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1° Capítulo do TCC
Gianluca Vilela
16/02/2018
1.1. Introdução
A questão do poder não é o mais velho desafio formulado pelas análises de Foucault.
Surgiu em determinado momento de suas pesquisas, assinalando uma reformulação
de objetivos teóricos e políticos que, se não estavam ausentes dos primeiros livros,
ao menos não eram explicitamente colocados, complementando o exercício de uma
1 Microfísica do poder (1979) consiste numa coletânea de textos de Michel Foucault e a edição brasileira foi
organizada pelo próprio Roberto Machado, que inclusive escreveu a introdução presente no livro chamada "Por
uma genealogia do poder". Machado escreveu esse texto quando Foucault ainda estava produzindo e avistando
"novos horizontes da genealogia do poder". C.f. MACHADO, 1979, p. VII-XXIII.
1
arqueologia do saber pelo projeto de uma genealogia do poder. (MACHADO, 1979,
p. VII)
Na década de 1970, assim como em todos os seus outros momentos, Foucault possui
afinidades com o pensamento de Friedrich Nietzsche, como é possível perceber através da
utilização da noção "genealogia" para as suas análises histórico-filosóficas sobre a relação
poder-saber.2 Segundo Machado:
É essa análise do porquê dos saberes, que pretende explicar sua existência e suas
transformações situando-o como peça de relações de poder ou incluindo-o em um
dispositivo político, que em uma terminologia nietzscheana Foucault chamará
genealogia. (idem, p. X)
As obras publicadas de Foucault nesse período são poucas comparada à sua fase
anterior.3 Consistem em Vigiar e punir: nascimento da prisão (1975) e A vontade de saber
(1976), primeiro volume da História da sexualidade. Com elas, Foucault está longe de propor
uma "teoria geral do poder". 4 Segundo o comentador José Augusto Guilhon Albuquerque,
"quando trata de maneira mais sistemática do poder, Foucault prefere falar em 'precauções
metodológicas', 'regras', etc., e nunca em teoria". 5
O pensamento de Foucault, cada vez mais distante do caráter sistêmico, não é marcado
por uma filosofia da identidade, como é proposta as reflexões metafísicas da tradição filosófica
ocidental, mas por uma filosofia da diferença. Isso significa que ao invés de buscar um
elemento imutável, permanente e único, ou seja, uma substância do poder, Foucault descreve
a sua analítica a partir da rede de relações que permeia as sociedades modernas, onde reside a
mutabilidade, a impermanência e a variabilidade.
2 Foucault tem um texto chamado "Nietzsche, a genealogia e a história" (1971), onde há uma referência clara da
influência nietzscheana na sua genealogia do poder. Trata-se do único texto que Foucault se dedica
exclusivamente ao pensamento de Nietzsche, onde faz alusão, inclusive, ao prólogo da obra Genealogia da moral
(1887): "A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos
embaralhados, riscados, várias vezes reescritos." Foucault se demonstra contrário à investigação da "origem" dos
processos históricos assim como Nietzsche. C.f. FOUCAULT, 1979, p. 15.
3 Mesmo que tenha publicado menos livros com relação à década de 1960, Foucault não deixou de ter uma vida
intelectual intensa na década seguinte: editou livros, escreveu prefácios e introduções de livros, produziu artigos,
deu cursos, palestras e conferências, concedeu entrevistas e participou de diálogos e debates. C.f. ALVARES;
FILHO, 1995, p. 199-224.
4 MACHADO, 1979, p. X.
5 ALBUQUERQUE, 1995, p. 105.
2
A perspectiva aberta pela analítica do poder vai impor, também, um deslocamento
sensível, em relação às análises tradicionais sobre esta noção, no que concerne ao
papel do Estado. (MAIA, 1995, p. 87)
6 Em Vigiar e punir, Foucault afirma que não há poder sem saber (e vice-versa): "Temos antes que admitir que o
poder produz saber (...); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem
constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações
de poder." C.f. FOUCAULT, 2014, p. 31; MACHADO, 1979, p. XIII.
7 Ibidem, p. XIV.
8 Ibidem, p. XIX.
9 FOUCAULT, 2014, p. 26-27.
10 Em suas atividades como militante, Foucault atuou no início da década de 1970 no Grupo de Informação sobre
as Prisões (GIP) e isso resultou em um conjunto de deslocamentos em sua obra, inclusive na escrita de Vigiar e
punir: "No ano de 1971, por sua vez, Foucault será um dos fundadores do Grupo de Informação sobre as Prisões
(GIP), agrupamento cujo objetivo era o de dar forma a um tipo de luta contra o poder que pudesse denunciá-lo
(...). Anos depois, e como momento tributário da experiência de Foucault junto ao GIP, a publicação de Vigiar e
punir em 1975, a primeira obra propriamente genealógica de Foucault." C.f. SILVA, 2016, p. 161; YAZBEK,
2013, p. 97.
11 É bastante controverso o que Foucault fala sobre a existência de uma "alma" em Vigiar e punir, mas não
podemos entender com o mesmo sentido atribuído tradicionalmente na filosofia, como uma realidade imaterial e
transcendente. Foucault aproveita para colocar a sua crítica à noção de ideologia: "A ver nessa alma os restos
reativados de uma ideologia, antes reconheceríamos nela o correlativo atual de uma certa tecnologia do poder
sobre o corpo. Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirma que ela existe,
que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo
funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos - de uma maneira mais geral sobre os que são
vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados
a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência." C.f. FOUCAULT, 2014, p. 32.
3
Foucault compreende, segundo Machado, que as relações de poder possuem uma
"eficácia produtiva", quer dizer, uma "riqueza estratégica", uma "positividade", e não pretende
explicá-lo somente através da sua "função repressiva".12 Em Vigiar e punir, Foucault afirma
que até mesmo "rituais da verdade" são produzidas por relações de poder. 13 Segundo o
pensador:
Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele
"exclui", "reprime", "recalca", "censura", "abstrai", "mascara", "esconde". Na
verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da
verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa
produção. (FOUCAULT, 2014, p. 189)
Os operários das fábricas se submetem a relações de poder que atuam sobre os seus
corpos, que expressam formas de subjetividades, com o objetivo de aumentar as suas
capacidades produtivas. Em seu diálogo com Foucault de Vigiar e punir, Gilles Deleuze utiliza
o exemplo da "oficina" para associar os aparatos de poder com as "relações de produção":
sobre "investimento político" que recebe para a "utilização econômica". Segundo Foucault, esse investimento tem
como objetivo a produção do corpo a um só tempo "produtivo" e "submisso": "Mas o corpo também está
diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem,
o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este
investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica;
é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação;
mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de
sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e
utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. C.f.
FOUCAULT, 2014, p. 29.
4
Toda economia, a oficina, por exemplo, ou a fábrica, pressupõe esses mecanismos de
poder agindo, de dentro, sobre os corpos e as almas, agindo no interior do campo
econômico sobre as forças produtivas e as relações de produção. (DELEUZE, 2013,
p. 36)
Para Foucault, o poder não pode ser assimilado apenas sob a forma do contrato, porque
não se reduz apenas a uma "figura jurídica" que resguarde alguma espécie de autoridade, isto
é, o soberano:
5
Para Foucault, a análise do poder está mais de acordo com os seus mecanismos estratégicos e
técnicos com fins produtivos do que apenas no âmbito do direito:
Para Foucault, era necessário expandir tal concepção de poder, encontrar uma
definição mais abrangente para apreender os vários dispositivos de poder em
diferentes níveis e setores da sociedade. (SILVA, 2016, p. 146)
(...) as teorias que têm origem nos filósofos do século XVIII que definem o poder
como direito originário que se cede, se aliena para constituir a soberania e que tem
como instrumento privilegiado o contrato; teorias que, em nome do sistema jurídico,
criticarão o arbítrio real, os excessos, os abusos de poder. Portanto, a exigência que o
poder se exerça como direito, na forma da legalidade. (MACHADO, 1979, p. XV)
Assim como a teoria jurídica do poder, Foucault critica a "concepção marxista do poder
político", que tem a mercadoria e o poder de compra e venda como pontos centrais. 17 Parece
17É importante lembrarmos que Foucault foi um crítico de dogmatismos teóricos e um leitor de Karl Marx. Isso
significa que fez críticas aos marxistas do seu tempo que não pareciam ter uma postura crítica diante da obra de
Marx. Seu contemporâneo e alvo de críticas das alas mais tradicionais do marxismo francês, Deleuze aborda sobre
a distinção da concepção marxista de poder em detrimento da concepção foucaultiana: "O que ainda há de
piramidal na imagem marxista é substituído na microanálise funcional por uma estreita imanência na qual os focos
de poder e as técnicas disciplinares formam um número equivalente de segmentos que se articulam uns sobre os
outros e através dos quais os indivíduos de uma massa passam ou permanecem, corpos e almas (família, escola,
quartel, fábrica e, se necessário, prisão)." C.f. DELEUZE, 2013, p. 37.
6
se tratar de uma certa semelhança entre ambas as visões sobre o poder, que é a máxima
importância dada tão somente à economia, a um "economismo" presente na teoria jurídica,
fortemente marcada pelo liberalismo clássico, assim como no interior do marxismo:
Foucault reconhece, a partir dos séculos XVII e XVIII, duas técnicas distintas de
exercício do poder além daquele de tipo soberano, mas que visam igualmente majorar as
capacidades produtivas.
18 No primeiro capítulo de Vigiar e punir, Foucault afirma que a analítica do poder deve antes corresponder ao
modelo da "batalha perpétua" do que ao modelo do contrato, não sendo a sua compreensão somente jurídica.
Desse modo, as relações de poder não devem ser estudadas em termos de "propriedade", mas de "estratégias";
nem de "apropriações", mas de "táticas", "técnicas". Elas não se tratam, segundo Foucault, de um "privilégio" da
"classe dominante", mas do "efeito de conjunto de suas posições estratégicas", não podendo ser analisada somente
em termos econômicos. Por fim, as relações de poder não se aplicam apenas a uma "obrigação" ou uma "proibição"
para aqueles que "não têm", mas estes são investidos por elas e nelas se apoia para "sua luta contra esse poder".
Para Foucault, a função repressiva não dá conta de uma análise minuciosa do poder. C.f. FOUCAULT, 2014, p.
30.
19 FOUCAULT, 2010, p. 10.
20 Ministrado no mesmo ano de publicação de A vontade de saber, o curso Em defesa da sociedade tem a sua
abertura ("Aula de 7 de janeiro de 1976") com a inversão de um aforismo do estrategista militar Carl von
Clausewitz ("A guerra não é mais que a continuação da política por outros meios") para abordar a concepção
foucaultiana de poder e as lutas políticas no interior da sociedade: "Seria, pois, o primeiro sentido a dar a esta
inversão do aforismo: a política é a guerra continuada por outros meios; isto é, a política é a sanção e a recondução
do desequilíbrio das forças manifestado na guerra. E a inversão dessa proposição significaria outra coisa também,
a saber: no interior dessa 'paz civil', as lutas políticas, os enfrentamentos a propósito do poder, com o poder, pelo
poder, as modificações das relações de força - acentuações de um lado, reviravoltas, etc. -, tudo isso, num sistema
político, deveria ser interpretado como as continuações da guerra." C.f. FOUCAULT, 2010, p. 16; MAIA, 1995,
p. 91.
7
A primeira é a disciplina e está melhor ilustrada em Vigiar e punir, obra na qual
Foucault expõe os mecanismos de determinadas estratégias de poder-saber para adestrar os
corpos dos indivíduos através de meios normativos e econômicos:
Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como
máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas
forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em
sistemas de controle eficazes e econômicos - tudo isso assegurado por procedimentos
de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano.
(FOUCAULT, 2015, p. 150)
O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII,
centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como
suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o
nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem
fazê-lo variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções
e controles reguladores: uma biopolítica da população. (idem)
21Trata-se do capítulo "Direito de morte e poder sobre a vida", onde discute sobre a passagem do poder soberano
de "confisco" da vida para a sua majoração através do biopoder. C.f. FOUCAULT, 2015, p. 145-174.
8
individuais e as populações (ou os corpos múltiplos) como alvos, que produzem, por sua vez,
efeitos de assujeitamento:
Essa relação ou rede formada pela conexão de regras de direito, mecanismo de poder
e efeitos de verdade – tema central de Vigiar e punir - é, pois, o tema central das
preocupações de Foucault. A história que ele nos conta da tortura de Damiens à
produção ou reprodução da criminalidade em/pela prisão, passando pela reforma
humanista e o desenvolvimento do poder disciplinar, idealizado no panóptico de
Jeremy Bentham, é a história dessa relação de poder, direito e verdade. (SILVA,
2016, p. 152)
Diferentemente do poder de tipo soberano, que tem por função "apropriar" e "retirar",
o poder disciplinar possui, segundo Foucault, a influência do militarismo de adestramento dos
indivíduos. Ao invés de ser um "poder triunfante" que privilegia o exibicionismo e os excessos
do rei, a disciplina é modesta, desconfiada, "funciona a modo de uma economia calculada, mas
22Vigiar e punir abre com fragmentos que relatam o suplício de Damiens, parricida francês do século XVI, no
capítulo intitulado "O corpo dos condenados". Mais adiante,Foucault trata da relação entre o projeto arquitetônico
de Bentham e a disciplina.
9
permanente".23 Ela "se exerce tornando-se invisível", de forma que, dessa vez, os assujeitados
assumem o lugar de visibilidade nas suas estratégias. Portanto, "são os súditos que têm que ser
vistos" na "iluminação" do poder disciplinar:
Em Vigiar e punir, Foucault nota que o sucesso da disciplina se deve aos seus seguintes
componentes: a "vigilância hierárquica", a "sanção normalizadora" e o "exame". 24
Com a passagem do poder soberano para a disciplina, a própria arquitetura sofre sérias
transformações. O seu propósito não é mais que uma construção seja feita para ser vista ou para
vigiar o espaço exterior, mas para que haja um "controle interior, articulado e detalhado", para
vigiar aqueles que nela se encontrem. 26
Uma vez que é uma "peça interna no aparelho de produção" e uma "engrenagem
específica do poder disciplinar", a vigilância se transforma em um "operador econômico
decisivo".27
10
Essa vigilância é considerada "hierárquica" por estar assentada em indivíduos, por
consistir em uma "rede de relações de alto a baixo", mas, nas palavras de Foucault, "até um
certo ponto de baixo para cima e lateralmente". Cada indivíduo do "conjunto" fiscaliza e é
fiscalizado, vigia e é vigiado, captura e é capturado por relações de poder. A vigilância
hierarquizada funciona integrada como uma "máquina", que, apesar de sua "organização
piramidal", todos os seus componentes produzem relações de poder. A sua iluminação contínua
e permanente controla até mesmo aquele que tem a função de controlar os outros, deixando
nada "às escuras". 28
Desse modo, a disciplina não opera com o "brilho das manifestações" dos suplícios,
mas por meio de cálculos que visam um poder praticado com mais eficácia e com menos
dispêndio. E com a relação poder-saber, a vigilância busca, nessa "física" do poder, o "domínio
sobre o corpo" por meio de "olhares calculados":
28 Ibidem, p. 173-174.
29 Ibidem, p. 175.
30 Ibidem, p. 177.
31 Ibidem, p. 178.
11
Essa sanção "não visa", segundo Foucault, "nem a expiação, nem mesmo exatamente a
repressão".32 Ela visa, na verdade, instituir um poder normativo e regulamentador. Esse poder
homogeneiza, mas também "individualiza":
Na área médica, o doente é colocado em uma condição de "exame quase perpétuo": essa
técnica passa a ser confiada também ao "enfermeiro", um profissional que está subordinado ao
médico, gerando uma "hierarquia interna"; e o hospital, por sua vez, vai se tornar, graças ao
35
exame, um "local de formação e aperfeiçoamento científico".
Na área escolar, os alunos são, através do exame, aqueles que a transmissão de saber
do mestre se dirige, mas também objetos para conhecimento restrito a ele:
32 Ibidem, p. 179.
33 Mais adiante, Foucault afirma o seguinte sobre essa "combinação" do exame: "É ele que combinando vigilância
hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de
extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões."
C.f. Ibidem, p. 167; Ibidem, p. 188.
34 Ibidem, p. 181.
35 Em 1974, Foucault realizou a conferência "O nascimento do hospital" no Instituto de Medicina Social da UERJ,
onde já apresentava a noção de disciplina: "Não foi a partir de uma técnica médica que o hospital marítimo e
militar foi reordenado, mas, essencialmente, a partir de uma tecnologia que pode ser chamada política: a
disciplina." C.f. FOUCAULT, 1979, p. 105; FOUCAULT, 2014, p. 182.
12
Através das relações de poder na instituição médica, todo um saber sobre o doente é
capturado através de um "poder de escrita", presente em documentos, que relatam suas
informações particulares. 36 O poder disciplinar tem na escrita um meio para incluir cada um
nas suas estratégias, possibilitando que o "exame individual" possa ser encontrado em
"qualquer registro geral" e que esse exame reflita nos "cálculos de conjunto":
Entre as condições fundamentais de uma boa "disciplina" médica nos dois sentidos
da palavra é preciso incluir nos processos de escrita que permitem integrar, mas sem
que se percam, os dados individuais em sistemas cumulativos: fazer de maneira que
a partir de qualquer registro geral se possa encontrar um indivíduo e que inversamente
cada dado do exame individual possa repercutir nos cálculos de conjunto. (idem, p.
186)
A partir do século XVIII, Foucault defende que é possível encontrar com mais
facilidade a "criança", o "doente", o "louco", o "condenado", etc. como "objeto de descrições
individuais e de relatos biográficos", com o objetivo de fazer uma análise minuciosa destes:
36 Ibidem, p. 185.
37 Ibidem, p. 188.
13
*
38 Em "O nascimento da medicina social" (1974), conferência realizada na UERJ, Foucault comenta sobre a
biopolítica: "O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela
ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo,
investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica."
C.f. FOUCAULT, 1979, p. 80.
39 FOUCAULT, 2015, p. 149.
40 Ibidem, p. 151-152.
14
no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população
aos processos econômicos. (FOUCAULT, 2015, p. 151-152)
41 Ibidem, p. 155.
42 Dividido em três volumes, História da sexualidade contém A vontade de saber (1976), que é uma obra integrada
à genealogia do poder, O uso dos prazeres e O cuidado de si (1984), que mostram o interesse de Foucault pela
cultura greco-romana e a passagem de seu pensamento para uma nova fase, que aqui chamamos de genealogia da
ética ou genealogia dos modos de subjetivação. Esses dois últimos volumes são resultados de deslocamentos no
seu pensamento desde a "inclusão" do "tema do governo" e da "governamentalidade" (termo cunhado pelo próprio
Foucault) nas análises do poder a partir do curso Segurança, território, população (1978). Segundo Tereza
Cristina B. Calomeni: "A 'passagem' para o 'eixo da ética' é prenunciada e viabilizada pela inclusão -- ou pelo
refinamento – do tema do governo na reflexão sobre as diferentes modalidades de biopoder. É aí que se pode
localizar o tempo da inflexão que irá amadurecer e, afinal, desembocar e florecer na discussão dos dois livros
publicados em 1984 e dos cursos da década de 1980: por uma trajetória sinuosa, marcada por recuos e atalhos,
Foucault caminha da compressão do sujeito como 'efeito' das relações de poder à postulação do sujeito ético, do
poder disciplinar e da biopolítica às 'técnicas' e 'práticas de si'." C.f. CALOMENI, 2012, p. 227; FOUCAULT,
1979, p. 277-293.
15
reforça a espécie, seu vigor, sua capacidade de dominar, ou sua aptidão para ser
utilizada. Saúde progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o
poder fala da sexualidade e para a sexualidade; quanto a esta, não é marca ou
símbolo, é objeto e alvo. (idem, p. 159-160)
Mas posto que o biopoder diz respeito aos fenômenos populacionais, ele apresenta
também a característica de atuar no nível da "raça". O problema do racismo é colocado por
Foucault ao analisar esse novo mecanismo de poder do século XVIII, que uma série de normas
legitimam seus discursos e suas práticas ao longo de toda a sociedade com o objetivo de fazer
uma "raça" prevalecer em detrimento de outras, consideradas biologicamente inferiores. Para
Foucault:
43 Ainda na última aula desse curso, Foucault aborda sobre o nazismo. Tendo em vista os "genocídios em escala
industrial", para ele, a "sociedade nazista" combinou e "generalizou" procedimentos do biopoder e do "direito
soberano de matar": "Tem-se, pois, na sociedade nazista, esta coisa, apesar de tudo, extraordinária: é uma
sociedade que generalizou absolutamente o biopoder, mas que generalizou, ao mesmo tempo, o direito soberano
de matar." Além do nazismo, que representa um determinado modelo de "sociedade capitalista", Foucault aponta
a ligação entre racismo de Estado e biopoder no interior do "socialismo" ou, mais especificamente, do stalinismo:
"Em compensação, em todos os momentos em que o socialismo foi obrigado a insistir no problema da luta, da
luta contra o inimigo, da eliminação do adversário no próprio interior da sociedade capitalista; quando se tratou,
por conseguinte, de pensar o enfrentamento físico com o adversário de classe na sociedade capitalista, o racismo
ressrgiu, porque foi a única maneira, para um pensamento socialista que aesar de tudo era muito ligado aos temas
do biopoder, de pensar a razão de matar o adversário." C.f. FOUCAULT, 2010, p. 219; Ibidem, p. 221.
16
e em primeira instância, em primeira linha, um biopoder, pois bem, o racismo é
indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a
vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o
Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo. (FOUCAULT, 2010, p. 215)
Portanto, esse processo de inferiorização de certas vidas com relação à outras está
presente igualmente nas táticas da disciplina e do biopoder. Apesar de funcionarem diferente
do poder soberano, esses mecanismos modernos de poder possuem ainda assim maneiras de
produzirem marcas em vidas através dos seus efeitos, sendo uma delas a infâmia. Veremos a
seguir como Foucault não apenas analisa o funcionamento das relações de poder, como também
aquelas que são consideradas de contrapoder, ou seja, que buscam, através de estratégias de
lutas próprias, resistir aos seus efeitos.
Segundo Machado, Foucault não entende que seja possível resistir em um lugar exterior
à atuação do poder, até porque esse lugar não existe. O "caráter relacional" do poder lhe confere
um aspecto imanente em sua análise, não havendo nada que esteja neutro a ele e às lutas que
envolvem as relações sociais. Ainda, ele frisa uma ideia que pode ser considerada fundamental
para as formulações de Foucault sobre as relações de poder e as lutas contra o seu exercício:
onde existe poder, também existe resistência. Para Machado:
(...) esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu exercício
não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de
poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede do poder, teia que se
alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode escapar: ele está sempre presente
e se exerce como uma multiplicidade de relações de forças. E como onde há poder há
resistência, não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e
transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social. (MACHADO,
1979, p. XIV)
Por isso que mesmo com relação à "ordem do saber", que produz efeitos de poder, há,
para Foucault, discursos que, por sua marginalidade, dispersão e desqualificação confere um
testemunho da atuação do poder. 44 Segundo o comentador César Candiotto, Foucault se propõe
17
a estudar a "ilegalidade" para justificar a "importância da moral punitiva no interior do sistema
penal" e de uma certa "continuidade da guerra social por outros meios", dando a entender a
relação entre poder e lutas:
45 "Os intelectuais e o poder" se trata de uma conversa entre Deleuze e Foucault. Nela, ambos se demonstram
críticos sobre o papel do intelectual comumente difundido e defendem uma outra perspectiva de luta contra o
poder. Sobre as insurgências ao sistema prisional, Foucault defende: "E se designar os focos, denunciá-los, falar
deles publicamente é uma luta, não é porque ninguém ainda tinha tido consciência disto, mas porque falar a esse
respeito - forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, designar o alvo - é uma
primeira inversão de poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder. Se discursos como, por exemplo,
os dos detentos ou dos médicos de prisões são lutas, é porque eles confiscam, ao menos por um momento, o poder
de falar da prisão, atualmente monopolizado pela administração e seus compadres reformadores." C.f.
FOUCAULT, 1979, p. 76.
18
reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma mudança
de titular. (FOUCAULT, 1979, p. 78)
BIBLIOGRAFIA
ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. "Michel Foucault e a teoria do poder". In: Tempo
Social; São Paulo, Nº 7 (1-2): outubro de 1995.
ALVARES, Marcos Cézar; FILHO, Kléber Prado. "Michel Foucault: a obra e seus
comentadores". In: Tempo Social; São Paulo, Nº 7 (1-2): outubro de 1995.
CALOMENI, Tereza Cristina B. "Filosofia, estética da existência e cuidado de si". In: O que
nos faz pensar; Rio de Janeiro, Nº 31: fevereiro de 2012.
46 No texto "Um novo cartógrafo (Vigiar e punir)", Deleuze defende uma função política da escrita em sua
definição: "Daí a tripla definição de escrever: escrever é lutar, resistir; escrever é vir-a-ser; escrever é cartografar
(...)." C.f. DELEUZE, 2013, p. 53.
47 Como veremos nos capítulos seguintes com a análise e o resgate de Foucault dos casos de Pierre Rivière e de
Herculine Barbin.
19
CANDIOTTO, César. "Os ilegalismos e a reconfiguração das lutas políticas em Michel
Foucault". In: Pensando – Revista de Filosofia; Vol. 7, Nº 14, 2016.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
________. História da sexualidade 1: A vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
________. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2010.
________. "Verdade e poder". In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
________. "Os intelectuais e o poder". In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal,
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