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Platão

A República

Platão nasceu em Atenas por volta do ano 427 a.C. Era de família

Nobre, tinha parentesco com membros do governo aristocrático dos


trinta tiranos (404-403 a.C.). Parece ter iniciado seus estudos filosóficos

com o sofista Crátilo, discípulo de Heráclito. Entre 18 e 20 anos 399


a.C. Platão partiu, então, para Mégara, ao encontro de outro discípulo

de Sócrates, Euclides. Certamente a condenação de Sócrates foi um dos

motivos que o fizeram desgostoso com o método da política praticada


em Atenas.

De volta a Atenas, iniciou seus ensinamentos filosóficos. A convite de

Dionísio o Velho, foi a Siracusa, no sul da Itália, onde se relacionou com

os pitagóricos. Suas doutrinas irritaram o tirano que, ao que parece,


mandou vendê-lo como escravo no mercado de Egina, de onde foi

resgatado por um cirenaico.

Novamente em Atenas, fundou a Academia, escola destinada à


investigação filosófica, e dirigiu-a pelo resto da vida, ali os alunos
deviam aprender a criticar e pensar por si mesmos, em vez de aceitar as
ideias de seus mestres, como disse, esta é considerada a primeira

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universidade, a Academia de Platão adquiriu grande prestigio, a ela

acorriam numerosos jovens e até homens ilustres.

O convite de Dionísio o Jovem, sucessor do tirano de Siracusa,

empreendeu uma segunda viagem à Sicília com o objectivo de pôr em


prática suas ideias de reforma política, mas retornou a Atenas quando

seu protector caiu em desgraça. Sua terceira viagem ao sul da Itália, a


convite do mesmo Dionísio, culminou em fuga, por estar implicado nas

lutas políticas do estado. Após essa viagem, Platão permaneceu em

Atenas até a morte aos 81 anos, em 347 a.C.

Uma das suas obras mais importantes são A republica.

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Análise da obra

No século IV a.C., em data imprecisa, surgiu em Atenas a primeira


concepção de sociedade perfeita que se conhece. Tratou-se do
diálogo A República (Politéia), escrito por Platão, o mais brilhante
e conhecido discípulo de Sócrates. As ideias expostas por ele - o
sonho de uma vida harmónica, fraterna, que dominasse para sempre o
caos da realidade - servirão, ao longo dos tempos, como a matriz
inspiradora de todas utopias aparecidas e da maioria dos movimentos
de reforma social que desde então a humanidade conheceu.

Essa é a obra mais importante de Platão. Nela ele expõe suas principais
ideias. Ali está descrito o Mito da Caverna, o que é um filósofo e como
é uma sociedade justa entre outras ideias-
Em A República, Platão idealiza uma cidade, na qual dirigentes e
guardiães representam a encarnação da pura racionalidade. Neles
encontra discípulos dóceis, capazes de compreender todas as renúncias
que a razão lhes impõe, mesmo quando duras. O egoísmo está
superado e as paixões, controladas. Os interesses pessoais se casam
com os da totalidade social, e o príncipe filósofo é a tipificação perfeita
do demiurgo terreno. Apesar de tudo isso e desse ideal de Bem
comum, Platão parece reconhecer o carácter utópico desse projecto
político, no final do livro IX de A República.

Tendo em vista esse ideal, o trabalho manual continuava não valorizado


no âmbito da cidade-estado. A classe dos trabalhadores não era classe
cidadã, pois não lhes sobrava tempo para a contemplação teórica da
verdade e para a práxis política. Para Platão, o ideal humano se
realizava na figura do cidadão filósofo, livre das incumbências da
sobrevivência, constituindo um ideal altamente elitista.

Para além de todas as utopias da sua república ideal, da figura dos reis
filósofos, devemos apreciar o ideal ético de Estado e o esforço de Platão
para desvendar os vínculos que ligam os destinos das pessoas ao
destino da cidade.

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A República começa com um sofista, Trasímaco, declarando que a
força é um direito, e que a justiça é o interesse do mais forte. As
formas de governo fazem leis visando seus interesses, e
determinam assim o que é justo, punindo como injusto aquele que
transgredir suas regras. Para responder a pergunta "Como seria
uma cidade justa?" , Sócrates começa a dialogar, principalmente com
Gláucon e Adimanto. Platão salienta que a justiça é uma relação entre
indivíduos, e depende da organização social. Mais tarde fala que justiça
é fazer aquilo que nos compete, de acordo com a nossa função. A justiça
seria simples se os homens fossem simples. Os homens viveriam
produzindo de acordo com as suas necessidades, trabalhando muito e
sendo vegetarianos, tudo sem luxo. Para implantar seu sistema de
governo, Platão imagina que deve-se começar da estaca zero. O primeiro
passo seria tirar os filhos das suas mães. Platão repudiava o modo de
vida com a promiscuidade social, ganância, a mente que a riqueza, o
luxo e os excessos moldam, típicos dos homens ricos de Atenas. Nunca
se contentavam com o que tinham, e desejavam as coisas dos terceiros.
Assim resultava a invasão de um grupo para o outro e vinha a guerra.

Platão achava um absurdo que homens com mais votos pudessem


assumir cargos da mais alta importância, pois nem sempre o mais
votado é o melhor preparado. Era preciso criar um método para impedir
que a corrupção e a incompetência tomassem conta do poder público,
Mas atrás desses problemas estava a psyche humana, como havia
identificado Sócrates, Para Platão o conhecimento humano vem de
três fontes principais: o desejo, a emoção, e o conhecimento, que
fluem do baixo ventre, coração e cabeça, respectivamente. Essas
fontes seriam forças presentes em diferentes graus de distribuição nos
indivíduos. Elas se dosariam umas às outras, e num homem apto a
governar, estariam em equilíbrio, com a cabeça liderando
continuamente. Para isso, é preciso uma longa preparação e muita
sabedoria. O mais indicado, para Platão, é o filósofo: "enquanto
os filósofos deste mundo não tiverem o espírito e o poder da
filosofia, a sabedoria e a liderança não se encontrarão no mesmo
homem, e as cidades sofrerão os males".

Para começar essa sociedade ideal, como dissemos, deve-se tirar os


filhos dos pais, para protegê-los dos maus hábitos. Nos primeiros dez
anos, a educação será predominantemente física. A medicina serve só
para os doentes sedentários das cidades. Não se deve viver para a
doença. Para contrabalançar com as actividades físicas, a música.

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A música aperfeiçoa o espírito, cria um requinte de sentimento e molda
o carácter, também restaura a saúde.

Para Platão, a inspiração e a intuição verdadeira não se conseguem


quando se está consciente, com a razão. O poder do intelecto está
reprimido no sono ou na atenção que aflora com a doença. Ele então
critica o controlo da lei e da razão à certos instintos que ele chama de
ilegais
Depois dos dezasseis anos, e de misturar a música para lições musicais
com a música pura, essas práticas são abandonadas. Assim os
membros dessa comunidade teriam uma base psicológica e fisiológica. A
base moral será dada pela crença em Deus. O que torna a nação forte
seria Ele, pois ele pode dar conforto aos corações aflitos, coragem às
almas e incitar e obrigar. Platão admite que a crença em Deus não pode
ser demonstrada, nem sua existência, mas fala que ela não faz mal, só
bem.

Aos vinte anos, chegará a hora da Grande Eliminação, um teste prático


e teórico, Começa a divisão por classes da República. Os que não
passarem serão designados para o trabalho económico. Depois de mais
dez anos de educação e treino, outro teste. Os que passarem
aprenderão o deleite da filosofia. Assim se dedicarão ao estudo da
doutrina e do mundo das Ideias.
O mundo das Ideias seria um mundo transcendente, de existência
autónoma, que está por trás do mundo sensível. As Ideias são formas
puras, modelos perfeitos eternos e imutáveis, paradigmas. O que
pertence ao mundo dos sentidos se corrói e se desintegra com a acção
do tempo. Mas tudo o que percebemos, todos os itens são formados a
partir das Ideias, constituindo cópias imperfeitas desses modelos
espirituais. Só podemos atingir a realidade das Ideias, na medida em
que pelo processo dialéctico, nossa mente se afasta do mundo concreto,
atravessando com a alma sucessivos graus de abstracção, usando
sistematicamente o discurso para se chegar à essência do mundo. A
dialéctica é um instrumento de busca da verdade.

Platão acreditava numa alma imortal, que já existia no mundo


das Ideias antes de habitar nosso corpo. Assim que passa a habitá-
lo esquece das Ideias perfeitas. Então o mundo se apresenta a partir de
uma vaga lembrança. A alma quer voltar para o mundo das Ideias. Um
dos primeiros críticos de toda essa teoria de Platão foi um de seus
alunos da Academia, Aristóteles.

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Igualmente conhecida na República é a alegoria da caverna, que
ilustra como percebemos apenas parte do mundo, reduzindo-o.
Um grupo de pessoas vive acorrentada numa caverna desde que
nasceu, de costas para a entrada. Elas vêem reflectidas na
parede da caverna as sombras do mundo real, pois há uma
fogueira queimando além de um muro, depois da entrada. Elas
acham que as sombras são tudo o que existe. Um dos habitantes
se livra das amarras. Fora da caverna, primeiro ele se acostuma
com a luz, depois vê a beleza e a vastidão do mundo, com suas
cores e contornos. Ao voltar para a caverna para libertar seus
companheiros, acaba sendo assassinado, pois não acreditam
nele.·
Depois de estudar a filosofia, aqueles que forem considerados aptos irão
testar seus conhecimentos no mundo real, onde experimentarão os
dissabores da vida, ganhando comida conforma o trabalho,
experimentando a crua realidade. Aos cinquenta anos, os que
sobreviveram tornaram-se os governantes do Estado.
Todos terão oportunidades iguais, mas na eliminação serão designados
para classes diferentes. Os filósofos-reis não terão nenhum
privilégio, tendo só os bens necessários, serão vegetarianos e
dormirão no mesmo lugar. A procriação será para fins eugênicos,
o sexo não será apenas por prazer. Haverá defensores contra
inimigos externos, os guardiões, homens fortes, dedicados à
comunidade. Não haverá diferença de oportunidade entre o sexo,
sendo cada um designado a fazer uma tarefa de acordo com a sua
capacidade.
Platão fala da renúncia do indivíduo em prol da comunidade, impondo
inúmeras condições para a vida. Ele atenta para um problema muito
preocupante em nossos dias: a superpopulação. Os homens só
poderiam se reproduzir entre os trinta e quarenta e cinco anos, e as
mulheres entre os vinte e quarenta anos. Também a legislação de
Esparta, que muito inspirou Platão, e a proposta de Aristóteles na
Política levam em conta este aspecto. Assim, resumidamente seria o
Estado ideal, justo. O próprio Platão fala de dificuldade em se fazem um
empreendimento dessa natureza. Um rei ofereceu à ele terras para fazer
sua República, ele aceitou, mas o rei ficou sabendo que quem iria
governar eram os filósofos e mudou de ideia.
Apesar do título, A República (em grego: Politéia), Platão nesta obra não
tem como ponto principal a reflexão sobre teoria política. Nesta obra, o
filósofo lida sobretudo com as questões em torno da paidéia, a formação
grega, na tentativa de impor uma orientação filosófica de educação em
oposição à paidéia poética então vigente. Outro alvo que tem em vista é

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a carreira que os sofistas vinham desenvolvendo como educadores que,
com sua retórica, preparavam os cidadãos a saberem argumentar nos
embates democráticos da ágora. Não tinham, portanto, um
compromisso com a verdade - seus argumentos giravam em torno das
percepções, opiniões e crenças - a doxa. A república ideal seria mais um
resultado da paidéia filosófica que Platão tenta fundamentar e propor
com seus argumentos nesta obra do que o tema central da
argumentação em si. Apenas um terço dos dez livros de A República,
aproximadamente, tratam da organização e fundamentação filosófica da
pólis especificamente. O tratamento dado às questões por Platão acaba
por se tornar sistematizado por aqueles que adoptam sua teoria, a
partir do quê o pensamento no ocidente se torna uma sucessão de
sistemas teóricos. Isso nos leva a considerá-lo o "pai" da filosofia, ao
menos da filosofia enquanto pensamento sistematizado.

Estrutura da obra

A República pertence, juntamente com o Banquete (Simpósio), o Fédon e


o Fedro, à maturidade de Platão. É a obra mais extensa do autor. Foi
elaborada ao longo de vários anos, pois nela já estão presentes as ideias
mestras de seu sistema: Teoria do Mundo das Ideias (Hiper Urânio); o
Filósofo Rei, a imortalidade da alma, etc. Seu estilo, como a maioria das
demais obras de Platão, é o diálogo, isto é, um processo de discussão
(dialéctica) através de perguntas e respostas com o escopo de atingir a
verdade (VII-534b). Composta por dez livros, inicia-se e termina com a
discussão em torno da justiça como virtude maior, na consecução de
um ―Estado perfeito‖.

Seguindo a tradição da didáctica grega, aqui Platão lançará mão da


alegoria (Livro VII) e do mito, com o objectivo de ―ir além‖ daquilo que a
razão (logos) pode descrever, sobretudo quando trata de assuntos
escatológicos como no Mito de Er (X. 614b-621b).

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Personagens

Mencionar as figuras da República é necessário tanto para a


compreensão desta obra de Platão, assim como para destacar a
importância de outros pensadores que formaram o pensamento
filosófico grego.

Sócrates - Principal figura, na boca do qual Platão coloca seu


pensamento. O encontro de Sócrates com os demais personagens se dá
no Pireu, onde ele havia se dirigido com a finalidade de orar e constatar
as festividades em honra à deusa Bêndis (Diana ou Ártemis) (327a). O
local da discussão é a casa de Polemarco, irmão de Lísias e Eutidemos,
filhos do velho Céfalo (327b).

Acompanham Sócrates os dois irmãos de Platão, Glauco e Adimanto;


também Mecenato que figurará entre os personagens do Banquete. Este
era filho do general Nícias que, em 421, celebrou o armistício na guerra
do Peloponeso. Nicerato foi condenado a beber cicuta no mesmo período
que Sócrates.

Polemarco - Filho mais velho de Céfalo, herdou deste a fábrica de


escudos. À época dos Trinta Tiranos, foi também preso e obrigado a
beber cicuta.

Lísias - Considerado juntamente com Demóstenes, um dos mestres da


oratória clássica grega, foi condenado à morte com o irmão Polemarco.
Conseguiu escapar e, ao regressar, processou Eratóstenes pela morte
do irmão, no célebre sermão Contra Eratóstenes. É nessa obra que
descreve a vida de seu pai Céfalo.

Céfalo - Nasceu em Siracusa – portanto, era meteco -, estabeleceu-se


em Atenas e após trinta anos acumulou fortuna com uma fábrica de
escudos; foi desapropriado pelos Trinta Tiranos. É Céfalo que convida
Sócrates a vir com frequência em casa para debater com seus filhos
(329d).

Trasímaco - é o famoso sofista. Especialista na dialéctica, irrita-se


com a ironia de Sócrates, no início da discussão sobre a Justiça (336d.
337a). Definirá a justiça como ―a conveniência dos mais poderosos‖
(340b).

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Conteúdo
O próprio título da obra, Politéia, pode trazer embaraço quanto ao
conteúdo, se não for esclarecido. Traduzida comumente pelo latim
República (de respública = coisa pública), politéia indica tudo aquilo
que compõe a origem e organização da Polis, as suas leis, o modus
agendi de seus súbditos, as formas de governo, etc. Devido a essa
abrangência de significados, os temas tratados são os mais variados.
Decorre daí a quase impossibilidade de uma resenha completa.

Livro I - aponta Sócrates obrigado a pernoitar na casa de Polemarco e


aí inicia seu diálogo com Céfalo. Primeiro, é Céfalo que o convida a vir
mais vezes a ter com os filhos Polemarco, Lísias e Eutidemo. Em tom
respeitoso, Sócrates pergunta sobre a velhice, ao qual Céfalo responde
sobre as agruras da senectude e, citando Sófocles, indica que o mal não
é a velhice em si. Ser velho ou jovem, tudo depende do carácter:
―Quando se possui boa índole e mente bem equilibrada, a própria
velhice não é algo incompactável. Os que são diversamente
constituídos, esses acham a mocidade tão tediosa quanto a velhice‖.
(329d)

Logo Sócrates conduz o diálogo ao seu objectivo primeiro: definir o que é


a justiça (Dikaiosyne), e é Céfalo a dar a primeira definição: ―Justiça é
dizer a verdade e restituir o que se tomou‖ (331c). Céfalo se retira do
diálogo deixando o posto ao seu filho herdeiro Polemarco. Este define a
Justiça como ―dar a cada um o que lhe é devido‖; Sócrates o retruca
com ironia: deve-se restituir algo a alguém que está fora do juízo?
Adiante, faz ainda Polemarco afirmar que ―a Justiça é favorecer aos
amigos e prejudicar os inimigos‖, ao que o próprio Sócrates rebate: ―Se
alguém disser que a Justiça consiste em restituir a cada um aquilo que
lhe é devido, e com isso quiser significar que o homem justo deve fazer
mal aos inimigos, e bem aos amigos – quem assim falar não é sábio,
porquanto não disse a verdade. Efectivamente, em caso algum nos
pareceu que fosse justo fazer mal a alguém‖ (335e).
A esta altura do diálogo, entra em cena o sofista Trasímaco que, após
cobrar pela discussão, define a justiça como ―o interesse do mais forte‖.
Algo que depende do interesse de quem governa. Tirando assim, como
sofista que era, toda dimensão ética da justiça (338c).

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A definição de justiça ocupará ainda os livros II, III e IV. Sócrates
alarga o campo da discussão, não relaciona a justiça com o cidadão,
mas a coloca no contexto da cidade. Entram em cena Glauco e
Adimanto, irmãos ―corajosos‖ de Platão. Estes tentam demonstrar a
bondade intrínseca da virtude (justiça) e não só os seus efeitos. A esta
altura, Sócrates estabelece a origem da Polis a partir ―do fato de cada
um de nós não ser auto-suficiente, mas sim necessitado de muita coisa‖
(369b). Apontando os profissionais necessários para suprir todas as
exigências de uma cidade, descreve como uma cidade minúscula
tornar-se-á grande e luxuosa, com a necessidade de classes de cidadãos
especializados em seus ofícios. Dá-se início a um dos temas relevantes
da República: a educação
Sócrates fala primeiro do aprimoramento da educação dos soldados que
se dará através da ―ginástica para o corpo e da música para a alma‖
(276c), iniciando pela música. Deve-se peneirar as letras das músicas
(poesia, fábulas) porque estas contêm somente parte da verdade e com
isso deturpam a alma; portanto, devem sofrer uma censura constante,
inclusive a Ilíada (379...), onde atribui-se aos deuses tanto o bem
quanto o mal. Este tipo de poesia deverá ser banido da educação dos
futuros guardiões (383c). Não só a poesia/música, mas todas as demais
artes deverão ser vigiadas. Esta censura constitui parte do livro III.

Livro IV - Sócrates, dando por fundada a cidade, questiona: ―onde


poderá estar a justiça, e onde a injustiça, e em que diferem uma da
outra‖ (427d). Para vir à tona o lugar da justiça, enumeram-se as
virtudes que uma cidade perfeita deve possuir; estas formam uma
―sinfonia‖- em primeiro está a sabedoria (Sofia), virtude dos que
governam; segue-se a coragem (Andreia), que é a virtude dos guerreiros:
―É, pois, uma força desta ordem, salvação em todas as circunstâncias
de opinião recta e legítima, relativamente às coisas temíveis e às que
não o são, que eu chamo coragem e tenho nessa conta, se não tens
nada a opor.‖ (430b) Vem em seguida a temperança (sofrosine). É a
virtude de toda a cidade, e não de uma classe específica; consiste na
ordenação, no domínio diante dos excessos, é ―a concórdia, harmonia
entre os naturalmente piores e os naturalmente melhores, sobre a
questão de saber quem deve comandar, quer na cidade, quer num
indivíduo‖ (432a). Por último, surge a mais importante das virtudes e
causa das demais: a justiça (dikaiosyne). ―E esta consiste em que cada
um realize a função para a qual a sua natureza for mais adequada‖ (433
a-b-c-d).
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―Lembras-te daquele princípio original em que sempre insistíamos
durante a fundação da cidade: o de que um homem deve atender a uma
coisa só, isto é, aquilo para que a sua natureza está melhor dotada?
Pois a justiça é este princípio... Podemos presumir que, de certo modo,
a justiça consiste nisso: em fazer cada qual o que lhe compete... Esta é
a causa primeira e condição de existência de todas as outras três
virtudes, e que as conserva enquanto nelas subsiste‖. (433 a-b-c).

Livro V - a pedido de Polemarco, Sócrates retoma o tema já


mencionado (423 e 424) da ―posse comum das mulheres e filhos entre
os guardiões‖ (449d). Preocupado com a purificação da raça (eugenia) e
com o adestramento (eutenia), propõe para tal fim, que as mulheres dos
guardiões ―se revestirão de virtude em vez de roupa‖ (457a-b),
participarão das agruras da guerra em defesa da cidade, praticarão
ginástica e música. ―Estas mulheres todas serão comuns a todos esses
homens, e nenhuma coabitará em particular com nenhum deles; e, por
sua vez, os filhos serão comuns, e nem os pais saberão quem são os
seus próprios filhos, nem os filhos os pais‖. (457d).

Todo esse processo eugênico tem por fim a realização do Estado Ideal,
governado por filósofos e guardiões que jamais deverão se distrair de
suas principais ocupações. Obstinado em tal propósito, Sócrates chega
a excluir qualquer valor ao amor materno ou paterno, antepondo
sempre os objectivos do Estado (460-461). Admite-se o aborto e o
infanticídio quando ocorrerem concepções fora do estabelecido pelo
Estado (461c)

Livro VI - inicia com a distinção entre ―quem é que é filósofo e quem


não o é‖ (484 a): Filósofos, responde Sócrates, são aqueles que são
capazes de atingir aquilo que se mantém sempre do mesmo modo, os
que não o são se perdem no que é múltiplo e variável (484b). Como as
leis e os costumes do Estado devem reflectir o eterno, somente os
filósofos, capazes de conceber as ideias eternas, deve ser estabelecidos
guardiões por serem capazes de guardá-las.

A alma filosófica ao ―contemplar a totalidade do tempo e do ser‖ (486a),


colocará a própria vida e a morte em segundo plano e se ―apaixonará
pelo saber que possa revelar-lhe algo daquela essência que existe

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sempre, e que não se desvirtua por acção da geração e da corrupção‖
(485b).

À crítica da inutilidade do filósofo na cidade, Sócrates responde que este


é analogamente o médico diante dos doentes e o piloto diante dos
marujos.

Livro VII - tratar-se-á da educação do futuro governo-filósofo.


Todas as quatro virtudes (sabedoria, coragem, temperança e
justiça) sobre as quais deve ser construído o Estado Ideal, só são
conhecidas, úteis e valiosas a partir da ideia de Bem. Assim, a
ideia do Bem constitui-se no mais alto saber, ao qual os guardiões
devem aspirar e serem conduzidos. É mediante tal ideia que tudo se
torna compreensível: ―... No limite do cognoscível é que se avista, a
custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é
para todos a causa de quanto de justo e belo há; que, no mundo visível,
foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é
ela senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para ser
sensato na vida particular e pública‖ (517 a-b-c).

Mas, para que o guardião, futuro filósofo-rei, atinja o Bem, é preciso


―sair da caverna e contemplar o Sol‖. É no livro VII que está a ―alegoria
da caverna‖, a mais sugestiva imagem da República, que trata dos
níveis do conhecimento humano (514-a. 518-b).

Livros VIII e IX - Sócrates descreve as transformações que as formas


de governo podem sofrer e recapitular as regras do ―Estado Comunista‖,
onde os governantes, assim como os soldados e atletas, possuirão tudo
em comum (mulheres, filhos, casas e educação).

A forma ideal de governo é a aristocracia (544e), comandada por


aqueles que amam o saber, o bem e o justo. Mas, se tudo o que
nasce está sujeito à corrupção, nem uma constituição como essa
permanecerá para sempre, há de dissolver-se (546a). Através de
um complicado cálculo geométrico, Sócrates faz ver que há uma
falha eugênica (exemplificada pela mistura indevida de metais)
(547a); o amor à justiça é substituído pelo amor ao poder e à
riqueza; assim, ocorrerá a Timocracia, “uma forma de governo
entre a aristocracia e a oligarquia” (547c). A esta sucede a
oligarquia, governo dos que amam o dinheiro (551a). Ao legislar

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em favor só de uma classe, a dos ricos, esta forma de governo
causará a cisão do Estado: “É que um Estado desses não é um só,
mas dois... o dos pobres e o dos ricos, que habitam no mesmo
lugar e estão sempre a conspirar uns contra os outros” (551 d).
Termina o amor à virtude. O Estado entra em luta consigo mesmo:
um partido de poucos muito ricos e outro de muitos pobres
estarão em guerra, prevalecendo o último: “A democracia surge...
quando após a vitória dos pobres, estes matam uns, expulsam
outros, e partilham igualmente... o governo e as magistraturas, e
esses cargos são, na maior parte, tirados à sorte (557a). Tendo a
liberdade por base, na democracia ocorrerá a ausência de
qualquer exigência e o desprezo pelos princípios. A democracia
conduz à anarquia: “Estas são as vantagens da democracia: uma
forma aprazível, anárquica, variegada, e que reparte a sua
igualdade do mesmo modo pelo que é igual e pelo que é desigual”
(558c). Ao exasperar a liberdade como bem supremo, “eliminam-se
até as diferenças impostas pela natureza e, assim, a liberdade em
excesso não conduz a mais nada que não seja a escravatura em
excesso, quer para o indivíduo, quer para o Estado” (564 a). E
dessa forma surge a Tirania: do cúmulo da liberdade surge a
mais completa e mais selvagem das escravaturas (564b). Primeiro,
instaura-se a anarquia, e dessa situação aproveita-se o tirano
que, de pretenso defensor da ordem, transforma-se em lobo,
impondo a força sobre todos. É o reino da injustiça.

No final do livro IX, Glauco questiona que tal Estado Ideal, como
Sócrates propõe, é utópico, jamais existirá. Este Estado
permanecerá como modelo eterno a ser contemplado: “Talvez nos
céus haja algum modelo para alguém que deseja consultá-lo e por
ele modelar a conduta da própria alma”, é a resposta de Sócrates.

Livro X - no início do livro Sócrates retoma a crítica à poesia como


meio educativo. A poesia não revela as coisas como são, mas como num
espelho, nos revela só a aparência; e da natureza humana descreve
somente o trágico e o triste. A poesia, enfim, está a três passos da
realidade ( ). Deverá ser excluída da Cidade uma arte dessa espécie
(607b), pois seria prejudicial à justiça e às demais virtudes (608b).
Sócrates dá a entender que a poesia deva ser substituída pela filosofia,
como meio educativo, pois somente esta pode nos revelar, na sua forma
dialéctica, o que é a realidade de fato.

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O restante do livro X constitui uma exortação à prática do Bem, ou seja,
da justiça e das demais virtudes. Sócrates recorre ao discurso
escatológico através do mito de Er, onde fala da recompensa no pós
morte: afinal, a vida ―é um grande combate (megas agon), meu caro
Glauco, é mais do que parece, o que consiste em nos tornarmos bons
ou maus. De modo que não devamos deixar-nos arrebatar por
honrarias, riquezas, nem poder algum, nem mesmo pela poesia,
descurando a justiça e as outras virtudes‖ (608b).

Concluindo a República, Sócrates trata da imortalidade da alma e tenta


equacionar o destino com a responsabilidade. Retornando às figuras
das três Parcas: Laquesis (passado), Cloto (presente) e Átropos (futuro),
as filhas da Necessidade, Sócrates folga os laços do férreo destino,
defendido pelo pensamento grego anterior: ―Não é o génio que vos
escolherá, mas vós que escolhereis o génio. O primeiro a quem a sorte
couber, seja o primeiro a escolher uma vida a que ficará ligado pela
necessidade. A virtude não tem senhor; cada um a terá em maior ou
menor grau, conforme a honrar ou a desonrar. A responsabilidade é de
quem a escolhe. O deus é isento de culpa‖ (617 e).

Assim, como é impossível a alguém descrever todos os detalhes de uma


obra de arte, analogamente nesta resenha não foi possível transmitir
―tudo‖ sobre a República – que esta sirva ao menos como convite à
leitura e contemplação desta obra-prima do génio grego.

O Sonho de Platão
No século IV a.C., em data imprecisa, surgiu
em Atenas a primeira concepção de sociedade
perfeita que se conhece. Tratou-se do diálogo
"A República" (Politéia), escrito por Platão, o
mais brilhante e conhecido discípulo de
Sócrates. As ideias expostas por ele - o sonho
de uma vida harmónica, fraterna, que
dominasse para sempre o caos da realidade -
servirão, ao longo dos tempos, como a matriz
inspiradora de todas utopias aparecidas e da
maioria dos movimentos de reforma social que
desde então a humanidade conheceu. O mestre e o discípulo

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Platão e a democracia

O filósofo Platão (428-347 a.C.) foi um dos maiores


críticos da democracia. do seu tempo. Pelo menos
daquela que era praticada em Atenas e que ele
conheceu de perto. Nascido em uma família ilustre
que se orgulhava de descender do grande
reformador Sólon, Platão, como ele mesmo explicou
na conhecida VII Carta, terminou desviando-se da
carreira política devido ao regime dos "Trinta
Tiranos", derrocado em 403 a.C. Um dos seus
Platão parentes próximos havia exercido elevadas funções
durante aquela tirania, que, apesar da sua curta
duração, foi extremamente violenta, perseguindo os adversários de
maneira incomum para os costumes gregos. Fato que lançou suspeitas
sobre toda a sua família, inclusive atingindo o jovem Platão, quando a
democracia foi restaurada. Mas o fator decisivo da aversão dele à
democracia deveu-se ao julgamento e condenação a que foi submetido
no areópago o seu velho mestre, o sábio Sócrates. Que , como é sabido,
foi injustamente acusado de impiedade e de ter corrompido a juventude
ateniense, educando-a na suspeição dos deuses da cidade. Caso célebre
acontecido no ano de 399 a.C. e que culminou com Sócrates sendo
obrigado a beber a cicuta (veneno oficial com que se executavam os
condenados em Atenas). Esse crime jurídico que vitimou o amável
ancião fez com que ele passasse a se dedicar, entre outras coisas, à
busca de um regime político ideal, que evitasse para sempre a
possibilidade de reproduzir-se uma injustiça como a que vitimou o
velho sábio.

Os diálogos, obra dramática


Platão, como grande estilista da língua grega que era, dotado de
extraordinário censo dramático, apresentou um método original de
expor suas reflexões: o do diálogo. O que levou a que alguns estudiosos
afirmar que tal método de exposição era literariamente tão grandioso
como as tragédias de Ésquilo ou de Sófocles. Neles, nos diálogos
platónicos, o personagem central é Sócrates, com quem Platão privou
até o seu momento final. A principal obra política dele foi "A República"
(Politéia), que compôs provavelmente entre 380 e 370 a.C., quando
tinha mais de 50 anos de idade, portanto, obra da sua maturidade. Um
pouco antes do seu falecimento Platão voltou novamente a especular
sobre a sociedade ideal por meio de outro grande diálogo: As Leis.

O cenário onde a reunião acontece, tal como ocorre em tantos outros


diálogos de Platão, é a casa de um homem rico, o velho Céfalo, que põe

15
o seu salão à disposição dos intelectuais, políticos e artistas para
discutirem filosofia e assuntos gerais. Estão presentes Sócrates, os
filhos do dono da casa, Polemarco, Lísias e Eutiderno, além de Timeu,
Criticas e Trasímaco. Tais tertúlias eram muito comuns, fazendo o gosto
das classes cultas de Atenas, sendo uma espécie de antecipação dos
salões que fizeram a fama da sociedade aristocrática francesa do século
XVIII e XIX.

A escola de Platão, paradigma da sociedade perfeita


(tela de J.Delville)

A Justiça
O debate entre os visitantes e anfitriões orientou-se no sentido de
determinar como constituir uma sociedade justa. Como tal não existe
na realidade, os participantes se dispõe então a imaginá-la, bem
como determinar sua organização, governo e a qualidade dos seus
governantes. Para Platão, a educação (paidéia) seria o ponto de
partida e principal instrumento de selecção e avaliação das aptidões
de cada um. Sendo a alma humana (psikê) um composto de três
partes: o apetite, a coragem e a razão, todos nascem com essa
combinação, só que uma delas predomina sobre as demais. Se
alguém deixa envolver-se apenas pelas impressões geradas pelas
sensações

motivadas pelo apetite, termina pertencendo


às classes inferiores. Por outro lado, se
manifesta um espírito corajoso e resoluto,
seguramente irá fazer parte da classe dos
guardiões, dos soldados, responsáveis pela
segurança da colectividade e pelas guerras.
Finalmente, se o indivíduo deixa-se guiar
pela sabedoria e pela razão é obvio que
apresenta as melhores condições para Governante e sua
integrar-se nos sectores dirigentes dessa comitiva
almejada sociedade
16
A alma e as classes

Partes da Alma Virtudes Classes sociais

O apetite (Tó Temperança Trabalhadores(demioyrgói)


Ephithymtkón) (soprosyn)

A coragem (Tó Valor (Andreia) Guardiães(phylaches)


Thymoeidés)
A razão (Tó Sabedoria Governantes(arkontes)
Logistikón) (sophia)

A justiça é feita

Desta forma, com cada indivíduo ocupando o


espaço que lhe é devido, a justiça está feita. A
Justiça(dikê) é aqui entendida não como uma
distribuição equânime da igualdade, como
modernamente se entende, mas como a
necessidade de que cada um reconheça o seu
lugar na sociedade segundo a natureza das
coisas e não tente ocupar o espaço que
pertence a outro. Concepção que lembra muito
a teoria cósmica de Aristóteles, exposta na
Física, segundo a qual os corpos mais densos
A cada um ocupam os lugares centrais enquanto que os
segundo a sua mais leves flutuam ao seu redor...
natureza

17
Platão, neste seu entendimento da justiça,
manifesta um espírito eminentemente
conservador ao pretender que cada classe
social se conforme com a situação que ocupa
na pólis e não tente alterá-la ou subvertê-la.
Fazendo-se uma leitura moderna dessas
conclusões, os trabalhadores jamais
poderiam reivindicar o poder político pois
esse deve pertencer exclusivamente aos mais
instruídos e mais sábios. Como se vê, o
filósofo não pretende abolir as classes Uma sociedade em
sociais, como muitos dos seus intérpretes harmonia e paz
afirmavam. Bem ao contrário. A intenção
dele foi reformar o sistema de classes estabelecido pelas diferenças
de renda e património (ricos, pobres e remediados), comuns na
maioria das épocas históricas, substituindo-o por um outro baseado
nas atribuições naturais com que cada um é dotado (razão, coragem,
apetite). Portanto é totalmente inapropriado dizer-se haver um
comunismo platónico.

Propriedade e família

Para Platão, os conflitos e as guerras civis que


enlutam a sociedade devem-se, na maior
parte das vezes, às diferenças entre ricos e
pobres. O embate entre essas duas classes
rivais provoca uma instabilidade permanente
na sociedade. Dessa forma, a sociedade ideal,
perfeita, só é possível suprimindo-se com a
desigualdade entre os seus cidadãos, cabendo
ao estado confiscar toda a riqueza privada
fazendo dela um fundo comum utilizado
somente para a protecção colectiva. Não é
possível imaginar-se algo que vise à
perenidade abrigando em seu meio uma
Na Republica
tensão permanente, como é comum existir
perfeita o ouro
nas sociedades estremecidas pela luta de
seria proibido
classes. O ouro não sendo de ninguém em
particular, permanecendo num tesouro estatal, não poderá ser usado
para provocar a discórdia e a inveja, tão deletérias à paz social.

O casamento monogâmico, por sua vez, bastião em que se apoia o


poder dos ghénos, o poder das famílias, deveria igualmente ser
abolido, fazendo com que fossem substituído por cerimonias
nupciais colectivas - o himeneu colectivo, cujo objectivo é meramente
reprodutivo. Os filhos desse tipo de casamento seriam todos eles
18
considerados, indistintamente, filhos da comunidade. Uma nova
família emergiria então, inteiramente dissolvida na comunidade. A
razão disso é que o filósofo via na existência das famílias como então
eram compostas, ordenadas em poderosos clãs, um factor impeditivo
para chegar-se à harmonia, visto que, muitas vezes, os
egocentrismos delas, os interesses particulares dos clãs
conflituavam-se abertamente com os interesses gerais da pólis. Era o
que a peça " de Sófocles "Antígona" , na sua essência, tratava.. Platão
sugere que esses casamentos colectivos não sejam aleatórios e se
façam preservando as características de cada classe, o que
fatalmente levaria, em curto prazo, à formação de um ordenamento
social dividido em castas (a dos filósofos, a dos guerreiros e a do povo
comum). Nesta sociedade, as mulheres, tal como já ocorria em
Esparta, não sofreriam nenhum tipo de discriminação, condenando
qualquer diferença entre os sexos. Elas fariam todas as tarefas em
comum com os homens, bem como prestariam serviço militar,
acompanhado os regimentos à guerra. Ele acreditava que a presença
delas nos campos de batalha aumentaria a valentia dos soldados,
pois eles não desejariam passar por covardes frente aos olhares
femininos.

Os governantes
Um dos aspectos mais conhecidos e polémicos da
utopia de Platão é o que trata dos governantes
(arcontes), pois para ele a sociedade ideal deveria ser
governada pelos filósofos, ou pelo filósofo-rei,
porque somente o homem sábio tem a inteira ideia do
bem, do belo e da justiça. Consequentemente, ele terá
menos inclinação para cometer injustiças ou de
praticar o mal, impedindo os governados de se
rebelarem contra a ordem social. Mas por que o
homem sábio é aquele que está mais próximo da ideia Os
do bem? governantes
são os mais
sábios

19
O mundo das ideias

Para responder a isso é preciso entender que


Platão era adepto da teoria da transmigração ou do
eterno retorno das almas, fenómeno conhecido
como palingenesia. Tudo o que existe aqui no
mundo real, em nosso mundo, não passa de uma
projecção materializada do mundo das ideias que
está bem além da nossa percepção sensitiva,
conservando-se nele todas as formas que existem
(tantos os objectos, tais como cadeiras e mesas,
como as ideias morais). Nosso corpo, ao morrer,
faz com que a alma (psikê) se desprenda dele e
flutue em direcção ao lugar celestial onde se
Platão, o
encontram as ideias ou formas (o tópos ouranós).
reformador deve
A alma dos filósofos, dos homens amantes do
olhar para os céus
saber, é a que mais se aproxima deste mundo,
percebendo então na suas plenitudes, mais do que as almas das gentes
comuns, as ideias de bondade, beleza e justiça. É exactamente esta
qualidade da alma do homem sábio é que o torna mais qualificado para
ser o governante da sociedade perfeita. Portanto, segundo um conselho
de Sócrates exposto por Platão, todo o reformador social, o legislador
que deseja melhorar os homens e a sociedade, deve agir como um
pintor de paisagens que fica horas admirando os céus para tentar
reproduzir a sua beleza na tela. É olhando para os elevados, para os
cimos celestiais, que se consegue a inspiração para melhorar a vida na
terra.

Essa elaborada justificativa de Platão, alijando o povo do governo da


sociedade perfeita e entregando-o a um grupo selecto de homens do
saber, servirá, ao longo dos séculos, para todos aqueles que defendem
um governo das minorias especialistas, chegando até o presente, nos
que fazem a apologia da tecnocracia.

20
Projecção
A utopia de Platão estimulou pelos tempos afora
uma série de teorias que também visavam à
constituição de uma sociedade perfeita. De certa
forma, ele espelhou a enorme e infinita
insatisfação humana com as sociedades
imperfeitas em que estamos condenados a viver.
Ele, de certo modo, laicizou a busca pelo Paraíso.
Difundiu a ideia de que é possível alcançar-se uma
sociedade perfeita formada por seres humanos
exclusivamente com recursos humanos e não
divinos. A República platónica é antes de tudo um
grande projecto de engenharia social. É inegável
sua influência na obra de Thomas Morus, A
Utopia, de 1516, na de Dominico Campanella, A
Cidade do Sol (Civitas Solis), de 1602, bem como
na maioria das doutrinas políticas socialistas que T.Morus (1478-
emergiram nos séculos XVIII e XIX. O sonho 1535) retomou
platónico igualmente foi apontado, especialmente com sucesso as
por Karl Popper (A Sociedade Aberta e seus ideias utópicas de
Inimigos, de 1957), como inspirador dos Platão
movimentos autoritários, como o fascismo, em
decorrência de sua postura antiliberal, celebrando
a rigidez hierárquica, excluindo dela a liberdade da
realização económica.

Crítica
A principal crítica feita às teorias de Platão ocorreram
em sua época mesmo; sendo que as mais consistentes
partiram do seu discípulo Aristóteles, que apontava a
ideia da comunidade dos bens, das mulheres e dos
filhos, como oposta à natureza das coisas. Elas
desconhecem também, segundo o crítico, o fato de que
se a cidade é a "unidade da multiplicidade", composta
de pequenos grupos e pessoas que são distintas umas
das outras e que fazem questão de manifestar
Para abertamente a sua distinção. Na cidade ninguém quer
Aristóteles as parecer-se com o outro. Torna-se, pois, antinatural
ideias de exigir uma uniformização ou padronização total, como
Platão eram sugerem os moldes platónicos. Para Aristóteles, a tese
antinaturais de entregar o poder apenas a um segmento da
sociedade, aos sábios, seleccionados por um complexo
sistema semelhante ao de uma casta que governariam sem nenhum
21
limite, parecia-lhe contradizer a vocação essencial da cidade, que é ser
regida por leis comuns a todos e não apenas por um sector dela, por
mais qualificado que o governante pudesse ser.

Platão e a Ciência Política


"Ele foi o primeiro e talvez o último, a sustentar que o estado deve
ser governado não pelos mais ricos, os mais ambiciosos ou os
mais astutos, mas pelos mais sábios."

Apelando para o mito da destruição e reconstrução


do cosmo, Platão descreveu no seu diálogo
"Político", num primeiro momento, a Era de
Cronos, o tempo, e sua transição para a Era de
Zeus, o seu filho (quando a Idade de Ouro dos
homens esfumara-se nos pretéritos). A seguir,
tratou dos humanos nascidos neste novo período
pós-Paraíso, quando eles perceberam que os
tempos eram outros, que desaparecera a harmonia
que havia outrora entre eles e os animais, que os
bichos não só perderam a fala, como tornaram-se
hostis e ferozes, obrigando os homens a se
organizarem em grandes grupos, fechados em
regimes políticos, para poderem sobreviver à
crescente selvajaria dos tempos de Zeus.

Todos se consideram aptos


Os tempos duros
Para Platão, o primeiro e vieram com Zeus
fundamental problema da
política é que todos os homens acreditam-se
capacitados para exercê-la, o que lhe parece um
grave equívoco, pois ela resulta de uma arte muito
especial. Distingue então três tipos de artes:

Um elmo grego 1 - Aquelas que ele chama de auxiliares (que


podemos classificar como as de ordem técnica,
como o artesanato, a marinhagem, o pastoreio, etc.);

22
2 - Em seguida vem as artes produtoras (o plantio, a tecelagem, o
comércio, etc.), e por último:

3 - A arte de saber conduzir os homens, que seria a política


propriamente dita, superior a todas as outras.

A Política é Tecelagem

Para melhor ilustrar o seu ponto de vista,


recorre a uma comparação: a actividade do
político, disse ele, assemelha-se à da
tecelagem. Nada mais é do que a arte da
vestimenta, o que implica na escolha do tecido,
das peças que devem ser costuradas à mão, e
da armação final, pois seu objectivo maior é
dar segurança e abrigo, da mesma forma que
um trajo protege das intempéries e assegura os
pudores. Por isso, o político deve desenvolver
habilidades tais como saber cardar e fiar,
porque um dos seus afazeres maiores é
conseguir misturar o tecido maior e melhor
com o menor e o pior (isto é, encontrar o
Uma jovem festiva equilíbrio entre os fortes e poderosos e os mais
fracos e indefesos).

Os Pretendentes à Política
Quem, porém, entre eles, pode se habilitar a
esta arte, a de dedicar-se à ciência do tecer? O
pensador então estabelece uma espécie de
escala da qual, a princípio, são eliminados os
escravos, fazendo a seguir restrições também a
maioria dos homens livres em geral (aos
camponeses, aos artesãos, aos comerciantes e
aos marinheiros, desqualificando-os para o
exercício de tal arte). Entre os que realmente
Figuras estranhas
ambicionam dominar a arte da política, ele
rondam o mundo da
aponta os pertencentes aos sectores
política
intelectualizados da sociedade: os arautos (os
mensageiros), os adivinhos, os sacerdotes e os magistrados. Ocupando
um lugar especial entre esses que querem ter voz activa na política, ele
identifica um estranho grupo que diz ser composto por centauros,
sátiros e outros animais fantásticos, que rondam por assim dizer o

23
mundo da política, ameaçando toda hora quer dele participar
activamente (o que nos leva a interpretar tal grupo bizarro como uma
metáfora dos elementos irracionais que pululam na sociedade tentando
dominá-la).

Poucos são os que sobram

Em nenhum deles Platão vê qualidades que os


habilitem à arte da tecelagem, à capacidade de
urdirem os delicados fios que enlaçam e
fortalecem a vestimenta protectora. De certo
modo, a lendária atitude de Penélope, a
mulher de Ulisses que ficava noite e dia fiando
e desfiando, esperando a volta do marido - o
Rei Competente - ganhando tempo para que
ele pudesse voltar e reassumir o trono,
afastando com isso os pretendentes à coroa de
Ítaca, era uma versão mítica do que o filósofo Penélope fiando,
pretendeu dizer. rejeitando os
pretendentes

As formas da política

A seguir, dedica-se a descrever as formas em que os


regimes político se constituem, adoptando a
conhecida classificação numeral: o regime de um
homem só (que se subdivide em monarquia,
onde um rei obedece a lei e a tradição), e na
tirania, (o governo discricionário); o regime de
alguns (o governo de um grupo que se subdivide
em oligarquia e aristocracia); e, por fim, o
governo dos muitos (a democracia). Neles opõem-
se nos mais diversos graus, a riqueza e a pobreza, a
violência e a liberdade, a obediência às leis escritas
ou a ausência de leis. Qual dentre eles afigura-se
como o melhor? A quem cabe o
trono?

24
O Rei Competente
Platão minimiza a importância das formas que
os regimes políticos assumem. Neste momento
da sua exposição, por meio do Estrangeiro,
personagem principal do diálogo, a monarquia,
a tirania, a oligarquia, a aristocracia ou a
democracia, afiguram-lhe ser de menor
interesse perante o fato maior de saber-se
Os selos do poder
dominar a ciência da política. Pois é esta
real
ciência (a que determina o que realmente é
importante para a política), a arte de saber governar os homens, "a mais
difícil e maior de todas as ciências possíveis de se adquirir", é que nos
possibilita a ajudar a afastar os rivais do Rei Competente (isto é, o
governante ideal). Ela é um instrumento de selecção que, ao mesmo
tempo que nos permite dissuadir os pretendentes equivocados, auxilia a
persuadir os vocacionados a ingressarem na política.

O Rei Competente como Médico

Para o pensador é o Rei Competente quem merece ser o arcon, de


ter o título de rei, pois somente eles detêm o conhecimento da ciência
política, estando no poder ou não. Assim, independentemente da forma
do regime político, seja monarquia, oligarquia ou democracia, só os que
possuem a ciência de saber governar os homens é que devem realmente
exercer o poder. Platão ainda não menciona aqui (o fará com maiores
detalhes no diálogo "A República") que seu intuito é promover o filósofo,
o homem sábio, como o único habilitado a tal. O Rei Competente
assemelha-se para ele ao médico que, curando ou não seus pacientes,
detém a arte da medicina, serão sempre chamados de médicos.

Cadmus, fundador de Tebas, afasta a serpente


para proteger os súbitos

25
Ele pode tudo

A partir do momento que o Rei Competente


galga o poder, torna-se indiferente, sob o ponto
de vista moral, o sentido que dará a sua acção.
Pode ele exilar, mandar executar, deslocar gente
a sua revelia, fazer o que lhe convier, que tudo
estará justificado pela ciência que ele tem das
coisas do governo, porque seu fim último é a
justiça. Até mesmo poderá governar sem leis ou
a revelia delas, pois muitas vezes o bom
governante pode dispensar, em nome do bem
público, que é superior a tudo, a lei escrita e o
costume. É desta passagem de Platão, que
Maquiavel, bem mais tarde, no Renascimento,
Marco Aurélio, um
extraiu os argumentos que sustentaram a sua
raro imperador-sábio
teoria do domínio absoluto do Príncipe.
Também parte dela a atitude da maioria dos iluministas do século XVIII
que justificaram o seu apoio ao Déspota Esclarecido.

A Massa e a Elite

Platão, como é sabido, não era um


simpatizante da democracia. Logo, ele não
via nenhuma possibilidade das massas
conseguirem algum dia apropriarem-se da
ciência da política. Elas, por sua própria
natureza, são incapazes de administrar com
inteligência uma cidade. Somente um
pequeno grupo ou um só indivíduo terá o
domínio desta constituição verdadeira.
Poderia, pergunta ele justificando-se, uma
A nau do estado não
multidão reunida em assembleia, regular
pode ser guiada por
para sempre a arte da navegação ou
votos
estabelecer o tratamento a ser dado aos
enfermos? Tais regulamentos caberiam ser fixados por gente do povo ou
mesmo pelos ricos? Na verdade quem se atrevesse a tal, a ser um
intrometido nas regras da navegação ou da medicina, seria chamado de
visionário ou de fraseador sofista. Se estas artes fossem conduzidas
pela sorte (Platão aqui critica abertamente o sistema eleitoral por sorteio
adoptado pela democracia grega), pela letra escrita aprovada em

26
assembleia e não pela arte da política, a vida, assegurou ele, se tornaria
insuportável.

O Verdadeiro Político

Quem realmente domina a ciência da política, não


se inspira nas leis escritas mas sim na arte com que
é dotado, nesta rara habilidade de saber conduzir os
homens. Portanto, o único bom governo possível é o
do "único competente". No entanto, porque isto não
ocorre? Para Platão todos os regimes conhecidos
(monarquia oligarquia, democracia, e suas
variáveis) nada mais são do que a expressão
juridicamente organizada da rejeição aberta ou
velada que os homens têm ao único eficaz. Formada
por gente cabeça dura, a sociedade nega-se a
aceitar que haja alguém, tal como o Rei
Competente, que possa, com autoridade, governar Uma esfinge, o
com virtude e ciência, com imparcialidade, com enigma da
justiça e equidade, sem precisar injuriar ninguém. política
Portanto, todo o regime político conhecido não
passa de uma ilusão pois ele sempre resulta dessa aversão à boa razão.
De uma máscara que tenta ocultar o seu fracasso. Ao repelirem a
evidência de que o único bom governo viria do Rei Competente, todas as
constituições são imperfeitas, restando apenas a escolha da que for
menos desagradável. Quanto aos políticos que resultam delas, dos
regimes assinalados, devem ser repelidos por serem uns falsos,
criadores das piores ilusões.

Em busca do Rei Competente

Como afinal encontrar em meio a tantos


pretendentes da política o Rei Competente? Visto
que ele não nasce marcado como nas colmeias,
onde todos logo sabem quem é a rainha-abelha, é
preciso lançar-se mão de recursos especiais para
alcançar a sua identificação. Socorro estes que
são similares aos que adoptamos para lavrar e
limpar o ouro. Do mesmo modo como um
minerador com sua peneira afasta a terra, as
pedras, os minerais vis e muitas outras
Um rei pensante impurezas que se avolumam em torno do precioso
(moeda) metal, com o auxílio do fogo, ele também aparta
do ouro o cobre e o diamante. Este deve ser
também o proceder da ciência política.

27
A Arte de Peneirar

A função primeira dela é afastar tudo o que for hostil e estranho a ela,
conservando apenas aquelas artes que lhe são mais próximas, tais
como a estratégia (a arte militar), a magistratura (arte de praticar a
justiça) e a retórica (arte de discursar). Artes que se equivalem tal como
o cobre e o diamante aprecem em relação ao ouro. O momento seguinte,
considerando-se que a estratégia, a magistratura e a oratória, são as
que estão mais próximas à essência da política, Platão observa porém
que elas também são artes subordinadas:

O ouro sempre ao lado do poder

Artes Próximas mas Subordinadas à Política

Estratégia Arte de Subordina-se à decisão superior de fazer-se


fazer a ou não a guerra
guerra
Jurídica Arte de Subordina-se a existência das leis que são
aplicar a aprovadas em outras instâncias, determinada
justiça pelo arcon ( o governante) ou pela assembleia.
Retórica Arte da Presa às circunstâncias, estimulada e
Oratória condicionada pela situação momento,
portanto totalmente subordinada.

28
A Política é a Ciência Soberana

Se nem a estratégia, nem a justiça, muito menos a


retórica, são artes independentes, só resta a política
como a verdadeira e única arte superior. É ela a
ciência real. Ainda que não possuindo obrigações
práticas, reina sobre os demais, unindo a sociedade
num só tecido perfeito. O que ela consegue é graças
a harmonia das leis que elabora. O objectivo de toda
a ciência política é eliminar ao máximo os maus
elementos, conservando porém os bons e úteis para
então "fundi-los numa obra perfeitamente una por
suas propriedades e estruturas".
Nem o grande
Péricles servia
para Platão
O Destino dos Maus Elementos
O que fazer, porém, com os maus elementos? Para Platão, deve-se
submetê-los a uma prova de fogo, confiando-os aos educadores
competentes para instruí-los ou, em caso de fracasso, que sofram "por
sentença de morte".

Energia e Moderação

Feito isto, afastados os pretendentes equivocados,


escolhido o Rei Competente por afinada
depuração, o governante ideal dedica-se então a
sua grande tarefa: harmonizar os opostos. A
sociedade é composta de homens com
comportamentos díspares, extremos. Aquele de
alma enérgica, activo e corajoso, pode facilmente
deixar-se tomar por um acesso de loucura furiosa,
enquanto um outro, de alma moderada, cordato e
afável, é susceptível de prostrar-se na mais
O Rei a Cavalo
completa das fraquezas.
(moeda)
São, portanto, duas raças diferentes que a
princípio parece impossível fazê-las conviver ao abrigo das mesmas leis.
Entretanto, se elas tiverem a mesma posição sobre o bem e o mal, o
certo e o errado, afinando-se nos mesmos princípios éticos, é possível
impedir o divórcio completo delas. O verdadeiro Rei Competente
assemelha-se então a um habilíssimo tecelão capaz de unir tais
extremos, assegurando o convívio da energia com a moderação,
evitando que a sociedade caia na influência de um temerário ou do seu
oposto, o pusilânime. Unir os fios da circunspecção e prudência do
moderado, à agudeza e à espontaneidade do enérgico é, por
conseguinte, a grande tarefa da ciência política, arte cujo domínio é
exclusivo do estadista-tecelão.
29
Aristóteles
POLÍTICA

Para Aristóteles a Política é a ciência mais suprema, a qual as outras


ciências estão subordinadas e da qual todas as demais se servem numa
cidade.

A tarefa da Política é investigar qual a melhor forma de governo e


instituições capazes de garantir a felicidade coletiva. Segundo
Aristóteles, a pouca experiência da vida torna o estudo da Política
supérfluo para os jovens, por regras imprudentes, que só seguem suas
paixões. Embora não tenha proposto um modelo de Estado como seu
mestre Platão, Aristóteles foi o primeiro grande sistematizador das
coisas públicas. Diferentemente de Platão, Aristóteles faz uma filosofia
prática e não ideal e de especulação como seu mestre.

O Estado, para Aristóteles, constitui a expressão mais feliz da


comunidade em seu vínculo com a natureza. Segundo Aristóteles, assim
como é impossível conceber a mão sem o corpo, é impossível conceber o
indivíduo sem o Estado.

O homem é um animal social e político por natureza. E, se o homem


é um animal político, significa que tem necessidade natural de conviver
em sociedade, de promover o bem comum e a felicidade. A polis grega
encarnada na figura do Estado é uma necessidade humana. O homem
que não necessita de viver em sociedade, ou é um Deus ou uma Besta.
Para Aristóteles, toda cidade é uma forma de associação e toda
associação se estabelece tendo como finalidade algum bem. A
comunidade política forma-se de forma natural pela própria tendência

30
que as pessoas têm de se agruparem. E ninguém pode ter garantido seu
próprio bem sem a família e sem alguma forma de governo. Para
Aristóteles os indivíduos não se associam somente para viver, mas para
viver bem. Dos agrupamentos das famílias forma-se as aldeias, do
agrupamento das aldeias forma a cidade, cuja finalidade é a virtude dos
seus cidadãos para o bem comum.

A cidade aristotélica deve ser composta por diversas classes, mas quem
entrará na categoria de cidadãos livres que podem ser virtuosos são
somente três classes superiores: os guerreiros, os magistrados e os
sacerdotes. Aristóteles aceita a escravidão e considera a mesma
desejável para os que são escravos por natureza. Estes são os incapazes
de governar a si mesmo, e, portanto, devem serem governados. Segundo
Aristóteles, um cidadão é alguém politicamente activo e participante da
coisa pública. Segundo Aristóteles, sem um mínimo de ócio não se pode
ser cidadão. Assim, o escravo ou um artesão não se encontra
suficientemente livre e com tempo para exercer a cidadania e alcançar a
virtude, a qual é incompatível com uma vida mecânica.

E os escravos devem trabalhar para o sustento dos cidadãos livres e


virtuosos. Aristóteles contesta o comunismo de bens, mulheres e
crianças proposto por Platão. Segundo ele, quanto mais comum for uma
coisa menos se cuida dela.

A política aristotélica é essencialmente unida à moral, porque o fim


último do estado é a virtude, isto é, a formação moral dos cidadãos e o
conjunto dos meios necessários para isso. O estado é um organismo
moral, condição e complemento da actividade moral individual, e
fundamento primeiro da suprema actividade contemplativa. A política,
contudo, é distinta da moral, porquanto esta tem como objectivo o
indivíduo, aquela a colectividade. A ética é a doutrina moral individual,
a política é a doutrina moral social. Desta ciência trata Aristóteles
precisamente na Política, de que acima se falou.

O estado, então, é superior ao indivíduo, porquanto a colectividade


é superior ao indivíduo, o bem comum superior ao bem particular.
Unicamente no estado efectua-se a satisfação de todas as necessidades,
pois o homem, sendo naturalmente animal social, político, não pode

a sua perfeição sem a sociedade do estado.

Visto que o estado se compõe de uma comunidade de famílias,


assim como estas se compõem de muitos indivíduos, antes de
tratar propriamente do estado será mister falar da família, que
precede cronologicamente o estado, como as partes precedem o

31
todo. Segundo Aristóteles, a família compõe-se de quatro
elementos: os filhos, a mulher, os bens, os escravos; além,
naturalmente, do chefe a que pertence a direcção da família. Deve
ele guiar os filhos e as mulheres, em razão da imperfeição destes.
Deve fazer frutificar seus bens, porquanto a família, além de um
fim educativo, tem também um fim económico. E, como ao
estado, é-lhe essencial a propriedade, pois os homens têm
necessidades materiais. No entanto, para que a propriedade seja
produtora, são necessários instrumentos inanimados e animados;
estes últimos seriam os escravos.

Aristóteles não nega a natureza humana ao escravo; mas constata


que na sociedade são necessários também os trabalhos materiais,
que exigem indivíduos particulares, a que fica assim tirada
fatalmente a possibilidade de providenciar a cultura da alma, visto
ser necessário, para tanto, tempo e liberdade, bem como aptas
qualidades espirituais, excluídas pelas próprias características
qualidades materiais de tais indivíduos. Daí a escravidão.
Vejamos, agora, o estado em particular. O estado surge, pelo facto de
ser o homem um animal naturalmente social, político. O estado
provê, inicialmente, a satisfação daquelas necessidades materiais,
negativas e positivas, defesa e segurança, conservação e
engrandecimento, de outro modo irrealizáveis. Mas o seu fim essencial é
espiritual, isto é, deve promover a virtude e, consequentemente, a
felicidade dos súditos mediante a ciência.

Compreende-se, então, como seja tarefa essencial do estado a educação,


que deve desenvolver harmónica e hierarquicamente todas as
faculdades: antes de tudo as espirituais, intelectuais e,
subordinadamente, as materiais, físicas. O fim da educação é formar
homens mediante as artes liberais, importantíssimas a poesia e a
música, e não máquinas, mediante um treino profissional. Eis porque
Aristóteles, como Platão, condena o estado que, ao invés de se
preocupar com uma pacífica educação científica e moral, visa a
conquista e a guerra. E crítica, dessa forma, a educação militar de
Esparta, que faz da guerra a tarefa precípua do estado, e põe a
conquista acima da virtude, enquanto a guerra, como o trabalho, são
apenas meios para a paz e o lazer sapiente.

Não obstante a sua concepção ética do estado, Aristóteles,


diversamente de Platão, salva o direito privado, a propriedade
particular e a família. O comunismo como resolução total dos
indivíduos e dos valores no estado é fantástico e irrealizável. O estado
não é uma unidade substancial, e sim uma síntese de indivíduos
substancialmente distintos. Se quiser a unidade absoluta, será mister
reduzir o estado à família e a família ao indivíduo; só este último possui
aquela unidade substancial que falta aos dois precedentes. Reconhece
Aristóteles a divisão platónica das castas, e, precisamente, duas classes

32
reconhece: a dos homens livres, possuidores, isto é, a dos cidadãos e a
dos escravos, dos trabalhadores, sem direitos políticos.

Quanto à forma exterior do estado, Aristóteles distingue


três principais:

A monarquia, que é o governo de um só, cujo carácter e valor estão na


unidade, e cuja degeneração é a tirania;

A aristocracia, que é o governo de poucos, cujo carácter e valor estão


na qualidade, e cuja degeneração é a oligarquia;

A democracia, que é o governo de muitos, cujo carácter e valor estão


na liberdade, e cuja degeneração é a demagogia.

As preferências de Aristóteles vão para uma forma de república


democrático-intelectual, a forma de governo clássica da Grécia,
particularmente de Atenas. No entanto, com o seu profundo realismo,
reconhece Aristóteles que a melhor forma de governo não é abstracta, e
sim concreta: deve ser relativa, acomodada às situações históricas, às
circunstâncias de um determinado povo. De qualquer maneira a
condição indispensável para uma boa constituição, é que o fim da
actividade estatal deve ser o bem comum e não a vantagem de quem
governa despoticamente.

FAMILIA E EDUCAÇÃO

O Estado deve promover a família e a educação, legislando sobre as


mesmas.

"Convém fixar o casamento das mulheres nos dezoito anos, e o dos


homens nos trinta e sete, ou pouco menos. Assim a união será feita no
momento do máximo vigor e os dois esposos terão um tempo pouco
mais ou menos igual para educar a família, até que cessem a ser
próprios à procriação" (Política, 4,c.14, § 6).

Com vistas à depuração social defende ainda:

"Quanto a saber quais os filhos que se devem abandonar ou educar,


deve haver uma lei que proíba alimentar toda a criança disforme.
Sobre o número dos filhos (porque o número dos nascimentos deve
sempre ser limitado), se os costumes não permitem que os
abandonem e se alguns casamentos são tão fecundos que
ultrapassem o limite fixado de nascimentos, é preciso provocar o
aborto, antes que o feto receba animação e a vida; com efeito, só

33
pela animação e vida se poderá determinar se existe crime"
(Política, 4,c.14, § 10).
Só modernamente se veio a saber melhor sobre a vida. Enquanto
isto demorou, até moralistas cristãos admitiram o aborto antes da
referida animação de que fala Aristóteles, como acontecida apenas
em um estágio adiantado da gestação.

O grande Aristóteles, apesar de sua vida relativamente curta (62 anos) e


da perda de seus livros mais literários e brilhantes, continua sempre
grande.

Não se sabendo dizer se foi mesmo o maior filósofo dentre os até agora
nascidos, certamente é Aristóteles ainda uma das cordilheiras mestras
do pensamento humano.

A Política de Aristóteles

Enquanto seu mestre Platão inclinou-se


preferencialmente por fazer desenhos de
construções sociais imaginárias, utópicas, por
projecções sobre qual o melhor futuro da
humanidade, Aristóteles, seu discípulo mais
famoso, procurou tratar das coisas reais, dos
sistema políticos existentes na sua época. Atentou
por classificá-los, definindo suas características
mais proeminentes, separando-os em puros ou
pervertidos. Desta forma, enquanto Platão inspirou
revolucionários e doutrinários da sociedade
perfeita, Aristóteles foi o mentor dos grandes Aristóteles (384-
juristas e dos pensadores políticos mais inclinados 322 a. C.)
à ciência e ao realismo.

34
Aristóteles e Atenas

Aristóteles chegou a Atenas com 18 anos


para estudar na Academia platónica. Era
natural da pequena cidade de Estagira, no
norte da Grécia, onde nasceu em 384 a.C.,
filho de um médico da corte macedónica.
Mais tarde, o rei Felipe II, provavelmente por
indicação do seu doutor, solicitou-lhe que
assumisse a função de preceptor do jovem
Felipe e Alexandre príncipe, o seu filho Alexandre. Aquele que se
tornaria o conquistador do Império persa e
um dos maiores generais da história. Regressando a Atenas, após ter
cumprido a tarefa, decepcionou-se por Platão, seu mentor intelectual,
não tê-lo indicado como seu sucessor na Academia. Em vista disso,
resolveu fundar uma escola anexa ao templo de Apolo Liceu, conhecida
como escola peripatética ou Liceu. Com a repentina morte de Alexandre
o Grande nas terras do Oriente em 323 a.C., Aristóteles viu-se
ameaçado por uma agitação anti-macedónica, visto que os atenienses o
tinham não só como um estrangeiro, um meteco, mas também como
um provável agente dos interesses do conquistador. Ameaçado, o
filósofo refugiou-se em Cálcis, evitando, como ele disse, que Atenas
atentasse novamente contra a filosofia, tal como ocorrera antes dele
com Anaxágoras, com Diágoras e Protágoras, e também com Sócrates.
Lá, no exílio, ele faleceu em 322 a.C., com pouco mais de sessenta anos.

A política

Cérebro prodigioso e de saber enciclopédico,


Aristóteles compôs dois grandes trabalhos sobre
a ciência política: "Política" (Politéia) que
provavelmente eram lições dadas no Liceu e
registadas por seus alunos, e a "Constituição de
Atenas", obra que só se tornou mais conhecida,
ainda que em fragmentos, no final do século XIX,
mais precisamente em 1880-1, quando foi
encontrada no Egipto; regista as várias formas e A deusa Atena,
alterações constitucionais que ela passou por protectora da cidade
obra dos seus grandes legisladores, tais como
Drácon, Sólon, Pisístrato, Clístenes e Péricles e que também pode ser
lida como uma história política da cidade.

35
A estrutura da obra

A "Política" (Politéia) divide-se em oito livros, que


tratam: da composição da cidade, da escravidão, da
família, das riquezas, bem como de uma crítica às
teorias de Platão. Analisa também as constituições de
outras cidades, num notável exercício comparativo,
descrevendo-lhes os regimes políticos. Aristóteles, por
sua vez, não foge da tentação de também idealizar qual
o modo de vida mais desejável para as cidades e os
Aristóteles, indivíduos, mas dedica a isso bem menos tempo do que
preocupação seu mestre. Finaliza a obra com os objectivos da
com o mundo educação e a importância das matérias a serem
real ensinadas.

A política como ciência

Aristóteles utiliza-se do termo política para um assunto único: a


ciência da felicidade humana. A felicidade consistiria numa certa
maneira de viver, no meio que circunda o homem, nos costumes e nas
instituições adoptadas pela comunidade à qual pertence. O objectivo da
política é, primeiro, descobrir a maneira de viver que leva à felicidade
humana, isto é, sua situação material, e, depois, a forma de governo e
as instituições sociais capazes de a assegurarem. As relações sociais e
seus preceitos são tratados pela ética, enquanto a forma de governo se
obtém pelo estudo das constituições das cidades-estado, matéria
pertinente à política.

"Em todas as artes e ciências", disse


ele, "o fim é um bem, e o maior dos
bens e bem em mais alto grau se acha
principalmente na ciência todo-
poderosa; esta ciência é a política, e o
bem em política é a justiça, ou seja, o
interesse comum; todos os homens
pensam, por isso, que a justiça é uma
espécie de igualdade, e até certo ponto
eles concordam de um modo geral com A solidão, instrumento da
as distinções de ordem filosófica reflexão
estabelecidas por nós a propósito dos princípios éticos."

36
Constituição e governo
Segundo o estagirita, governo e constituição significam a mesma coisa,
sendo que o governo pode ser exercido de três maneiras diferentes; por
um só, por poucos ou por muitos. Se tais governos têm como objectivo o
bem comum, podemos dizer que são constituições rectas, ou puras. Por
outro lado, se os poderes forem exercidos para satisfazer o interesse
privado de um só, de um grupo ou de apenas uma classe social, essa
constituição está desvirtuada, depravou-se. Nota-se aqui o claro
confronto ressaltado por ele entre a busca do bem comum e o interesse
privado ou de classe. Quando um regime se inclina para o último, para
algum tipo de exclusivismo, voltando as costas ao colectivo, é porque
perverteu-se.

As formas de governo

O exame do comportamento político dos homens,


não importando a latitude, mostra que eles
sempre se organizaram em três formas de governo:
a monárquica (governo de um só), a aristocrática
(governo dos melhores) e, finalmente, a
democrática (o governo da maioria ou do povo).
Essas formas, no entanto, estão sujeitas, como
vimos, a serem degradadas pelos interesses
privados e pessoais dos homens, sofrendo
alterações na sua essência. A tirania e a
Alexandre submete oligarquia, por exemplo, são deformações da
os gregos monarquia e da aristocracia que terminam por
beneficiar interesses particulares, o do tirano e o do grupo que detém o
poder, marginalizando o bem público. Quanto à democracia, Aristóteles
lhe manifesta maior simpatia do que Platão, mas indica que ela está
sujeita à influência dos demagogos, que constantemente incitam o povo
contra os possuidores de bens, causando tentativas revolucionárias.
Essas são esmagadas por golpes dados em nome da ordem. A
polarização das forças na vida da cidade é estabelecida pelo conflito de
interesses contrários: o dos pobres (pro-democráticos) e o dos ricos (a
favor da oligarquia).

37
O regime ideal

Para obter uma sociedade estável, ele


considera que o regime mais adequado é
o misto, que equilibre a força dos ricos
com o número dos pobres. Para ele a
sociedade ideal seria aquela baseada na
mediania, que, ao mesmo tempo em
que, graças presença de uma poderosa
classe média, atenua os conflitos entre
ricos e pobres, dando estabilidade à
organização social. Esse governo, ele Sólon frente a Creso, o sábio
definia como timocracia (timé = honra), enfrenta o rico (tela de
onde o poder político seria exercido pelos cidadãos proprietários de
algum património e que governariam para o bem comum. Em outros
momentos este regime ideal é chamado de politia (governo da maioria,
mas regido por homens seleccionados segundo a sua renda), que ele
classifica entre as constituições rectas.

Projecção e crítica

A preocupação de Aristóteles caracterizou-se por


enfatizar os regimes políticos que existiam, que eram
concretos, elaborando uma precisa classificação deles,
enquanto Platão reservava seu interesse maior pelo
idealizado. O método aristotélico, empírico e detalhista,
influenciará a maioria dos grandes teóricos da ciência
política, como N. Maquiavel no Príncipe, 1532; T. Hobbes
no Leviatã, 1651; e Montesquieu em O Espírito das Leis,
1748. Critica-se Aristóteles por ele não ter vislumbrado o
surgimento, em sua própria época, de uma forma política
superior à da pólis, a emergência de um estado-imperial,
Aristóteles supranacional e multicultural, cujas sementes foram
não apoiou a deixadas pelo seu discípulo, Alexandre o Grande. Sabe-
política de se, inclusive, que ele se manifestou em carta ao
Alexandre de conquistador negando-lhe apoio a qualquer integração
integração maior com os asiáticos, levantando contra eles
com os argumentos preconceituosos e até racistas. Por mais
asiáticos poderoso que fosse o seu intelecto, ele continuo um
homem limitado pelos muros da cidade-estado.

38
Formas de governo

Formas puras Formas pervertidas


Monarquia: governo de um só Tirania: governo de um só homem que
homem, de carácter hereditário ascende ao poder por meios ilegais,
ou perpétuo, que visa o bem violentos e ilegítimos e que governa
comum, como a obediência as pela intimidação, manipulação ou pela
leis e às tradições aberta repressão, infringindo
constantemente as leis e a tradição

Aristocracia: governo dos Oligarquia: governo de um grupo


melhores homens da república, economicamente poderoso que rege os
seleccionados pelo consenso dos destinos da cidade, procurando
seus cidadãos e que governa a favorecer a facção que se encontra no
cidade procurando o benefício de poder em detrimento dos demais
toda a colectividade

Politia: governo do povo, da Democracia: governo do povo, da


maioria, que exerce o respeito às maioria, que exerce o poder
leis e que beneficia todos os favorecendo preferencialmente os
cidadãos indistintamente, sem pobres, causando sistemático
fazer nenhum tipo de constrangimento aos ricos.
discriminação.

39
Nicolau Maquiavel
O Príncipe

Florença, Itália – 03 Maio 1469 d.C


+ Florença, Itália – 20 Junho 1527 d.C

Maquiavel exortava o Príncipe a se adequar às representações de


virtude do povo que pretendia dominar.

Maquiavel nasceu em Florença, na Itália, no ano de 1469. Seu pai era


advogado e membro de uma proeminente família italiana.

Segundo o historiador Garin, a família de Maquiavel não era


aristocrática nem rica. Seu pai, advogado como um típico renascentista,
era um estudioso das humanidades, tendo se empenhado em transmitir
uma aprimorada educação clássica para seu filho. Maquiavel com 12
anos, já escrevia no melhor estilo e, em latim.

São escassas as informações sobre Maquiavel até ele entrar no serviço


da República de Florença, após a queda do governo clerical de
Savonorola.

Nicolau Maquiavel apesar do brilhantismo precoce, só em 1498, com


29 anos exerce seu primeiro cargo na vida pública. Foi nesse ano que
Nicolau passou a ocupar a segunda chancelaria. Isso se deu após a
deposição de Savonarola, acompanhado de todos os detentores de
cargos importantes da república florentina. Nessa actividade, cumpriu
uma série de missões, tanto fora da Itália como internamente,
destacando-se sua diligência em instituir uma milícia nacional. Serviu

40
na administração da República de Florença, de 1498 a 1512, na
segunda Chancelaria, tendo substituído Adriani, e como secretário do
Conselho dos Dez da Guerra (Dieci di Libertà et Pace), a instituição que
na Signoria tratava da guerra e da diplomacia.

Mais de quatro séculos nos separam da época em que viveu Maquiavel.


Muitos leram e comentaram sua obra, mas um número
consideravelmente maior de pessoas evoca seu nome ou pelo menos os
termos que aí tem sua origem.

Com a queda de soverine, em 1512, a dinastia Médici volta ao poder,


desesperando Maquiavel, que é envolvido em uma conspiração,
torturado e deportado. É permitido que se mude para São Cassiano,
cidade pequena próxima de Florença, onde escreve sobre a Primeira
década de Tito Lívio, mas interrompe esse trabalho para escrever sua
obra-prima: O Príncipe, segundo alguns, destinado a que se reabilitasse
com os aristocratas, já que a obra era nada mais que um manual da
política.

Maquiavel viveu uma vida tranquila em S. Cassiano. Pela manhã,


ocupava-se com a administração da pequena propriedade onde está
confinado. À tarde, jogava cartas numa hospedaria com pessoas
simples do povoado. E à noite vestia roupas de cerimonia para conviver,
através da leitura com pessoas ilustres do passado, fato que levou
algumas pessoas a considerá-lo louco.

―Maquiavélico e maquiavelismo‖ são adjectivo e substantivo que estão


tanto no discurso erudito, no debate político, quanto na fala do dia-a-
dia. Seu uso extrapola o mundo da política e habita sem nenhuma
cerimonia o universo das relações privadas. Em qualquer de suas
acepções, porém, o maquiavelismo está associado a ideia de perfídia, a
um procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro. Estas expressões
pejorativas sobreviveram de certa forma incólumes no tempo e no
espaço, apenas alastrando-se da luta política para as desavenças do
quotidiano.‖

Assim, hoje em dia, na maioria das vezes, Maquiavel é mal interpretado.


Maquiavel, ao escrever sua principal obra, O Príncipe, criou um
―manual da política‖, que pode ser interpretado de muitas maneiras
diferentes.

Talvez por isso sua frase mais famosa:

”Os fins justificam os meios” seja tão mal interpretada. Mas para
entender Maquiavel em seu real contexto, é necessário conhecer o
período histórico em que viveu. É exactamente isso que vamos fazer.

Nicolau Maquiavel, um dos mais conhecidos filósofos políticos de todos


os tempos, se tornou famoso por defender a visão de que um

41
governante, se necessário, deveria ser cruel e fraudulento para obter e
manter o poder.

Seus críticos o denunciam como um homem que foi desprovido de


moralidade, porém, seus admiradores afirmam que ele foi um dos
únicos realistas que verdadeiramente entendiam o mundo político e que
teve a coragem de descrevê-lo como ele realmente é. Em todo caso,
séculos após terem sido publicados, os trabalhos de Maquiavel
continuam sendo lidos e analisados por estudantes de filosofia, história
e política.

Na época, no ápice do Renascimento, a Itália estava dividida em


pequenos principados, enquanto outros países como Espanha,
Inglaterra e França eram nações unificadas. Não surpreende que
naquele momento a Itália estivesse politicamente e militarmente fraca,
apesar de seus grandes alcances culturais.

Durante a juventude de Maquiavel, Florença era governada pelo famoso


Lorenzo Medici, o Magnífico. Em 1492, Medici morreu e sua família foi
expulsa de Florença, que se tornou uma república em 1498. Aos 29
anos de idade, Maquiavel conquistou um alto cargo na administração
civil da república.

Ao longo dos quatorze anos seguintes, ele participou de diversas


missões diplomáticas, tendo viajado pela França, Alemanha e pelo
interior da Itália.

Florença à época de Maquiavel

Maquiavel viveu durante a Renascença Italiana, o que explica boa parte


das suas ideias.

Na Itália do Renascimento reina grande confusão. A tirania impera em


pequenos principados, governados despoticamente por casas reinantes

42
sem tradição dinástica ou de direitos contestáveis. A ilegitimidade do
poder gera situações de crise instabilidade permanente, onde somente o
cálculo político, a astúcia e a acção rápida e fulminante contra os
adversários são capazes de manter o príncipe. Esmagar ou reduzir à
impotência a oposição interna, atemorizar os súbitos para evitar a
subversão e realizar alianças com outros principados constituem o eixo
da administração.

Como o poder se funda exclusivamente em actos de força, é previsível e


natural que pela força seja deslocado, deste para aquele senhor. Nem a
religião nem a tradição, nem a vontade popular legitimaram e ele tem de
contar exclusivamente com sua energia criadora. A ausência de um
Estado central e a extrema multipolarização do poder criam um vazio,
que as mais fortes individualidades têm capacidade para ocupar.

Até 1494, graças aos esforços de Lourenço, o Magnífico, a península


experimentou uma certa tranquilidade.

Entretanto, desse ano em diante, as coisas mudaram muito. A


desordem e a instabilidade ficaram incontroláveis. Para piorar a
situação, que já estava grave devido aos conflitos internos entre os
principados, somaram-se as constantes e desestruturados invasões dos
países próximos como a França e a Espanha. E foi nesse cenário
conturbado, onde nenhum governante conseguia se manter no poder
por um período superior a dois meses, que Maquiavel passou a sua
infância e adolescência.

Algumas máximas maquiavélicas


“Os fins justificam os meios”

“Não se pode chamar de “valor” assassinar seus cidadãos, trair seus


amigos, faltar a palavra dada, ser desapiedado, não ter religião.
Essas atitudes podem levar à conquista de um império, mas não à
glória”

“Homens ofendem por medo ou por ódio”

“Assegurar-se contra os inimigos, ganhar amigos, vencer por força


ou por fraude, fazem-se amar a e temer pelo povo, ser seguido e
respeitado pelos soldados, destruir os que podem ou devem causar
dano, inovar com propostas novas as instituições antigas, ser
severo e agradável, magnânimo e liberal, destruir a milícia infiel e
criar uma nova, manter as amizades de reis e príncipes, de modo
que lhe devam beneficiar com cortesia ou combater com respeito,
não encontrará exemplos mais actuais do que as acções do duque.”

“Um príncipe sábio deve observar modos similares e nunca, em


tempo de paz, ficar ocioso”"

43
“…Pois o homem que queira professar o bem por toda parte é
natural que se arruíne entre tantos que não são bons.”

“… vindo a necessidade com os tempos adversos, não se tem tempo


para fazer o mal, e o bem que se faz não traz benefícios, pois julga-
se feito à força, e não traz reconhecimento.”

“Tendo o príncipe necessidade de saber usar bem a natureza do


animal, deve escolher a raposa e o leão, pois o leão não sabe se
defender das armadilhas e a raposa não sabe se defender da força
bruta dos lobos. Portanto é preciso ser raposa, para conhecer as
armadilhas e leão, para aterrorizar os lobos.”

“Pelo que se nota que os homens ou são aliciados ou aniquilados‖

Busto de Maquiavel em Florença, Itália

*****

Maquiavel casou em 1502 com Marietta Corsini, de quem teve quatro


filhos e duas filhas.

Em 1510, inspirado por sua leitura sobre a história romana, organizou


uma milícia civil da República de Florença. Todavia, em Agosto de
1512, um exército espanhol entrou na Toscana e saqueou Prato.
Aterrorizados, os florentinos depuseram seu governante, Pier Soderini,
a quem Maquiavel havia caracterizado como ―bom, porém fraco‖, e
permitiram a volta da família Medici ao poder.

Em 7 de Novembro do mesmo ano, pouco após os Medici assumirem


novamente o poder, Maquiavel foi demitido de seu cargo, e no ano
seguinte, foi preso por ter supostamente colaborado contra a família
Medici.

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Ele foi torturado, mas ainda assim insistiu ser inocente. Foi libertado
naquele mesmo ano, e a partir de então, se isolou, vivendo em uma
pequena propriedade em San Casciano, próximo a Florença. Sem
perspectivas de conseguir uma nomeação para o novo governo,
Maquiavel se dedicou a escrever livros.

Durante os 14 anos seguintes, Maquiavel escreveu diversos livros. Sua


obra mais famosa foi ―O Príncipe‖ (1513). Também escreveu ―A Arte da
Guerra‖ e ―História de Florença‖. Mas seu mais brilhante e conhecido
trabalho é, sem dúvida, ―O Príncipe‖.

*****

O Príncipe

O Príncipe – Capa da edição de 1580

Em sua obra ―O Príncipe‖, Nicolau Maquiavel mostra a sua preocupação


em analisar acontecimentos ocorridos ao longo da história, de modo a
compará-los à actualidade de seu tempo

O Príncipe consiste de um manual prático dado ao Príncipe Lorenzo de


Médici como um presente, o qual envolve experiência e reflexões do
autor. Maquiavel analisa a sociedade de maneira fria e calculista e não
mede esforços quando trata de como obter e manter o poder.

A obra-prima de Maquiavel pode ser considerada um guia de conselhos


para governantes. O tema central do livro é o de que para permanecer
no poder, o líder deve estar disposto a desrespeitar qualquer
consideração moral, e recorrer inteiramente à força e ao poder da
decepção. Maquiavel escreveu que um país deve ser militarmente forte e
que um exército pode confiar somente nos cidadãos de seu país – um
exército que dependia de mercenários estrangeiros era fraco e
vulnerável.

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A obra é dividida em 26 capítulos, que podem ser agregados em
cinco partes, a saber:

*capítulo I a XI: análise dos diversos grupo de pricipados e meios de


obtenção e manutenção destes;

capítulo XII a XIV: discussão da análise militar do Estado;

capítulo XV a XIX: estimativas sobre a conduta de um Príncipe;


capítulo XX a XXIII: conselhos de especial interesse ao Príncipe;

capítulo XXIV a XXVI: reflexão sobre a conjuntura da Itália à sua


época.

Maquiavel mostra, através de claros exemplos, a importância do


exército, a dominação completa do novo território através de sua estadia
neste; a necessidade da eliminação do inimigo que no país dominado
encontrava-se e como lidar com as leis pré-existentes à sua chegada; o
consentimento da prática da violência e de crueldades, de modo a obter
resultados satisfatórios, onde se encaixa perfeitamente seu tão famoso
postulado de que ―os fins justificam os meios‖ como os pontos mais
importantes.

O pensamento de Maquiavel, na obra, reflecte sobre os perigos e


dificuldades que tem o Príncipe com suas tropas, compostas de forças
auxiliares, mistas e nacionais, e destaca a importância da guerra para
com o desenvolvimento do espírito patriótico e nacionalista que vem a
unir os cidadãos de seu Estado, de forma a torná-lo forte.

Maquiavel afirma ainda que um líder deve buscar o apoio de seu povo.
Para a surpresa de muitos, o autor explicou que ao assumir o poder
―deve-se cometer todas as crueldades de uma só vez, para não ter que
voltar a elas todos os dias…Os benefícios devem ser oferecidos
gradualmente, para que possam ser melhor apreciados.‖

Maquiavel também ensinou que para obter sucesso, um líder deve estar
cercado por ministros leais, competentes e confiáveis.

Um dos temas mais importantes de ―O Príncipe‖ é o debate sobre a


seguinte questão: ―é preferível que um líder seja amado ou temido?‖
Maquiavel responde que é importante ser amado e temido, porém, é
melhor ser temido que amado.

Ele explica que o amor é um sentimento volúvel e inconstante, já que as


pessoas são naturalmente egoístas e podem frequentemente mudar sua
lealdade. Porém, o medo de ser punido é um sentimento que não pode
ser modificado ou ignorado tão facilmente.

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Maquiavel também afirma que, se necessário, um governante deve
mentir e trapacear. O autor declara que é melhor para um líder caluniar
do que agir de acordo com suas promessas, se estas forem resultar em
consequências adversas para sua administração e seus interesses.

Da mesma forma que Maquiavel acreditava que os líderes deveriam ser


falsos quando preciso, ele os aconselhava a ficarem atentos em relação
às promessas de outros: eles também podem estar mentindo caso seja
de interesse deles.

Mostra a necessidade de uma certa versatilidade que deve adoptar o


governante em relação ao seu modo de ser e de pensar a fim de que se
adapte às circunstâncias momentâneas‖qualidades‖, em certas
ocasiões, como afirma o autor, mostram-se não tão eficazes quanto
―defeitos‖, que , nesse caso, tornam-se próprias virtudes;
da temeridade dele perante a população à afeição, como medida de
precaução à revolta popular, devendo o soberano apenas evitar o ódio;
da utilização da força sobreposta à lei quanto disso dependeram
condições mais favoráveis ao seu desempenho; e da sua boa imagem em
face aos cidadãos e Estados estrangeiros, de modo a evitar possíveis
conspirações.

Há claramente um questionamento das utilidades das fortalezas e


outros meios em vistas fins de protecção do Príncipe;
o modo em que encontrará mais serventia em pessoas que
originalmente lhe apresentavam suspeitas em contrapartida às
primeiras que nele depositavam confiança;
como deve agir para obter confiança e maior estima entre seus súbitos;
a importância da boa escolha de seus ministros; e uma espécie de guia
sobre o que fazer com os conselhos dados, estes, raramente úteis,
quando se considera o interesse oculto de quem os dá.

Na última parte, que abrange os três capítulos finais, Maquiavel foge de


sua análise propriamente ―maquiavélica‖ na forma de um apelo à
família real, de modo que esta adopte resoluções em favor da libertação
da Itália, dominada então pelos bárbaros.

Tornou-se um conhecedor profundo dos mecanismos políticos e viajou


incessantemente participando em vinte e três embaixadas a cortes
italianas e europeias, conhecendo vários dirigentes políticos, como Luís
XII de França, o Papa Júlio II, o Imperador Maximiliano I, e César
Bórgia.

Em 1500 foi enviado a França onde se encontra com Luís XII e com o
Cardeal de Orleães.

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A sua missão mais memorável, acontecida em 1502 quando visitou
César Bórgia estabelecido na Romagna, foi objecto de um relatório de
1503 intitulado «Descrição da Maneira empregue pelo Duque Valentino
[César Bórgia] para Matar Vitellozzo Vitelli, Oliverotto da Fermo, Signor
Pagolo e o Duque de Gravina, Orsini», no qual descreveu com uma
precisão cirúrgica os assassinatos políticos do filho do Papa Alexandre
VI Bórgia, explicando sub-repticiamente a arte política ao principal
dirigente de Florença, o indeciso e timorato Pier Soderini.

Em 1504 regressa a França, e no regresso, inspirado nas suas leituras


sobre a História Romana, apresenta um plano para a reorganização das
forças militares de Florença, que é aceito.

Em 1508 é enviado a corte do imperador Maximiliano, estabelecido em


Bolzano, e em 1510 está de novo em França.

Em 1509 dirigiu o pequeno exército miliciano de Florença para ajudar a


libertar Pisa, missão que foi coroada de sucesso.

Em Agosto de 1512, devido a invasão espanhola do território da


república, a população depôs Sonderini e acolheu os Médici.

Maquiavel foi demitido em 7 de Novembro, devido a sua ligação ao


governo republicano, retirando-se da vida pública.

Tendo-se tornado suspeito, em 1513, de envolvimento numa


conspiração contra o novo governo, foi preso e torturado.

Tirando algumas nomeações para postos temporários e sem


importância, em que se conta em 1526 uma comissão do Papa
Clemente VII para inspeccionar as muralhas de Florença, e do seu
amigo Francesco Guicciardini, Comissário Papal da Guerra na
Lombardia, que o empregou em duas pequenas missões diplomáticas,
passou a dedicar-se a escrita, vivendo em San Casciano, a alguns
quilometros de Florença.

Em Maio de 1527, tendo os Médici sido expulsos de Florença


novamente, Maquiavel tentou reocupar o seu lugar na Chancelaria, mas
o posto foi-lhe recusado devido a reputação que O Príncipe já lhe tinha
granjeado.

Pouco tempo depois morreu, pouco tempo depois do saque de Roma.

48
Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio

―Discursos‖, como também é conhecida a referida obra, foi escrito por


Maquiavel quatro anos após haver concluído ―O Príncipe‖, o que
justifica suas perceptíveis semelhanças com o primeiro.
No entanto, o que o distingue de ―O Príncipe‖ é a análise detalhada da
república, em que o autor claramente se coloca em favor desta, a
apontar suas principais características observadas no decorrer da
história e modos de melhorá-la, ou de ao menos mantê-la.

Assim, pode-se considerar Maquiavel como sendo,


indubitavelmente, um pensador indutivo utiliza-se de inúmeros
exemplos históricos com o fim de sustentar suas afirmações. No
entanto, seu propósito não é sempre impecavelmente atingido, mesmo
porque a realidade não segue regras e é, portanto, muito mais complexa
do que se pode teorizar.
A obra é começada com a citação da origem das cidades, que podem
estabelecer-se devido a um grupo de cidadãos juntar-se a visar maior
segurança; a estrangeiros que querem assegurar o território
conquistado, a estabelecer, ali, colónias; ou mesmo a fim de exaltar-se a
glória do Príncipe.

As repúblicas nascem com o surgimento das cidades e, assim,


constituem três espécies, que são: a monarquia, aristocracia e
despotismo. Três que podem evoluir para o despotismo, oligarquia e
anarquia, respectivamente. É claro, neste ponto, o pessimismo de como
a sociedade é vista por Maquiavel: é a dialéctica de dois termos, que
trata da sucessão entre ascendência e decadência, a formar um ciclo
vicioso. Maquiavel acredita, ainda, que todos princípios corrompem-se e
degeneram-se, a ser possível ser corrigido somente via acidente externo
(fortuna) ou por sabedoria intrínseca (virtu).

A voltar-se às espécies de repúblicas, chega-se à conclusão de que a


sua melhor forma seria o equilíbrio, dito como ser a ―justa medida‖,
segundo Aristóteles. Tal equilíbrio pode manter-se através das próprias
discordâncias entre o povo e o Senado, já que estes, em conjunto,
representam e lutam pelos interesses gerais do Estado.

O Estado é, então, definido como o poder central soberano; é o


monopólio do uso legítimo da força, como diria Weber. As leis são
estabelecidas nas práticas virtuosas da sociedade e com o cuidado de
não repetir o que não teve de êxito. Por isso, é dito que não há nada pior
do que a deixar ser desrespeitada.

Se isso ocorrer, tornar-se clara a falha do exercício do poder de quem a


corrompe. Em contrapartida, em se tratando de Estado, tudo é válido,
desde a violação de leis e costumes e tudo mais que for necessário para
atingirem-se as consequências visadas: os fins justificam os meios.

49
Nessa visão de poder do Estado, é clara a importância da religião, pois
em nome dela são feitas valer muitas causas em favor do Estado. A
religião é, sob a visão de Maquiavel, um instrumento político é usado
de modo a justificar interesses os mais peculiares e, também, como
conforto à população, que anda sempre em busca de ideais, a estar
disposta até mesmo a conceder sua vida em busca destes.

O êxito de uma república, consoante o autor, pode ser estrategicamente


obtido através da sucessão dos governantes. Se intercalar os virtuosos
com os fracos, o Estado poderá manter-se. Mas, se, diferentemente,
dois ruins sucederem-se, ou apenas um, mas que seja duradouro, a
ruína do Estado será inevitável, já que, desse modo, o segundo governo
não poderá utilizar-se dos bons frutos do governo anterior.

Cita a importância das república, já que nela os próprios cidadãos


escolhem seus governantes, de modo a aumentar a chance de ter-se,
consecutivamente, bons governos.

Com relação à política de defesa, onde há pessoas e não um exército, é


notada um clara incompetência por parte do soberano, pois é de sua
exclusiva competência formar um exército próprio para a defesa da
nação.
É, também, de extrema importância saber-se a hora própria para
instituir-se a ditadura, que, em ocasiões excepcionais, é necessária a
fim de tomarem-se decisões rápidas, a dispensar, assim, consultar as
tradicionais instituições do Estado.

Contudo, ela deve-se instituir por período limitado, de modo a não se


corromper e deve existir até quando o motivo o qual a fez precisar-se for
eliminado. Após uma análise teórica e comparativa em termos
históricos é colocada ainda a importância da fortuna, a qual tem
contingência própria e o poder de mudar os fatos. Assim, o autor define
o papel do homem na história: desafiá-la.

Com base na teoria do equilíbrio, conclui-se, então, que o ideal é que se


estabeleça um meio-termo entre as formar de governo a serem
adoptadas, a observar-se que a combinação das já existentes pode
mostrar-se muito mais eficiente.
A forma que é administrado um Estado deve adaptar-se ao seu
contingente populacional, e não as pessoas às suas leis.

O Príncipe é um tratado político em 25 capítulos com uma conclusão


que propõem a libertação da Itália das intervenções de franceses e de
espanhóis, considerados bárbaros.

Escrito originalmente em 1513 e dedicado a Giuliano de Médici, em


1516 passou a ser dedicado ao sobrinho deste Lorenzo di Medici, antes
deste se tornar duque de Urbino.

50
A obra de Maquiavel é toda fundamentada em sua própria
experiência, seja ela com os livros dos grandes escritores que o
antecederam, ou sejam os anos como segundo chanceler, ou até
mesmo a sua capacidade de olhar de fora e analisar o complicado
governo do qual fez parte.

Enfim, em 1527, com a queda dos Médici e a restauração da república,


Maquiavel que achava estarem findos os seus problemas, viu-se
identificado por jovens republicanos como alguém que tinha ligações
com os tiranos depostos. Então viu-se vencido. Esgotaram-se suas
forças. Foi a gota de água que estava faltando. A república considerou-o
seu inimigo. Desgostoso, adoece e morre em Junho.

Mas nem depois de morto, Maquiavel terá descanso. Foi posto no Índex
pelo concílio de Trento, o que levou-o, desde então a ser objecto de
excreção dos moralistas.

Separando a ética da política

Maquiavel faleceu sem ter visto realizados os ideais pelos quais se lutou
durante toda a vida. A carreira pessoal nos negócios públicos tinha sido
cortada pelo meio com o retorno dos Médici e, quando estes deixaram o
poder, os cidadãos esqueceram-se dele, ―um homem que a fortuna tinha
feito capaz de discorrer apenas sobre assuntos de Estado‖. Também não
chegou a ver a Itália forte e unificada.

Deixou porém um valioso legado: o conjunto de ideias elaborado em


cinco ou seis anos de meditação forçada pelo exílio. Talvez nem ele
mesmo soubesse avaliar a importância desses pensamentos dentro do
panorama mais amplo da história, pois ‖ especulou sempre sobre os
problemas mais imediatos que se apresentavam‖. Apesar disso,
revolucionou a história das teorias políticas, constituindo-se um marco
que modificou o fato das teorias do Estado e da sociedade não
ultrapassarem os limites da especulação filosófica.

O universo mental de Nicolau Maquiavel é completamente diverso. Em


São Casciano, tem plena consciência de sua originalidade e trilha um
novo caminho. Deliberadamente distancia-se dos ‖ tratados
sistemáticos da escolástica medieval‖ e, à semelhança dos
renascentistas preocupados em fundar uma nova ciência física, rompe
com o pensamento anterior, através da defesa do método da
investigação empírica.

51
Princípios maquiavélicos

Maquiavel nunca chegou a escrever a sua frase mais famosa: ―os fins
justificam os meios”. Mas com certeza ela é o melhor resumo para sua
maneira de pensar. Seria praticamente impossível analisar num só
trabalho , todo o pensamento de Nicolau Maquiavel , portanto, vamos
analisá-lo baseados nessa máxima tão conhecida e tão diferentemente
interpretada.

Ao escrever O Príncipe, Maquiavel expressa nitidamente os seus


sentimentos de desejo de ver uma Itália poderosa e unificada.
Expressa também a necessidade ( não só dele mas de todo o povo
Italiano ) de um monarca com pulso firme, determinado que fosse um
legítimo rei e que defendesse seu povo sem escrúpulos e nem medir
esforços.

Em O Príncipe, Maquiavel faz uma referência elogiosa a César Bórgia,


que após ter encontrado na recém conquistada Romanha , um lugar
assolado por pilhagens , furtos e maldades de todo tipo, confia o poder a
Dom Ramiro d’Orco. Este, por meio de uma tirania impiedosa e
inflexível põe fim à anarquia e se faz detestado por toda parte. Para
recuperar sua popularidade, só restava a Bórgia suprimir seu ministro.
E um dia em plena praça , no meio de Cesena, mandou que o partissem
ao meio. O povo por sua vez ficou, ao mesmo tempo, satisfeito e
chocado.

Para Maquiavel, um príncipe não deve medir esforços nem hesitar,


mesmo que diante da crueldade ou da trapaça, se o que estiver em
jogo for a integridade nacional e o bem do seu povo.

‖ sou de parecer de que é melhor ser ousado do que prudente, pois a


fortuna( oportunidade) é mulher e, para conservá-la submissa, é
necessário (…) contrariá-la.

Vê-se , que prefere, não raramente, deixar-se vender pelos ousados do


que pelos que agem friamente. Por isso é sempre amiga dos jovens, visto
terem eles menos respeito e mais ferocidade e subjugarem-na com mais
audácia‖.

Para Maquiavel, como renascentista que era, quase tudo que veio
antes estava errado. Esse tudo deve incluir os pensamentos e as ideias
de Aristóteles. Ao contrário deste, Maquiavel não acredita que a
prudência seja o melhor caminho. Para ele, a coerência está contida na
arte de governar. Maquiavel procura a prática.

A execução fria das observações meticulosamente analisadas,


feitas sobre o Estado, a sociedade. Maquiavel segue o espírito
renascentista, inovador. Ele quer superar o medieval. Quer
separar os interesses do Estado dos dogmas e interesses da igreja.

52
Maquiavel não era o vilão que as pessoas pensam. O termo
maquiavélico tem sido constantemente mal interpretado.

Os fins justificam os meios.

Maquiavel , ao dizer essa frase, provavelmente não fazia ideia de quanta


polémica ela causaria. Ao dizer isso, Maquiavel não quis dizer que
qualquer atitude é justificada dependendo do seu objectivo. Seria
totalmente absurdo. O que Maquiavel quis dizer foi que os fins
determinam os meios. É de acordo com o seu objectivo que você vai
traçar os seus planos de como atingi-los.

A contribuição de Nicolau Maquiavel para o mundo é imensa. Ensinou,


através da sua obra, a vários políticos e governantes. Aliás, a obra de
Maquiavel entrou para sempre não só na história, como na nossa vida
quotidiana actual, já que é aplicável a todos os tempos.

É possível perceber que ―Maquiavel, fingindo ensinar aos governantes,


ensinou também ao povo‖. E é por isso que até hoje, e provavelmente
para sempre, ele será reconhecido como um dos maiores pensadores da
história do mundo.

O Legado de Maquiavel

Maquiavel foi muito criticado pelas ideias que ele defendeu em “O


Príncipe”.

Contudo, é importante ressaltar que ele preferia uma república à


ditadura. Tinha uma preocupação com a fraqueza militar e política da
Itália, e desejava ver um governante forte que unificasse o país e
expulsasse os invasores estrangeiros que estavam devastando a Itália.
Por um lado, Maquiavel era defensor de tácticas severas e cínicas, por
outro, ele era um patriota idealista.

Poucos filósofos políticos foram tão condenados quanto Maquiavel. Seu


nome virou sinónimo, inclusive na língua portuguesa, de duplicidade e
manipulação: ―maquiavélico‖. As ideias de Nicolau Maquiavel podem
não ter sido morais, mas foram certamente influentes.

O próprio Maquiavel declarou que elas não eram originais: seus


conselhos já haviam sido adoptados na prática por diversos governantes
bem-sucedidos. “O Príncipe” tornou-se notório após ter sido lido
por diversos vilões da história.

53
Benito Mussolini, o líder fascista italiano durante a Segunda Guerra
Mundial, um homem que trouxe muita destruição para seu país,
elogiou publicamente o livro. Dizem que Napoleão Bonaparte dormia
com um exemplar do livro sob seu travesseiro. No entanto, deve-se
lembrar que Maquiavel apenas apresentou, e não criou, a realidade
amoral da política.

Maquiavel acreditava na capacidade humana de determinar seu próprio


destino. Para ele, os fins justificavam os meios: um governante deveria
fazer qualquer coisa para atingir seus objectivos. Ao escrever ―O
Príncipe‖, Maquiavel desejava guiar os governantes, alertando-os sobre
as armadilhas da selva política. Seu livro é um manual de auto-
preservação para líderes mundiais.

Independente de admiradores e críticos, não se pode negar a influência


de Maquiavel. Seu trabalho e suas ideias continuam sendo amplamente
lidas e discutidas e ele é considerado um dos principais filósofos
políticos de todos os tempos.

Se a teoria política moderna é discutida hoje com tamanho realismo,


grande parte disso deve-se ao autor de ―O Príncipe‖.

A Sociedade à época de Maquiavel (1469-1527)


Cristandade em decadência: conflitos entre o poder divino (Igreja) e o
poder temporal (Estado)
Processo de ascensão do capitalismo: mercantilismo
Desenvolvimento do Estado Nacional: soberanos locais são absorvidos
pelo fortalecimento das monarquias e pela crescente centralização das
instituições políticas (cortes de justiça, burocracias e exércitos)
Estado absoluto: preserva a ordem de privilégios aristocráticos
(mantendo sob controle as populações rurais), incorpora a burguesia e
subordina o proletariado incipiente
Inglaterra e França: consolidam poder central
Itália não realiza unificação nacional: é um conglomerado de pequenas
cidades- estado rivais, disputados pelo Papa, Alemanha, França e
Espanha.

Concepção de homem em Maquiavel

Racionalidade instrumental: busca o êxito, sem se importar com


valores éticos.

Cálculo de custo/benefício: teme o castigo

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Natureza humana:

Homem possui capacidades: força, astúcia e coragem


Homem é vil, mas é capaz de actos de virtude
Mas não se trata da virtude cristã
Não incorpora a ideia da sociabilidade natural dos antigos
O homem não muda: não incorpora o dogma do pecado original:
natureza decaída que pode se regenerar pela salvação divina.

Concepção da História em Maquiavel


Perspectiva cíclica, pessimista, de inspiração platónica
Tudo se degenera, se sucede e se repete fatalmente
Todo princípio corrompe-se e degenera-se
Isto só pode ser corrigido por acidente externo (fortuna) ou por
sabedoria intrínseca (virtu)
Não manifesta perspectiva teleológica humanidade não tem um objetivo
a ser atingido

A política não admite a teleologia cristã: o caminho da salvação, a


construção do Reino de Deus entre os homens.

Também não pensa a história sob a perspectiva dos modernos: não


menciona a ideia do progresso à estrutura cíclica

Concepção de Política em Maquiavel

Política: pela primeira vez é mostrada como esfera autónoma da vida


social.

Não é pensada a partir da ética nem da religião: rompe com os


antigos e com os cristãos.

Não é pensada no contexto da filosofia: passa a ser campo de estudo


independente.

Vida política: tem regras e dinâmica independentes de considerações


privadas, morais, filosóficas ou religiosas.

Política: é a esfera do poder por excelência.

55
Política: é a actividade constitutiva da existência colectiva: tem
prioridade sobre todas as demais esferas.

Política é a forma de conciliar a natureza humana com a marcha


inevitável da história: envolve fortuna e virtude.
Fortuna: contingência própria das coisas políticas: não é manifestação
de Deus ou Providência Divina.
Há no mundo, a todo momento, igual massa de bem e de mal: do seu
jogo resultam os eventos (e a sorte).
Virtude: qualidades como a força de carácter, a coragem militar, a
habilidade no cálculo, a astúcia, a inflexibilidade no trato dos
adversários.
Pode desafiar e mudar a fortuna: papel do homem na história.

Concepção de Estado em Maquiavel

Não define Estado: infere-se que percebe o Estado como poder central
soberano que se exerce com exclusividade e plenitude sobre as questões
internas externa de uma colectividade.
Estado: está além do bem e do mal: o Estado é!
Estado: regulariza as relações entre os homens: utiliza-os nos que eles
têm de bom e os contém no que eles têm de mal.
Sua única finalidade é a sua própria grandeza e prosperidade.
Daí a ideia de “razão de Estado”: existem motivos mais elevados que
se sobrepõem a quaisquer outras considerações, inclusive à própria lei.
Tanto na política interna quanto nas relações externas, o Estado é o
fim: e os fins justificam os meios.
O Príncipe: não se destina aos governos legais ou constitucionais.
Questão: como constituir e manter a Itália como um Estado livre, coeso
e duradouro? Ou como adquirir e manter principados?
A tirania é uma resposta prática a um problema prático.
O Príncipe: não há considerações de direito, mas apenas de poder: são
estratégias para lidar com criações de força.
Teoria das relações públicas: cuidados com a imagem pública do
governante.
Teoria da cultura política: religião nacional, costumes e ethos social
como instrumentos de fortalecimento do poder do governante.
Teoria da administração pública: probidade administrativa, limites à
tributação e respeito à propriedade privada.

Teoria das relações internacionais


Exércitos nacionais permanentes, em lugar de mercenários.
Conquista, defesa externa e ordem interna.
A guerra é a verdadeira profissão de todo governante e odiá-la só traz
desvantagens.

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CONCLUSÃO:

O conjunto de idéias de Maquiavel constituiu um marco que dividiu


a história das teorias políticas. Em Platão (428 - 348 a.C.),
Aristóteles (384 - 322 a.C.), Tomás de Aquino (1225 - 1274) ou
Dante (1265 - 1321), o estudo da teoria do estado e da sociedade
vinculava-se à moral e constituía-se como ideais de organização
política e social. O mesmo podemos dizer de Erasmo de Rotterdam
(1465 - 1536) no Manual do Príncipe Cristão, ou Thomas More
(1478 - 1535) na Utopia, que constróem modelos ideais de bom
governante de uma sociedade justa baseados num humanismo
abstrato.

Nicolau Maquiavel, um dos mais conhecidos filósofos políticos de


todos os tempos, se tornou famoso por defender a visão de que um
governante, se necessário, deveria ser cruel e fraudulento para
obter e manter o poder. Seus críticos o denunciam como um
homem que foi desprovido de moralidade, porém, seus admiradores
afirmam que ele foi um dos únicos realistas que verdadeiramente
entendiam o mundo político e que teve a coragem de descrevê-lo
como ele realmente é. Em todo caso, séculos após terem sido
publicados, os trabalhos de Maquiavel continuam sendo lidos e
analisados por estudantes de filosofia, história e política.

O motivo pelo qual Maquiavel tem sido em geral considerado


exclusivamente um defensor do despotismo está em que O Príncipe
foi o livro mais largamente difundido - na verdade muitos de seus
críticos não leram senão este livro - ao passo que os Discursos
nunca chegaram a ser tão conhecidos. Uma vez bem compreendida
a exaltação da monarquia absoluta, pode coexistir com as
manifestas simpatias pela forma de governo republicana.

Para Maquiavel, o governo fundamenta-se na incapacidade do


indivíduo de defender-se contra a agressão de outros indivíduos a
menos que apoiado pelo poder do estado. A natureza humana,
porém, mostra-se egoísta, agressiva e gananciosa; o homem quer
conservar o que tem e buscar mais ainda. Por isso mesmo, os

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homens vivem em conflito e competição, o que pode acarretar uma
anarquia declarada a menos que seja controlada pela força que se
esconde atrás da lei.

Assim, o governo para ser bem sucedido, quer uma monarquia ou


república, deve objetivar a segurança das propriedades e da vida,
sendo esses os desejos mais universais da natureza humana. Daí
sua observação que " os homens esquecem mais depressa a morte
do pai que a perda do seu patrimônio" (O Príncipe, cap. XVII).
Assim, o essencial numa nação é que os conflitos originados em seu
interior sejam controlados e regulados pelo Estado.

Maquiavel acreditava que a forma perfeita de governo republicano é


aquele que apresenta características monárquicas, aristocráticas e
populares de forma harmoniosa e simultânea, ou seja, uma
república mista. Observa que uma monarquia facilmente se torna
uma tirania; que a aristocracia degenera em oligarquia e que o
governo popular converte-se em demagogia, formas corrompidas da
república segundo o ideal aristotélico.

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Erasmo de Roterdão
A Educação do Príncipe Cristão
O elogio da Loucura

Erasmo nasceu em Roterdão e faleceu, aos 70 anos de idade, em


Basileia, na Suíça. Doutorou-se na Universidade de Bolonha e, embora
tenha seguido a vida religiosa, destacou-se sobretudo como
humanista, filósofo e pedagogo. Foi um grande escritor da língua
latina que dominava com poucos no seu tempo. Para além de nos ter
deixado algumas importantes obras, foi também um excelente tradutor
de autores clássicos. Viajou muito e viveu, durante vários anos, no
estrangeiro: Itália, Inglaterra, França e Suíça. Foi amigo de Tomás
Morus e de Lutero, mas rompeu com este, em 1524, recusando aderir
ao protestantismo. Relacionou-se com vários portugueses da sua época,
nomeadamente André de Resende e Damião de Góis. Embora sacerdote
católico, Erasmo criticou o luxo de algumas ordens religiosas e pugnou
pelo fim do método escolástico nas universidades. As suas obras mais
importantes são "O Elogio da Loucura", publicado em 1509, e "A
Educação do Príncipe Cristão", dado à estampa em 1516.
Erasmo escreveu "A Educação do Príncipe Cristão", em 1516, a
propósito da educação do Arquiduque Carlos da Áustria, futuro
imperador Carlos V, de quem foi preceptor. "Redigida em latim, ao
gosto da época, esta obra não é propriamente um tratado de

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política, mas pode ser considerada como um compêndio de
formação política. É uma obra pedagógica, justamente porque
Erasmo, como preceptor de príncipes, procura através dos seus
ensinamentos, da sua doutrina, da sua moral, tornar o príncipe cristão
virtuoso e justo, como ele entendia que os príncipes deviam ser". Numa
monarquia hereditária, a maior esperança em que surja um bom
rei está na educação do jovem príncipe. Quanto mais excelente for
a educação do jovem príncipe, mais probabilidades há em que
venha a ser um bom rei.
O principal objectivo da educação do jovem príncipe é inculcar nele o
sentido do Estado. O príncipe deve ser ensinado a desejar, não os
privilégios de quem reina, mas as responsabilidades de quem governa.
Como cristão, Erasmo considera que o estudo das Sagradas Escrituras
deve estar sempre presente no currículo escolar do jovem príncipe.
"Há que imprimir na mente do príncipe a clara distinção entre o
bem e o mal. A verdadeira honra dos príncipes é a que vem da
virtude e da prática das boas acções - e não do número de estátuas,
ou da linhagem da família, ou das pompas e riquezas. O dever do
príncipe é ter em conta o bem-estar do seu povo, mesmo que com o
sacrifício da sua própria vida, se necessário. Erasmo, noutro passo
da "Educação do Príncipe Cristão", completa o seu pensamento
indicando expressamente quais as obras que o jovem príncipe deve
ler. São elas, por ordem de importância: em primeiro lugar, os Provérbios
e o Livro da Sabedoria, de Salomão; segundo, os Evangelhos; terceiro, os
livros de Plutarco e de Séneca; quarto, a Política de Aristóteles; quinto o
"De Officiis" de Cícero; e sexto, a República de Platão.
Fazendo lembrar Platão, Erasmo considera que o príncipe também deve
ser filósofo, pois sem o concurso da filosofia o rei governa às cegas.
"Erasmo propõe com a boa preparação para a vida cristã a leitura
sensata dos poetas e filósofos pagãos, seguindo o exemplo de São
Basílio, de Santo Agostinho e de São Jerónimo, evitando, obviamente, os
maus costumes associados com a cultura grega. A volta aos clássicos
tem valor instrumental, pois serve para fins cristãos, ideia
contrária ao ideal dos humanistas italianos. Estes consideram os
clássicos como meios para alcançar uma vida plenamente humana,
sem qualquer preocupação com fins cristãos"
Em 1511, Erasmo publicou um importante tratado sobre educação,
intitulado "Sobre o Método Certo de Ensino" ( no original latino "De
Ratione Studii") e um ano depois deu á estampa um texto didáctico com
o título "Sobre a Lista de Palavras" (no original latino "De Copia
Verborum"). O tratado "De Ratione Studii" foi "a primeira formulação
explícita de Erasmo sobre o processo educativo. Aliás, é a única obra do
género, na época, no que diz respeito aos rudimentos, isto é, à
aprendizagem da fala e da leitura. Nota-se a influência de Quintiliano. A
esse respeito, Erasmo afirma que àquilo que Quintiliano escreve nada
se pode acrescentar. A finalidade do trabalho de Erasmo é levar os
jovens de inteligência e de capacidade mediana a um nível de estudos
aceitável, ensinando-os a conversar em Latim e Grego, numa idade em

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que, sob as orientações de um mestre comum, não teriam ultrapassado
sequer o nível primário" .
Erasmo revelou uma enorme preocupação com a aprendizagem da
escrita, considerando que uma boa escrita não se atinge apenas com o
estudo da gramática e a realização de ditados e composições, sendo
também necessário mergulhar na Literatura Clássica e em particular
Plínio, Platão, Aristóteles, Orígenes, Basílio, Ovídio, Homero e Hesíodo.
Erasmo defendeu a utilização dos prémios e das recompensas como
forma de incentivar os alunos.
Em 1518, Erasmo publicou "Os Colóquios Familiares" ("Familiarium
Colloquiorum Formulam"), consistindo em exercícios para o ensino da
conversação em Latim. Em 1529, publicou o tratado "Sobre a Educação
dos Meninos" ("De Pueris Instituendis"), no qual traça, de uma forma
breve, o seu ideário pedagógico. Nesta obra, Erasmo faz uma crítica ao
mau estado do ensino na sua época: más instalações, professores mal
preparados, alunos ignorantes e directores escolares incompetentes.
O bom professor deverá interessar-se por cada um dos seus alunos,
conhecer as suas personalidades, dominar muito bem as matérias, ter
boa capacidade de comunicação e possuir as virtudes morais.
Erasmo foi um pioneiro na defesa da educação infantil, defendendo o
início dos estudos a partir dos três anos de idade, mas
Sempre no respeito pela maturidade da criança, procurando adaptar o
ensino à personalidade do aprendiz.

O Elogio da Loucura (dedicado a Thomas More) onde apresenta a


loucura como uma deusa que conduz as acções humanas. Identifica a
loucura em costumes e aptos como o casamento e a guerra. Diz que é
ela que forma as cidades, mantém os governos, a religião e a justiça. Ele
critica muitas actividades humanas, identificando nelas mediocridade e
hipocrisia. Vejamos o que ele diz sobre:

A Loucura - a Loucura fala em primeira pessoa no livro,


defendendo sua imagem e ponto de vista.

As crianças a alegria da infância a torna a idade mais agradável,


porque a natureza dá às crianças um ar de loucura.

O casamento se as mulheres pensassem sobre o assunto veriam


que não é vantajoso. Dores no parto, filhos, dever conjugal. Só a
loucura para fazerem agir dessa maneira, assim a Loucura é a
origem da vida. A única preocupação das mulheres é se tornar
mais agradável para os homens. É essa a razão de tantos
perfumes, banhos e enfeites. Só a loucura constitui o ascendente
das mulheres sobre os homens.

61
Os filósofos – gabam-se de serem os únicos sábios, mas se
tirar-mos o véu de orgulho e presunção veremos que não passam
de ridículos loucos. A natureza parece zombar de suas
conjecturas, e é risível sua teoria de infinidade dos mundos.
Falam de astronomia como se conhecessem os astros palmo a
palmo. Na verdade, eles não têm nenhuma ideia segura.

Mas a crítica maior de Erasmo é para a Igreja. Ele era cristão, mas
foia contra a hierarquia dessa instituição (Igreja), que declara guerras,
faz cerimonias e rituais em demasia, e discutem eternamente o mistério
divino, sendo que o mandamento de Cristo é apenas a prática da
caridade. Defende um retorno à simplicidade do início da Igreja. Lutero
estava juntando adeptos em suas pregações e convidou Erasmo, mas
este permaneceu na Igreja católica, apontando defeitos. Mais tarde
polemizou contra Lutero a favor do livre-arbítrio, que o protestante não
acreditava. Erasmo é considerado o principal pensador do humanismo.
Critica os teólogos, pois esses condenam, por poucos motivos, muitas
pessoas como hereges. Os bispos vivem alegremente, entregam-se à
diversão material e esquecem que o seu nome significa zelo e solicitude
pela redenção da alma, mas não esquecem das honrarias e o dinheiro.
Os monges, para Erasmo, não fazem nada, mas não dispensam o vinho
e a mulheres. O papa não tem a salvação que Cristo fala, pois se
tivessem abria mão de seu património e dos impostos. Erasmo critica o
imposto que a igreja cobra para não condenar as almas após a morte. E
os papas aprovam a guerra, que é cruel e desumana.

Para Erasmo, milagres e superstições como o inferno, duendes e


fantasmas são coisas de ignorantes. Ele tem opiniões também sobre
política. No livro A instituição do Príncipe cristão fala da teoria da
soberania, o poder do príncipe é legitimado pela dedicação ao bem
comum e pela aceitação dos cidadãos. É a favor da eleição do chefe,
contrário ao monarquismo hereditário. O objectivo de Erasmo é
regenerar a Europa, pondo o ideal evangélico contra as guerras. Para se
chegar à paz, tem que se desarmar os países, tirar dos príncipes o direito
de declarar guerra e mobilizar a força nacional em favor da paz.

62
Thomas More
A utopia

São Sir Thomas More, por vezes latinizado em Thomas Morus


(Londres, 7 de Fevereiro de 1478 — Londres, 6 de Julho de 1535) foi
homem de estado, diplomata, escritor, advogado e homem de leis,
ocupou vários cargos públicos, e em especial, de 1529 a 1532, o cargo
de "Lord Chancellor" (Chanceler do Reino - o primeiro leigo em vários
séculos) de Henrique VIII da Inglaterra. É geralmente considerado como
um dos grandes humanistas do Renascimento. Foi canonizado como
santo da Igreja Católica em 9 de Maio de 1935 e sua festa litúrgica se
dá em 22 de Junho.

Era filho do juiz Sir John More, nomeado cavaleiro por Eduardo IV, e de
Agnes Graunger. Casou-se com Jane Colt em 1505, em primeiras
núpcias, tendo tido como filhos: Margaret, Elizabeth, Cecily e John.
Jane morreu em 1511 e Thomas More casou-se em segundas núpcias
com Lady Alice Middleton. More era homem de muito bom humor,
caseiro e dedicado à família, muito próximo e amigo dos filhos. Dele se
disse que era amigo de seus amigos, entre estes se encontravam os
mais destacados humanistas de seu tempo, como Erasmo de
Rotterdam e Luis Vives.

Deu aos filhos uma educação excepcional e avançada para época não
discriminando a educação dos filhos e das filhas. A todos
indistintamente fez estudar latim, grego, lógica, astronomia, medicina,
matemática e teologia. Sobre esta família escreveu Erasmo:
"Verdadeiramente, é uma felicidade conviver com eles."

Fez carreira como advogado respeitado, honrado e competente e exerceu


por algum tempo a cátedra universitária. Em 1504, fazia parte da

63
Câmara dos Comuns da qual foi eleito Speaker tendo ganho fama de
parlamentar combativo. Em 1510, foi nomeado Under-Sheriff de
Londres, no ano seguinte juiz membro da Commission of Peace. Entrou
para a corte de Henrique em 1520 foi várias vezes embaixador do rei e
tornou-se cavaleiro (Knight) em 1521. Foi nomeado vice-tesoureiro e
depois Chanceler do Ducado de Lancaster e, a seguir, Chanceler da
Inglaterra.

A sua obra mais famosa é "Utopia" (1516) (em grego, utopos = "em
lugar nenhum") . Neste livro criou uma ilha-reino imaginária que
alguns autores modernos viram como uma proposta idealizada de
Estado e outros como sátira da Europa do século XVI. Um dos
aspectos desta obra de More é que ela recorreu à alegoria (como no
Diálogo do conforto, ostensivamente uma conversa entre tio e
sobrinho) ou está altamente estilizada, ou ambos, o que lhe abre
um largo campo interpretativo.

A concepção da ilha de Utopia está toda enraizada em duas ideias:


A primeira - a não existência da propriedade privada .

A segunda -é o alcance dos interesses individuais, entendido


como apenas viável, se feito através do preenchimento prévio das
necessidades colectivas.

Esses conceitos são centrais na obra. Todo os outros elementos do


funcionamento tanto dos costumes, quanto da cultura, como do
governo são directamente ligados a esses pontos. O autor vê a
propriedade privada como a essência das mazelas do homem.
Podemos entender como propriedade privada a desigualdade
material, e se refere muito mais a propriedade privada como
vemos hoje, do que à concentração de riquezas por direito de
posse, como no caso da nobreza europeia tradicional.
Da mesma forma, a necessidade de ver a sociedade como um conjunto e
de subordinar os interesses individuais aos colectivos são a única
maneira de alcançar prosperidade e progresso.

A descrição da ilha é feita com base numa comparação com a


Inglaterra do seu tempo, que tem uma função de negativo. É
perfeitamente possível entender Utopia como uma anti-Inglaterra.
A Inglaterra de More não é mais medieval, os valores não são mais
exactamente os da nobreza, embora muito ainda reste dessa época. A
singularidade da Inglaterra, onde a nobreza mais cedo começou a
perder poder, permite entender o porque é tão forte a crítica de More à
propriedade privada. Na sociedade inglesa a essa época já era ténue a
linha que distingue burguesia e nobreza. Era muito fácil a ascensão à
nobreza de um burguês rico ou a um nobre adquirir as práticas de um
burguês. A revolta de More contra o dinheiro, a moeda, contra a
desigualdade material e concentração de riquezas e contra a
propriedade da terra, que já não é entendida por ele como direito
64
natural de posse, demonstra o quanto já era acelerado na Inglaterra
esse processo em direcção ao capitalismo. Não são os valores medievais
que More critica, são os que mais tarde serão chamados de valores
burgueses. A Inglaterra de seu tempo, pelo que ele demonstra, já
apresentava algumas distorções sociais e injustiças que são inerentes
ao capitalismo.

Na época de More, a terra era a principal fonte de riqueza e trazia


consigo também poder político e status. Na Inglaterra, ela já era
considerada uma mercadoria e a nobreza inglesa estava num processo
em que cada vez mais passaria a pensar como a burguesia, isto é,
empresarialmente. As enclosures que fazem parte desse processo de
transformação da terra em propriedade privada e, por consequência,
mercadoria, vão resultar na necessidade dos camponeses assalariarem-
se e aqueles que até então conseguiram produzir para si, nas terras
comunais, vão tornar a ser explorados por um grupo de proprietários. E
é dessa forma que é entendido o trabalho por More. Para ele, se há
escassez de alimentos e desigualdade, é porque alguns estão
trabalhando por outros. O trabalho, assim como a riqueza, deveria ser
distribuído igualmente a todos. O trabalho, como vê em seu tempo, é
apropriado por um exército de inúteis: clero, nobreza militar,
comerciantes, proprietários de terra, donos de empresa, funcionários do
estado e outros que estariam parasitando a sociedade e impedindo a
felicidade comum. Nos cálculos de More, se toda essa casta de parasitas
se também trabalhassem em algo produtivo, como na indústria ou
agricultura, haveria suprimento suficiente para todas as necessidades
da sociedade, assim como é descrito em Utopia. A miséria da qual More
fala não é a dos mendigos das cidades medievais, é aquela resultado da
necessidade de exploração do camponês. A descrição que Thomas More
faz da Inglaterra de seu tempo é tão familiar ao leitor do século XX,
capitalista, que chega a ser um instrumento de possível contestação da
teoria de Max Weber sobre a origem do capitalismo.

O outro ponto central, as necessidades e a felicidades colectivas


predominantes às individuais, têm grande força na concepção do
governo da ilha.

Não é à toa que a ilha tem um governo democrático e similar ao


republicano. É por conta dos governantes europeus. A visão de
Thomas More dos governantes, ao contrário do que se pode pensar está
longe de ser ingénua. Ele sabia muito bem com quem estava tratando. A
sensação familiar que alguns sentem ao ler a descrição que este faz dos
costumes e práticas dos governantes europeus não é casual. Aqueles
que já leram O Príncipe de Maquiavel podem notar que as atitudes
que More indica como comuns entre os reis, são quase todas as
que o italiano receita ao bom governante.

65
Temos aí uma diferença de concepções no método de alcançar um
bom governo. Para More, este deveria ter origem no povo, e ser
calcado na sabedoria dos mais velhos.

Para Maquiavel seria encontrado nos homens que o merecessem, e que


soubessem retirar as lições do mundo, da experiência. Mas ao contrário
deste, More acreditava que não seria sábio confiar tudo às mãos de um
homem só que não estivesse ligado ao povo, não com tudo que já
conhecia dos príncipes e dos reis. Estes e seus conselheiros, não
estariam interessados em uma política verdadeiramente direccionada ao
bem comum da sociedade. Estariam muito mais preocupados com seus
próprios interesses, com suas próprias possibilidades de tirar vantagem
da situação com a qual estariam lidando. Thomas More estava
criticando o poder de uma classe militar, apenas preocupada com seus
interesses, com seus privilégios, alimentados exactamente pela guerra –
outro grande mal eleito por More, por sua vez também derivado da
desigualdade material. Ao identificar nos governantes hereditários e
intocáveis essa falta de ligação com os bem comuns, criticava também o
direito divino, o poder legitimado pela tradição. É natural então a defesa
que faz da democracia como forma de governo. E é uma das
componentes mais importantes de seu discurso a deslegitimação que
faz ao poder real e ao poder da aristocracia. Fica extremamente claro
para ele que o único governante legítimo é aquele escolhido pelos
cidadãos. É muito forte a necessidade de um governo democrático,
eleito e directamente ligado aos interesses do povo. Por sinal, esse povo
do qual fala não é um pequeno grupo restrito, não é um recurso
ideológico (e demagogo) que visa tornar os interesses de alguns poucos
os de todos. Entende por povo ou cidadão, todo e qualquer membro da
comunidade. Na sua visão de sociedade igualitária em todos os
sentidos, são muito poucos os que não são considerados membros dela.
Mesmo assim, ainda vemos uma espécie de clivagem política, não
econômica ou hereditária, mas de idade e de gênero, e claro, no caso
dos escravos.

Os mais velhos, e por consequência para More, os mais sábios,


teriam mais capacidade de decidir o que é melhor para todos.

Em Utopia, as decisões políticas são feitas com base em uma


estrutura que tem como as células básicas a divisão em famílias.
Cada família é comandada pelo homem mais velho, e um certo
número de famílias vai eleger um magistrado regional (sifogrante
ou também chamado filarca) que as governará. Cada dez destes
obedece a um magistrado superior, também eleito (protofilaraca ou
traníboras), e os sifograntes ainda elegem um príncipe. Os
traníboras e o príncipe reunidos são o senado, e deliberam a
política da ilha. Mesmo assim há um rígido controlo da base
popular sobre o que o senado pode fazer. Com relação às mulheres
nada é dito do papel delas na política, mas fica subentendido que
esse papel está reservado aos homens.

66
Por outro lado, a participação das mulheres na sociedade é bem
igualitária, na educação, no treino militar e na divisão do trabalho.
Por exemplo, mesmo o casamento sendo rigidamente controlado de
acordo com as necessidades colectivas, ambos os noivos deverão
estar de acordo com o matrimónio. Da mesma forma, o divórcio é
tão restrito ao homem quanto à mulher (daí a necessidade de
escolher bem os cônjuges antes).

Os escravos de Utopia não são entendidos como parte do povo. A


eles é reservado o papel de párias, e que executam os trabalhos
mais duros e indignos. Mas esse papel é reservado a eles não por
serem estrangeiros ou por hereditariedade, e sim por serem
criminosos ou soldados estrangeiros vencidos e poupados. E
mesmo assim, é muito simples deixar de ser escravo. Os filhos de
um escravo não são escravos, o criminoso verdadeiramente
arrependido também não, assim como o soldado estrangeiro que
absorver a cultura e costumes da ilha.

Aliás, embora afirme que existiriam em grande número, quase nada


parece sobrar para eles fazerem na dinâmica da sociedade utópica. Da
mesma forma, o papel dos escravos na sociedade de More não é o
mesmo da democracia clássica grega. A economia interna desta era
escravista.

A força de trabalho fundamental de Utopia é a do homem livre, a do


cidadão de Utopia. Essa força de trabalho, entretanto, é
rigidamente controlada pelo governo.

Os magistrados são responsáveis por redireccionar os cidadãos para


desempenhar as funções necessárias à sociedade.

O indivíduo baseado em talento e gosto pessoal pode escolher sua


profissão, mas apenas se as necessidades da sociedade estiverem de
acordo.

Ou seja, a divisão de trabalho é directamente subordinada ao interesse


colectivo. Os interesses de um devem ser alcançados, mas relacionados
ao de todos. E há alguns serviços essenciais como a agricultura em que
todos devem desempenhar. Todo ano cada família deve mandar um de
seus membros para as plantações, de forma rotativa. Eventualmente se
um membro gosta de trabalhar no campo, ele pode estender sua
estadia.

O alfabeto Utopiano, segundo Peter Giles, apresenta bases latinas


e gregas.

67
Esse rígido controlo é encontrado também nos costumes. More
entendeu que uma sociedade tão diferente no funcionamento e nas
suas raízes deveria ter também uma cultura e ética totalmente
diferente, e tentou encontrar os pontos onde os costumes contribuiriam
para a manutenção dessa sociedade. Aqui diverge de Maquiavel. Esse
acredita numa dupla moral. More acredita que a vida pública deve estar
reflectida na vida privada. Esse rígido controlo da cultura e dos
costumes está calcado no condicionamento, isto é à repetição intensa
das lições, mensagens subliminares durante a educação e simbolismo.
Há um quê de Behaviorismo na educação em Utopia.

Na sociedade utópica, a educação é oferecida a todos, e cultivada


com esmero. Thomas More sabia da necessidade de educar a todos.
A igualdade não se sustentaria com um bando de ignorantes e
alguns poucos cultos que logo se tornariam uma espécie de
privilegiados. A defesa dos direitos colectivos feita por todos só poderia
ser feita com uma difusão do conhecimento igual também. Como
exemplo temos a maneira como encaram a moeda e a guerra.

Para os utopianos a ganância e os metais preciosos são algo desprezível,


assim desde cedo o homem vai ser educado a desprezar essa coisas. Um
inventivo recurso de condicionamento seria utilizado pelos utopianos para
conseguir este desprezo por metais raros. Seriam utilizados para fazer as
algemas e adereços dos escravos e os vasos sanitários. Desde criança o
habitante de Utopia aprenderia a desprezar tais metais. Da mesma
forma, a guerra deve ser encarada sempre como último recurso. Embora
todo cidadão receba treino militar, este só deve ser utilizado em caso de
invasão da ilha por forças estrangeiras. Pode-se dizer que as estratégias
de guerra de Utopia seriam então brilhantemente lógicas dentro da sua
dinâmica.

De acordo com More, o trabalho colectivo resultaria numa produção


muito acima da necessária para a manutenção da sociedade.

Parte pode ser reservado para eventualidades, outra parte doada para
os pobres de alguma nação vizinha. Uma outra parte é reservada para
ser vendida a nações vizinhas que queiram comprar. O dinheiro
resultante não teria utilidade se não houvesse nações gananciosas e
belicosas.

Mas como Utopia é uma ilha de paz e igualdade num mundo de


violência e exploração, esse ouro vai ser utilizado para contratar
exércitos mercenários para proteger a ilha, sempre fora das
fronteiras, e subornar os exércitos adversários. Recurso que não
pode ser utilizado contra o utopiano comum pois estes não vêm valor
nenhum na riqueza individual. E se algum trair Utopia, com certeza
seria punido. More não estava sendo ingénuo, muito pelo contrário. Seu
raciocínio, com ressalvas aos pressupostos, pouco calcados no mundo
real, de que a sociedade auto-suficiente poderia produzir o necessário

68
para acumular o suficiente para subsistência, os subornos e as tropas
mercenárias, era perfeito.

As predominâncias das necessidades coletivas são baseadas numa


filosofia do prazer.

Os conceitos de prazer e felicidade são essenciais na construção da


Utopia. É pensando em felicidade e nos prazeres que More vai dar o
sentido e razão de existência dessa sociedade.

Todo cidadão de Utopia busca o prazer. Mas o seu prazer não pode
resultar no prejuízo, num mal a outrem. A filosofia de Utopia
constrói toda uma lógica da busca pelo prazer, extremamente
lúcida por sinal, enumerando uma hierarquia e classificando os
prazeres físicos, intelectuais e espirituais. A ética e a religião
também são ligadas à busca pelo prazer e felicidade.

Alguns poucos poderiam não buscar o prazer sem serem considerados


tolos, porém estes seriam pessoas extremamente religiosas ou santas
que se absteriam da felicidade em prol do bem comum, uma espécie de
mártires. Mas estes indivíduos seriam raros. O deus dos utopianos, que
More faz questão de frisar, seria muito parecido com o cristão, antes de
tudo quer que seus crentes busquem o prazer e não prejudiquem ao
próximo. Este seria o Deus omnipotente, universal, mas em utopia as
pessoas também poderiam seguir outras religiões restritas, e cultos
variados, ou seja, o autor defendia ideias de liberdade e tolerância
religiosas. Seriam pequenas idiossincrasias sem a menor importância,
até mesmo bem-vindas, enquanto o culto a esses deuses não ferisse os
princípios básicos da sociedade. O bem comum, a igualdade, a
ausência de orgulho mesquinho e a busca pelo prazer. Nessa
sociedade a felicidade tem de ser pensada colectivamente.

Um mundo de igualdade não teria sentido se não fosse pensado com o


intuito de alcançar a felicidade. Essa busca pelo prazer é o que vai dar
uma razão ideológica para essa sociedade igualitária mas rigidamente
controlada. More entendeu como dialéctica a relação entre igualdade e
liberdade e optou pela igualdade. Tendo em vista alcançar o bem
comum e a felicidade colectiva, ao mesmo tempo objectivos e
instrumentos ideológicos para a construção e manutenção dessa
sociedade, viu na igualdade material a estrutura básica para essa
sociedade, entretanto teve dificuldades em inserir liberdades individuais
nesse universo. Esse mesmo conflito aparece em Admirável mundo
novo, onde a sociedade ideal seguiu a mesma opção de Thomas More,
porém o autor do livro, Aldous Huxley, a apresenta de forma
extremamente crítica.

69
Thomas More escreveu uma obra onde descreve uma
sociedade que entende como melhor que aquela onde
vivia. Isso todos sabem. O próprio nome da ilha acaba
corroborando essa concepção geral de que Utopia (que
vem do grego, ou-topos: lugar nenhum) é considerada
como o local onde se encontraria a sociedade ideal, e
sendo ideal, inalcançável. Mas embora o nome da ilha
indique que esta exista em um lugar nenhum, ela é
situada geograficamente na América, no novo mundo. Ela
não é colocada num lugar imaginário, num lugar
espiritual, ou num lugar perdido. A ilha existiria no novo
continente, sendo então possível fazer a viagem para lá. E
é exactamente o que fez Rafael Hitlodeu, o viajante do
qual supostamente More ouviu falar da ilha. Por sinal,
idoso e sábio, Rafael Hitlodeu representa o rei filósofo de
Platão. Essa localização no Novo Mundo está ligada a
ideia da esperança de um novo tempo, de uma nova era
para o homem, que é o Renascimento e o Humanismo. A
descoberta de uma nova terra trazia consigo uma nova
chance, isto é, para os insatisfeitos com o mundo
europeu, a possibilidade tanto de encontrar uma nova
civilização melhor, quanto um novo lugar para
experimentar. O Humanismo do autor estava fazendo um
grande rompimento com a idade média, não estava
interessado na promessa de uma recompensa no além,
no espírito, está preocupado com o mundo físico, com o
mundo temporal. Um dos maiores méritos do livro
Thomas More foi deslocar o Paraíso para o mundo real.

As nítidas influências de Platão nos escritos de More também nos levam


a esse raciocínio. Não é difícil perceber que a Republica de Platão
foi crucial para a criação dessa sociedade prefeita, várias e
várias vezes More cita os escritos do filósofo grego. A concepção de
Utopia deve muito as ideias deste pensador, e as consequências do livro
também. O conceito de idealização é geralmente ligado a algo perfeito e
inalcançável que está longe do mundo real. É costume então chegar à
conclusão de que de nada adianta pensar num ideal pois este nunca irá
se cristalizar na realidade. O ideal para More não é encarado dessa
maneira, para ele o ideal está muito mais próximo do conceito
matemático de limite (que Newton e Leibniz desenvolveriam só no século
XVIII). O limite pode ser entendido como uma ferramenta que permite
descobrir um ponto não existente de uma função, em um dado
universo. Isso é feito através da análise da tendência dessa função, à
medida em que ela se aproxima cada vez mais desse ponto. Ou seja, o
limite é para onde algo tende sem nunca chegar lá, mas cada vez mais
próximo, sendo que em certo momento é tão pequena a diferença que é
como se fosse o lá. É dessa forma que More entende a idealização. Não
a encara num sentido de objecto inalcançável, mas como uma meta da
qual devemos nos aproximar o máximo possível. Como se pode ver nas

70
posturas políticas que deixa transparecer, principalmente na primeira
parte do livro, Thomas More está interessadíssimo na aplicação de suas
ideias. Todo o debate entre More e Rafael Hitlodeu na primeira parte do
livro é conduzido de maneira subliminar por este intuito.

Constantemente é sugerido por More que Hitlodeu compartilhe sua


sabedoria com os reis, fazendo parte de algum Conselho de Estado.
Este sempre nega e argumenta com base na crença (experiência?) de
que seus conselhos nunca seriam ouvidos. Hitlodeu, ou melhor More
acredita que uma mudança na sociedade não poderá ser feita a partir
da vontade das classes no poder num gesto de filantropia. Ao contrário
do que acontece em Utopia, um mundo ideal onde um grande patrono,
Utopos, reformou a ilha e a tornou na sociedade perfeita, More sabia o
que aconteceu com Platão. More queria que a jornada em direcção a
Utopia fosse feita pelos que estavam insatisfeitos com o mundo como
era.
A mudança teria de ser feita de baixo, não pelo povo, mas pelos
sábios conduzindo o povo, sem a ajuda dos poderosos.
More tinha bem claro que os beneficiários da sociedade em que vivia
nunca iriam querer mudar para uma sociedade igualitária e iriam se
opor a qualquer tentativa de fazê-lo. Uma mudança no mundo deveria
ser preparada cuidadosamente, e divulgada secretamente pelos sábios
que a encabeçariam, até que chegasse o momento de bradá-la para os
inimigos. Essa é a mensagem que passa várias vezes Hitlodeu-More,
parafraseando Mateus: O que vos digo em voz baixa e ao ouvido,
pregai-o em voz alta e abertamente

71
Thomas Hobbes
Leviatã

Thomas Hobbes (Malmesbury, 5 de abril de 1588 — Hardwick Hall, 4


de Dezembro de 1679) foi um matemático, teórico político, e filósofo
inglês, autor de Leviatã (1651) e Do cidadão (1651).

Na obra Leviatã, explanou os seus pontos de vista sobre a natureza


humana e sobre a necessidade de governos e sociedades. No estado
natural, enquanto que alguns homens possam ser mais fortes ou mais
inteligentes do que outros, nenhum se ergue tão acima dos demais por
forma a estar além do medo de que outro homem lhe possa fazer mal.
Por isso, cada um de nós tem direito a tudo, e uma vez que todas as
coisas são escassas, existe uma constante guerra de todos contra todos
(Bellum omnia omnes). No entanto, os homens têm um desejo, que é
também em interesse próprio, de acabar com a guerra, e por isso
formam sociedades entrando num contrato social.

De acordo com Hobbes, tal sociedade necessita de uma autoridade à


qual todos os membros devem render o suficiente da sua liberdade
natural, para que a autoridade possa assegurar a paz interna e a defesa
comum. Este soberano, quer seja um monarca ou uma assembleia (que
pode até mesmo ser composta de todos, caso em que seria uma
democracia), deveria ser o Leviatã, uma autoridade inquestionável. A
teoria política do Leviatã mantém no essencial as ideias de suas duas
obras anteriores, Os elementos da lei e Do cidadão (em que tratou a
questão das relações entre Igreja e Estado).

72
Thomas Hobbes defendia a ideia segundo a qual os homens só
podem viver em paz se concordarem em submeter-se a um poder
absoluto e centralizado. Para ele, a Igreja cristã e o Estado cristão
formavam um mesmo corpo, encabeçado pelo monarca, que teria o
direito de interpretar as Escrituras, decidir questões religiosas e presidir
o culto. Neste sentido, critica a livre interpretação da Bíblia na Reforma
Protestante por, de certa forma, enfraquecer o monarca.

Sua filosofia política foi analisada pelo estudioso Richard Tuck como
uma resposta para os problemas que o método cartesiano introduziu
para a filosofia moral. Hobbes argumenta, assim como os cépticos e
como René Descartes, que não podemos conhecer nada sobre o mundo
exterior a partir das impressões sensoriais que temos dele. Esta filosofia
é vista como uma tentativa para embaçar uma teoria coerente de uma
formação social puramente no fato das impressões por si, a partir da
tese de que as impressões sensoriais são suficientes para o homem agir
em sentido de preservar sua própria vida, e construir toda sua filosofia
política a partir desse imperativo.

Hobbes ainda escreveu muitos outros livros falando sobre filosofia


política e outros assuntos, oferecendo uma descrição da natureza
humana como cooperação em interesse próprio. Ele foi contemporâneo
de Descartes e escreveu uma das respostas para a obra Meditações
sobre filosofia primeira, deste último.

Leviatã é o livro mais famoso do filósofo inglês Thomas Hobbes,


publicado em 1651. O seu título se deve ao monstro bíblico Leviatã. O
livro, cujo título por extenso é Leviatã ou matéria, forma e poder de
um Estado eclesiástico e civil, trata da estrutura da sociedade
organizada.

Hobbes alega serem os humanos egoístas por natureza. Com essa


natureza tenderiam a guerrear entre si, todos contra todos ("Bellum
omnia omnes"). Assim, para não exterminarmo-nos uns aos outros será
necessário um Contrato Social que estabeleça a paz, a qual levará os
homens a abdicarem da guerra contra outros homens. Mas, egoístas
que são, necessitam de um soberano (Leviatã) que puna aqueles que
não obedecem ao contrato social.

Notar que um soberano pode ser uma pessoa tanto quanto um grupo,
eleito ou não. Porém, na perspectiva de Hobbes, a melhor forma de
governo era a monarquia — sem a presença concomitante de um
Parlamento, pois este dividiria o poder e, portanto, seria um estorvo ao
Leviatã e levaria a sociedade ao caos (como na guerra civil inglesa).

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Índice
1 Parte 1: A respeito do Homem

o 1.1 Capítulo 3: Sobre a consequência serie de imaginações


o 1.2 Capítulo 4: Sobre a linguagem
o 1.3 Capítulo 10: Sobre o poder, valor, dignidade, honra e
merecimento
o 1.4 Capítulo 11: Sobre as diferenças de costumes
o 1.5 Capítulo 12: Sobre a religião
o 1.6 Capítulo 13: Sobre a condição natural da humanidade
relativamente à sua felicidade e miséria
o 1.7 Capítulo 14: Sobre a primeira e segunda leis naturais e
sobre os contratos
o 1.8 Capítulo 15: Sobre outras leis da natureza
o 1.9 Capítulo 16: Das pessoas, autores e coisas
personificadas
o
2 Parte 2: Do Estado

o 2.1 Capítulo 17: Sobre as causas, geração e definição de


um Estado
o 2.2 Capítulo 18: Sobre os direitos dos soberanos por
instituição
o 2.3 Capítulo 19: Sobre as diversas espécies de governo por
instituição e sobre a sucessão do poder soberano
o 2.4 Capítulo 21: Sobre a liberdade dos súditos
o 2.5 Capítulo 23: A respeito dos ministros públicos do poder
soberano
o 2.6 Capítulo 24: Sobre a nutrição e procriação de um
Estado
o 2.7 Capítulo 25: Sobre o conselho
o 2.8 Capítulo 26: A respeito das leis civis
o 2.9 Capítulo 29: Das coisas que enfraquecem ou levam à
dissolução de um Estado

74
o
3 Parte 3: Do Estado cristão e Parte 4: Do Reino das
Trevas

o 3.1 Capítulo 38: Do Significado, nas Escrituras, de Vida


Eterna, Inferno, Salvação, o Mundo por vir, e Redenção

5 Ligações externas

Parte 1: A respeito do Homem

Hobbes faz um esforço de análise da sociedade partindo da dissecação


dos seus componentes básicos, o Homem e as suas sensações. Ele
trabalha inicialmente com uma série de definições, em uma tentativa de
criar axiomas da humanidade à semelhança dos que existem na
geometria. Define as várias paixões e sentimentos de maneira impessoal
e com base em princípios científicos (da época, lembremos que Hobbes
viveu no século XVII).

Hobbes descreve o Homem em seu Estado Natural como egoísta,


egocêntrico e inseguro. Ele não conhece leis e não tem conceito de
justiça; ele somente segue os ditames de suas paixões e desejos
temperados com algumas sugestões de sua razão natural. Onde não
existe governo ou lei, os homens naturalmente caem em "discórdia".
Desde que os recursos são limitados, ali haverá "competição", que leva
ao medo, à inveja e a disputa. Semeada a "desconfiança", perde-se a
segurança de confiar no próximo. Na busca pela "glória", derruba-se os
outros pelas costas, já que, para Hobbes, os homens são iguais nas
capacidades e na expectativa de êxito, nenhuma pessoa ou nenhum
grupo pode, com segurança, reter o poder. Assim sendo, o conflito é
perpétuo, e "cada homem é inimigo de outro homem". Nesse estado de
guerra nada de bom pode surgir. Enquanto cada um se concentra na
autodefesa e na conquista, o trabalho produtivo é impossível. Não existe
tranquilidade para a busca do conhecimento, não existe motivação para
construir ou explorar não existe lugar para as artes e letras, não existe
espaço para a sociedade só "medo contínuo e perigo de morte violenta".
Então a vida do homem nesse estado será "solitária, pobre, sórdida,
brutal e curta".

Em contrapartida ao estado de guerra descrito acima, os próprios


homens almejariam uma ordem ansiando pela garantia de paz, assim,
um Estado que garantisse essa paz, essa vida "acordada".

Apesar da Parte 1 da obra tratar primordialmente do homem, é possível


observar que o autor aborda diversas questões relacionadas com o
Estado.

75
Alguns excertos que retratam o pensamento do autor:

Capítulo 3: Sobre a consequência serie de imaginações

A defesa da monarquia é recorrente na obra. Hobbes compara a


deposição de Carlos I de Inglaterra pelos puritanos com a entrega de
Jesus Cristo aos romanos por 30 moedas. Mas quando se estuda a
filosofia de Hobbes, o problema da dominância do racionalismo ou do
empirismo pode ser colocado em outros termos. É possível perguntar,
por exemplo, se não havia um secreto intercâmbio entre ambos, apesar
das diferenças; se não estavam constantemente voltados um para o
outro, à espera de um terreno comum em que pudessem exercer acção
conjunta. A obra de Hobbes abriu justamente este espaço de
convivência entre esses extremos, manifestando assim, um campo de
conciliação entre eles.

Capítulo 4: Sobre a linguagem

"(...) nada mais é do que um abuso da linguagem ofendê-lo com a


língua, a menos que se trate de alguém que somos obrigados a
governar, mas então não é ofender, e, sim, corrigir e punir."

Capítulo 10: Sobre o poder, valor, dignidade, honra e merecimento

"Dos poderes humanos o maior é aquele composto pelos poderes de


vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural
ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na dependência de
sua vontade. É o caso do poder de um Estado."

Hobbes questiona a dignidade e a honra como valores atribuídos. A


estima pública de alguém apareceria aos homens como dignidade
tomando forma em nomeações públicas, por exemplo; ser considerado
valoroso é ser honrado, e quanto mais difíceis forem as tarefas a lhe
serem confiadas mais honroso será este homem.

Capítulo 11: Sobre as diferenças de costumes

"(...) assinalo como tendência geral de todos os homens um


perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa
apenas com a vida."

Capítulo 12: Sobre a religião

Uma das origens das acusações de ateísmo contra Hobbes tem origem
neste capítulo, onde o autor descreve como os primeiros líderes das
sociedades primitivas criaram crenças e religiões para manter o povo
em obediência e paz.

76
Capítulo 13: Sobre a condição natural da humanidade
relativamente à sua felicidade e miséria

Neste capítulo se encontra a mais famosa citação da obra: "E a vida do


homem, solitária, pobre, sórdida, brutal e curta", situada no seguinte
contexto:

"Tudo, portanto, que advém de um tempo de guerra, onde cada


homem é inimigo de outro homem, igualmente advém do tempo em
que os homens vivem sem outra segurança além do que sua
própria força e sua própria astúcia conseguem provê-los. Em tal
condição, não há lugar para a indústria; porque seu fruto é incerto;
e, consequentemente, nenhuma cultura da terra; nenhuma
navegação, nem uso algum das mercadorias que podem ser
importadas através do mar; nenhuma construção confortável; nada
de instrumentos para mover e remover coisas que requerem muita
força; nenhum conhecimento da face da terra; nenhuma estimativa
de tempo; nada de artes; nada de letras; nenhuma sociedade; e o
que é o pior de tudo, medo contínuo e perigo de morte violenta; e a
vida do homem, solitária, pobre, sórdida, brutal e n."

A busca pela ―condição natural do homem‖ é orientação básica para o


trabalho de Hobbes em O Leviatã, pois é arguindo sobre a mesma que o
autor fundamenta sua teoria sobre a necessidade de um Estado, as
formas ideais deste Estado e sobre a relação sociedade/homem/Estado.
Assim, a organização política permite que a rivalidade natural entre os
homens não tenham como consequência ―a miséria que acompanha a
liberdade de seus indivíduos isolados‖. Afirma o autor neste capítulo
que os homens são iguais nas faculdades do corpo e do espírito, porém,
o seu estado de natureza é um estado de guerra de todos contra todos.
Se dois homens, portanto, desejam a mesma coisa e esta não pode ser
gozada pelos dois ao mesmo tempo, eles se esforçam para subjugar um
ao outro. No estado de natureza dos homens, também chamado em O
Leviatã de ―estado de guerra‖, não existem as noções do que é justo ou
injusto assim como não há a noção de propriedade (diferença do que é
―meu‖ e do que é ―teu‖; cada homem tem apenas aquilo que for capaz de
conseguir e apenas pelo tempo em que for capaz de manter), já que são
noções produzidas em sociedade. Esse estado e guerra é eminente
quando não há um poder maior que limita as acções dos homens,
deixando que os apetites pessoais sejam a própria medida do que é bem
e do que é mal. Para se conservar deste estado de natureza frente aos
outros homens, Hobbes diz que o homem precisa de valer de duas
disposições: a desconfiança e a antecipação. A antecipação seria uma
atitude sensata que acompanharia a desconfiança, ou seja, um homem
subjuga o outro antes de ser subjugado. Esse acto deve ser executado
de tal maneira que não haja a possibilidade de reacção da parte de
quem foi prejudicado, pois, se este possuir chance para a reacção,
certamente agirá de maneira muito pior com quem tentou mutilá-lo;,

77
quem se contenta somente com a sua própria defesa não dura muito
tempo.

Ainda sobre o estado de natureza do homem, Hobbes alega que


são três as fontes de discórdia entre os homens:

1. Competição: buscar controlar os outros, lucros, conquistas. 2.


Desconfiança: gera o desejo de segurança, de defesa de posses. 3.
Glória: reputação, sensação de superioridade que desqualifiquem
outras pessoas.

O homem, contudo, tem paixão que seria o medo da morte e a


esperança de paz. Assim, o que o leva a buscar escapar deste estado
natural é o desejo de conservação e conforto, e assim, dotado de razão,
o homem sugere normas de paz, acordos para alcançar esta finalidade.

Capítulo 14: Sobre a primeira e segunda leis naturais e sobre os


contratos

Primeira lei natural: "procurar a paz, e segui-la".


Segunda lei natural: "Faça aos outros o que queres que te façam a
ti".

Usufruindo da razão, o homem estabelece normas para promover a si


condições de conservação e conforto. A Razão estabelece regras gerais,
obrigações que se opõem à liberdade do direito de natureza. Assim,
temos neste capítulo XIV algumas definições propostas por Hobbes: §
Jusnaturale (Direito de Natureza): liberdade de o indivíduo fazer o que
estiver em seu poder para preservar sua vida, ausência de
impedimentos para usar o próprio poder.

§ Lex Naturalis (Leis Naturais): preceito ou regra geral estabelecida


pela razão, ditam a paz como meio de conservação: ―a paz é uma coisa
boa”, os seus meios o serão, por conseguinte. Consiste em
obrigações, opondo-se à liberdade do direito de natureza, proíbem o
homem de fazer qualquer coisa que possa destruir a vida. Seguindo sua
construção teórica acerca da formação de uma ordem social guiada pela
razão e desejo de auto-conservação dos homens, Hobbes postula as
duas primeiras Leis de Natureza, a partir das quais se desdobram
outras ―leis fundamentais de natureza‖:

1ª Lei Natural: procurar a paz; Esforçar-se pela paz como artifício de


segurança; caso não se obtenha a paz pelo esforço prévio, utilizar dos
meios disponíveis de guerra (usufruir destes meios consiste em um
Direito de Natureza).

2ª Lei Natural: renúncia ao direito sobre todas as coisas; o pacto. É


necessário que os homens transfiram seus direitos a um soberano ou
assembleia com o fim de alcançar a paz e a segurança. Quando os

78
homens não têm um poder maior que lhes obriga a cumprir o contrato,
o pacto é nulo, um juramento, simplesmente, não assegura a obrigação.

Capítulo 15: Sobre outras leis da natureza

Terceira lei natural: "Os homens têm de cumprir os pactos que


celebrarem. (...) Nesta lei natural assenta-se a fonte e a origem da
justiça."

As leis naturais é que propiciam a vida em sociedade. Em resumo, elas


querem dizer: faça aos outros o que gostarias que fizessem a ti.
Seguem as outras ―leis fundamentais de natureza‖ apontadas por
Hobbes no capítulo XV:

3ª Lei Natural: justiça; garantia de cumprimento do pacto. Quem


rompe com o pacto é culpado pela guerra, está assumindo contar
apenas com as próprias forças, deverá ser punido. Uma vez que o
homem não cumpre um pacto, ele gera a injustiça e estimula outros a
fazerem o mesmo com ele; logo, a justiça segue a razão, e é uma lei
natural. É necessário haver um poder coercitivo para obrigar os homens
que cumpram com suas palavras, um poder civil, o Estado. Onde este
não existe, entende-se que não há a injustiça, e, logo, não há
propriedade.

4ª Lei Natural: Gratidão; quem recebeu benefício de outro por


simples graça deve esforçar-se para que o doador não tenha motivos
para arrepender-se, pois, quem doa voluntariamente algo, espera algo
em troca; caso isso não ocorra, não haverá como sair do estado de
guerra.
5ª Lei Natural: esforçar-se para acomodar-se aos outros
(diversidade de afecções); quem é resistente a essa lei, deve ser expulso
da sociedade.
6ª Lei Natural: perdão (garantia de paz)
7ª Lei Natural: na vingança, i.e., na retribuição do mal com o
mal, os homens não devem dar importância ao mal passado, somente
ao bem futuro; trata-se de uma lei consequente à anterior.
8ª Lei Natural: não demonstrar ódio ou desprezo por outrem; no
caso de infracção, a punição é a humilhação.
9ª Lei Natural: reconhecer os outros como iguais por natureza,
pois todos os homens são iguais e tentar se mostrar superior não cabe
às leis naturais; a infracção desta lei é o orgulho.
10ª Lei Natural: Ao se iniciar as condições de paz, ninguém
pretenda reservar para si um direito que não aceite também ser
admitido a outros, não impor que abram mão dos direitos que também
não quer se privar. Quem aceita essa lei é modesto, quem não a acata é
arrogante.
11ª Lei Natural: um juiz eleito tem que tratar as partes
equitativamente (equidade ou justiça distributiva), a infracção dessa lei
é a acepção de pessoas.

79
12ª, 13ª e 14ª Leis Naturais: Tudo aquilo que não pode ser
dividido deve ser gozado em comum. O que não pode nem ser divido e
nem ser gozado em comum deve ser sorteado. O sorteio pode ser feito
de maneira arbitrária de maneira a conceder em acordo a um dos
indivíduos, como ocorre a concessão a um primogénito de uma herança.
15ª Lei Natural: Os mediadores da paz devem ter salvo-conduto
porque esse é o meio para a intercessão.
16ª e 17ª Leis Naturais: Mediante controvérsia deve se
estabelecer um árbitro e a este devem se submeter os indivíduos.
Quando uma causa não é mediada por um árbitro e causou guerra:
trata-se de uma guerra contra a lei de natureza.
18ª Lei Natural: Posto que cada um procura o seu próprio
benefício, ninguém pode ser o seu próprio juiz.
19ª Lei Natural: No caso de uma controvérsia, um juiz deve ouvir
o testemunho de uma terceira, quarta ou até mais pessoas pois não
pode ser parcial.

Capítulo 16: Das pessoas, autores e coisas personificadas

Considerações acerca deste capítulo: Duas palavras são utilizadas em


latim para indicar "pessoas", são elas prósopon e persona. Esta
segunda se refere à pessoa como um actor, não como representante
dela mesma.

Uma pessoa que emite as palavras de outrem é o actor do autor


das palavras que fala, trata-se, portanto, de uma pessoa artificial que
responde a autoridade concedida pelo autor, uma representante.
As coisas inanimadas podem, geralmente, ser representadas; um
supervisor ou director, por exemplo, pode representar uma igreja ou um
hospital. Um ídolo não pode ser representado, somente o Deus
verdadeiro o pode, como o foi por Moisés e por Jesus Cristo.
Uma multidão pode ser representada por alguém que fale em seu
nome, neste caso, é como se a multidão fosse uma só pessoa, sendo
assim, trata-se de vários autores que atribuem ao representante comum
sua autoridade particular.

Parte 2: Do Estado

Capítulo 17: Sobre as causas, geração e definição de um Estado

"A única forma de constituir um poder comum, capaz de defender a


comunidade das invasões dos estrangeiros e das injúrias dos
próprios comuneiros, garantindo-lhes assim uma segurança
suficiente para que, mediante seu próprio trabalho e graças aos
frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir
toda a força e poder a um homem, ou a uma assembleia de
homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por
pluralidade de votos, a uma só vontade."

80
"Esta é a geração daquele enorme 'Leviatã', ou antes - com toda
reverência - daquele deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus
Imortal, nossa paz e defesa."

Para Hobbes, o fim último dos homens é a sua conservação e o cuidado


com uma vida mais satisfeita, ou seja, o sair do estado de guerra.
Segundo o autor, a realização desta finalidade é impossível quando não
há um poder coercitivo que obrigue os cidadãos, por meio do medo e de
castigos, a cumprir os pactos sociais.

Caso haja somente os pactos e não a força, em nada poderá


confiar o cidadão senão em sua própria força para proteger-se contra os
outros.
Se houvesse como os homens se associarem pacificamente sem
um poder comum, não haveria a necessidade da existência de um poder
superior, pois haveria a paz sem sujeição.
Para pautar a necessidade de um Estado coercitivo, Hobbes faz
uma comparação da natureza humana às sociedades políticas de
Aristóteles: por que o homem não é capaz de, como as formigas e
abelhas, viver socialmente sem outra direcção que não a deles mesmos?

A resposta de Hobbes é a seguinte: a humanidade está envolvida em


competições pela honra. Para abelhas e formigas não há distinção entre
o bem comum e o individual, elas não dispõem do uso da razão. Essas
criaturas não conseguem usar as palavras para convencer umas as
outras de o que é mau, na verdade, é bom (o que significa atribuição de
valores constitutivamente sociais). Por fim, o acordo vigente existente
em comunidades de formigas e abelhas é natural, enquanto que os
existentes nas sociedades humanas são artificiais (via pacto).

A única forma de constituir um poder comum é conferir toda força


e poder a um homem ou assembleia como representante dos próprios
cidadãos, reconhecendo-se como autores dos actos que aquele que os
representa praticar, submetendo-se às suas vontades e decisões. Feita
esta transferência de direitos, o Estado que se instaura é, então, o civil,
chamado de ―Leviatã‖ (paralelo traçado pelo autor entre a figura bíblica
do Leviatã e o poder do Estado: este seria, então, um poder irresistível,
mas com o fim de salvaguardar os interesses da população que se
submete a ele.)
A pessoa a quem foram confiados os direitos se torna a soberana
e todas as demais lhe são súditos.

Capítulo 18: Sobre os direitos dos soberanos por instituição

Uma desvantagem apontada na existência de um Contrato Social é a


impossibilidade de desfazê-lo: "(...) portanto nenhum dos súditos pode
se libertar da sujeição, sob qualquer pretexto de infracção." Assim,
acontece a passagem do estado natural, onde não há regra, para o

81
estado civilizado, onde os homens depositam em um representante que
resguarde os interesses de todos e cada um.

Todos os que concordaram ou discordam da escolha de um


soberano deverão autorizar as decisões do mesmo. Não há a
possibilidade legítima de se obedecer a outrem sem licença do soberano
(mesmo se for com a licença de Deus).
Não há autoridade superior ao soberano, nem pacto anterior às
suas próprias decisões. Sendo assim, não há juiz capaz de acusar um
soberano de injustiça, portanto, ele nunca quebrará um pacto. Ele é o
juiz das acções e opiniões de todas as pessoas, e a finalidade de seu
poder segue a primeira lei de natureza: a paz e a defesa de todos.
Como não há quem possa julgar o soberano e sua existência
política significa por si só a representação da segurança em oposição ao
estado natural de guerra, qualquer ato de rebeldia frente ao poder
soberano tem como consequência a discórdia, que significa o retorno à
condição de guerra. Assim, Hobbes defende o não direito à insurreição e
propõe formas ideais da organização do poder soberano:

§ A propriedade: organizada mediante submissão às leis civis, não há,


pois, como havê-la sem essa submissão. § Nos quesitos de guerra e paz
com outros Estados: o soberano é o que comanda a política, é ele o
general. § Cargos políticos: pessoas e cargos escolhidos pelo soberano. §
As recompensas e punições são previamente estabelecidas por lei. § O
soberano deve criar leis de honra: elas servem para que sejam
atribuídos valores diferenciados para os súditos que bem servirem e
estabelecer os sinais de respeitos diferenciados entre os súditos em
cada espaço. O soberano tem a honra maior.

Capítulo 19: Sobre as diversas espécies de governo por instituição e


sobre a sucessão do poder soberano

Hobbes redige uma longa defesa do sistema monárquico absoluto e


ressalta suas vantagens sobre os sistemas que incorporam
Parlamentos:

"De outra maneira, não há qualquer grande Estado cuja soberania


resida numa grande assembleia que não se encontre, quanto às
consultas da paz e da guerra e quanto à feitura das leis, na
mesma situação de um governo pertencente a uma criança."

Segundo o autor, há apenas três tipos de governo: monarquia,


aristocracia e democracia; as formas de tirania e oligarquia representam
respectivamente os dois primeiros quando em um estado detestável, a
anarquia é o nome que se dá quando se sente prejudicado pelo governo
democrático.

82
Na monarquia, o interesse pessoal é o mesmo que o interesse
público, nesta forma de governo não há como o soberano ser rico ou
glorioso senão com os súditos. A democracia e a aristocracia já
propiciam uma forma de corrupção que restrinja as riquezas do
governo.
Hobbes defende que a monarquia é menos inconstante, mais
sensata com relação à admissão de conselhos, privilegia menos alguns
em relação aos demais, em suma, a melhor forma de governo.

Capítulo 21: Sobre a liberdade dos súditos

Hobbes permite uma pequena brecha para que o súditos rompa o


Contrato Social:

Liberdade, para Hobbes, significa ausência de oposição. Logo, a


liberdade do homem indica que ele pode fazer o que tiver vontade,
naquilo que é capaz de fazer.

O medo e a liberdade são compatíveis. Todos os actos praticados


pelos homens no Estado por medo da lei são acções que seus autores
têm liberdade de não praticar. Assim como a necessidade e a liberdade
também são compatíveis: utilizando-se de suas liberdades e de suas
necessidades, os homens instituíram o Estado e as "cadeias" das leis
civis.
A liberdade dos súditos está somente vinculada àquilo que o
soberano lhes permitiu ao regular suas acções; isso, contudo, não quer
dizer uma limitação do poder do soberano, uma vez que os súditos são
autores dos actos dele, tudo o que o rei fizer estará em seus direitos.
A liberdade do Estado consiste em cada um fazer o que quiser.
Trata-se de uma situação análoga ao que ocorre com os indivíduos no
estado natural, assim, os Estados vivem em estado de guerra em
iminência de batalhas.

Hobbes permite uma pequena brecha para que o súditos rompa o


Contrato Social: "A obrigação dos súditos para com o soberano dura
enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual
ele é capaz de protegê-los. O direito que por natureza os homens têm de
defender-se os si mesmos não pode ser abandonado através de pacto
algum"."

Então, há a liberdade do súdito de resistir ao soberano de


maneira justa quando se trata de um direito que o primeiro não cede ao
segundo na execução do pacto. Todo súdito tem direito de defender sua
vida, tem liberdade de não testemunhar algo que possa prejudicá-lo e
de fazer aquilo que a lei mantém silêncio.
A obrigação dos súditos dura enquanto dura também o poder
mediante o qual o soberano é capaz de protegê-los: ―o fim da obediência
é a protecção‖.

83
Capítulo 23: A respeito dos ministros públicos do poder soberano

Aqui é traçado um perfil da actividade burocrática do Estado,


notadamente do Poder Judiciário.

Capítulo 24: Sobre a nutrição e procriação de um Estado

Em defesa de um Estado forte:

"Os Estados não podem suportar uma dieta, eis que não sendo
suas despesas limitadas por seu próprio apetite, mas sim, por
acidentes externos e pelos apetites de seus vizinhos, a riqueza
pública não pode ser constrangida por outros factores senão os que
forem exigidos no momento."

Neste capítulo, Hobbes diz que a nutrição de um Estado se resume na


quantidade e na distribuição de materiais necessários à vida. A
abundância desses materiais depende de Deus e do trabalho.

Concepção de Estado forte que está ligada ao valor do trabalho


de um súdito e à propriedade individual: o trabalho de um homem é um
bem que pode ser trocado por benefícios e a distribuição dessa nutrição
estatal é que constitui a concepção de propriedade. A propriedade de
um súdito indica que daquilo que a ele pertence nenhum outro súdito
possui direito de usufruir senão ele e, quando julgar necessário, o
soberano.

Capítulo 25: Sobre o conselho

Hobbes, à semelhança de Nicolau Maquiavel, atribui destacada


importância ao uso que o soberano deve fazer dos conselheiros.

Capítulo 26: A respeito das leis civis

Entre outras considerações, cabe destacar a visão do autor de que o "O


único legislador é o soberano em todos os Estados", seja o Monarca ou o
Parlamento. "O soberano de um Estado não se encontra sujeito às suas
próprias leis civis", pois tem o poder de fazê-las e revogá-las quando lhe
convém. Além disso, a prática e o costume só têm validade enquanto o
soberano não se manifesta.

84
Capítulo 29: Das coisas que enfraquecem ou levam à dissolução de
um Estado

Hobbes traça alguns pontos que levariam ao enfraquecimento de um


Estado, pontos que chama de enfermidades, são elas:

1. Contentar-se com menos poder do que é necessário para a


manutenção da paz e da segurança do mesmo.
Quando isso ocorre, os súditos, ao exigirem que o soberano
cumpra suas promessas, podem ser apoiados por países estrangeiros.
Isso pode levar que estes se fortifiquem em relação ao fragilizado Estado
em questão
2. Crer que todo indivíduo é juiz de boas e más acções, e, assim,
não instituir leis civis que as determinem.
Os homens, neste caso, tenderão a discutir as ordens do Estado
e, logo, as obedecerão ou desobedecerão conforme julgar conveniente.
3. O soberano estar submetido às leis civis
Isso é fazer de um juiz o soberano do soberano, logo, deverá
existir um juiz do segundo e assim infinitamente, gerando confusão.
4. Todo indivíduo ter propriedade particular a ponto de excluir o
poder do soberano sobre ela
5. O poder soberano ser dividido

Parte 3: Do Estado cristão e Parte 4: Do Reino das


Trevas

Segundo Richard Tuck, professor da Harvard University, aqui a


intenção de Hobbes era, no contexto da Revolução Puritana, estabelecer
a supremacia do soberano em questões de fé e doutrina.

Capítulo 38: Do Significado, nas Escrituras, de Vida Eterna,


Inferno, Salvação, o Mundo por vir, e Redenção

A manutenção da Sociedade Civil, dependendo da Justiça; e Justiça no


poder da Vida e Morte, e outras Recompensas e Punições, residindo
nelas que têm a Soberania da Commonwealth (Comunidade de Nações);
É impossível que a Commonwealth permaneça, onde qualquer coisa,
além do Soberano, tenha o poder de dar recompensas maiores do que a
Vida; e de infligir punições maiores do que a Morte. Ora, vendo que a
Vida Eterna é uma recompensa maior do que a vida presente; e o
tormento Eterno uma punição maior do que a morte da Natureza; Esta
é uma coisa digna de receber consideração, de todos os homens que
desejem (por obedecer à Autoridade) evitar as calamidades da Confusão,
e guerra Civil, que as santas Escrituras querem dizer com Vida Eterna,
e Tormento Eterno; e por quais ofensas, e contra quem cometidas, os

85
homens devem ser eternamente atormentados; e por que acções obterão
vida Eterna.

O lugar onde Adão teria Eternidade se não tivesse pecado, era o Paraíso
terrestre. No início descobrimos que Adão foi criado em tal condição de
vida que, não transgredindo o mandamento de Deus, ele teria usufruído
dela no Paraíso do Éden para Sempre. Pois havia a Árvore da Vida; da
qual ele teria sido permitido comer se deixasse de comer da Árvore do
Conhecimento do Bem e do Mal; que não lhe era permitida. E portando,
assim que ele a comeu, Deus o expulsou do Paraíso, para que ele não
estendesse a mão e tomasse também da árvore da vida, e vivesse para
sempre. Pelo que me pareceu (submetendo, contudo, ambos nisso, e em
todas as questões, de onde a determinação depende das Escrituras, à
interpretação da Bíblia, autorizada pela Commonwealth, de quem sou
súdito) que Adão, se não tivesse (Gen. 3. 22) pecado, teria a Vida Eterna
na Terra: e que a Mortalidade entrou nele, em sua posteridade, pelo seu
primeiro Pecado. Não que a Morte em si entrasse então; porque neste
caso Adão nunca teria podido ter filhos; ao passo que viveu muito
tempo após, e viu numerosa descendência até morrer. Mas onde diz, No
dia em que comeres, positivamente morrerás, deve querer dizer sua
Mortalidade, e certeza de morte. Vendo então que a vida Eterna estava
perdida pelo erro de Adão, em cometer pecado, aquele que devia
cancelar este erro recuperaria, com isso, aquela Vida novamente. Ora,
Jesus Cristo compensou pelos pecados de todos os que crêem nele; e
assim recobrou para todos os crentes, aquela Vida Eterna, que foi
perdia pelo pecado de Adão. E é neste sentido que entendemos o que
São Paulo ensinou, (Rom. 5. 18, 19.) Como, pela ofensa de um,
sobreveio Julgamento sobre todos os homens para condenação, assim
mesmo, pela rectidão de um, a dádiva gratuita sobreveio a todos os
homens para Justificação da Vida. O que é novamente (1 Cor. 15. 21,
22.) entregue com mais perspicácia nestas palavras, Pois visto que pelo
homem veio a morte, pelo homem também veio a ressurreição dos
mortos. Pois como em Adão todos morrem, assim em Cristo deverão
todos ser vivificados. Textos concernentes o lugar da Vida Eterna, para
Crentes. Concernente ao lugar onde os homens usufruirão esta Vida
Eterna, a qual Cristo tinha obtido para eles, os textos a seguir parecem
dar a entender que será na Terra. Pois se em Adão todos morrem, isto é,
perderam o Paraíso, e Vida Eterna na Terra, assim em Cristo todos
serão vivificados; então se fará com que todos os homens vivam na
Terra; caso contrário, a comparação não seria apropriada.

O egoísmo ético de Hobbes

O autor defendeu nesta obra que a única obrigação moral com a qual os
agentes estão comprometidos é a satisfação do seu próprio interesse.
Nota-se que Hobbes não defendeu que agimos "sempre" por interesse
próprio: por exemplo, pelo fato de sermos "naturalmente" egoístas. Ele
defendeu algo consideravelmente mais "forte": mesmo que seja possível
agir de forma "não egoísta", pura e simplesmente não devemos fazê-lo.

86
Daí que, segundo Hobbes, o único princípio ou norma de
comportamento seja a persecução dos interesses particulares de cada
agente.

Conclusão:
. Contexto

1. Concepção do homem

1.1 Sujeito é racional quando é capaz de adequar os meios aos fins.


1.1.1 Desejo não se limita à necessidade. Envolve apetites, variedade de
intensidade, é sujeito a mudanças; é uma paixão.
1.1.2 A razão é um instrumento para satisfazer a paixão
1.2 Igualdade fundamental entre os homens: todos possuem poder de
satisfazer desejos e capacidade de serem violentos.
1.2.1 Perspectiva da escassez e da acumulação.
1.3 Só poderão ser detidos por uma força que se mostre superior à sua

2.Estado de Natureza

2.1 Estado onde o homem disputa de todas as coisas por direito natural
e absoluto.
2.2 Direito de Natureza: é o direito e a liberdade de cada um para usar
todo o seu poder inclusive a força para preservar a sua natureza e
satisfazer os seus desejos.
2.3 Lei Natural: é a regra geral, ditada pela razão, que obriga cada um a
preservar a sua própria vida e o proíbe de destruí-la
2.3.1 Primeira Lei da Natureza: todo homem deve esforçar-se para que
a paz exista e seja mantida desde que haja expectativas reais de
consegui-lo.
2.3.2 Violação da Primeira Lei da Natureza: faz com que passe a vigorar
apenas o Direito de Natureza: todos recorrem ao livre uso da força para
aumentar seu poder ou para impedir que o seu poder seja controlado
por terceiros = Estado de Guerra.
2.4 Estado de Natureza = Estado de Guerra
2.4.1 Mesmo que não exista estado de batalha
2.4.2 Plena liberdade e total terror: a violência é iminente e pode
ocorrer da forma mais imprevisível, sem qualquer causa aparente
2.4.3 Homens: Não podem gerar riqueza: ocupam-se durante todo o
tempo em atacar outros ou em protegerem-se da possibilidade de serem
atacados.

87
3. Sociedade política (Estado) é a única alternativa que a
razão mostra existir ao estado de guerra

3.1 Segunda Lei da Natureza: para que haja paz e segurança, os


homens devem concordar conjuntamente em renunciar ao direito de
natureza (uso individual e privado da força)
3.1.1 Todos renunciam absoluta e simultaneamente
3.1.2 Ao renunciar, os homens transferem esse direito para outra
pessoa, externa ao pacto: como todos os homens pactuam, esta pessoa
não é um ser humano
3.1.3 Trata-se de um ser artificial, que se origina do pacto e que recebe
os direitos e poderes naturais de todos os indivíduos: é o soberano =
Estado
3.1.4 O pacto cria o soberano: todos os membros se tornam seus
súditos, logo, todos devem obedecer ao soberano
3.1.5 A ordem política resulta do cálculo racional dos homens
3.2 Obrigação política (obediência) resulta da Terceira Lei da Natureza:
os homens devem cumprir os pactos que fazem
3.2.1 É lei exigida pela razão e garantida pelo soberano: inclui a noção
de consentimento (razão) e a noção de coerção (poder do soberano)
3.3. Soberania: poder do soberano é ilimitado
3.3.1 Por não participar do pacto, o soberano não tem nenhuma
obrigação ou compromisso para com ele
3.3.2 Além disso, o soberano concentra em si toda a força à qual
renunciaram todos os homens.
3.3.3 Mas o soberano, como pessoa artificial, não deverá manifestar as
mesmas falhas dos homens naturais
3.3.4 Por isso o soberano deverá actar às leis da natureza: este é o seu
limite
3.3.5 Função do soberano: é fazer valerem as leis da natureza: garantir
a paz e a segurança dos súditos
3.3.6 A obrigação dos súditos: rua enquanto o soberano cumprir a sua
obrigação
3.3.7 Leviatã é um monstro mortal: morre se não realizar a sua missão:
segurança dos súditos e as liberdades privadas que justificam a sua
criação e que serão expressas na lei civil.
3.4 A liberdade dos súditos é resguardada em tudo o que não se refere
ao pacto e em tudo aquilo que a lei não se pronuncia
3.4.1 O pacto institui o soberano: é isto que garante condição de paz e
segurança para o exercício da liberdade na esfera privada.
3.5 Igualdade: natureza faz homens iguais nas faculdades do corpo e da
mente: igualdade factual e natural
3.5.1 Igualdade política: igualdade de forma perante a lei
3.6 Estado de Natureza: todos têm direito a tudo: não há como definir
pretensões justas ou injustas
3.6.1 Não há qualquer critério da natureza para estabelecer a
propriedade: não há lei sem autoridade que estabelece o que é que
pertence a cada um; então não pode existir justiça
3.6.2 Justiça: significa dar a cada um o que lhe pertence: baseada na

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ideia de propriedade
3.6.3 Se a propriedade não existe no estado de natureza, tampouco
pode-se esperar que exista justiça
3.6.4 Justiça e propriedade: só podem existir na sociedade política
3.6.5 É o soberano que atribui a cada homem uma parcela conforme o
que ele próprio considera compatível com a equidade e o bem comum
3.6.6 Propriedade: é um conjunto de direitos artificiais sobre algo,
impedindo o seu desfrute não autorizado por parte de outros mas sem
impedir que o soberano o faça.

4. Estado: soberania ilimitada e indivisível: soberano


controla tudo

4.1 Três formas de governo soberano: modelo clássico


4.1.2 Monarquia, aristocracia e democracia
4.1.3 Hobbes: prefere monarquia, mas não está preocupado com a
forma de governo e sim com a soberania plena

5. Conceito de representação política: pelo pacto, cada


indivíduo reconhece-se como sendo o autor legítimo de
todos os atos do soberano, que passa a ser o actor o que
age em nome dos súditos

5.1 Representação autoritária: mandato independente uma vez


autorizado, o actor é livre para decidir em nome dos interesses do autor
5.1.1 Soberano: representa todos os súditos no que diz respeito à paz e
à segurança colectiva
5.1.2 Todos submetem suas decisões à decisão do soberano porque não
há oposição entre súditos e soberano.

6. Concepção individualista da sociedade e da política: a


instituição do soberano deixa intacta a individualidade
dos contratantes

6.1 Não há noção de totalidade: povo, vontade geral, etc.


6.1.1 Cada homem é uma unidade no momento anterior ao pacto, no
momento dos pactos e posterior ao pacto

7. Não existe direito à rebelião

7.1 Fora do Estado a vida não é possível


7.2 Não há distinção entre Estado (soberano) e governo: típico do
pensamento absolutista

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8. Relações Internacionais

8.1 Estados soberanos vivem em contínua vigília de armas: perpétuo


estado de guerra
8.1.1 Cada Estado é livre para buscar o que for mais favorável ao seu
próprio interesse
8.2 Não existe direito positivo acima do Estado
8.2.1 A única coisa que os contêm é o cálculo racional e o temor da
destruição recíproca
8.2.2 Contradição: aparentemente o Estado soberano não está tão
sujeito quanto os homens às paixões humanas
8.3 Soberano: comanda exércitos, controla comércio externo, celebra
acordos e contratos com outros Estados.

9. Método de Hobbes

9.1 Resolutivo compositivo


9.1.2 Reduz a realidade às suas partes mínimos para depois recompô-
las em um ―todo‖ significativo
9.2 Lógica racional dedutiva
9.2.1 Rejeita a história e a exemplificação
9.2.2 Seu estado de natureza não tem base empírica: é o exercício
contrafactual: sendo os homens o que são, como seria a vida coletiva se
não houvesse Estado?
9.3 Trabalha com antinomias: estado de natureza vs sociedade política;
razão vs paixão (desejos e aversões)
9.3.1 Antinomias: não permitem trânsito natural: criação da pessoa
artificial é que torna a ordem positiva.
9.4 Rejeita a história
9.4.1 Não tem base empírica

II. Leviathan

1.Introdução
Em sua obra ―Leviathan‖, Thomas Hobbes reflecte sobre a
impossibilidade do retorno dos homens ao estado de natureza, quando,
entre outras coisas, afirma que os homens foram feitos iguais.
Argumenta que sua natureza leva à discórdia (competição, desconfiança
e desejo de glória). Sem um poder comum, os homens estarão sempre
nesse estado de natureza, ou seja, em constante estado de guerra uns
contra os outros, havendo, assim, a necessidade de um poder comum
que os ordene, pois não existe um equilíbrio entre atritos e a
estabilidade sempre que não houver a paz, necessariamente se travará
a guerra.

Nessa guerra de todos contra todos, nada pode ser injusto. Não existe
distinção entre bem e mal, justiça e injustiça. Onde não há bem

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comum, não há lei, e onde esta não existe, certamente não haverá
justiça. No estado de guerra, força e fraude são consideradas virtudes.

É de fundamental importância, também, destacar-se que nesse estado


não há definição de propriedade. Consequentemente, será de cada um o
que seus próprios esforços conceder adquirir e só clamará direitos sobre
isso enquanto puder mantê-lo.

O medo constante leva os homens a entrar em guerra. Por isso, é


também em virtude do desejo de confronto e esperança de uma boa
vida através do trabalho, o homem tende à paz. Assim, surgiram as
leis, as normas estabelecidas para chegar-se a esse fim. Os homens
renunciam aos seus direitos em troca de estabilidade e boas condições
de vida e, uma vez feita essa troca, em forma de pacto, encontram-se
diante da impossibilidade e voltar ao estado em que primeiramente se
encontravam. Em uma sociedade, não se disporá a renunciar a todas as
suas regalias e voltar a um estado primitivo de vida repleto de
inseguranças.

2. Concepção do homem

Sob a visão de Thomas Hobbes, o homem é uma máquina natural


submetida a estrito encadeamento de causas e efeitos, o qual envolve
apetites e aversões. Seus desejos têm objectos distintos, variam de
intensidade, e são sujeitos a mudanças (podem perder sua
importância).

Nesse contexto, subjectivizam-se os conceitos de bem e mal,


afirmando-se ser o bem o que satisfaz os apetites de glória,
dinheiro e poder, e o mal, o que conteria os apetites e geraria
aversões.

Faz parte da natureza humana agir deliberadamente, visar sempre a


satisfação de seus desejos, e a ganância. Devido à possibilidade de
variação na intensidade dos seus desejos, uns almeja porções
maiores que os outros, o que não interfere no propósito comum a
todos: a busca do poder.

3. Visão no Estado de Natureza

Estado de natureza é a condição em que se encontram os homens fora


de uma comunidade política (ou sociedade), em que os homens
disputam todas as coisas por direito naturais e absoluto.

Nesse estado, possuem o chamado direitos de natureza, o qual consiste


na liberdade dos homens de unirem-se a fim de preservar suas vidas e,
consequentemente, fazer tudo a quilo que seu julgamento e razão
mostram adequar-se a isso. Em outras palavras, é o direito à
sobrevivência.

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Assim, o homem deve esforçar-se para que exista a paz e que esta seja
mantida, mas, no entanto, não deve renunciar aos seus direitos em
favor dos outros deve garantir a sua própria existência acima de
qualquer princípio. Se o estado de harmonia em que se encontrar for
violado, é digno de recorrer ao livre uso da força se não para aumentar
seu poder, para impedir que ele seja controlado.

Uma consequência do que foi acima descrito é a dificuldade do homem


em gerar riquezas: ocupa-se primordialmente em atacar os outros ou
proteger-se contra ataques alheios.

Na concepção de Thomas Hobbes, estado de natureza é sinónimo de


estado de guerra.

4. Características do pacto

A fim de estabelecerem-se a paz e a segurança Thomas Hobbes diz


que os homens devem, absoluta e simultaneamente, renunciar ao
direito de natureza (uso individual e privado da força) e transferi-lo
a alguém externo ao pacto. Destaca-se, porém, que esse ―alguém‖ não
poderia ser um ser humano, já que todos desta espécie são vinculados
ao pacto. O meio encontrado para concentrar esse pode central foi o
estabelecimento do Estado político, cujos interesses são defendido pelo
soberano. É considerado um ser artificial, de categoria divina. Ele não
age de acordo com sua vontade; sua autoridade foi consentida pelos
membros de seu governo. Portanto, todos os seus actos constituem,
necessariamente, os desejos da colectividade. Como consequência, tem-
se que contestar a ele seria o mesmo que se opor a si mesmo.

5. Bases do poder absoluto

Por ser externo ao pacto, o soberano possui poder ilimitado e não


contrai, portanto, obrigações. Concentra todas as forças a que
renunciaram os homens. Sua função é fazer valerem as leis da
natureza. Mediante isso, podem ser destacar os direitos do soberano:

# 1: feito um pacto, qualquer fato ou contrato anterior que o contrarie


deve ser suprimido;
# 2: nenhum súdito pode libertar-se da sujeição ao sobrano o soberano
representará a vontade geral do início ao fim e renunciar a ele seria
uma contradição;
# 3: se a maioria, por voto de consentimento, escolher um soberano, os
que tiverem discordado devem passar a consentir juntamente com os
restantes;
# 4: nada que o soberano faça pode ser considerado injúria contra
qualquer um de seus súditos;
# 5: aquele que detém o poder do soberano não pode ser punido por
seus súditos;
# 6: compete à soberania ser juiz de quais as opiniões e doutrinas que

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são contrárias à paz, e quais as que lhe são propícias;
# 7: pertence à soberania do poder de prescrever as regras de
propriedade; a autoridade judicial; direito de fazer guerra e paz com
outras nações e Estados; escolher os conselheiros, ministros,
magistrados e funcionários, tanto na paz como na guerra; e direito de
recompensar com riquezas e honras, e o de punir com castigo corporais
ou pecuniários, ou com a ignomínia, a qualquer súdito, de acordo
com a lei que previamente estabeleceu.

6. Liberdades dos súditos

As liberdades dos súditos abrangem somente que não se refere ao pacto


e ao que a lei não se pronuncia. É o princípio do direito privado: tudo
que não é proibido é permitido.

Mais especificamente, constituem liberdades dos súditos:

Submeterem-se ao soberano (visando o bem comum);


Não se matar, ferir ou mutilar quando pelo soberano ordenado
Não confessar crime que não tenha cometido;
Não se matar a si ou a outrem por causa de suas próprias
palavras
Defender seus direitos face ao soberano em questões de posse
de terras ou bens como se fosse contra outros súdito e
perante os juízes que o soberano houver designado;
Aceitar ser prisioneiro de guerra se sua vida e sua liberdade
corpórea lhe forem oferecidas.

Thomas Hobbes diz que é importante observar-se, neste ponto, que se


um monarca renunciar à soberania, tanto para si mesmo como para
seus herdeiros, os súditos voltam à absoluta liberdade de natureza.

Diante dos pontos já relatados e analisados, chega-se à conclusão da


infinidade de vantagens (em relação às desvantagens) da vida em
sociedade. Renunciar à essa convivência pacífica com os outros seres
seria como renunciar à liberdade e segurança e voltar a um mundo
primitivo em que o nascer de um novo dia constitui sempre um novo
desafio.

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