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C,1pl11 !

lo )

Os precursores do Ex,·ir v r 1C 1dlt ') rr 10

Para uma linhagem de fll 6sofos 111do d e S<x rare1 J.


Nietzsche, a preocupação com ,1 ação t' a cornK 1ênc ia íJ_g uda do
problema que constitui na existência hwnana a neu ·ssidad e d e
escolher tinham sido determinantes ern S<-'ll pro< t dímenro d e
pensamento. Devia seguir-se para o pt.'1blic:o uni vasto kq1.1c: de
existencialismos ou de filosofias existenciai s: seg undo se a~t:
com referência ou sem referência a Deus, adere-se ora ao "ex is-
01
tencialismo c ristão" ora ao ''existe11Cialisrno atl'll Enqt1anto o •

segundo devia e}1eontrar seu lugar de predih:çào nurna onto-


logia (ou um discurso sobre: o ser), o prin1ciro ia reagir contra
a abstração que constituía, tal ftlosofta . Kierkcgaard e ( ~a hricl
Marcel, para não citar senão esses arautos do cx1 scer1( ial, s,no
cristão, "professan1 c.1uc a cqnsiderac;ão da exisc(·ncía írnplt <.a
.unu negação <la filosofia como sist t nla, <.k nux.lo tal qw: 'filo-
sofia <la exist ência ' não significa para eles senão wna cttuí!nc da
existência no que ela tt'rn dl' rnaí s individual e d l' ,rnu --. u >n( rc:-
r.
ro [. .. A olllolog ia ou ,1 filosofot do S{'í não seudo a ,t·us
0Jh9s senão un1a "filosofia wón: a t xí:-;c{·u( ia" w qll(· d r; t·11 tt· 11
J t:n1 aban<lonar, para lhe prdc.·rir urna a11,il1 st· d,t <·x 1, t(· m 1.1

40 Hfx ,i. Jt, liv(" r, /,e,' ) (}( t r 11/( 1 c, ·n1t 11 / 11t!n 1,·, i/('
1 1
f<.1l 1 rl·,·x,,1,1rd
11) .p .\ orl re , P.,m ~, dr t-'0111 c- 11 r ll c- , 1')·1H, p ' )

37
)Ôrc r I l(ierk~goard ( 181 3.- 1855) ·

K icrkc~aanl, contra todo <;·spíri to J~ sistcma~i.zação · _


dtt ex iste11('Ía sob a forn1a de un1 S4tbcr. objetivo, afi~ma-se
r on10 pensador religioso que vai conceder um lugar funda-
n1r.1Hnl rt subjcdvida<..!e do i,~divíduo. Stú~ rejeição de toda
filosof'ia <Jlll' t(•tHa ~~.;(' constituir-se 1a exemplo um saber de
cic)ll ff 1t o, leva-o a valor~zar ·a cxper·iência da•obsc.ur_idade
1

da co11d i<;ão hutnana e a coloGí-la na base ·de .sua reflex·ã o fi-


losófi ca. 'J'hLta-se p~tra ele de conseguir p~estar>contas. do
que é ..·a existência pessoal": pois "seria preciso, ainda as-
si,n, qul' un, pensador. tivesse a menor diferença possível
c.:on1 r-;cr u 111 hon1en1 '' : 11
r ..
\
1

Testemunha de um cristianismo trágico


~

Cac; ula de unia fi~mília de sete áth~s, KiJrk~gaard


nasceu e n1 Copenhague em 1813. O pai do filósofo conta
,nuito na djsposi<;áo n1elanc6lica deste último, e sobretudo
na cc'>n cépção d ran1áti ca que este teve do c_ristian1smo. As
segundas 11(1pcüts de seu pai, que viveu este casan1ento
corno u,na iníidc:lidade para com a JJtimeira esposa faleci-
< la, i1npreg naran1 o jove,n Kierkega'a rd, ele constituição

frá~il, de un1 ~Lce rta culpabilidade. Persuadido de gue De~1s


1he dera aquele fj Iho para ~~_. 1hor Iho " ~etornar", o pai do
f,J6sof<> conu: ntrou toda a sua .afeição é an1bi,ções sobre
aquda c rian<;a. A edu ca\ão religiosa que este (dtin10 rece-
beu lê,i ;1 d e ·un1 crist ianisrno sen1 con1pron1eci1nenro e cs-
1ig 1,ia1 ízado peJo pecado . Estudos unive,~siuirios de reolo-

li 1. Séí1-c 11 Ki e1·ke~aard, cit .1<lo por .J c·.111 Br1111 , " Kierke-


,u,aanl ", í11 l:11,.ydo/NJcditt (!11i·t1cr.11.1/h, Paris, 1989, p . 3.3 2.
s1·
gia levaram-no, em· 1 1,. a defendér uma ~ese de dout~ra-
. do ·sobre O Conceito-de ironia constanternente relaciona~ a Só-
. cra;~s. Um profun~o desespero devia oprimir Kierkegaard -
· no tnesino ano, à.pós a_ruptura inopinada de seu noivado
· previsto com Régine Olsen (que desposou Schlegel): re-
c"i:isando deixar sua .' 'noiva eterna" cair "na caregori_a geral
de esposa qué teria feito deie·um funcionário _coqjug~r',,-L' o
fil6sofo devia marcar fortemente sua filosofia com o cunho
da "heterodoxia". 'Inimigo de todo sistema filosófico, ia
igualmente e,rigir-se contra a Igreja oficial que não oferece
. - -
segundo ele senão uma so~bria c~ricatura do cristianismo.
Suas principais obras Ou... -Ou'. .. ( "O_diário· do sedutor")
[1843},_T~mor e Tre,nor (1843), As i\ligalhas filosôflcas e O
C'onceúoda ~ngúitia (1844),. e depois o Tratado do) ·desespero
- .
<1849), abrir-am_caminho a 1=1m pensamento da seriedad e
1

absoluta da existênci?, e da religião, em que a· consciência ·


da falca ·e à angústia nos f~zem abraçar a etern~ídade.
\
\ .

Existir é crer

Para KiéÍ-kegaa~d, a-verdadeira fé não éstá tão ligada


. à instituição dá Igreja quanto a um estado de ~rise existen-
.cial const_ante. ·N ão se trata tanto de ter fé ou de conservá-
- la~ quanto de vivê-la. "Ser religioso" de nascença ou pela
_educação não (az de nós cristjos. Longe de nos contentar-
mos com un1a etiqueta de ·cristãos porque fomos batizados
ou porque somos "fiéis )), temos que nos perguntar perpe-
tuám·e nte conzo nos tornar cristãos, vocação da qual devemos
prestar. contas. · O filósofo situa:--se nos antípodas de um
povo que se satisfaz com um estatuto de cristão, e que

. 42 . Jean Bru,n, ibid .


Kier_k eg.1al'd qualifica de "pa~1o batizado", .1 ponto de "ser
preciso provar que .se é batizado' ·r ~u-a poder g~inh\l( a vida
como dono de bordel" ....u · \

Cont~a o espírito de sisternzi, c1 iniciaçJo tis ··esferas '


da existência"'

A religiosidade da ex_istência t~.l con1q .Kierkegaard


a perc~be afirn1a-se prin1ei ro en1 reação à concepção tota-
lizante e universal na qual ~egel englobava a existência
hun1ana. · ·
Se"_para este último a existência n.10 con~ava senão
como n1ornento de un1 sistema lógico universal, o filóso-, '
fo dinamarquês entende reafirn1ar a primpzia da s11bjerivi-
dade, óu ·s eja, de tudo o que é próprio de cada indivíduo
e· que ·esc.lpa a toda categori~. Não se pode. apreender o
esp{riro religioso que anin1a Kierkegaard a tião .ser que se
preserve o espírito do domínio do conce\tO e da catego-
ria, a fim de receber co~1 toda sua força as questões que
emanan1 da ·intimidade rd9_homem confro1~tado ao trági-
- _co da e_x istência. A lógica hegeliana desfia-s.e e cai · en1
desuso frente · ~o sofrimen-to hun1ano. Pois, corúo o ~:u
tão jus~amente notar Jean _B~u·n en1 sed artigo c\>nsagra-
-do a Kierkegaard, ·'o que existe não é o conceito de ·so-
frimento ' e s~m hon1ens que ·sofre1n". 44 O espíri'to reli- ·
gioso autêntico é portanto àquele que ~xperin1enta a
existêncía em seu foro íntin10, - e não 111a1s através do
\

43. Soren Kierkegaard, ]011mal, Paris, Gallimard, 19-11-


1961, XI 1 A74 (excraro 74 da seção A do vol. l do tomo
XI).
44 . Jean Brun, op. çír.. p. 332 .

40
co'nc~ito· .. ·, c9n:io .o irredutível_por e:çcel~ncia, ~ão categori-
zável,' em suma, ·c omo subjetividade.·
, , , I

A fé é ·_ para Ki:rke.gaard o ponto nevrálgico da .exis-


tência como da filosofia. A fé ·~ão ~e reivindicá mais,. ex-
perimencâ-.se mergulhando-nos ·numa ·busca s~m fim. Em
~
o'u ... Ou ... (ou .a Alternativa),
. .
achamo-nos confrontado_s à
.

' um apreÓdiz3:do da-vida que _corresponde de á.lgum_módo


~ estágips da exis_ cência; cada um qualitativamente supe-
riór ao o~tro. Kierkesaard distingue e.rês estágios: na es_:_,c
fera estética, o homem · - à imagem de Don Juan -, refu-
giaJse. °:º _imediatismo do 9~sejo e no instante, assim
como na r~cusa de tod·a escolha. N" esfera ética, ·c o~preen:
de~os ao cabo de urn· desespero sem fim, que precisamos··
ir ,ve~-~lém q.o imediatismo para nos tornarníos o que nos ff!r-

namo,s. Ou seja, admi~ir a e;is.tência .d e urría ~ltérn~civa no
• 1

lugar da indiferença ao bem e ao mal, logo, aceder ao re-


~: ~onhecimenco do bem e do 91al. ,É pelo humor que ace- ·
demos à esfera religiosa, -~ibertados de todo cinismo· auto-
. destru.idor.,Ac_e~tarríos, em nome da-fé, o peso de urna fal-
ta do .homem _perante um Deus para com o qual ·remos
uma dívida. Sempre . .
em busca ·da felicidade, e esta nos
/

faltando sempre, temos que admitir ess.e fato e esperar


para além de toda decepção ... ·

·A experiência de um paradoxo absoluto

A Alternativa constitui o próprio método do pensa-


mento kierkegaardiano. Preocupado em respqnder à per-
gunta "Que devo fazer? ", Kierkegaard aprofunda, an1plia
essa interrogação ao extremo, e assimila a paixão à exis-
tência: o ser hl:1mano mantém-se entre a dúvida e a fé, nun1
estágio de existência fechado que se basta a si n~esmo, e

4 -1
f

du 'l"1 " ~() ~t· s1d por"'" "s1d1n" (r 11 ~\o p,~r J.<raus de cvo-
h,, ,,,,): "'lbdo htH\\ r 111 Nr r nco111 n, 11 r< r,;~ar~an1c 1H t c,n
,,n, 1, " " ,H11r,, l r~,d( n, de• rx iN1fl 11ci~al r o prohl c,na que· cada
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,\., cxistf l\\ i1,, por sc· r t.\o i1·rrdudvcl <' i11cvi1 ,Ívt' I qua11Lo a
\'l'f\ pri1, t'Xis tf nriil. f'.: t' lll f~,n.· d<' l )c~u s que o hon1 crn (:x p<:-
runc-1 \l 1, o ru,r.H loxo i ncrc·1 H e ,'\ t·x is(f- 11c ia. K icrkc~a., rd d cs -
l' rc·v i~ , .,ssin, o •"'' ngonis1no dt'ssas }>{ÚXt7l'.I' contr,lrirtS 111 que Stlo
,; / ~' ( 11 d1it ·id,1 : "(Ju.u,do S(,c ral<.'S a<: rc:ditava que: havia un1

l)c-us. 1\\,\1\f illh~, tirnwn1t·1H.c.· a inccrtt·za obj<.'t iva con1 roda


., r,,\ i x~,o d.,, in, C'rioridadc t' t ncst a con u·ac.l ição, nes te ris( o,
que n·sidl' jusLtl\\t'llf <.' ~, ft . AJ.(ora t dif"t·rl'ntt· , no lu ~a r da
11 H.'('r t c 1 ., oh jc·c iv:, nós , ('lll<'ls a n .·r< l'Za d e que isto, ob jer i-
v.une, H t'. (: o .,hsu rdo, l' l'Slt' .,hsu rdo, núult ido fi rrnt'lll l'll -
t c "·' 1'·"x.1o da in,crinrid~,dt·, l' a ft " .·11 As~irn, se.· S6c rac t·s
L\:11 ., u H,s is, ir ., té "·' n '·", li l t'tl\ão da i ll ( t'rtc.·za corno o Iu -
,..:,., r d ., Vl·rd.,dt'. K i<.'rkt·.~·'·' rd foz do n·co11 hec i n,t.·1no dl's tt:
.,bsu rdo n próprio l'undan,t·11to da ft:. A illquàc.·t·a<_.·.1o kierk('-
~.,.,rd1,\l\.l substitui, port.uHo, a irol\i;, sorr~,n c.,, n, ~us Sl' -
-~ur., dt· si 1,wsnl.1 duque par.eri.1.

•\ ') H<-~ •~.J o l1 vr l , / r1 11·11,/m trn11 ,I 1'. ic-ri:c,i:.11 ,n·J , P,\1"1 s , dt· hH1
t f' ll t'" II (" , l l) , \(J , p 1 1 1

·l<1 ~º'("" K ar rl,('~,,.ud , /~ 1m , /1l11 /0111f'/11 ,111,·, ( I H·l·I), Ji ,ln.'i,


l,,dl1111 ,1h l , I '
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·1,' So1r 11 K 1c- ik e~ ,1.11d , l' o,t i. n/1/ 11111 ,w,· ,\l ,cttc , pl,d,no/i/1 1
1( /H I ( I Hl( 1), P,111 1\ , l,,&111111 ,11,I, '. ,, p ,lll (', -~·' M' \· ' º· l,'fl , li .

·12
O ~d~xo exiscenciJ.l que trabalha Kierkegaard in-
reaqfic-a-se logo que o hon1em se relaciona con1 um Deus
que o transcende: sen1 Deus. o homen1 perde toda a signi-
fic-a\-ão. e sua busca é despro,·ida de sentido. O corre que se
o 1-'rradoxo é o lugar onde uma ,·erdade se revela a nós,
nossa situação nà.o dei.x-a de ser paradoxal. O "erro .. de nos-
sa subjetjndade ·reside não na su,1 falsidade . mas na sua in-
suficiência em relação a esse Todo-Outro (Deus) que nós
nio somos. A existência é e permanecerá sempre falta;
uma a5.:.ê1lUÜJ inacabada e inat:abán:I Não cessan10s de aspi-
rar a uma plenirude enquanto Yogan10s no meio de uma ·
incerteza infinit a : é com ~ta própria incerteza que· nos de-
,emos contentar como '\-erdade. É nesse sentido que Kier-
kegaard afirmava que ...Deus está jusran1ente preser:1re logo
que a incerteza de tudo é pensada con10 infinita" .~ E ja-
mais experimentamos tanto o "erro" da subjetividade
quanto logo que nos encontramos remetidos_a nós mes-
mos~ numa solidão radical "O hon1em kierkegaardi ano,
escreve Jean Brun, é antes ~e rudo aquele que busca um
ponto onde jogar a â1u<t,-a, -pois, se se li n1i car a si_ n1esn10 ,
mostra-se injustificável, sen1 mensagem , e o nn1ndo en1
que mora lhe dá náus~" .4 <)

J\ng ú stia, pecado, e li berdade

Esca ausência de j.ustificação for~ da rebç~o com Deus


é a expressão surda de um pecado original do qual devenu)s

~-,
48 Soren Ki erkegaa rd . op c 1c. . P · ) ·
. . ..,
49. Jean Bru11 , op . cir .. P· 3J- •

43
tomar 'consciência. O drama ,e xistencial do homem consis-
1 • • . .

te por ass'i m dizer numa cülpabilidade


. ,.
antes mesmo de- ter
pecàdo: ao · nascermo~ despidos· ·de justificação, estamos _
imediatamente em estado qe angústia e, por -isso mesmo,
erri relaçãb c9m o pecado. ' Pois se '' 'o que a~gustía na an-
gústia é ser ·senz razão' [ .. .], o indivíduo ri~o se angustia pór
ter feitá, mas por ter que fazer e por pod~r fazer". 50

·' . '
O silêncio de Deus

Em face de un1 Deus no qual çr_emos '. "sem sua presen:.. .


ça·" , o . homem não pode contar .seáão !
~onsigo mesn10
.
(suá
fé) para_agir. A, ~nce~teza permanece apesar da fé. Contra-
riamente ~à ·consciência por assim dizer tranqüila do . ho-
. mem kantiano· que não tetn pergu,ntas a fazer.:.se na _medi-
da ·em que ~ lei n1oral depende unicamente do imperativo
categórico .(agir s.egundo ·uma máxima süscep,tível de ser
.. ~· ' . \ .

universal); sem nenhu111a éxceção à regra, a consciê~cia do .


I homem kierkegaardiano enco.ntra-se reduzida a si mesma e
p~rpetuamente confronra9a a dilen1as. Pode-se diz~r que, .
na falta de imperativo categórico a ~pliçar, na falta de "ma-
~ual de instruções '.' da existência, a, angústia énosso tínic? mo-
tor: sem angúst_ia, remors.os o~ . desespero, . não nos distin-
guiríamos das coisas inertes qlie nos rodeiam . Não son1en-
te.a angústia nos faz existir, ·como nos in1pele a agir na es-
perança de pôr um termo-
a esse estado de incerteza. É num ·
.

silêncio /desesperante que Peus "fala a cada indivíduo, n1as


no instante em que Ele fal~, -Ele se serve do próprio indivíduo
par?t lhe dizer, por ele mesmo; o que Ele quer dizer-lhe.. . É por

50 . OJívíer CauJy, Kierkeiam d , Paris, PUF, 199 1, col.


1
'Que Saís-je? ", p . 74 .- 75 .

44
isso que nãó se pode argumentar com Ele[ ... ]. Quando um
'indivíduo teme beus. ele teme o que é mais do que ele
n1esn10. e após esse cen1or vem o temor de voéê mesmo: e
-a ang11stúu (a passagem estrei~) desse temor é a responsa-
·t·d d .. . ~l
b11ae

A responsabilidade

O instante que precede o agir é um estado equívoco


para o homen1: angustiado pela ausência de justificação re-
lativa a sua própria existência, este "torna-se então culpa-
do de sucumbir à atração da angústia atrav.és da própria re-
pulsa que ela lhe inspira. É a vertigem da liberdade" .52 A
consciêoc·ia absoluta da falta inverte a angústia repulsiva
em angústia atrativa; ·a flut~1ação do espírito é então suç,s-
tituída pela vertigem_do poder frente às possibilidades que
se oferecem ao homem kierkegaardiano. En1 O Conceito da
Angústia. Kierk~gaard · descreve esta "liberdade entravada"
como ''possívef':_ ela "não é poder escolher entre o bem e o
mal", mas ··poder". 53 A angústia torna-se então "o interme-
diário" entre o possível e o real, ou seja, o catalisador do
agir; e nisso, pode-se afir~ar, ~om Régis Jolivet, gue "exis-
tir é escolher" .'> Quanto mais a necessidade da escolha se im-
4

põe a nós, mais a escolha pela qual optaremos será um ato


livre . Pois se somos obrigados a escolher, não somos obri-
gados a eferuar tal eS("olha ao invés de tal outra. Seren10s

5 l So ren Kierkegaard, Étapes wr /e rhemm d,e lo t ú ( l 8 -1)),


f> an s, Ga111mard , p . 25 7
)2 Ul1 v1cr C.iU Jy, o p uc . p 7)
)3 Soren Kicrkcgaa rd, l A! C v11ap1 d~mxou.,e (l8+l) , P.u, s,
GaH ,m ard , coJ "l 'e- J", 1990 , p 2 10
54 . R(g is J ol1 vt.-c, lntrud1.1, 11011 a K1t!rl:rgaard op. c1c . p l 08

45
a~sim tanto mais respon~abilizados quanto ·nossa escolha.
não pode ser senão apaixonada _e passi9nal. .
A g~andeza do -pensam~nto kierkegaardiano é, sem dú-
yid~, ter tido a ·cor~gem de .a~ron_tar o pf1radoxo como para-
doxo, ou seja, sem ·ceder à tentação de s_4 perar ou ulrrapas-
.. sar este últin10. Forçando e acusando a
alternativa, uma
existência autêntica .surge no seio de um_.p'1.téticú que se
. an1plifica. P~e~tirsor de urrí~_ ·corr~nte fi,losófica -que tom~~á
con10 temas â ná~sea, a angúsda e ·o existente, ~ierke~a~rd, ·
muito antes d.os próprios existe_nci!1listas, é lim dos primei~
ros pensadores a ter feito compreender que a existência é an-
~es de tudo uma paixão, "unia ·t~nsão. entre o que o homem é
e o que ele não 'é cônvidando-nos então :a "meditar inces-· ..
1

" ; -

s_anten1ente s,obre este paradoxo e sobte ·e st_e esçândalo abso-


luto que constitui o Deus encarnado .. .
na pessoa· do Cristo",I

sem o qual o homem não_ .


seria .mais
.
~o.
que "um ser err~n-
5
te". ~ Pensador "mal assente", inimigo da ortodoxia e . de
todo o co_n forto moral ~u religio~o, ·Kierkeg~ard ia perma-
necer o pilar.
.do existencialisino criscão,e ateu.' Doravante, ,é
~

de acordo com ele ou em reação contra essa resignação à er-


rância qúe se vão pos1oona~ s~~1~ sucessores . .

Edmund Husserl ( 1859- 193~)

A valoriz.ação dos paradoxos da existênçia por Ki erke- ·


gaard e do niilismo por Nietzsche ;- anunciando simulta-
neamente a IJ)Orte de Deus, o abandono dos valores e do
sentido, mas tan1bém a difamação da n1etafísica - , devia
deixar um luga r im porcanre ao fil ósofo preo~upaclo en1 re-
cons trui r aqu íJ o de qu e o século X IX acaba va de ser priva-

)5 . J ta n Hru u , op . cir ., p ..35 1.

) 46
do:~ sentido de uma t✓nidade. Edn1t1nd Husserl (1859-1938),
·-num período em que reina ~1m positivismo que s6 se fia nos
dados científicos, esforça-se por voltar a dar urri valor exis-
. rencial à filosofia . Convencido do fundado de um pensa-
mento, elaborado pelos gregos, que se quer enraizado na
mão universal, e do preço iÍ1estimável de um saber que
ten1 por úni~o fim ievelar_a verdade tal qual ela é, ao invés
de maltratar a causa que ele deveria servié, Husserl tenta
dar de novo à filosofia seu papel - muito tempo negJigen-
ciado ~ de-' fonte originária de todas as coisas, conduzjndo
de_volta a ciência para o próprio espírito, e, não mais para .
objetos exteriores a este último.

Elementos biográficos

. Nascido na Mo_rávia (Áqstria-Hungria) em 1859, Ed-


mund Husserl.
.dedicou-se. inicialn1ente a- éstudos científi-
cos que devia coroar.em 1882 por um doutorado em mate-
mática .-Foi ,no fin1 de seus estudo~ que um encontro deci-
.sivo o fez interessar-se pela filos'ofia: o psicólogo Franz
Brentano, cac1vado pela noção de intencionalidade, colocou -•.
o no caminho da feno1nenr1~ugià. Em 1887, Husserl foi no-
meado privat-docent na Universidade de Hal_le e depois
professor, em 1901, na Universidade de Gottingen . Foi
nesse momento, em plena possessão de sua filosofia, que
publicou Recherches logiques ( 1900-1901 ). 1-{ usserl publicou
em 1911 La Philosophie comme science rigoure11se, ensaio fun -
damental en1 que critica o ceticisn10 contemporâneo e1n
rel ação à noção de sujeito e tenra reabilitar un1a filosofia au -
tênti ca . Nomeado para a Universidade de Friburgo onde
ensinou de 1916 a 1928, cedeu e1n seguida sua c iredra
àquele que fora seu assistente, Man in l kidegge r. Sua obra

47

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