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Gabriela Semensato Ferreira

Marta Ramos Oliveira


Rita Lenira de Freitas Bittencourt
Vanessa Hack Gatteli(Orgs.)

ESPAÇO / ESPAÇOS
VI Colóquio
Internacional Sul de
Literatura Comparada
ARTIGOS

Porto Alegre
Instituto de Letras UFRGS
2015
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Letras

Jane Tutikian
Diretora

Maria Lúcia Machado de Lorenci


Vice-diretora

Conselho da Editora do Instituto de Letras

Lucia Rebello | Antonio Marcos Sanseverino | Regina Zilberman


Rita Terezinha Schmidt | Ana Zandwais | Pedro de Moraes Garcez
Sérgio de Moura Menuzzi | Gisela Colishonn | Rosalia Angelita Neumann Garcia
José Carlos Baracat Júnior | Luiz Carlos da Silva Schwindt | Félix Bugueño Miranda

ESPAÇO / ESPAÇOS
VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada

ISBN 978-85-64522-20-6

Gabriela Semensato Ferreira


Marta Ramos Oliveira
Rita Lenira de Freitas Bittencourt
Vanessa Hack Gatteli
Organizadoras

Andrei Cunha
Ilustrador

Leandro Bierhals Bezerra - Núcleo de Editoração Eletrônica do I. L.


Diagramação e editoração eletrônica
Instituto de Letras - UFRGS
Av. Bento Gonçalves, 9500, Prédio 43221
Porto Alegre, RS - 91540-000
Fone (51) 3308-6711, Fax (51) 3308-7303
iletras@ufrgs.br - www.ufrgs.br/iletras
SUMÁRIO

7 Apresentação

9 A (des)constituição do feminino em O remorso de


baltazarserapião, de Valter Hugo Mãe
Ana Lúcia Montano Boessio

21 No princípio era o verbo


Ana Lúcia Beck

35 Autoria e memória em Sei Shônagon


Andrei dos Santos Cunha

51 Literatura e espaço: um estudo sobre a representação da


paisagem na poesia do Rio Grande do Sul
Antônio Carlos Mousquer

63 A ação literária na construção do corpo identitário teatral


Bia Isabel Noy

77 Hilda Hilst: um salto do objeto literário à teatralidade das


palavras
Camila Alexandrini

91 Marcas subalternas: corpo e subjetividade em Carolina Maria de


Jesus
Carla Lavorati

101 As ressignificações do humano no mundo distópico


Caroline Valada Becker

115 Espaço e deslocamento em A obscena senhora D, de Hilda Hilst


Cinara Ferreira Pavani

127 Passado e presente (e futuro), locais da memória em Traço de


União, de João Maimona
Cláudia Mentz Martins

137 Elena: notas sobre a representação fílmica


Gabriela Semensato Ferreira
151 O espaço e a memória: a ressignificação da subjetividade
Giele Rocha Dorneles

167 Uma leitura sobre as memórias de diásporas em Becos da


memória de Conceição Evaristo
Kátia Ferreira Pessoa e Maria Melo Pereira

177 Andança pelas Canções Mexicanas, de Gonçalo M. Tavares


Kim Amaral Bueno

189 Remontando Zinos: imagens e sons, aromas e sabores


Lauro Iglesias Quadrado

199 O cosmos urbano: visões da multiplicidade


Mairim Linck Piva

209 Pensando a literatura como lugar de memória: um estudo de


caso do romance Satolep
Marlise Klug e Tatiana Lebedeff

223 O resgate passado e a organização dos fatos em Infância de


Graciliano Ramos
Michele Savaris

233 História & Ficção: articulação da memória individual e coletiva


em As naus, de António Lobo Antunes
Neiva Kampff Garcia

243 Diomedes Grammaticus e a publicação de teoria literária no


renascimento antes das redescoberta da Poética de Aristóteles
Odi Alexander Rocha da Silva

253 A infância e seus traumas em Antônio Lobo Antunes


Paula Renata Lucas Collares

263 Percepção e espaço: figurações da casa em Lobo Antunes


Raquel Trentin de Oliveira

273 Pátria dos outros: a desterritorialização em O elevador e Os


marginais
Rejane Seitenfuss Gehlen
283 Entre senzala e buraku: o naturalismo e o surgimento do
discurso de direitos humanos no Brasil e no Japão na virada do
Século XX
Roberto Pinheiro Machado

297 Breves notas sobre a importância do corpo em O reino de


Gonçalo M. Tavares
Sandra Beatriz Salenave de Brito

307 O gaúcho em carne, tinta e bronze


Tiago Pedruzzi

321 Rio-baldo x Rio-bardo: as veredas no narrador


Valéria de Castro Fabrício

333 Les corps, siège de la douleur et de la soufrance: représentations


pathologiques dans Germinie Lacerteux (1865), D’Edmond et
Jules de Goucourt
Vanessa Costa e Silva Schmitt

343 A diluição das barreiras interartes: uma proposta educacional e o


relato de experiência do grupo Cancioneiros
Vinícius da Silva Rodrigues e Nathalia Pinto

359 Um ilustrador da vida moderna na periferia da literatura


Vinícius da Silva Rodrigues
O GAÚCHO EM CARNE, TINTA E BRONZE
EL GAUCHO EN CARNE, TINTA Y BRONCE

Tiago Pedruzzi1

RESUMO: O trabalho tem como escopo uma aproximação da representação


do gaúcho na literatura e a sua posterior transposição aos monumentos da
cidade de Porto Alegre. A apresentação do gaúcho se dá na literatura brasileira
no século XIX e, assim, temos seu ingresso no mundo urbano. No entanto, sua
expressão estatuária ocorre no Rio Grande do Sul, mais particularmente na
sua capital, Porto Alegre, a partir do século XX, demonstrando certo descom-
passo entre a representação literária e a representação laudatória ou memoria-
lística emanada dos conjuntos escultóricos da urbe. É sabido que existe farto
material sobre a figura do gaúcho na literatura sul-rio-grandense e também na
literatura platina. Porém, sua presença na estatuária é, ainda, pouco estudada e
este trabalho pretende fazer uma breve discussão desta faceta.
PALAVRAS-CHAVE: Gaúcho, estatuária, representação.

RESUMEN: Este trabajo tiene como objetivo un acercamiento de la repre-


sentación del gaucho en la literatura y su posterior transposición a los monu-
mentos de la ciudad de Porto Alegre. La presentación del gaucho se da en la
literatura brasileña en el siglo XIX y, así, tenemos su ingreso al mundo urbano.
Sin embargo, su expresión estatuaria ocurre en Río Grande del Sul, más especí-
ficamente en la capital, Porto Alegre, a partir del siglo XX, demostrando cierto
descompás entre la representación literaria y la representación laudatoria o
memorialística emanada de los conjuntos escultóricos de la urbe. Se sabe que
hay extenso material sobre la figura del gaucho en la literatura de Río Grande
del Sur y también en la literatura platina. Pero, su presencia en la estatuaria es,
aún, poco estudiada y este trabajo se propone a hacer una breve discusión de
esta faceta.
PALABRAS CLAVE: Gaucho, estatuaria, representación.

Borges narra em seu conto Historia de Jinetes quase de forma anedótica que:

En 1903, Aparicio Saravia sublevó la campaña del Uruguay;


en alguna etapa de la contienda se temió que sus hombres
pudieran irrumpir en Montevideo. Mi padre, que se encon-
traba allí, fue a pedir consejo a un pariente, Luis Melián

1 Tiago Pedruzzi é doutorando em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.

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Lafinur, el historiador. Éste le dijo que no había peligro,
“porque el gaucho le teme a la ciudad”. En efecto, las tropas
de Saravia se desviaron y mi padre comprobó con algún
asombro que el estudio de la Historia puede ser útil y no
sólo agradable (BORGES, 1974, p. 152).

Além disso, agregou que esta idiossincrasia não seria uma prerroga-
tiva do típico cavaleiro pampiano, mas de todos os povos cavaleiros, citando
os mais conhecidos: mongóis e beduínos árabes. Esta afirmação no conto, re-
tirada da boca de um historiador e reafirmada a partir de exemplos pinçados
da história universal, assume a categoria de verdade indiscutível. Exemplos
históricos das mais variadas culturas confirmam o fato ficcional de Borges. O
contrário também parece acontecer, as cidades rechaçam os gaúchos. Estes ho-
mens do campo afeitos às práticas consideradas bárbaras pelos citadinos não
têm espaço no conglomerado urbano. Exemplo clássico de rechaço é o motivo
pelo qual a cidade de Porto Alegre recebe o epíteto “Mui Leal e Valerosa”, por
manter-se ao lado do império mesmo depois de cair na mão das forças farrou-
pilhas, Sarmiento no inclassificável Facundo também reflete sobre o antago-
nismo dos gaúchos e das cidades, no entanto essa situação mudará, o gaúcho
entrará nas cidades, fixará raízes que até o momento não pareciam existir (ou
não poderiam existir) e fará parte da paisagem dos grandes centros urbanos
da região pampiana e dos seus centros de poderes e áreas de influência. Essa
invasão do gaúcho à cidade se dará de duas formas: uma real, em que indiví-
duos oriundos do campo vítimas de processos de industrialização, imigração e
demarcação dos limites das propriedades formarão uma massa de deserdados
sociais que passarão a ocupar as franjas das cidades, ou seja, viverão trafegan-
do na linha entre o mundo urbano e o mundo rural até a fixação final nos
centros urbanos; outra pelo elogio cultural que as cidades manifestarão a este
tipo social e suas manifestações artísticas. Nesta tentativa de louvação farão
parte todas as formas artísticas possíveis: teatro, literatura, artes plásticas, mú-
sicas, etc.
Sabe-se que a representação do gaúcho na literatura inicia em mea-
dos do século XIX com Caldre e Fião, primeiro ficcionista sul-rio-grandense,
mas sua maior projeção se dá no início do século XX com João Simões Lopes
Neto e seus companheiros geracionais. Para afirmar isto, não estamos usando
apenas um critério qualitativo de obras, e sim um critério quantitativo, pois
como já afirmamos, muitos serão os veículos e suportes para esta representa-
ção. Com a onda das vanguardas europeias açoitando o continente americano
a literatura dita gauchesca (no sentido que Guilhermino dá ao vocábulo, que
é diferente das expressões orais da literatura, pois tenta recriar o linguajar do
homem do campo a partir de formas letradas da cidade), quase desaparece ou,
muitas vezes, assume o caráter comprometido de crítica social como notamos

308 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada


nas obras de um Javier de Viana no Uruguai ou um Cyro Martins no Brasil.
No entanto, outros suportes são muitas vezes esquecidos ou ficam a parte da
grande discussão acadêmica sobre esta temática. Assim as artes plásticas falsa-
mente parecem não ter tido um papel importante na construção da represen-
tação do gaúcho feita a partir do início do século XX. E, falamos em início do
século XX, visto que as primeiras estátuas de gaúchos ou monumentos foram
erigidos a partir da década de vinte, como o Monumento al Gaucho (Fig. 1) em
Montevidéu, obra de José Luis Zorrilla de San Martín inaugurada em 30 de
novembro de 1927 ou o Monumento al Resero(Fig. 2), obra de Emilio Sarguinet
instalada no bairro de Mataderos em Buenos Aires no ano de 1934. Certa-
mente a arte escultórica ou estatuária não é apreciada como deveria ser nem
pela população que não zela pelas obras em grande parte do Brasil nem pelos
críticos que as ignoram ou as relegam a meros artefatos encomiásticos sem
valor artístico e cultural relevantes, muitas vezes por terem sido picados pela
“mosca do modernismo” e que ficaram infectados com o vanguardismo, ig-
norando artistas que passaram à margem destes fenômenos e que ainda assim
não deixaram de produzir obras importantes para a cultura sul-rio-grandense
e/ou brasileira.

(Fig. 1 - http://eldiario.com.uy/wp-content/uploads/2012/04/gaucho.jpg)

(Fig. 2 - https://www.flickr.com/photos/murganti/2427378343/)

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Se na pintura do Rio Grande do Sul desde o fim do século passado já
havia a representação do gaúcho feita por Pedro Weingärtner (outro esquecido
pela crítica modernista), a obra de maior relevância simbólica na qual o gaú-
cho será tematizado se chama O Laçador e está erigida na entrada ao norte de
Porto alegre e foi produzida por Antonio Caringi, escultor sul-rio-grandense
nascido em Pelotas e que passou sua infância Bagé, com profunda formação
clássica feita na Alemanha e com características do verismo e, por que não
dizer também, do chamado costumbrismo, em suas obras. No entanto, antes de
começarmos a analisar a obra de Caringi e sua importância para a memória
cultural de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, vamos fazer um levanta-
mento da presença do gaúcho no conjunto estatuário de Porto Alegre até o
momento da inauguração d’O Laçador. Antes d’O Laçador a única represen-
tação que existia do gaúcho em Porto Alegre foi realizada por Décio Villares
e integra o monumento a Julio de Castilhos (Fig. 3), além disso, é também a
primeira representação equestre a céu aberto do Rio Grande do Sul. Segundo
Doberstein, o gaúcho do monumento está:

[...] saudando o homenageado. No solo, uma caveira bovi-


na e um arado. Representam o povo gaúcho como os posi-
tivistas o idealizavam: gentil, pacífico e trabalhador, que já
tinha, na sua evolução, superado o estágio de beligerância
e revoluções, ingressando definitivamente no seu “estágio
positivo”. No lugar de mosquetes e canhões, só uma pistola
na cintura. Em vez de espadas e de lanças, o arado e a cavei-
ra bovina. DOBERSTEIN, 2001)

(Fig. 3 - http://www.correiodopovo.com.br/jornal/A114/N152/Imagens/10MONUME.jpg)

310 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada


Vemos, portanto, que o gaúcho e sua representação fazem parte do
processo “civilizador” idealizado pelos positivistas no Rio Grande do Sul e que
ele é “coadjuvante” tanto neste processo quanto na representação artística, pois
quem é o centro da obra é O PRESIDENTE DA PROVINCIA, o Sr. Júlio Pra-
tes de Castilhos, déspota sul-rio-grandense seguidor ardoroso dos princípios
comteanos e fundador da primeira ditadura constitucional brasileira, como
afirma Décio Freitas em seu O Homem que inventou a ditadura no Brasil. Além
da referida escultura outra merece destaque pela singularidade e pelo papel
simbólico que teve antes da criação d’O Laçador. Esta escultura se chama El
Gaucho Oriental (Fig. 4), foi realizada pelo escultor Federico Escalada e foi
doada pelo governo uruguaio em comemoração ao centenário da Revolução
Farroupilha em 1935. Diferentemente da estátua d’O Laçador, a estátua uru-
guaia está a serviço de uma representação menos carregada de símbolos e sim,
em até certo ponto, muito mais realista, pois a postura é a de um trabalhador
rural que olha despretensiosamente para diante e também se mantém despre-
tensiosamente recostado ao palanque rodeado de todos os itens necessários às
lides do gaúcho. Os jovens fundadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho,
dentre eles Paixão Côrtes que viria a ser modelo para O Laçador, reverencia-
vam-no à falta de uma estátua que representasse o gaúcho sul-rio-grandense..

(Fig. 4 - Foto: Lucas Pedruzzi – arquivo pessoal)

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Mesmo não havendo uma escultura para celebrar o tipo social do es-
paço mais meridional do território brasileiro existia, já um projeto (Fig. 5 e 6)
para a confecção de uma obra que desse conta de homenageá-lo. O responsável
pelos esboços e pela maquete do gaúcho era Francisco Belanca, funcionário
da prefeitura que já em idos de 1936 fez um esboço e uma miniatura de um
gaúcho à guisa de projeto na tentativa de incorporá-lo ao patrimônio urbano.
O curioso deste projeto é o fato de o gaúcho estar a pé, tal qual a futura estátua
d’O Laçador.

(Fig. 5 – ALVES, 2004)

(Fig. 6 – ALVES, 2004)

312 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada


O projeto foi apresentada à câmara, entretanto, não foi aceito. Diante
da negativa a e a idéia permaneceu esquecida por algum tempo. Até que na
década de 50 com a aproximação do IV centenário de fundação de São Paulo e
das comemoraçõs que se fariam no parque do Ibirapuera com a presença dos
estados brasileiros e seus “stands”, abriu-se novo concurso com o intuito de
escolher uma obra que representasse o gaúcho para ser colocada na entrada do
pavilhão do estado e depois ser doada à municipalidade de São paulo. Os ju-
rados convidados pela comissão organizadora eram: Dante de Laytano, Walter
Spalding, Ladário Canabarro e Paixão Côrtes. Entre os artistas participantes
estavam o arquiteto Fernando Corona e os artistas plásticos Antônio Caringi
e Vasco Prado. Foram apresentadas as seguintes obras: Peão de Estância, Pos-
teiro, Gaúcho Farrapo, O Bombeador e O Boleador. Dentre estas, a escolhida
foi O Boleador com a aceitação da ressalva do próprio autor de que poderia
representar O Laçador caso levasse nas mãos um laço ao invés de boleadeiras.
(cfe. CÔRTES, 1994)

(Fig. 7 – http://www.margs.rs.gov.br/acervo_selecaodeobras.php#p)

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(Fig. 8 – PAIXÃO, 1979)

A figura 7 é o lanceiro apresentado por Vasco Prado e a figura 8 leva o títu-


lo de O Posteiro e está no catálogo de obras de Caringi podendo ser uma das peças
participantes quando do concurso em 1954 para a eleição da figura representativa
do gaúcho, visto que leva o mesmo nome de uma das obras citadas como apre-
sentadas no concurso. De Fernando Corona não encontramos no levantamento
bibliográfico feito nenhuma representação dos projetos apresentados.
A obra de Caringi, como bem afirma José Francisco Alves (2004), foi
realizada para ser um símbolo, e se analisarmos as manifestações populares,
ela alcançou o intento sem dificuldades. A figura d’O Laçador hoje é utilizada
para demonstrar os momentos felizes, infelizes, de clamor popular (legítimos
ou não) da população do Rio Grande do Sul. Quando uma equipe da capital sai
campeã, lá vão os torcedores vesti-la com um poncho de suas cores o símbolo
maior do estado. Pedidos de impeachment, poncho com frases de repúdio ao
governante possivelmente corrupto. Faz-se necessário entender de que manei-
ra ocorre tal fenômeno em que grande parte da população se identifica com
um símbolo e independentemente do credo, da cor ou da etnia, ele assume a
função representativa do individuo. Assman (2008) em seu livro Religión y
memória cultural vincula a memória coletiva, ou seja, aquela que tem o papel
de transmitir uma identidade coletiva na qual o indivíduo se insere absorven-
do normas e valores e tendo como produto final o superego, como classificou
Freud, ou consciência moral aos monumentos. Dessa forma, a necessidade de
recordar muitas vezes que pertencemos ao mesmo tipo de homem ali repre-
sentado, com sua lista de valores e qualidades, talvez até com seus defeitos,
caso ele sejam distintos daqueles de outros grupos quando analisados con-
trastivamente, faz com que o indivíduo e o grupo busque no arcabouço do
símbolo e das tradições a sua sobrevivência enquanto tais.se o símbolo deve
transparecer essa conjunção de fatores e valores especiais a um grupo ou a um

314 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada


individuo, quais características O Laçador de Caringi possui para alcançar a
mais variada gama de indivíduos. Plasticamente uma característica da estátua
feita pelo artista pelotense que lhe confere uma dimensão simbólica que vai além
da simples representação é o olhar sobranceiro/altivo e que identifica o gaúcho
representado da estátua com o gaúcho cantado em prosa e verso pelos poetas
romancista e cronistas viajantes, e outros. É ele o “campeiro riograndense”, “o
monarca das coxilhas”, “o vaqueano”, “o guasca”, “o crioulo riograndense”.

(Fig. 9 – Foto: Lucas Pedruzzi – arquivo pessoal)

Altivez e força no olhar demonstram altivez e força nas atitudes, como


nos trechos revelados por dois viajantes europeus, um alemão no século XIX:

O morador do campo, chamado campeiro, é menos culto,


mais natural; mas também de estatura mais forte e bonita,
e ainda mais cortês do que o citadino. Há entre eles figu-
ras de forma e força hercúleas, contribuindo para isso, em
grau muito alto, a alimentação e o modo de vida rude. Ele
representa o caráter nacional propriamente dito, e quem
ainda não viu a campanha e o campeiro, não conhece o Bra-
sil. Criado no meio de seus rebanhos e vivendo quase que
exclusivamente da carne deles, o campeiro é um cavaleiro
audaz, seguro e hábil, que sabe manejar de forma excelente
a espada e a lança, sendo sua arma mais terrível e compa-
nheiro inseparável o laço. O campeiro não conhece outra
maneira de viajar a não ser a cavalo (HORMEYER in GO-
MES, 2009 p. 137).

E também o notório naturalista Auguste de Saint Hilaire:

[...] é o ar de liberdade de todos com que me deparo e o


desembaraço de seus gestos; não possuem a apatia que ca-
racteriza os habitantes do interior, ao contrário, seus movi-

Espaço / Espaços 315


mentos são mais enérgicos, há menos delicadeza em seus
gestos. Numa só palavra, são mais homens (SAINT-HILAI-
RE In GOMES, 2009 P. 137)

Outro traço forte da obra de Caringi foi a opção por manter o gaú-
cho mesmo que vestido de bombachas, indumentária pertencente ao gaúcho
que viveu no período pós guerra do Paraguai, calçado com as chamadas botas
garrão de potro, feita barbaramente do couro descarnado de potros ou gado
vacum e utilizadas a meio pé, ou seja, com os dedos de fora. Esse que pode
parecer mais um detalhe de indumentária, tem o poder de simbolizar a ligação
do homem do campo com a terra, seu arraigo.

(Fig. 10 – Foto: Lucas Pedruzzi – arquivo pessoal)

Esse sentimento telúrico que também é incorporado ao imaginário do


gaúcho não escapou à sensibilidade do artista, que fez escolhas de vestuário a
partir de pesquisas de material histórico e que conheceu a realidade da campa-
nha in loco conforme depoimento:

Quando menino, eu andava sempre pelas bandas de Bagé,


de Candiota, onde colhia o barro numa mina de carvão.
Eu trabalhava ali e sempre via os tipos de gaúcho e vivia
enfronhado com eles. Foi coisa espontânea, porque a arte
é coisa espontânea (PAIXÃO, 1979, p. 90).

Esse relato e outros trechos da vida que narram a trajetória artística do


escultor fazem cair por terra alguns argumentos do historiador Mario Maestri
que encontra n’O Laçador uma espécie de falso gaúcho:

Os traços somáticos europeus, a postura dominadora, os


trajes de manequim empertigado para foto oficial anulam

316 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada


a representação do gaúcho-peão real, ao projetar sobre ela
a imagem mitificada do fazendeiro luso-descendente, que
se apropriou, sem dó, da terra que pisou e dos trabalhado-
res que a exploraram. O Laçador volta as costas ao gaúcho-
-peão real, materializando-se como representação de herói
imaginário produzida com as reconstruções do presente
sobre passado pastoril mítico estranho às necessidades e
contradições sociais (MAESTRI, 2007).

As duras palavras de Maestri parecem se dissolver em uma pequena aná-


lise da estátua. O historiador utiliza até mesmo o local de nascimento do artista,
Pelotas, “antigo centro charqueador-escravista” para de alguma forma diminuir
ou tentar desmerecer o trabalho do escultor, como se o local onde a pessoa nasce
fosse fator determinante para reproduzir seus erros do passado. Certamente não
podemos ignorar o ar varonil que a estátua apresenta ao gaúcho. No entanto,
como símbolo de um tipo social, acreditamos que não seria de bom tom a re-
presentação de um fracassado. E, se ainda pensarmos que o autor tenha querido
representar nessa estátua aqueles peões rudes e olvidados da campanha, talvez a
postura e altivez apresentadas na obra tenham a função de demonstrar a teimosia
em sobreviver em meio às adversidades naturais, sociais, políticas e históricas
encontradas em suas vidas. Além disso, como a iconografia gaúcha demonstra
o uso das botas-de-garrão que já comentamos aqui pelo caráter simbólico que
assumem, também é uma marca de identificação desta imagem de gaúcho com
o habitante mais simples das campinas rio-grandenses. Pois, o artista poderia
simplesmente representá-lo como um típico estancieiro do período farroupilha,
como vemos nesta gravura abaixo que é a única representação de época do se-
nhor das estâncias em traje domingueiro.

(Fig.11 - COSTA, E. B, 1998.)

Espaço / Espaços 317


Como podemos notar a partir da pintura, o estancieiro calça a cha-
mada bota forte, diferente da bota garrão-de-potro que consiste de apenas um
pedaço de couro envolvendo a sola do pé e que não tem nada de aristocrática.
Outros pontos da indumentária também são típicos do individuo mais simples
do campo, tais como: tirador (avental de couro que protege a perna e as bom-
bachas do atrito com o laço quando o peão peala a pé); vincha (faixa utilizada
para prender os cabelos durante o trabalho e/ou não deixar que o suor escorra
pelos olhos e dificulte a visão durante a labuta). A total ausência de detalhes
decorativos, tais como os representados na imagem do estancieiro (guaiaca
e coletes bordados com motivos florais) também denotam essa tentativa de
universalizar, ou seja, aumentar a possibilidade de identificação ao maior nú-
mero de pessoas. Além do mais, encontrar “traços somáticos europeus” na
representação d’O Laçador chega a beirar um pouco à perseguição, visto que, o
gaúcho foi essencialmente o amálgama de muitas raças e, além disso, foi repre-
sentado também por qualquer etnia, pois bastava a um individuo português,
espanhol ou de qualquer origem querer debandar de sua guarnição militar, ou
até mesmo do seio militar, e passar a viver como um gaudério que ele também
seria um gaúcho (não esqueçamos que muitos dos famosos Dragões de Rio
Pardo engrossaram as fileiras de vagabundos dos Campos Neutrais no início
da colonização do Rio Grande do Sul pelos portugueses) assim como o foram
os negros sul-rio-grandenses, uruguaios e argentinos (estes últimos antes de
sua total aniquilação ou assimilação). Por fim, quanto á questão da indumen-
tária, vemos plasmada na estátua d’O Laçador uma variedade de elementos de
vestuário que percorrem toda a trajetória do gaúcho de índio vago a peão de
estância mensual. Diferente, pois da representação da Vasco Prado apresen-
tada anteriormente que está muito próxima ainda do índio aculturado, como
vemos nesta representação pictórica de Vasco Machado retirada do livro Co-
nesul: Adereços indígenas e vestuário tradicional, de Vera Stédile Zattera.

(Fig.12 - ZATTERA, 1999.)

318 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada


Para finalizar vemos esta manifestação máxima de identificação do in-
divíduo com o símbolo. Tal é o grau de satisfação alcançada que ele é capaz de
tatuar o símbolo no próprio corpo, identificando-se grupalmente àqueles que
têm no gaúcho um exemplo maior.

(Fig. 13 - https://www.flickr.com/photos/23261582@N05/2228091005/sizes/o/)

Esse sentimento torna-se tão verdadeiro que um Rossi, um Plocharski


o um Muller passam a fazer parte desta coletividade sem que tenham viven-
ciado, ainda que no plano genealógico, experiências próprias daquelas que vi-
venciou um gaúcho.

BIBLIOGRAFIA

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Porto Alegre:Artfolio, 2004.
ASSMANN, Jan. Religión y memoria cultural. Diez estudios. Trad. Marcelo G.
Burello e Karen Saban. Buenos Aires: Lilmod, Libros de la Araucaria, 2008.
BORGES, Jorge Luis. Evaristo Carriego. Losada, 1974.
CESAR, Guilhermino. História da literatura do Rio Grande do Sul. Porto Ale-
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COSTA, E. B (org). História ilustrada do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Já
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Espaço / Espaços 319


DOBERSTEIN, Arnoldo. O universo e a província no monumento à Repúbli-
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ZATTERA, Vera Stédile. Cone Sul adereços indígenas e vestuário tradicional.
Palotti, 1999

320 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada


RIO-BALDO x RIO-BARDO: AS VEREDAS NO NARRADOR.
RIO-BALDO x RIO-BARDO: LAS VEREDAS EN LO NARRADOR.

Valéria de Castro Fabrício1

RESUMO: este artigo analisa a função do narrador da obra Grande sertão: Ve-
redas de Guimarães Rosa enfocando dois aspectos principais: a ação narrativa
como organizadora, afirmadora e reprodutora do universo regional coletivo,
ao mesmo tempo, como reveladora e identificadora da individualidade do pró-
prio narrador. Riobaldo apela à memória para narrar e através de suas reminis-
cências revela-nos quem somos como também revela a si mesmo. Para tanto,
utilizamos como suporte teórico os artigos de Walter Benjamin intitulado “O
narrador, observações sobre a obra de Nikolai Leskow” e o de Hanna Arendt
denominado “Ação”.
PALAVRAS-CHAVE: Grande sertão: Veredas, narrador, memória, coletivo,
individual.

RESUMEN: En este artículo se analiza la gran función de narrador interior en


la obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, y se centra en dos aspectos
principales: la acción narrativa como organizador, e por lo afirmar y repro-
ducir el universo regional colectiva, al mismo tiempo que revela y la identi-
ficación de la individualidad Del propio narrador. Riobaldo trae a la mente a
narrar y a través de sus reminiscencias revela lo que somos, sino también se
revela. Por lo tanto, se utilizó como soporte teórico los artículos Walter Benja-
min titulado “Los comentários del narrador em la obra de Nikolai Leskow” y
el Hannah Arendt llamó “Acción”.
PALAVRAS-CHAVE: Grande Sertão: Veredas, Narrador, reminiscências, co-
lectivo, individualidade.

1 Introdução
Este trabalho propõe-se realizar um estudo a cerca da categoria
do narrador na obra “Grande sertão:Veredas” de Guimarães Rosa. Para tan-
to, tomaremos como referência teórica o texto de Hannah Arendt intitulado
“Ação”(2005)e o de Walter Benjamin, “O narrador, observações sobre a obra
de Nikolai Leskow”(1983). Nossa análise parte do entrecruzamento das abor-

1 Licenciada em Letras, mestre em estudos literários, aluna do programa de Pós-Graduação em Letras


da UFSM - doutorado em estudos literários - integrante do grupo pesquisa em Literatura Comparada e
Crítica Social da UFSM.

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