direito civil. Família. Criança e Adolescente. Recurso especial. Ação negatória de


paternidade. Interesse maior da criança. Vício de consentimento. Ausência de
alegação. Mera dúvida acerca do vínculo biológico. Exame de DNA não realizado.
Cerceamento de defesa não caracterizado. O ajuizar de uma ação negatória de
paternidade com o intuito de dissipar dúvida sobre a existência de vínculo biológico,
restando inequívoco nos autos, conforme demonstrado no acórdão impugnado, que o
pai sempre suspeitou a respeito da ausência de tal identidade e, mesmo assim,
registrou, de forma voluntária e consciente, a criança como sua filha, coloca por terra
qualquer possibilidade de se alegar a existência de vício de consentimento, o que
indiscutivelmente acarreta a carência da ação, sendo irreprochável a extinção do
processo, sem resolução do mérito. - Se a causa de pedir da negatória de paternidade
repousa em mera dúvida acerca do vínculo biológico, extingue-se o processo, sem

83
resolução do mérito, nos termos do art. 267, inc. VI, do CPC, por carência da ação. -
Uma mera dúvida, curiosidade vil, desconfiança que certamente vem em detrimento da
criança, pode bater às portas do Judiciário? Em processos que lidam com o direito de
filiação, as diretrizes devem ser fixadas com extremo zelo e cuidado, para que não haja
possibilidade de uma criança ser prejudicada por um capricho de pessoa adulta que,
consciente no momento do reconhecimento voluntário da paternidade, leva para o
universo do infante os conflitos que devem permanecer hermeticamente adstritos ao
mundo adulto. Devem, pois, os laços afetivos entre pais e filhos permanecer incólumes,
ainda que os outrora existentes entre os adultos envolvidos hajam soçobrado.(STJ, 3ª
Turma, Resp 1.067.438/RS, Dje 20/05/2009, Rel. Nancy Andrighi)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para que possamos ter a exata noção do atual estágio da discussão teórica acerca do
direito travada entre Hart e Dworkin, precisamos analisar as obras desses autores e as
diferentes formas de abordar os questionamentos suscitados pelo debate, ou melhor,
analisar de que forma os autores respondem às críticas feitas de seus posicionamentos.
Nesse contexto, é importante visualizar a obra de Dworkin e a diferença de abordagem
que faz do positivismo nos ensaios O modelo das Regras I e II e o que faz, por exemplo,
na obra O Império do Direito. Do mesmo modo, deve-se contextualizar as respostas
dadas por Hart em seu pós-escrito, a fim de que possamos depurar o ponto essencial da
divergência entre ambos.

Este ponto diz respeito a separação entre direito e moral. Hart é favorável à separação e
afirma que sua teoria descritiva pode aceitar a presença de princípios que podem ser
invocados pelo juiz no momento da decisão, todavia, tais princípios, decorrentes de uma
moral convencional e desde que considerados como jurídicos pela regra de
reconhecimento, são utilizados de forma discricionária pelo juiz, na medida em que não
está sujeito a padrões na decisão, assim como não possuem obrigação jurídica de
invocá-los para resolver um determinado caso difícil.

Dworkin, por sua vez, utiliza o argumento do direito como integridade para justificar
sua teoria e afastar a posição positivista de que direito e moral estão separados.
Portanto, o direito deve ser considerado como um conceito interpretativo e deve ser
interpretado de forma construtiva, para que seja construído sob sua melhor luz, a fim de
justificar a utilização da coerção estatal. Nesse sentido, o direito como integridade
requer que se interpretem as decisões políticas passadas de maneira a dar-lhes a melhor
interpretação, de acordo com as finalidades do direito.

Por fim, ao analisar algumas decisões de nosso judiciário, pudemos observar que, na
maioria dos casos, a formulação proposta por Hart é mais utilizada, ainda que
inconscientemente, pelos juízes. Os valores morais que lançam mão para julgar um
caso, não são aqueles advindos de uma construção histórico-política, nem de uma moral
política objetiva, ou de uma análise das decisões políticas anteriores, seguidas de uma
teoria a respeito de como o direito deve ser interpretado. Ainda que combatam, é
impossível negar que os juízes julgam como querem, ou seja, de acordo com sua própria

84
consciência ou daquilo que julgam a melhor forma, para eles, de analisar o fenômeno
jurídico, aumentando, dessa forma, a margem de discricionariedade em suas decisões e
pondo em xeque, contraditoriamente, um conceito caro ao positivismo: a segurança
jurídica.

Dworkin tinha razão, portanto, ao tratar da abordagem positivista, e pudemos


comprová-lo após analisar os casos apresentados, uma vez que, como não estão
juridicamente obrigados a decidir um caso de determinada maneira, lançando mão da
integridade no direito, a fim de reduzir sua discricionariedade, bem como olvidar a
existência de uma moral política objetiva vinculante, os juízes divergem teoricamente,
não daquilo que o direito é, mas sim daquilo que eles acham que deveria ser. Por fim,
para responder a pergunta posta na introdução, a resposta parece, agora, simples: Sim,
ainda precisamos discutir o embate Hart- Dworkin no século XXI.

Bibliografia

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Fundação Calouste Gulbenkian, 1986.

IKAWA, Daniela R.. Hart, Dworkin e discricionariedade. Lua Nova, São Paulo, n.
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85
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. trad. Antônio Ulisses Cortês. Fundação
Calouste Gulbenkian, s, Lisboa, 2006.

SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” Debate: A Short Guide for the Perplexed.
February 2, 2007). U of Michigan Public Law Working Paper No. 77. Disponível em
http://ssrn.com/abstract=968657. Acesso em 18 de julho de 2009.

[1] Muitos textos que têm como objeto o debate entre os filósofos anglo-saxões estão
centrados, em sua maioria, nas obras O Conceito de Direito, de Hart e Levando os
Direitos a Sério, de Dworkin. Salientando os ataques feitos pelo último ao conceito de
direito apresentado pelo primeiro. Todavia, poucos dedicam atenção às substanciais
respostas dadas por Hart em seu pós-escrito às contraposições de Dworkin, bem como
aos novos argumentos trazidos pelo último na obra O Império do Direito, que diferem
daquelas sustentadas nos ensaios intitulados O Modelo de Regras I e II.

[2] De Austin, Hart utiliza a obra The Province of Jurisprudence Determined (1832).
Por sua vez, Kelsen tem seus argumentos refutados por Hart, com base na obra General
Theory of Law and State (1949).

[3] De acordo com Bobbio (1995, p. 144), as doutrinas realistas do direito


(características de países da Common Law) advogam que o direito é somente aquilo que
os Tribunais decidem que é, ou seja, as leis existentes e não aplicadas ou que ainda não
foram objeto de decisões judiciais, não são direito, apenas uma flatus vocis. Para os
formalistas, considerações acerca do direito independem de questões relacionadas a seu
conteúdo, apenas a sua forma, ou seja, o que aparenta (BOBBIO, p. 145). Hart afasta o
formalismo ao salientar que, para que se afirme que o direito é aquilo que os tribunais
decidem, é necessário que eles se baseiem em regras preexistentes que indiquem como
proceder nestes casos. Quanto ao realismo, ainda que o rejeite na maioria dos casos, em
que haja uma resposta clara na regra e na impossibilidade dos Tribunais de criarem os
métodos de decisão correta, dele se aproxima em casos em que podem se extrair várias
interpretações da regra. Todavia, sua contribuição é inestimável, pois fundamentava a
necessidade de se atentar às prescrições e limitações aos intérpretes trazidas pelas
regras, conforme salienta Oscar Vieira (2005, p. 224)

[4] Podemos citar, no mesmo sentido, o que Kaufmann (2006, p. 236) afirma sobre a
relação entre generalidade, abstração e equidade. Afirma o alemão que, porquanto que a
lei não pode regulamentar ou prever todos os casos existentes no mundo fático, as
disposições legais, para que atendam aos critérios da igualdade, devem ser
generalizados ao máximo.

[5] Dworkin (1999, p. 6) conceitua proposições jurídicas como as afirmações e


alegações feitas pelas pessoas sobre aquilo que a lei lhes permite, proíbe ou autoriza

[6] Casmiglia (1984) confirma esta conclusão ao afirmar que Dworkin sugere a negação
do poder político do juiz sem reduzir sua atividade a uma mera operação mecânica,
confirmando a possibilidade de se invocar os outros tipos de poder discricionário. Em
seu modelo, arremata o espanhol, o juiz é garantidor de direito e não criador deles.

86
[7] Concept of Law, 1994, Editor´s Note, p. VIII e IX.

[8] Como, por exemplo, Joseph Raz e Genaro Carrió.

[9] Curioso ressaltar que, no Brasil, as principais obras de Dworkin sobre sua teoria do
Direito foram editadas com cronologia inversa de suas publicações originais. Levando
os Diretos a Sério (2002), Uma Questão de Princípio (2000) e O Império do Direito
(1999), no original, respectivamente, 1977/78, 1985 e 1986.

[10] Shapiro (2007, p. 5) chega a essa mesma conclusão, e afirma: “Dworkin´s basic
strategy throughout the course of the debate has been to argue that, in one form or
another, legality is ultimately determined not by social facts alone, but by moral facts as
well. In other words, the existence and content of positive law is, in the final analysis,
governed by the existence and conten of the moral law. This contention, therefore,
directly challenges and threatens to undermine the positivist picture about the nature of
law, in which legality is never determined by morality but rather by social practice. For
it judges must consider what morality requires in order to decide what the law requires,
social facts alone cannot determine the content of law”.

[11] No mesmo sentido, ver: Resp 1.015.609/RS, 5ª. Turma, Dje 01/06/2009, Rel. Jorge
Mussi; HC 82.226/SC, 5ª Turma, Dje 25/05/2009, Rel. Laurita Vaz; HC 107.407/PR, 5ª
Turma, Dje 25/05/2009, Rel. Laurita Vaz.

[12] No mesmo sentido, ver: HC 96.734/PR, 2ª Turma, DJe 24/04/2009, Rel. Ellen
Gracie; HC 96.976/PR, 2ª Turma, DJe 08/05/2009, Rel. Cezar Peluso; HC 94.502/RS,
1ª Turma, DJe 20/03/09, Rel. Menezes Direito; HC 93.072/SP, 1ª Turma, DJe
12/06/2009, Rel. Carlos Britto; HC 95.749/PR, Dje 07/11/2008, Rel. Eros Grau.

[13]Como, por exemplo, os da subsidiariedade e do fragmenatariedade.

87

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