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166 RESENHAS REVIEWS

Capitalismo histórico e civilização capitalista. cadeias mercantis que escapam, e muito, dos espa-
Immanuel Wallerstein, Rio de Janeiro: Editora ços políticos e geográficos nacionais, fazendo com
Contraponto, tradução de Renato Aguiar, re- que a desigualdade geral do sistema passasse tan-
visão da tradução de César Benjamin, 2001, tas vezes despercebida. Nas palavras do autor:
144 p. “A troca desigual é uma prática antiga. O que é
notável no capitalismo como sistema histórico é a
Isabel Brasil Pereira maneira como essa troca desigual pode ser escondi-
Coordenadora Editorial da revista da; foi tão bem escondida que até mesmo os oponen-
Trabalho, Educação e Saúde tes confessos do sistema só começaram a desvelá-la,
<revtes@fiocruz.br> de forma sistemática, quinhentos anos depois. A cha-
ve para entender esse mecanismo central está na pró-
pria estrutura da economia-mundo, na aparente se-
Não poderia ser mais oportuno o lançamento des- paração, nesse sistema, entre o espaço da economia
te livro de Immanuel Wallerstein no Brasil. Trata- (uma divisão social mundial do trabalho com proces-
se de um resumo, claro e conciso, de um grande es- sos produtivos integrados, todos operando em nome
tudo intitulado The modern world system, onde es- da acumulação incessante de capital) e o espaço da po-
te intelectual americano, nascido em 1930, Diretor lítica (organizado ostensivamente em torno de Esta-
do Centro Fernand Braudel para Estudos de Econo- dos soberanos e separados, cada qual com responsabi-
mias, Sistemas Históricos e Civilizações (EUA), lidade autônoma por decisões políticas no interior de
analisa a formação histórica do capitalismo nos úl- sua jurisdição, todos dispondo de forças armadas pa-
timos quinhentos anos como um sistema de alcan- ra sustentar sua autoridade)” (p. 29).
ce mundial e suas expressões nas esferas econômi- No processo de sua formação histórica, o capi-
ca, política e cultural-ideológica. talismo não tem cessado de expandir sua base geo-
No centro da análise, temos as categorias de sis- gráfica, acompanhado pela necessidade de trans-
tema-mundo e economia-mundo na formação históri- formação de tudo em mercadoria, de uma contínua
ca do capitalismo, que tem seu início marcadamente acumulação de lucro, de uma forte proletarização
na Europa Ocidental e em parte das Américas e que, e de inovações tecnológicas que, para o autor, “tem
já desde o século XIX, inclui todo o planeta. Ao lon- sido menos o motor do que a conseqüência do capita-
go de sua formação, mostra Wallerstein, mudam os lismo histórico” (p. 35). Na sua busca incessante
centros hegemônicos do capitalismo, mas há sempre por mão-de-obra barata e lucros maiores, o capita-
posições centrais e periféricas, avançadas e depen- lismo avançou pelo mundo afora e criou sua civili-
dentes. A conclusão que daí deriva vai contra todo zação histórica, que é julgada por Wallerstein com
otimismo pregado por desenvolvimentistas tradicio- extrema severidade:
nais, que acreditam no desenvolvimentismo como “Longe de ser uma sistema natural, como alguns
um processo nacional, diante de um sistema-mundo apologistas tentaram argumentar, o capitalismo his-
da economia global formada pelo capitalismo, co- tórico é um sistema patentemente absurdo. Acumu-
locando a impossibilidade de países mais atrasados la-se capital para que se possa acumular mais capi-
alcançarem níveis evolutivos compatíveis com os tal. Os capitalistas são como ratos brancos em uma
países ricos e mais desenvolvidos. Destarte, como roda de gaiola, correndo cada vez mais rápido para
o jogo de posições no sistema-mundo do capitalis- poder correr cada vez mais rápido. Nesse processo,
mo não tem base nacional, seja na esfera das políti- algumas pessoas vivem bem, mas outras vivem mi-
cas públicas, seja na estrutural-social ou na de va- seravelmente; e por quanto tempo e até que ponto vi-
lores culturais, resulta que a economia-mundo, vem bem aqueles que vivem bem? Quanto mais re-
mesmo que sempre contraditória e crítica, tem uma fleti sobre esse sistema, mais absurdo ele me pare-
hierarquia constante, embora, entre eles, os Estados ceu. Acredito que a grande maioria das populações do
hegemônicos possam trocar de posição. Ou seja, a mundo esteja – objetiva e subjetivamente – em pio-
formação do capitalismo é indissociável de um sis- res condições materiais do que nos sistemas históri-
tema interestatal, nunca é de Estados nacionais iso- cos anteriores” (p. 38).
lados e independentes, capazes de controlar o pro- A conseqüência dessa análise é clara: “o capita-
cesso básico do desenvolvimento econômico. lismo histórico entrou em sua crise estrutural no co-
Assim sendo, o capitalismo sempre foi uma meço do século XX e provavelmente morrerá, como sis-
economia-mundo baseada em trocas desiguais, em tema histórico, no século próximo. É difícil prever o

Trabalho, Educação e Saúde, 1(1):166-171, 2003


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que acontecerá. O que podemos fazer agora é analisar da, critica a idéia de progresso, fundamental na for-
as dimensões da crise estrutural e tentar perceber para mação do mundo moderno. Que essa idéia tenha
que direções a crise sistêmica está nos levando” (p. 79). sido defendida pelos liberais, interessados na mer-
Notável posição crítica, inclusive reafirmando a cantilização de tudo, entende-se. Mas é menos in-
tese de que “A civilização capitalista terminará; este teligível a defesa apaixonada que alguns marxistas
sistema histórico específico não existirá mais” (p. fizeram da mesma noção de progresso, que passou a
142), em uma época em que o capitalismo tem sido justificar tanto o capitalismo quanto o socialismo,
vendido como forma final da História e as políticas fazendo com que a adesão marxista ao modelo evo-
neoliberais apresentadas como panacéia universal, lucionário de progresso tenha sido uma enorme ar-
que promoveriam a igualdade entre os povos via madilha. O mesmo vale para os processo de raciona-
“mercados livres”, a cultura pós-moderna tem sido lidade e racionalização, inseparáveis da formação do
aceita como forma “aberta” e “plural”, capaz de in- capitalismo histórico como sistema-mundo, que fi-
tegrar as diferenças culturais, religiosas, étnicas, se- zeram da verdade um verdadeiro ópio. Defendendo
xuais e de classe. Com muita precisão, Wallerstein e propagando um universalismo neutro, para o qual
indica que a divisão internacional do trabalho, den- todos deveriam ser educados, as noções de moder-
tro do sistema-mundo que é a economia capitalista, nização e de ocidentalização funcionaram como pi-
vai acompanhada de uma divisão étnica do trabalho, lares do capitalismo histórico. Administradores,
reservando posições específicas para certos grupos cientistas, técnicos e educadores foram formados
na divisão do trabalho e no acesso aos postos de tra- nessa nova fé universal, da competência e do pro-
balho e às oportunidades econômicas, fazendo com gresso, da verdade científica, funcionando como
que um dos pilares da formação do capitalismo his- gerentes ativos de algo bem diferente: “a ênfase na
tórico tenha sido o racismo institucional (p. 67). Não racionalidade da atividade científica serviu para
apenas uma divisão étnica do trabalho, mas também mascarar a irracionalidade da acumulação incessan-
formas de divisão sexual, separando os trabalhado- te” (p.73). Do ponto de vista da área Trabalho,
res e suas posições no sistema. Como é fácil perce- Educação e Saúde, não fica difícil perceber os pon-
ber, uma posição crítica e articulada, bem diferente tos de apoio críticos fornecidos pelas análises de
do liberalismo abstrato e do relativismo que acom- Imanuel Wallerstein. Merece destaque a linguagem
panham certas análises, em nossos dias, sobre a re- crítica, clara e acessível do autor, explicitando con-
lação cultura e trabalho. ceitos que costumam ser apresentados – principal-
Com igual acuidade, já encontrada anterior- mente por intelectuais aderentes ao existente – de
mente nos frankfurtianos, Wallerstein, intelectual maneira cifrada. A linguagem utilizada por Wal-
americano significativo no pensamento de esquer- lerstein e a tradução bem feita possibilitam a leitu-
ra deste livro por jovens e maduros pesquisadores.

Trabalho, Educação e Saúde, 1(1):166-171, 2003

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