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A MITOLOGIA DE PRÍAPO

James Wyly
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Este texto foi retirado do livro A Busca Fálica, de James Wyly. É aqui reproduzido mediante expressa
autorização da editora Paulus. Conheça outras publicações da editora visitando a Revista de Literatura.

Nosso ponto de partida serão as histórias de Príapo, correntes na Grécia e em Roma, aproximadamente a
partir de 200 a.C. até o quarto século da era atual. As histórias, em si, são poucas e muito dispersas, mas
contêm temas e alusões que remetem a todas as direções da complexa rede da mitologia clássica.
Seguirlhes os fios resultará numa textura rica de lendas e narrações adicionais. Vamos reencontrar as
mesmas elaborações mais adiante, ao observarmos como a inflação se apresenta no material clínico e nos
fenômenos culturais.

Pausânias acreditava que Príapo era filho de Dioniso e Afrodite1, embora Adônis, Hermes e Pá também
tenham sido mencionados como possíveis pais, e Quione também como mãe 2. Por ciúmes, ou por
sentirse ultrajada pela promiscuidade de Afrodite, Hera fez Príapo nascer com genitais enormes. Uma
barriga grande e outros exageros também às vezes lhe são acrescentados. A mãe o abandonou e ele foi
criado por pastores3.

Em duas Histórias Príapo é associado ao asno. Na primeira Robert Graves cita o relato de Ovídio, em que
Príapo tenta violar Héstia enquanto estava bêbado "numa festa de camponeses assistida pelos deuses,
quando todos caem no sono, após beberem demais; mas o zurrar alto de um asno acorda Héstia, que grita
ao ver Príapo prestes a montar sobre ela, o que o faz sair correndo, num terror cômico"4.

A segunda história é contada por Higino, numa citação de Edward Trip. Príapo envolveuse numa
discussão com um asno dotado de voz humana por Dioniso. Eis o que Trip escreve:

"0 que se tem são apenas sugestões da história completa, mas podese imaginar que Príapo e o asno,
animal notório por suas proezas sexuais, estavam contando vantagens sobre o tamanho dos relativos
apêndices físicos dos quais muito se orgulhavam. A gabação levou a uma disputa em que o deus levou a
pior. Enfurecido pela derrota, Príapo espancou o asno com um bastão até matálo. Dioniso imortalizou o
animal colocandoo no céu como uma das duas estrelas conhecidas como Os Asnos"5.

Kerényi nos diz que Príapo parece, por fim, conseguir alguma ajuda de Hera, e esta o torna instrutor de
dança de Ares6.

Sua imagem era usualmente posta em jardins e pomares, onde "ele propicia a fecundidade dos campos e
rebanhos, a criação de abelhas, o cultivo das vinhas e a pesca"7. Segundo Funk e Wagnall, "a ele são
oferecidas as primícias da colheita de frutos nas fazendas"8. Graves ainda acrescenta que "ele é
fruticultor, e carrega uma faca de poda"9, e é conhecido como "o podador da pereira"10, árvore
consagrada a Hera.

O grande pênis de Príapo providencianos naturalmente o ponto focal para a elaboração psicológica dessas
histórias. O seu tamanho também significa que devemos considerar as implicações do exagero fálico. Mas
nas histórias há vários outros temas implícitos, cada um deles desenvolvendose como uma metáfora, e
eles provarão ser da maior importância quando, mais adiante, traduzirmos os mitos em linguagem
psicológica.

Poderíamos começar com o significado dos pais de Príapo. Seria uma grande digressão desenvolver
amplamente o tema de Dioniso como pai. Mas a conexão com o êxtase, o instinto, a dança, a vinha, a
natureza e Pã (enquanto opostos àqueles aspectos da masculinidade representados por Apolo: razão,
deliberação, força de vontade, disciplina, e assim por diante) falam por si mesmos. Príapo nasce do êxtase
físico instintivo e, do lado materno, da sexualidade, pois, como nos diz Graves, o único dever divino de
Afrodite era fazer amor11.
Se considerarmos que, além de Dioniso, Adônis e Hermes às vezes eram tidos como pais de Príapo,
veremos nisso mais uma coisa: ele tende a ser o produto de uma masculinidade bela e adolescente, até
aparentemente afeminada, como se os genitais enormes compensassem pela masculinidade nascente de
seu pai, com a qual Afrodite ficou fascinada12. A função de Hera, então, ao "deformar" Príapo, seria uma
tentativa de restituir algum tipo de equilíbrio aos afetos de Afroditeexatamente como os atos de Hera
freqüentemente acabam por conter manobras compensatórias sob a superfície dos revides gerados pelo
ciúme.

Levandose em conta a linhagem de Príapo, compreendemos porque é Héstia, entre todas as deusas, quem
ele tenta violentar. Ela é a deusa que se oculta em modéstia e preside sobre o lar (a lareira) e a
domesticidade. E, em certo sentido, é essa segurança da domesticidade que foi negada a Príapo, ao ser
abandonado na infância por sua mãe. Ela, a sedutora por excelência, não deve ter achado fácil
desincumbirse das funções maternas, exatamente como acontece com muitas mulheres nos dias de hoje; e
é de se esperar que, como qualquer um que passe pela experiência de abandono, Príapo sentisse ódio pela
perda. E, além disso, como filho. dos aspectos de Afrodite e de Dioniso, Príapo representa a união de duas
forças notoriamente desagregadoras da estabilidade doméstica ao exigirem a integração nesse ambiente.

Mas por que ele é traído na violentação (que se poderia tomar como uma tentativa de ser reconhecido,
aceito) justamente pelo asno, animal que lhe é tradicionalmente associado?

Creio que um número extenso de associações apresentadas por Graves explicam isso, pois elas levam ao
tema da castração que, enquanto um oposto do priápico e concretização da cisão do fálico, está implícita
em todo o nosso estudo. Graves nos diz que o asno selvagem é o espírito do vento do deserto, o siroco,
conhecido como a respiração do Asno Selvagem, o Tifão, que traz consigo sonhos maus, impulsos
assassinos e estupros13. Ele diz mais adiante que o deus Set, cuja respiração se dizia ser Tifão (o siroco)
havia massacrado Osíris14. E o esquartejamento de Osíris resultou, como se sabe, na perda permanente
de seu pênis, o único dos catorze fragmentos em que foi despedaçado que a deusa Ísis não conseguiu
recuperar.

Esta não é a única ligação mítica de Príapo com a castração; outra, como se pode perceber, é a sua
designação como "o podador da pereira". Citando Graves novamente, as imagens fálicas consagradas a
Príapo eram colunas de madeira, ou seja, árvores: "A pereira era consagrada a Hera, a deusa principal do
Peloponeso e que por isso era chamada Ápia"15, e a imagem mais antiga de Hera, enquanto deusa da
Morte no Héreo de Micenas, era feita da madeira dessa árvore"16.

Graves também informa que apis é um substantivo derivado de apios, adjetivo homérico que comumente
significa "distante", mas que, quando aplicado ao Peloponeso (cf. Ésquilo, Os suplicantes, 262), significa
"de, ou relativo à pereira"17. Entretanto, apis é também o termo latino para abelha, e para a mente latina o
Peloponeso, o lugar de Hera, vinha inevitavelmente associado às abelhas, das quais, conseqüentemente,
Hera tornouse a rainha.

Havia ritos a Cibele, e que eram amplamente praticados na Roma dos primeiros séculos da era cristã. Os
romanos consideravamna a esposa de Saturno que castrara Urano, e seus rituais originavamse na
destruição, por Afrodite Urânia, do rei sagrado,

"que copulou com ela no alto de uma montanha, como a abelha rainha destrói o zangão: arrancando seus
órgãos sexuais. Daí... o culto a Cibele, a Afrodite Frígia do monte Ida (e equivalente ao hermafrodita
Agdistis) sob a forma de uma abelha rainha, e a autocastráção orgiástica de seus sacerdotes em memória
de seu amante, Atis"18.

Vê-se por aí que a castração nunca se encontra distante de Príapo, e a sua faca de podar assume uma
potencialidade de uso que não devemos perder de vista. Mais ainda: o tema da autocastração ligado a
Átis, como resultado do amor enlouquecido por uma mãeamante hermafrodita tem implicações que
merecem aprofundamento devido à sua conexão com algumas formas contemporâneas de
homossexualismo masculino e seu fascínio pela imagética fálica (é interessante notar que o sangue do
ferimento de Átis transformouse em violetas que nasceram pela primeira vez sob o pinheiro onde ele se
feriu19, pois de há muito tempo essa cor tem uma associação com formas e modas homossexuais).

Vamos agora juntar material relativo ao tema da árvore para completar a série de associação mitológica.
Isso já foi mencionado no contexto das imagens de madeira de Príapo e da pereira que ele poda. Tendo já
estabelecido uma associação com a Grande Mãe Cibele, podemos usar o trecho abaixo, de Jung, para a
síntese e elaboração dessa parte do nosso material:

"Outro símbolo materno igualmente comum é o bosque da vida... ou a árvore da vida. Primeiramente a
árvore da vida pode ter sido uma árvore genealógica produtora de frutos, conseqüentemente, uma espécie
de mãe tribal. Inúmeros mitos dizem que seres humanos nasceram de árvores, e muitos relatam como o
herói havia sido aprisionado no tronco de uma árvore materna, como Osíris morto dentro de um cedro,
Adônis dentro do mirto etc. Numerosas divindades femininas eram adoradas sob a forma de árvores,
vindo daí o culto de árvores e bosques sagrados. Assim, quando Átis castrase sob um pinheiro, ele o faz
porque a árvore tem um significado materno. A Juno de Téspia era representada por um galho, a de
Samos por um prancha, a de Argos por um pilar, a Diana de Cária por um bloco de madeira bruta, a Atena
de Lindos era uma coluna polida. Tertuliano chamava a Ceres de Paros de `rudis palus et informe lignum
sine efiigie' (um tronco informe e rude de madeira, sem rosto). Ateneo informa que a Latona de Delos era'
...um pedaço informe de madeira'. Tertuliano também descreve uma Palas ática como `crucis stipes'
(estaca de uma cruz). Uma viga nua de pau, como o próprio termo indica, é fálica"20.

Jung prossegue, observando que o termo grego phallos poderia designar "um mastro, um lingam
cerimonial esculpido em tronco de figueira"; que as estátuas romanas de Príapo eram de figueira, e que
phallos e phalanx falange têm a mesma raiz etimológica 21. As falanges levam tanto ao tema da castração
quanto ao da autonomia fálica, pois quando a mãeamante de Atis implorou a Zeus que fizesse seu filho
viver novamente, tudo o que ele pôde fazer foi dar vida à menor falange do dedo mínimo do deus, que
continuou a moverse por si mesma 22.

Jung estende a raiz phal a phalós, que ele informa significar "luminoso, brilhante", e observa que a raiz
indoeuropéia é bhale, "fazer volume, inchar". "Quem", pergunta Jung, "não pensaria no Fausto `isto tem
luz, brilha e cresce em minha mão!'?"23

O tourdeforce interpretativo de Jung amplia o contexto que envolve o duplo sentido de Fausto, citado por
Jung em outro trecho:

"MefistófelesParabéns, antes que você se separe de mim! Você conhece o demônio, é fácil convir. Tome,
pegue esta chave aqui. Fausto Uma coisinha dessas? E para quê? Mefístófeles Primeiro pegue; não é nada
para se desmerecer. Fausto Isto tem luz, brilha, cresce na minha mão! Mefistófeles Do seu valor pleno,
logo você terá compreensão. Esta chave fareja a origem de todas as outras, suas irmãs. Siga-lhe a pista e
ela o levará às Mães!"24

Para Jung aqui está implícito que o fálico leva ao "território das mães... de não poucas conexões com o
ventre e o útero, a matriz, que com freqüência simbolizam o aspecto criativo do inconsciente".25

Nesta última observação Jung faz o mesmo que nossa comparação mitológica, mas usando metáforas
diferentes, ou seja, demonstrou que uma relação adequada com phallos parece levar a uma conjunctio,
isto é, ao encontro criativo entre phallos e a matrix, entre masculino e feminino.

Separarse de phallos, efetivamente a castração, resultaria em esterilidade e num fascínio pelo falo, na
obstinação pelo seu resgate. Mas a busca infla naturalmente a importância do objeto procurado, e caso o
buscador não tenha percepção psicológica, e confunda o símbolo concreto com o objetivo, sua busca vai
transformarse na procura incessante e infrutífera que leva tantos homens à análise.
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1 1. Pausânias, Guide to Greece, vol. 1, p. 374.

2 2. Larousse Encyclopedia of Mythology, p. 183.

3 3. C. Kerényi, The Gods of the Greeks, p. 176.

4 4. The Greek Myths, vol. 1, pp. 7475.

5 5. The Meridian Book of Classical Mythology, p. 497.

6 6. The ~ of the Greeks, p. 176.

7 7. Larousse Encyclopedia of Mythology, p. 497.

8 8. Funk and WagnaU's Standard Dictionary in Folklore, Mythology and Legend, p. 886.

9 9. The Greek Myths, vol. 1, pp. 69.

10 10. 16id, vol. 2, p. 406.

11 11. Ibid, vol. 1, p. 70.

12 12. 0 autor se refere à projeção e posterior identificação da mulher com seu ãnimus, o qual ela vê
refletido no homem, e isto impediria o seu desenvolvimento masculino (N. da T.).

13 13. Ibid., p. 133.

14 14. Ibid., p. 135.

15 15. Ibid., p. 71.

16 16. Ibid., p. 252

17 17. Ibid, p. 211

18 18. Ibid., p. 71.

19 19. C. Kerényi, The Gods of the Greeks, p. 90.

20 20. Simbolos de Transformação, O C 5, § 321.

21 21.Ibid.

22 22. C. Kerényi, The Gods of The Greeks, p. 90.

23 23. Símbolos de Transformação, OC 5, § 321.

24 24. Ibid., § 180.

25 25. Ibid., § 182.

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