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GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO


Reitora Sandra Regina Goulart Almeida Reitor Ruy Garcia Marques
Vice-Reitor Alessandro Fernandes Moreira Vice-Reitora Maria Georgina Muniz Washington

EDITORA UFMG EdUERJ


Diretor Flavio de Lemos Carsalade CONSELHO EDITORIAL
Vice-Diretora Camila Figueiredo Glaucio José Marafon (presidente)
CONSELHO EDITORIAL Henriqueta do Coutto Prado Valladares
Flavio de Lemos Carsalade (presidente) Hilda Maria Montes Ribeiro de Souza
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Maria Cristina Soares de Gouvêa
Renato Alves Ribeiro Neto
Ricardo Hiroshi Caldeira Takahashi
Rodrigo Patto Sá Motta
Sônia Micussi Simões
Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa
Friedrich A. Kittler

GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER

Daniel Martineschen
Guilherme Gontijo Flores
Tradução

Adalberto Müller
Erick Felinto
Revisão Técnica
© 1986, Brinkmann & Bose Verlag
© 2019, Editora UFMG, EdUERJ

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.

_______________________________________________________________________________________________

K62g.Pf Kittler, Friedrich A., 1943-2011.


Gramofone, filme, typewriter / Friedrich A. Kittler; tradução Guilherme Gontijo Flores,
Daniel Martineschen. – Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: EdUERJ, 2019.

414 p.

Tradução de: Grammophon, film, typewriter.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-423-0279-0 (Editora UFMG)
ISBN: 978-85-7511-512-1 (EdUERJ)

1. Comunicação e tecnologia. 2. Comunicação – História. I. Flores, Guilherme


Gontijo, 1984- II. Martineschen, Daniel. III. Título.

CDD:
302.2 (22. ed.)
301.16 (19. ed.)
CDU:
659.3
_______________________________________________________________________________________________

Elaborada pela Biblioteca Professor Antônio Luiz Paixão – FAFICH/UFMG

EDITORA UFMG EdUERJ

COORDENAÇÃO EDITORIAL Jerônimo Coelho EDITOR EXECUTIVO Glaucio Marafon


DIREITOS AUTORAIS Anne Caroline Silva COORDENADORA ADMINISTRATIVA Elisete Cantuária
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COORDENAÇÃO DE TEXTOS Lira Córdova COORDENADOR DE PRODUÇÃO Mauro Siqueira
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Sumário

Prefácio à edição brasileira 7

Prefácio 17

Introdução 21

GRAMOFONE 45
Jean-Marie Guyau: memória e fonógrafo (1880) 57
Rainer Maria Rilke: “O som primordial” (1919) 69
Maurice Renard: “O homem e a concha” (1907) 86
Salomo Friedlaender: “Goethe fala ao fonógrafo” (1916) 96

FILME 173
Salomo Friedlaender: “A máquina fata morgana” (c. 1920) 197
Richard A. Bermann: “Lira e máquina de escrever” (1913) 248

TYPEWRITER 257
Martin Heidegger: sobre a mão e a máquina de
escrever (1942-1943) 276
Carl Schmitt: “Os buribunkes. Um ensaio de filosofia
da história” (1918) 319

Notas 359

Referências 393
Prefácio à edição brasileira

Grammophon, Film, Typewriter, título original deste livro, já


vinha grafado, em alemão, de forma híbrida: a palavra typewriter estava
escrita em inglês, substituindo Schreibmaschine. Como o leitor verá,
a razão disso é que a palavra typewriter, no contexto da reflexão de
Kittler, não deve ser traduzida. Não apenas porque ela implica uma
dupla significação (máquina de escrever e datilógrafo/a) explorada
pelo autor, mas porque essa homonímia aponta também para uma
dupla articulação das duas mídias: de um lado, o aparato tecnológico
inventado para padronizar a escrita; de outro, a pessoa que faz uso
profissional do aparelho (em um significado mais arcaico do termo
“typewriter”, importa observar). Aqui Kittler se refere em especial às
secretárias; mais ainda, às secretárias dos escritores, que funcionariam
exatamente como máquinas de escrever, como meios ou como mídias.
E essas pessoas – sobretudo as do sexo feminino, Kittler enfatiza – não
vão ser menos usadas que os aparatos. Por isso mesmo, deixarão a
sua marca na escrita e nos modos de escrever. Como disse Nietzsche,
que se serviu de typewriters, “nossas ferramentas de escrita trabalham
em/com nosso pensamento”.
Gramofone, filme e typewriter correspondem, assim, a três siste-
mas discursivos ou sistemas de notação (Aufschreibesysteme), que é
como Kittler denomina os dispositivos tecnológicos e culturais que
registram, processam e transmitem informações, e que, no contexto
de língua alemã, são chamados vulgarmente de Medien (mídias ou

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meios). Trabalhando a partir do conceito foucaultiano de arqueologia,
Kittler vai realizar uma pioneira arqueologia das mídias, demons-
trando como, na virada do século XIX para o XX, essas três mídias
destronaram as dominantes no século XIX: Literatura e Filosofia. Ele
as havia estudado em seu livro anterior, Aufschreibesysteme 1800/1900
(1985), nas suas relações com o sistema de ensino na Alemanha. Já no
livro atual, ele quer provar que aquelas três mídias, de alguma forma,
“determinam”, ou melhor, definem, nossa situação atual; mas elas
guardam, em seus modos de disposição e de agenciamento, mesmo
que sejam usadas como mero entretenimento, a sua origem militar.
Este será o mote de Kittler: a maneira como o universo multimidiá-
tico em que vivemos está comprometido com a tecnologia e com a
indústria de guerra. O fato de que, hoje, os drones sejam usados como
brinquedos, e até mesmo em filmes ditos “de autor”, não faz mais do
que confirmar o que Kittler escreveu há mais de quarenta anos.
Desse modo, a tecnologia do celular que usamos hoje foi desen-
volvida para teleguiar mísseis, assim como os nossos computadores
guardam em sua genealogia as marcas de um passado ligado à deco-
dificação de códigos militares. Mesmo a televisão e o cinema, sobre-
tudo na sua vertente mais massiva, tiveram participação decisiva nas
duas grandes guerras do século XX. E hoje sabemos que não existem
guerras que não estejam associadas, de algum modo, à sua exibição em
alguma tela. Ao contrário do que afirmava Walter Benjamin em “O
narrador”, já não é mais preciso narrar a guerra. A própria guerra “se
narra” na televisão, no cinema, na internet. Essa é a nossa situação e é
para ela que Friedrich Kittler quer direcionar nossos olhos e ouvidos.
A obra de Kittler se relaciona fortemente com o que, nos países
de língua alemã em meados dos anos 1980, vai se chamar de “teoria
da mídia” (Medientheorie), contra a qual ele tinha não poucas reser-
vas, aliás. Influenciados pelo pós-estruturalismo, alguns intelectuais
revisitam o pensamento da Escola de Toronto (Marshal McLuhan,
Harold Innis, Walter J. Ong). McLuhan, em particular, destaca como
os meios (ou mídias) modificaram a vida no planeta: do machado
à máquina de escrever, do trem à televisão, as mídias, enquanto

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extensões do corpo humano, modificam o nosso ambiente, e o modo
como, nele, agimos. No entanto, observa o teórico de Toronto, as
mídias são praticamente invisíveis, sobretudo porque nos interes-
samos mais nas “mensagens” que elas produzem: a mensagem da
máquina de escrever é o tiposcrito; a do trem, a viagem etc. Ora,
diz McLuhan, é preciso que, em vez da mensagem, atentemos para
as mídias em si, na modificação que elas provocam nas mensagens.
“A mídia é a mensagem”, assevera lapidarmente McLuhan. Kittler,
como Flusser, verá as mídias como o resultado de um processo
científico e tecnológico que se afasta mais e mais do humano (ao
menos de uma certa ideia de Humanidade). Para Kittler, ao contrário
de Flusser, a nossa “situação” é mais grave quando se descobre que
essas mídias, que usamos como entretenimento, ou até mesmo para
produzir “arte”, são subprodutos da indústria da guerra.
A teoria da mídia alemã é uma tentativa de dar ênfase a esses dois
pressupostos – as mídias como extensões do corpo e a necessidade de
enfatizar a mídia sobre a mensagem –, mas a partir de perspectivas
que vão muito além da comunicação (das mídias de massa como o
jornal e a tevê), e muito além dos efeitos da chamada indústria cultural.
Neste sentido, muitos dos teóricos alemães do medial turn mantêm-se
distanciados da Escola de Frankfurt na mesma medida que tentam
criar outras genealogias para a Modernidade a partir de uma reflexão
filosófica sobre as mídias. Além de Kittler, Vilém Flusser (que ocupa
um lugar de destaque no medial turn alemão), Peter Weibel, Mike
Sandbothe, Siegfried J. Schmidt e Siegfried Zielinski partem em várias
direções para abordar o mundo contemporâneo e como fomos ficando
cada vez mais dependentes de aparelhos, de imagens, de processado-
res, em praticamente todas as nossas atividades.
Nessa constelação, o pensamento de Kittler se destaca tanto pela
originalidade de reflexão quanto pela originalidade de estilo. Leitor de
Foucault, Lacan, Nietzsche e Heidegger, Kittler viveu e experimentou
a contracultura dos anos 1960 e os acontecimentos posteriores a maio
de 1968 – quando, entre outras coisas, uma estudante entrou nua
na sala do Prof. Theodor Adorno, o que o levou a encerrar a aula e

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retirar-se chocado. Depois de estudar filosofia e germanística (nosso
equivalente a Letras/Português), Kittler se joga de cabeça na virada
dos anos 1800-1900, para entender a relação entre a filosofia moderna
alemã, a poesia e o sistema universitário; tudo isso constituindo o que
ele chama de Aufschreibesystem.
Ancorado em Foucault e Lacan, Kittler não deixa de evidenciar
o papel do inconsciente e da sexualidade na constituição dos siste-
mas discursivo-tecnológicos, e é particularmente sensível ao papel
da mulher na constituição da modernidade, especialmente dentro
da história moderna da cultura alemã. Assim, a poesia e a filosofia,
pilares do Idealismo Alemão e da criação do moderno sistema de
ensino nos países de língua alemã, passam antes de mais nada pela
Muttersprache, a língua materna. Passam pela língua e, sobretudo,
pela boca da mãe, que é a primeira forma de mediação (a primeira
mídia) da criança com o mundo – e ele vai observar o modo como
o sistema educacional, universitário e poético usou a “voz da mãe”
como meio, sem atentar para o próprio meio ou mídia. Além do mais,
o olhar de Kittler não é apenas o do historiador, nem tampouco o do
filólogo. Ouvinte de rock n’roll (particularmente de Pink Floyd e de
Jimmy Hendrix) e leitor de Thomas Pynchon, Kittler libera a escrita
das amarras conceituais típicas da hermenêutica alemã, dando vazão a
digressões, citações, ruminações, em um texto que oscila entre o ensaio
e o relatório, temperado com aforismos memoráveis (como: “Uma
mídia, é uma mídia, é uma mídia: portanto é intraduzível.”). Não são
poucas as vezes em que Kittler também brinca com a poesia, como na
célebre passagem do final deste livro, em que cita o famoso verso de
Mallarmé (“solidão, recife, estrelas”) numa clave tecnológico-militar:
“trincheiras, blitz, estrelas”.
Em um outro livro, O legado de Drácula, Kittler parte para
aventuras mais radicais, que vão torná-lo uma figura ímpar no pensa-
mento contemporâneo. Num de seus ensaios, Kittler aborda a origem
conjunta do cinema e da psicanálise, bem como das suas curiosas
relações com o vampiro da Transilvânia. No ensaio mais famoso e
traduzido daquele livro, “Não há software”, Kittler funde filosofia e

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matemática para estabelecer uma genealogia do computador a partir
da Máquina Universal Discreta, mergulhando a fundo no pensa-
mento de Alan Turing. Aí já está o embrião do capítulo 3 deste livro,
embora aqui ele venha, como disse Kittler, “explicado para crianças”.
O subtítulo dessa coletânea de ensaios serve para entender o estilo do
presente livro: “escritos técnicos”.
O modo de funcionamento de um escrito técnico pode ser
depreendido por uma leitura das linhas de força do primeiro capítulo
deste livro: Gramofone. Em primeiro lugar, Kittler traça uma história
tecnológica que vai da invenção (e mesmo da pré-invenção) do aparato
até a evolução das suas múltiplas formas ou fases, como diria Gilbert
Simondon. Mas o gramofone de Kittler não é apenas o aparelho usado
para tocar discos: é toda uma constelação de aparelhos desenvolvidos
para registrar, transmitir e processar sons. Ou seja, é uma mídia, no
sentido da teoria alemã. Em segundo lugar, para entender o “sistema
discursivo” dessa mídia, Kittler se vale de todo tipo de documentos:
de patentes de invenção (como a do poeta Charles Cros, apresentado
como o verdadeiro inventor do gramofone) a obras literárias em que
o gramofone ocupa um lugar central. Em terceiro lugar – e aqui se
configura o chamado “determinismo kittleriano” –, ele estabelece a
relação dessa mídia com a tecnologia militar e as guerras (por exemplo,
dos fones e radiotransmissores, criados para a guerra nas trincheiras,
ou a transformação da Remington, de fábrica de fuzis a fábrica de
máquinas de escrever).
Valendo-se da terminologia de Jacques Lacan, Kittler vai ainda
diferenciar cada mídia a partir da tríade real, imaginário e simbólico,
realizando uma curiosa “psicanálise” das mídias. Assim, o “gramo-
fone” registra e manipula o real, o “filme” reinventa o Imaginário na
mesma medida que se submete a ele, e a “typewriter” não deixa de
introduzir (e de ser penetrada por) o simbólico nas novas formas de
escrita. Vale lembrar que Kittler trabalha com um conceito de escrita
próximo ao de Vilém Flusser: tanto equações matemáticas quanto
poemas são formas de escrita. Mas Kittler vai além de Flusser na
medida em que vê a inscrição das mídias (e com elas, da guerra) no

Prefácio à edição brasileira | 11


nosso “aparelho psíquico”. Nossa relação com o inconsciente (com
o real, o imaginário e o simbólico) também está afetada.
A separação, no livro, das três mídias – ou dos três sistemas
discursivos – é, no entanto, parte do trabalho arquelógico. Depois
do computador e da fibra óptica, já não é mais possível diferenciar as
mídias, pois o computador e a rede de fibra ótica criaram aquilo que
depois vai se chamar de convergência: eles sintetizam o gramofone,
o filme e a typewriter. Essa síntese se relaciona com o que Flusser já
chamava de digitalização do mundo: a transformação de todas as
coisas em elementos discretos que serão “computados” em sequências
numéricas e acionados através de um teclado, também este operando
com signos discretos. As consequências dessa convergência digital
sobre a cultura (inclusive a filosofia e a literatura, que continuam
sendo as grandes preocupações de Kittler) não são desprezíveis.
Kittler chega a inverter a proposição de McLuhan segundo a
qual as mídias seriam extensões do nosso corpo, asseverando que,
ao contrário, nossos corpos é que se tornaram extensões das mídias.
Além do mais, considerando-se a origem militar dessas tecnologias
midiáticas, a distância entre o mundo do entretenimento e da guerra
é menor do que se pensa. A bem da verdade, na visão de Kittler, o
digital seria o meio que veio para acabar com todos os outros meios. Ele
passará a constituir o gargalo único por onde a produção e distribui-
ção de significados em uma cultura – antes distribuída por diferentes
meios, como o gramofone ou o cinema – irá escoar a partir de então.
É curioso que Kittler tenha dedicado tão pouco espaço a explorar
com mais cuidado os impactos acarretados pela emergência das tecno-
logias digitais, embora os tivesse prefigurado. Eles constituiriam, talvez,
os fundamentos de um “sistema de notação” ou “rede discursiva” dos
anos 2000, numa sequência que Geoffrey Winthrop-Young descreveu
de forma precisa e habilidosa:

uma unidade prístina (linguagem espiritualizada) é dividida contra si


mesma e fragmentada (a diferenciação analógica em combinação com
a mecanização da máquina de escrever), mas essa antítese é por sua vez

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superada pela unidade de uma complexidade mais alta, ou seja, do digital
(2011, p. 79).

Em vez de dar continuidade à descrição dessa progressão histó-


rica, Kittler se volta, paradoxalmente, para um passado ainda mais
remoto, à Grécia antiga, onde vai então investigar as relações entre
música e matemática nas origens da cultura ocidental. Talvez esse
desvio curioso esteja em conformidade com o peculiar espírito da
nova teoria da mídia alemã, que resiste a todo custo entregar-se ao
fascínio e sedução do digital. O projeto arqueológico, que em alguma
medida o próprio Kittler recusava para si, mas do qual acabou sendo
precursor fundamental, almeja concentrar sua mirada no passado.
Foi principalmente a partir dos escritos de Kittler que a Alemanha
parece ter inventado o singular saber de uma arqueologia da mídia,
gerando como frutos os trabalhos inovadores de Jussi Parikka, Knut
Ebeling, Bernhard Siegert e Markus Krajewski, entre outros. Hoje, a
quantidade de trabalhos que se publica na Alemanha – mas também
nos Estados Unidos – a partir dessa rubrica talvez já permita quase
falar numa “indústria acadêmica” da Medienarchëologie ou Media
Archaeology, segundo as traduções em inglês. Se Kittler escolhe a
Grécia como seu ponto fundamental de origem, Siegert irá eleger, no
seu brilhante e erudito Passage des Digitalen, o século XIII, o período
inicial de formação da “Grande Burocracia”, o paradigma cultural
básico a partir do qual, muitos séculos depois, deverá emergir o digital.
Todavia, mesmo esse último projeto não pôde ser terminado,
ainda que Kittler tenha conseguido produzir mais dois grossos volumes
do que era planejado como uma obra ainda mais vasta (Musik und
Mathematik). Kittler faleceu em outubro de 2011, tendo conquistado
o status de um dos pensadores alemães contemporâneos mais reco-
nhecidos internacionalmente no cenário das ciências humanas. Sua
morte foi lamentada nos mais variados cantões da vida cultural e dos
ambientes acadêmicos. Seus estudantes, porém, deram prosseguimento
a seu legado (por exemplo, Bernhard Siegert, em Weimar, e Wolfgang
Ernst, em Berlim). Nesse sentido, ele certamente consta como um

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autor-chave para a renovação do pensamento alemão sobre as mídias
em um momento pós-Escola de Frankfurt. Isso não significa, porém,
que Kittler seja hoje assimilado com facilidade em todos os ambien-
tes acadêmicos. A singularidade de seu estilo (que mereceu o irônico
qualificativo de “Kittlerdeustch”, ou “alemão de Kittler”) e a ousadia
de suas afirmativas bombásticas tornaram-no figura incômoda em
certos rincões das universidades alemãs, como também em outros
contextos intelectuais.
Entre outros fatores, é possível que parte dessa resistência derive
do conservadorismo da instituição acadêmica, cujas estruturas por
vezes resistem àquilo que tem sabor de novidade excessiva. Mas é bom
advertir que o pensamento de Kittler não nasce num vazio. Ele corres-
ponde, antes, ao que parece se apresentar hoje como uma mudança
radical de paradigmas nas ciências humanas. Depois de muitos séculos
de domínio do modelo hermenêutico, depois do império poderoso
da interpretação, começamos a testemunhar, da filosofia à sociologia,
não apenas uma virada “medial” (medial turn), senão uma virada
“material” e “desantropologizante”. Trata-se, acima de tudo, de buscar
modelos teóricos menos antropocêntricos, menos centrados no signi-
ficado e menos desatentos aos impactos materiais dos objetos que nos
cercam. É por essa razão que é possível dizer que Kittler professa uma
espécie de pós-humanismo (radical), assim como se alinha igualmente
aos chamados “novos materialismos”. No horizonte do materialismo
kittleriano, as formas de determinação material da vida – que Marx
mostrou estarem atreladas às mãos do capitalista – passam para o
complexo conglomerado que reúne banqueiros, industriais, cientistas
e, principalmente, generais. As referências constantes ao “generalato”
alemão da primeira e segunda guerra não deixam de ser uma alusão
às “águias de guerra” que dirigem o Pentágono e a National Security
Agency (NSA), e que contam com a cooperação sempre obediente
dos CEOs inovadores do Vale do Silício e da abastada aristocracia
política americana, sempre financiada pelos banqueiros, claro.
Em sua vasta obra, Gramofone, filme, typewriter desempenha um
papel central e representa, possivelmente, o melhor ponto de entrada

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para o leitor brasileiro no pensamento de Kittler. Num país como o
Brasil, onde a tradição hermenêutica não desenvolveu os mesmos
alicerces sólidos que na Europa e onde o corpo e suas paixões têm
dimensão cultural central, o pensamento de Kittler tem muito a contri-
buir. Talvez não seja equivocado, inclusive, situá-lo na vizinhança
de outro autor que, apesar de ter vivido no Brasil por mais de trinta
anos, ainda permanece relativamente pouco conhecido por aqui. A
obra de Vilém Flusser, tcheco que foi adotado na Alemanha como
um dos pais da teoria da mídia alemã, também se caracteriza por essa
atenção especial aos temas da materialidade dos meios, dos fluxos
informacionais e discursivos de uma sociedade e da desconstrução
do sujeito humanista clássico por meio de propostas pós-humanistas.
Não obstante as enormes diferenças em termos de estilo e de teses,
Kittler e Flusser compartilham de certa herança intelectual que ajudou
a compor o panorama da nova teoria da mídia na Alemanha: a influên-
cia da Escola de Toronto, o retorno à cibernética como paradigma
intelectual, a elaboração de um projeto que tem mais a ver como uma
“filosofia” da mídia do que propriamente uma “teoria”. Não deve ser
casual o fato de Flusser ter recebido precisamente de Kittler o convite
para realizar um de seus mais importantes estágios acadêmicos como
Gastprofessor (professor visitante) na Universidade de Bochum, pouco
antes de sua morte em 1991.
No pequeno prefácio que escreveu para Kommunikologie weiter
denken (Continuando a pensar a Comunicologia), Kittler observa
sobre as aulas de Flusser: “das barbas do profeta saíam palavras como
relâmpagos, pois elas sempre eram também sentenças (Urteile)” (2009,
p.10-11). De fato, a imagem do profeta foi repetidamente associada
tanto a McLuhan como a Flusser. E nessa linhagem de “profetas”
que, pensando a partir da mídia e da técnica, esboçaram os futuros
da sociedade tecnológica, Friedrich Kittler merece provavelmente ser
incluído. Em Gramofone, filme, typewriter, ele nos apresenta, além
do sistema discursivo do século XX, um esboço de futuros possíveis
de uma cultura na qual as tecnologias digitais se tornaram uma reali-
dade vital e determinante. Apresentado aqui na brilhante tradução

Prefácio à edição brasileira | 15


de Daniel Martineschen e Guilherme Gontijo Flores – que souberam
reproduzir a singularidade poética e as ironias do estilo kittleriano –,
inclusive em confronto com o tiposcrito de uma segunda edição que
Kittler ensejava,1 esse texto-chave da Medientheorie alemã talvez nos
ajude a entender que as mídias não são apenas os suportes transparentes
das mensagens e sentidos que continuamente produzimos. Mais que
isso, são os instrumentos materiais que moldam aquilo que, no passado,
chamávamos de espírito, e cuja “expulsão” das ciências humanas (em
alemão: Geisteswissenschaften, “ciências do espírito”) foi percebida
igualmente por Flusser e Kittler.
Hans Ulrich Gumbrecht, que o conheceu de perto e com ele
compartilhou muitas experiências – não apenas o ocaso da grande
tradição hermenêutica alemã, mas também um certo encanto pela
cultura americana –, nos dá um belo testemunho de Kittler no posfá-
cio que escreveu para a edição de bolso de uma seleção de escritos
de Kittler para a prestigiosa editora Suhrkamp: “Muitas vezes ele
atuou de maneira convincente e encantadora, mas às vezes também
de maneira frágil e contraditória” (2013, p. 397). O leitor brasileiro
tem agora em mãos a oportunidade de se aproximar de um dos mais
significativos pensadores alemães da virada do século XXI. Um século
no qual certamente o pensamento de Kittler deverá ocupar a posição
de um observador tão percuciente quanto original.

Adalberto Müller
Erick Felinto

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Prefácio

Tape my head and mike my brain.


Stick that needle in my vein.
Pynchon

As mídias determinam nossa situação, a qual (apesar ou por causa


disso) merece uma descrição.
“Situações”, maiores ao meio-dia e menores ao entardecer, como
bem se sabe, eram organizadas pelo estado-maior alemão: diante de
caixas de areia e mapas, em guerra ou na assim chamada paz. Até
que o Dr. Gottfried Benn, escritor e médico do alto escalão, elevou o
reconhecimento da situação à tarefa da literatura e da crítica literária.
Sua justificativa (numa carta a um amigo): “Você sabe, eu assino: O
Chefe do Alto Comando Militar, sob a responsabilidade de Dr. Benn.”1
De fato: em 1941, com o conhecimento de documentos e tecnolo-
gias, da situação do inimigo e dos planos de disposição, mas sobretudo
na repartição instalada na Bendlerstrasse, em Berlim, na sede do Alto
Comando Militar, ainda teria sido possível tomar conhecimento da
situação.2
A situação atual é mais obscura. Em primeiro lugar, os documen-
tos importantes estão em arquivos que vão permanecer secretos por
anos, enquanto ainda houver uma diferença entre documentos e fatos,
metas e realização. Em segundo lugar, até mesmo documentos secretos

17
perdem poder quando os fluxos reais de dados circulam, ignorando
a escrita e os escritores, como séries numéricas entre computadores
interligados em rede. No entanto, as tecnologias que não apenas
subvertem a escrita, mas também absorvem e levam consigo o assim
chamado ser humano, tornam impossível a sua própria descrição.
Mais e mais fluxos de dados, antes compostos por livros, depois por
discos ou filmes, desaparecem nos buracos negros ou caixas-pretas
que, como inteligências artificiais, nos dão adeus enquanto partem
para Altos Comandos anônimos. Nessa situação, só restam retros-
pectivas, isto é, narrativas. O modo como isso se deu – algo que não
se encontra mais em livro algum – ainda pode ser anotado em livros.
Levadas aos seus limites, até as mídias obsoletas serão sensíveis o
suficiente para registrarem os sinais e indícios de uma situação. Assim
surgem, como nos planos de corte de duas mídias óticas, áreas raste-
rizadas e moirés: mitos, ficções científicas, oráculos…
Este livro é uma narrativa a partir de tais narrativas. Ele reúne,
comenta e interrelaciona passagens e textos em que a novidade das
mídias tecnológicas se inscreveu no antigo papel dos livros. Muitos
desses papéis estão velhos ou até mesmo esquecidos; porém, justa-
mente na era fundadora das mídias tecnológicas, o seu horror operava
de modo tão avassalador que a literatura o registrava de maneira
mais precisa do que no aparente pluralismo midiático atual, onde
tudo pode seguir operando, desde que não perturbe os circuitos do
Vale do Silício e o seu incipiente domínio global. Por outro lado, uma
tecnologia de comunicação, cujo monopólio agora vai chegando ao
fim, registra exatamente essa notícia: uma estética do horror. O que os
escritores maravilhados punham no papel entre 1880 e 1920 a respeito
do gramofone, do cinema e da máquina de escrever – as primeiras
mídias técnicas – nos oferece um retrato fantasmagórico tanto do
nosso presente como do futuro.3 Com esses primeiros aparelhos
aparentemente inofensivos, capazes de registrar e, portanto, de separar
sons, visões e textos, iniciou-se uma tecnologização da informação,
que, num retrospecto das narrativas, possibilitou o fluxo numérico
autorrecursivo de hoje.

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Obviamente tais narrativas não podem substituir uma histó-
ria da técnica. Elas permanecem sem números, mesmo se fossem
incontáveis, e, portanto, falham em capturar o real, onde se apoiam
todas as inovações. Inversamente, de séries numéricas, cianotipias,
ou diagramas elétricos, nunca se retorna à escrita, mas sempre a um
aparelho.4 Nem mais nem menos dizia a bela frase de Heidegger,
segundo a qual a técnica impede a experiência da sua própria essên-
cia.5 No entanto, não precisamos da confusão um tanto didática de
Heidegger de escrita e experiência; em vez de perguntas filosóficas
sobre o ser, basta o simples saber.
Podemos apresentar os dados tecnológicos e históricos que servi-
ram como base para textos fictícios sobre mídia. Só então chegam
o velho e o novo, os livros e seus substitutos tecnológicos, como as
notícias que de fato são. Compreender as mídias – apesar do título
Understanding Media,6 de McLuhan – permanece impossível, porque
as tecnologias de comunicação dominantes controlam à distância
todo entendimento e provocam suas ilusões sobre elas. Porém, parece
possível, nas cianotipias e diagramas elétricos, ler as figuras históri-
cas do desconhecido chamado corpo, mesmo que estes comandem
imprensas de livros ou computadores eletrônicos. O que permanece
das pessoas é aquilo que a mídia é capaz de registrar e transmitir.
Portanto, o que conta não é a mensagem ou o conteúdo com que as
tecnologias de comunicação literalmente equipam as chamadas almas
para o período de uma época tecnológica, mas sim (em rigor com
McLuhan) somente os seus circuitos, sobretudo esse esquematismo
da perceptibilidade.
Quem for capaz, então, de escutar o diagrama elétrico no som
sintetizado dos CDs ou de vê-lo nos canhões de laser das discote-
cas, encontrará a felicidade. Uma felicidade além do gelo, teria dito
Nietzsche. No momento da submissão impiedosa às leis, cujos casos
somos nós, desaparece o fantasma do homem como inventor de
mídias. E a situação se torna reconhecível.
Já em 1945, nos protocolos datilografados semicarbonizados
das últimas situações registradas do Alto Comando da Wehrmacht,

Prefácio | 19
a guerra era chamada de pai de todas as coisas: ela, numa versão livre
de Heráclito, teria gerado o maior número de invenções tecnológi-
cas.6 E, no mais tardar desde 1973, quando foi publicado Gravity’s
Rainbow (Arco-íris da gravidade)7 de Thomas Pynchon, ficou claro
que as verdadeiras guerras não se travam por povos ou pátrias, mas
que são guerras entre mídias, tecnologias e comunicação e fluxos de
dados diferentes. Áreas rasterizadas e moirés de uma situação que
nos esqueceu…
De qualquer modo, sem as pesquisas e contribuições de Roland
Baumann, este livro não teria sido escrito. Ele também não teria sido
publicado sem Heidi Beck, Nobert Bolz, Rüdiger Campe, Charles
Grivel, Anton (Tony) Kaes, Wolf Kittler, Thorsten Lorenz, Jann
Matlock, Michael Müller, Clemens Pornschlegel, Friedhelm Rong,
Wolfgang Scherer, Manfred Schneider, Bernhard Stiegert, Georg
Christoph (Stoffel) Tholen, Isolde Tröndle-Azri, Antje Weiner, David
E. Wellbery, Raimar Zons e Agia Galini.

F.K.
Setembro de 1985

20 | GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER


Introdução

O cabeamento da República Federal Alemã avança. Logo, pela


primeira vez ou como fim da história, as pessoas vão depender de
um canal de comunicação que serve para qualquer mídia. Se filmes
e músicas, telefonemas e textos chegam às casas por meio de cabos
de fibra óptica, as mídias como a TV, o rádio, o telefone e o correio,
até então separadas, se fundem, padronizadas por frequência de
transmissão e formato de bits. Sobretudo o canal optoeletrônico será
imune a falhas que poderiam randomizar os belos padrões de bits por
trás de imagens e sons. Quer dizer, imune a bombas, pois sabemos
que as explosões nucleares espalham na indutância dos usuais cabos
de cobre um pulso eletromagnético (PEM) que fatalmente também
contaminaria computadores conectados.
É com essa precaução que o Pentágono planeja: em primeiro
lugar, a substituição de cabos metálicos por fibras ópticas possibilita
as enormes taxas de transmissão e quantidades de bits pressupostas,
gastas e celebradas pela guerra eletrônica. Então todos os sistemas
de alerta precoce, aparelhos de radar, bases de foguetes e batalhões
do exército da outra costa da Europa1 dependem de computadores
reforçados contra PEMs e que permanecerão funcionais mesmo em
caso de emergência. E por um tempo o prazer se torna subproduto:
as pessoas podem saltar entre as várias mídias de entretenimento.
Os cabos de fibra óptica de fato transmitem todo tipo imaginável de
informação, exceto a que importa – a bomba.

21
Mas já agora, antes do fim, algo chega ao fim. Na digitalização
geral de comunicações e canais, desaparecem as diferenças entre
mídias individuais. É somente como efeito superficial, conhecido por
consumidores pelo belo nome de interface, que existem som e imagem,
voz e texto. Os sentidos e o sentido se tornam prestidigitação. O seu
glamour, tal como as mídias o criaram, sobrevive por um tempo como
subproduto de programas estratégicos. Já nos próprios computado-
res, tudo é número: quantidade sem imagens, sons e palavras. E se o
cabeamento até agora transporta todos os fluxos distintos de dados
numa série numérica digitalmente padronizada, então toda mídia
pode ser transferida para outra. Com os números, nada é impossí-
vel. Modulação, transformação, sincronização; adiamento, registro,
chaveamento; embaralhamento, escaneamento, mapeamento: um
composto total de mídias em base digital vai desbancar o próprio
conceito de mídia. Em vez de conectar tecnologias a pessoas, o saber
absoluto corre em loop infinito.

◁▷
Porém ainda há mídias, há entretenimento
Sabe-se o estado atual das coisas – sobretudo, infelizmente,
devido às aeronaves de grande porte. No Jumbo, as mídias, massivas
e raras, ocorrem em sistemas interligados, que ainda permanecem
diferenciados segundo padrão e frequência, distribuição e interface.
A tripulação depende de telas de radar, LEDs, radiofaróis e faixas de
frequência fechada, que também ganharam fones de ouvido profis-
sionais. A sua troca por computadores é apenas uma questão de
tempo. Por outro lado, os passageiros são entretidos por uma mistura
de mídias antigas enlatadas. Para além dos livros, esse meio milenar
com ausência de luz, todas as técnicas de entretenimento estão juntas.
Os ouvidos dependem de apáticos fones de ouvido descartáveis, que
por sua vez dependem de fitas cassete e, portanto, da indústria de
discos. Os olhos dependem de filmes hollywoodianos que, por sua
vez, dependem do orçamento de publicidade da indústria da aviação
– o que explica tantos filmes começarem com embarques e pistas
de pouso. Isso sem falar do meio técnico da indústria de alimentos,

22 | GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER


de que dependem as bocas dos passageiros. De qualquer modo, um
saco amniótico multimídia fornecido por canais ou umbigos que só
servem para ocultar um fundo real: ruído, noite, frio de um exterior
insuportável. Por outro lado, há música de elevador, cinema de bordo
e forno de micro-ondas.
O estado de coisas atual, não apenas no Jumbo, são sistemas
interligados parciais de mídias, que todos ainda conhecem através de
McLuhan. Nos seus textos,2 o conteúdo dessas mídias é feito de outras:
filme e difusão de voz constituem o conteúdo da televisão; disco de
vinil e fita cassete, o conteúdo do rádio; filme mudo e som magnético
no cinema; texto, telefone e telegrama no semimonopólio midiático do
correio. Desde o início do século, quando Von Lieben, na Alemanha,
e De Forest, na Califórnia, desenvolviam tubos elétricos por pulso, é
basicamente possível ampliar e transferir sinais. Os maiores sistemas
de mídias interligados, existentes desde os anos 1930, podem assim
recorrer à escrita, ao filme e à fonografia, a todas as três mídias de
registro, para interconectar e enviar seus sinais à vontade.
Contudo, entre os próprios sistemas interligados existem canais
de dados incompatíveis e diversos formatos de dados. O elétrico ainda
não é eletrônico. No espectro do fluxo geral de dados, a televisão e o
rádio, o cinema e o correio formam janelas individuais limitadas que
apelam aos sentidos das pessoas. As emissões de infravermelho ou
os ecos de radar para a chegada de mísseis ainda correm por outros
canais, diferentemente da fibra óptica do futuro. Nossos sistemas
interligados de mídias distribuem somente palavras, sons e imagens
tal como as pessoas podem enviá-las e recebê-las. Porém eles não
computam esses dados; não produzem nenhum output que trans-
forme, por meio de controle computadorizado, quaisquer algoritmos
em efeitos de interface, a ponto de as pessoas abrirem mão de seus
sentidos. Computa-se apenas a qualidade de transmissão de mídias
de registro que operam como conteúdo nos sistemas interligados. Um
compromisso entre engenheiros e vendedores é o que regula o quão
ruim pode ser o som na televisão, o quanto a imagem de um filme
pode ser trêmula ou o quanto uma voz amada é filtrada ao telefone.
A variável dependente deles são as nossas percepções sensoriais.

Introdução | 23
Uma combinação de rosto e voz que mantém a calma frente a um
adversário de debate televisivo chamado Richard M. Nixon, é conside-
rada telegênica e pode ganhar as eleições presidenciais, como no caso
Kennedy. Por outro lado, vozes – que em close óptico se tornariam
imediatamente traidoras – são chamadas radiofônicas, e dominam o
VE 301, o receiver popular da Segunda Guerra Mundial. Pois, como
reconhecia o aluno de Heidegger, dentre os primeiros pensadores
do rádio da Alemanha, “um tema radiofônico primário é a morte”.3

◁▷
Essas percepções sensoriais tiveram, primeiro, que ser produ-
zidas. O domínio e a interconexão das mídias técnicas pressupõem
uma arbitrariedade (Zufall) no sentido lacaniano da palavra: que algo
cessou de não se escrever. Muito antes da eletrificação das mídias,
antes ainda do seu fim eletrônico, aparelhos modestos eram mecânica
pura. Não conseguiam ampliar, não conseguiam transmitir e mesmo
assim tornaram possível pela primeira vez registrar dados sensoriais:
o filme mudo registrou os rostos; e o fonógrafo de Edison (que,
diferente do gramofone berlinense que viria depois, era um aparelho
capaz também de registro, e não somente de reprodução), os ruídos.
Em 6 de dezembro de 1877, Thomas Alva Edison – senhor do
primeiro laboratório de pesquisa da história da tecnologia – apresen-
tou o protótipo do fonógrafo. Em 20 de fevereiro de 1892, veio do
mesmo Menlo Park, perto de Nova Iorque, o chamado cinetoscópio,
ao qual os irmãos Lumière, na França, e os irmãos Skladanowski, na
Alemanha, tiveram que adicionar uma possibilidade de projeção para
fazerem cinema a partir do desenvolvimento de Edison.
Desde essa viragem epocal, existem armazenadores capazes de
gravar e reproduzir dados acústicos e ópticos no seu próprio fluxo
temporal. O ouvido e o olho se tornaram autônomos. E isso modificou
o estado das coisas reais mais do que a litografia e a fotografia, que no
primeiro terço do século XIX só levaram, segundo Benjamin, a obra
de arte à era da sua reprodutibilidade técnica. As mídias “definem o
que realmente é”;4 sempre estão além da estética.

24 | GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER


O fonógrafo e o cinematógrafo (que não por acaso têm seus
nomes derivados da escrita) tornaram o tempo registrável: como um
misto de frequências dos ruídos na acústica, como um movimento
das sequências de imagens individuais na óptica. É no tempo que toda
arte tem seu limite. Ela deve estancar o fluxo de dados do cotidiano
antes que ele possa virar imagem ou signo. O que é chamado de estilo
na arte é somente o painel de controle dessas amostragens e seleções.
Subordinam-se a tal painel também aquelas artes que gerenciam com a
escrita um fluxo de dados em série e, portanto, temporalmente deslo-
cado. Para registrar sequências de sons de fala, a literatura tem que
freá-los no sistema das vinte e seis letras e excluir antecipadamente
as sequências de ruídos. E não é por coincidência que esse sistema
compreende como subsistema também os sete tons, cuja diatônica
– de dó a si – fundamenta a música ocidental. Assim, para fixar um
caos acústico que ataca os ouvidos europeus com músicas exóticas,
liga-se primeiramente – segundo uma sugestão do musicologista Von
Hornbostel – um fonógrafo que possa registrar o caos em tempo real
e reproduzi-lo mais lentamente. Quando então os ritmos esmore-
cerem e “só compassos individuais, e tons individuais soarem”, aí o
alfabetismo ocidental poderá caminhar para a “notação exata” com
seu sistema de notas.5

Introdução | 25
A Europa não possuía outros registradores de tempo além de
textos e partituras. Ambos repousavam sobre uma escrita cujo tempo,
nos termos de Lacan, é simbólico. Por meio de projeções e retrocessos,
esse tempo memoriza a si mesmo – como uma corrente formada por
outras correntes. Por outro lado, o que se passa por tempo no nível
físico ou, novamente alinhado a Lacan, real, às cegas e imprevisível,
era absolutamente impossível de codificar. Todos os fluxos de dados
tinham, se fossem realmente fluxos de dados, que passar pelo funil
do significante. Monopólio alfabético, gramatologia.

A imagem mais antiga de uma imprensa (1499) – como uma dança dos mortos

Quando o filme chamado história é rebobinado, torna-se um loop


infinito. O que logo terminará em monopólio dos bits e dos cabos de
fibra óptica começou com o monopólio da escrita. A história era o
campo homogêneo onde apenas as culturas escritas eram consideradas
disciplinas. Bocas e grafismos caíam para a Pré-História. De outro
modo, os eventos e as suas narrativas (o sentido duplo da palavra
“história”) não poderiam ter sido conectados. As ordens e julgamen-
tos, anunciações e regulamentos – militares e jurídicos, religiosos
e medicinais – dos quais então advinham os montes de cadáveres,
corriam por um único canal sob cujo monopólio finalmente caíam
também as descrições desses cadáveres. Por isso, tudo o que outrora
aconteceu ficava em bibliotecas.

26 | GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER


E Foucault, o último historiador ou o primeiro arqueólogo, só
precisava consultar. A suspeita de que toda a força vem dos arquivos
e a eles retorna podia ser brilhantemente comprovada, pelo menos
nos campos jurídico, medicinal e teológico. Tautologia da história
ou seu calvário. Pois as bibliotecas, onde sempre se encontrava o
arqueólogo, agrupavam e rubricavam papéis que outrora tinham sido
muito diferentes quanto a endereço e chave de distribuição, quanto
ao grau de confidencialidade e à técnica de escrita – o arquivo de
Foucault como entropia de um correio.6 Mesmo a escrita, antes de
acabar nas bibliotecas, é um meio de comunicação cuja tecnologia a
arqueologia simplesmente esqueceu. Razão pela qual todas as suas
análises históricas paravam imediatamente antes do ponto no tempo
onde outras mídias e outros itens começavam a perfurar o depósito
de livros. Para os arquivos de sons ou as torres de rolos de filme a
análise do discurso é incompetente.
Em todo caso, enquanto marchava, a história era de fato o
“ondeado ao infinito das palavras”7 de Foucault. De modo mais
simples, mas não menos tecnológica que o cabo de fibra óptica do
futuro próximo, a escrita agia como mídia em si – o conceito de mídia
ainda não existia. O que quer que ainda marchasse, passava pelo filtro
das letras ou ideogramas.
“A literatura”, escreveu Goethe, “é o fragmento dos fragmentos.
Escreveu-se sobre a mínima parte do que aconteceu e foi dito. E do
que se escreveu não restou quase nada.”8
De acordo com isso, hoje uma oral history (história oral) se
contrapõe ao monopólio do historiador; de acordo com isso, um
teórico de mídias como Walter J. Ong – em quem, como padre jesuíta,
deve ter baixado o Espírito Santo do milagre pentecostal – celebra uma
oralidade primária das culturas tribais em oposição à nossa oralidade
secundária da acústica midiática. Tais pesquisas eram impensáveis
enquanto o conceito contrário ao de “história” (novamente com
Goethe) se chamava simplesmente de “lenda”.9 A pré-História desa-
pareceu no seu nome mítico; os fluxos de dados ópticos e acústicos
não precisavam nem ser mencionados pela definição goethiana de

Introdução | 27
literatura. E também as lendas, esse corte falado do que aconteceu,
sobrevivem sob condições pré-tecnológicas, mas literárias, somente
na forma escrita. Desde que se tornou possível gravar em fita os épicos
daqueles bardos que, como últimos homéridas, ainda vagueavam pela
Sérvia e pela Croácia, as mnemotécnicas ou culturas orais se torna-
ram reconstruíveis de uma maneira totalmente diferente.10 Mesmo a
Aurora dedirrósea de Homero se converte de deusa em um pedaço
de dióxido de cromo que circulava armazenado na memória dos
rapsodos e se combinava com outros elementos para compor épicas
inteiras. Oralidade primária ou oral history são sombras tecnológicas
dos aparelhos que passam a documentá-las pela primeira vez, ao fim
do monopólio da escrita.

Cabeamento telefônico. Nova Iorque, 1888

28 | GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER


◁▷
Por outro lado, a escrita armazenava a escrita, nada mais e nada
menos. Os livros sagrados o atestam. No capítulo 20 do Êxodo há uma
cópia do que Javé originalmente escrevera com o próprio dedo em
duas placas de pedra: a lei. Mas dos trovões e raios, da espessa nuvem e
de uma trombeta muito forte – que, segundo a Bíblia, acompanharam
a primeira escritura sobre o sagrado Monte Sinai –, a Bíblia consegue
registrar apenas as palavras.11
Menos ainda é transmitido dos pesadelos e pragas que atacavam
um nômade chamado Maomé depois da sua fuga do sagrado Monte
Hira. O Corão só começa quando Deus toma o lugar dos muitos
demônios. Do sétimo céu desce o arcanjo Gabriel com um papiro e
a ordem de que se decifre esse papiro. “Lê!”, diz ele a Maomé, “Teu
Senhor é o mais generoso, Aquele que, com o cálamo, ensinou ao ser
humano o que ele não sabia”.12
Maomé, porém, respondeu que ele, o nômade, não sabia ler. Nem
mesmo a mensagem divina da origem da escrita e da leitura. O arcanjo
teve que repetir O Mandamento para que um analfabeto pudesse se
tornar o fundador de uma religião baseada em um livro. Em breve,
em breve até demais, o papiro ilegível começa a fazer sentido e dá a
Maomé olhos miraculosamente alfabetizados para ler com exatidão
o texto que Gabriel havia apresentado duas vezes como ordem oral.
É na 96ª Sura que começam as epifanias de Maomé, segundo toda
a tradição – começam para então serem “aprendidas de cor pelos
crentes, registradas por escrito em suportes primitivos, como folhas
de palmeira, pedras, madeira, ossos e pedaços de couro, e sobretudo
sempre declamadas novamente por Maomé e por crentes escolhidos,
especialmente no mês de jejum do Ramadã”.13
A escrita registra, portanto, somente o fato do seu empodera-
mento. Ela celebra o monopólio de registro do Deus que a inventou.
E porque esse Deus tem seu reino em signos que dizem algo somente
para leitores, todos os livros são livros dos mortos, como os egípcios,
com quem a literatura realmente começou.14 Para além de todos os

Introdução | 29
sentidos, o reino dos mortos – para o qual aqueles nos seduzem –
coincide com o livro. Quando o estoico Zenão perguntou ao oráculo
de Delfos qual seria o melhor modo de viver, recebeu a resposta:
“‘Casando-se com os mortos.’ Ele entendeu que isso seria a leitura
dos antigos.”15
Como as orientações de um deus que ensinou o uso da pena
chegaram, depois de Moisés e Maomé, a pessoas cada vez mais simples
– essa história morosa não pode ser escrita por ninguém, porque ela
seria a própria história. Da mesma forma que em breve, na guerra
eletrônica, as capacidades de registro dos computadores coincidirão
com a guerra, gigabyte por gigabyte, e excederão toda a capacidade de
processamento dos historiógrafos.
Basta dizer que um dia – na Alemanha, talvez tenha sido o caso
já na época de Goethe – a mídia homogênea da escrita também tenha
se tornado homogênea na esfera socioestatal. A escolarização compul-
sória soterrou as pessoas com papel. Elas aprendiam uma escrita que,
como “abuso de linguagem”, segundo Goethe, já não tinha mais que
lutar com câimbras musculares e letras isoladas, mas ainda corria em
êxtase e escuridão. Elas aprendiam uma “leitura silenciosa”, que podia
consumir caracteres sem esforço como o “triste substituto da fala”,16
contornando as ferramentas orais. O que essas pessoas enviavam e
recebiam também era escrita. E porque só existe o que pode ser posi-
cionado, os próprios corpos caíram sob o regime do simbólico. Hoje
é impensável, mas já foi real um dia: nenhum filme armazenava os
movimentos que elas faziam ou viam; nenhum fonógrafo, os ruídos
que produziam ou ouviam. Pois o que existia colapsava antes do tempo.
Silhuetas ou pinturas em pastel determinavam o jogo gestual, e o papel
de anotações falhava com os ruídos. Porém, quando uma mão segurava
a pena, acontecia o milagre. Aí o corpo, que ainda não tinha parado de
não se escrever, deixava rastros estranhamente inevitáveis.

Envergonho-me de o contar. Envergonho-me da minha caligrafia. Ela me


mostra de espírito completamente descoberto. Na escrita estou mais nu
que sem roupas. Nenhuma perna, nenhuma respiração, nenhuma roupa,
nenhum som. Nem voz nem reflexo. Tudo desmantelado. Em vez disso

30 | GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER


toda a corpulência de um homem, encarquilhada e deformada no seu
rabisco. As suas linhas são o seu resto e a sua propagação. O desnivela-
mento entre traços de escrita e papel vazio, tão mínimo que mal pode ser
tocado pelas pontas dos dedos de um cego, constitui a última proporção
que envolve completamente um rapaz.17

Assim escreveu Botho Strauß em 1977, talvez de próprio punho,


porém é mais provável que tenha sido com uma máquina de escrever,
pois a vergonha que acomete o herói de Widmung (A dedicatória)
como uma última história de amor enquanto ele vê sua própria cali-
grafia só existe como um anacronismo. A invenção da fonografia e do
cinema pressupõe, como explicação, que as mínimas irregularidades
entre traços de escrita e papel vazio não armazenem nem a voz nem
o reflexo de um corpo. Enquanto essas mídias ainda suportavam, a
escrita manual conseguiu se firmar como garantia de rastros total-
mente sem concorrentes. Escrevia-se e escrevia-se dinamicamente e,
se possível, sem tirar a pena do papel. No fluxo contínuo de tinta ou
de caracteres, o indivíduo alfabetizado tinha, como Hegel reconheceu
tão acertadamente, “sua manifestação e exterioridade”.18
E como na escrita, também na leitura. Mesmo quando o indiví-
duo alfabetizado “escritor” tinha que sair da exterioridade privada
da caligrafia para cair finalmente na exterioridade anônima da
imprensa – de modo a garantir “seu resto e sua propagação” para
além da distância e da morte –, os indivíduos alfabetizados, os
“leitores” sempre conseguiam reverter essa alienação. “Quando se
lê como se deve ler”, escreveu Novalis, “desabrocha dentro de nós
um mundo real e verdadeiro feito à imagem das palavras.”19 E seu
amigo Schlegel acrescentou que “acreditamos ouvir o que apenas
lemos.”20 Um alfabetismo perfeito deveria se implementar justa-
mente aos fluxos de dados ópticos e acústicos que não parariam de
não se escrever sob o monopólio da escrita. A escrita então acontecia
sem esforço, e a leitura era silenciosa, de modo a confundir a escrita
com a natureza. Nas letras, para além das quais conseguiam ler como
leitores cultos, as pessoas tinham rostos e ruídos.

Introdução | 31
Por volta de 1800, o livro se tornou filme e disco ao mesmo
tempo – não na realidade tecnomidiática, mas no imaginário das
almas leitoras. A escolarização compulsória e as novas técnicas de
alfabetização ajudaram. Como substitutos dos fluxos de dados não
armazenáveis, os livros conquistaram poder e glória.21
Em 1774, um editor chamado Goethe trouxe para impressão
cartas manuscritas, ou Os sofrimentos do jovem Werther. Mesmo “à
ignota multidão” (como consta na “Dedicatória” do Fausto) devia
“soar um canto” que evocasse “amores, amizades, do olvido como
um conto meio extinto”.22 A nova receita de sucesso da poesia: trans-
formar imperceptivelmente as vozes ou caligrafias de uma alma em
gutenberguiana. A última carta de Werther antes do suicídio, ainda
selada mas jamais postada, dá à sua amada a própria promessa da
poesia: enquanto vivesse, ela teria que pertencer a Albert, um marido
indesejado, porém se reencontraria com seu amado depois disso, “em
presença do Eterno, num abraço infinito”.23 E de fato: a uma destina-
tária de cartas manuscritas – que então um mero editor levou do autor
à prensa – só lhe é concedida a imortalidade do próprio romance. Ele
e somente ele constituía o “mundo belo”24 no qual, em 1809, os aman-
tes das Afinidades eletivas de Goethe, “um dia, despertarão juntos”25
segundo as esperanças do romancista. É que Eduard e Ottilie tiveram
já durante as suas vidas uma e a mesma caligrafia, o que já é bastante
miraculoso. A morte deles teria que arrebatá-los a um Paraíso que,
sob o monopólio de registro da escrita, levaria o nome de poesia.
E talvez esse paraíso fosse mais real do que nossos sentidos
controlados pelas mídias jamais poderiam sonhar. Os suicidas entre
os leitores do Werther podem ter percebido o seu herói – bastava
que lessem como se deve ler – num mundo real e verdadeiro feito
à imagem das palavras. E as amantes dentre as leitoras de Goethe,
tal como Bettina Brentano, podem ter morrido com a heroína das
Afinidades eletivas, para então “renascer numa juventude mais bela”
graças ao “gênio” de Goethe.26 Talvez os alfabetos perfeitos de 1800
tenham sido uma resposta viva à questão dos cineastas, com a qual
Chris Marker conclui seu ensaio cinematográfico Sans Soleil, de 1983:

32 | GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER


Perdido no fim do mundo em minha ilha, Sal, acompanhado por meus
cães que desfilavam em volta altaneiros, lembro-me do janeiro que passei
em Tóquio, ou melhor, lembro-me das imagens que filmei em janeiro em
Tóquio. Elas se posicionaram agora no lugar da minha memória, elas são
a minha memória. Eu me pergunto como é que se lembram as pessoas
que não filmam, que não fotografam, que não gravam em fita como a
humanidade funcionava para poderem se lembrar depois.27

Acontece o mesmo com a língua, que também só permite a esco-


lha entre preservar as palavras e perder o sentido, ou, ao contrário,
preservar o sentido e perder as palavras.28 Quando dados ópticos ou
acústicos podem migrar para armazenadores de mídia, a memória
afastada passa para as pessoas. Sua “libertação”29 é o seu fim. Enquanto
o livro tinha que assumir os custos de todos os fluxos seriais de dados,
suas palavras tremiam de sensibilidade e lembrança. Toda a paixão da
leitura era, segundo E.T.A. Hoffmann, o desejo do poeta de “descrever
a sensação íntima” dessas alucinações “em todas as suas cores ardentes,
sombras e luzes”, assim “causando a sensação de um choque elétrico”
no “caro leitor”.30

◁▷
A própria eletricidade deu um fim nisso. Quando lembranças e
sonhos, mortos e fantasmas se tornam tecnicamente reprodutíveis,
então a força da alucinação se torna desnecessária, tanto nos escrito-
res quanto nos leitores. Nosso reino dos mortos deixou os livros nos
quais habitou por tanto tempo. Não é mais “só por meio da escrita que
os mortos permanecem no pensamento dos vivos”, como certa vez
escreveu Diodoro Sículo. O nosso reino dos mortos transformou-se
num espetáculo midiático.
O escritor Balzac foi acometido de um novo medo frente à foto-
grafia, como ele mesmo confessou a Nadar, o pioneiro da fotografia.
Se o corpo humano, segundo Balzac, em primeiro lugar é composto
de diversas camadas superpostas infinitamente finas de “espectros”
e, em segundo lugar, se a mente humana não consegue criar nada a
partir do nada, então o daguerreótipo tem que ser um truque maligno:

Introdução | 33
ele fixa, ou seja, rouba, essas camadas uma a uma, até que finalmente
não sobra nada dos “espectros” e, com isso, do corpo ilustrado.31
Álbuns de fotografia criam um reino dos mortos infinitamente mais
preciso do que seria dado ao empreendimento literário concorrente
balzaquiano da Comédie humaine. As mídias, em contraposição às
artes, não se limitam justamente a terem que trabalhar com a grade
do simbólico. Elas reconstroem corpos, isto é, não apenas no sistema
de palavras ou cores ou intervalos de tons. As mídias, e só elas, preen-
chem muito mais a “demanda exigente” que segundo Rudolf Arnheim
“colocamos na ilustração”, desde a invenção da fotografia: “Ela não
deve somente ser semelhante ao objeto, como dar a garantia dessa
semelhança por ela ser, digamos assim, um produto do objeto, ou seja,
mecanicamente criada por ele – assim como os objetos iluminados
da realidade gravam sua imagem mecanicamente sobre a película
fotográfica”,32 ou as curvas de frequência dos ruídos inscrevem suas
formas de onda no disco fonográfico.

Fotograma de fantasma <190>

34 | GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER


Uma reprodução que autentica o próprio objeto tem exatidão
física. Ela se refere ao real dos corpos, à forma com que estes passam
por todas as grades simbólicas. As mídias criam sempre aparições de
espectros. Pois, segundo Lacan, a palavra cadáver ainda é um eufe-
mismo para o real.33
Imediatamente os fantasmas telegrafantes das sessões espíritas,
com suas mensagens do reino dos mortos, seguiram-se à invenção do
alfabeto Morse, em 1837. Logo placas fotográficas – mesmo e justa-
mente com pouca abertura de diafragma – forneceram ilustrações
de fantasmas ou espectros cuja forma nebulosa em preto e branco só
corroborava ainda mais a garantia de semelhança. Em última análise,
uma das dez indicações de uso que Edison previu, em 1878, na North
American Review para o seu fonógrafo recém-inventado consistia em
preservar “as últimas palavras dos moribundos” – pra não falar dos
seus gemidos.
De um tal “arquivo familiar”,34 com especial consideração
pelos que retornavam, era só um pequeno passo para as ficções que
instalavam até mesmo cabos telefônicos entre vivos e mortos. O que
Leopold Bloom apenas desejara para si em 1904 nas suas meditações
no cemitério de Dublin em Ulysses,35 já tinha sido transformado em
ficção científica por Walther Rathenau em seu papel duplo como
presidente da Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft (AEG) e escritor
do futuro. No conto de Rathenau intitulado Resurrection Co., a admi-
nistração do cemitério de uma cidade chamada Necrópolis, Dacota/
EUA, depois que em 1898 alguns casos de enterrados vivos criaram
escândalo, funda a “Dacota and Central Resurrection Telephone and
Bell Co.” (Companhia Telefônica Dacota e Central Ressurreições),
com um capital inicial de 750 mil dólares e com o único objetivo de
ter a certeza de conectar os ocupantes de túmulos à malha telefônica.
Daí os mortos aproveitaram a oportunidade e apresentaram, muito
antes de McLuhan, a prova de que o conteúdo de uma mídia é sempre
uma outra mídia – no caso concreto, uma déformation professionelle.36
“Um escritor”, sob os mortos de Necrópolis, “não está satisfeito com
a inscrição na lápide. Um funcionário repica em intervalos curtos
e longos, num tipo de código Morse, uma crítica do seu sucessor.”

Introdução | 35
As vozes paranormais em fitas ou no rádio, como aquelas pesqui-
sadas por espíritas desde 1959 e eternizadas no rock de Big Science,
disco de Laurie Anderson de 1982,37 anunciaram aos seus pesquisado-
res tão somente em que frequências de rádio elas são difundidas. Isso
já ocorrera com Schreber, o presidente do senado, em 1898 – episódio
em que uma “linguagem básica ou neural” paranormal simplesmente
revelou, em bela autonomia, seu código e seus canais de difusão38 –, o
canal e a mensagem coincidem. “Basta escolher um programa falado
em ondas médias, curtas ou longas, ou o chamado ‘ruído branco’,
um ruído que se encontra entre duas emissoras, ou então a ‘onda de
Jürgenson’, que se encontra, diferindo localmente, de 1.450 a 1.600
kHz entre Viena e Moscou”,39 colocar uma fita no rádio para gravar e
ouvir, ao tocá-la novamente, várias vozes de espíritos que de fato não
vêm de nenhuma emissora conhecida, mas que surgem feito repórte-
res estatais em anúncios da própria rádio. Pois se existe de fato uma
onda de Jürgenson e onde ela se encontra, é porque a experimentou
o próprio “Friedrich Jürgenson, o Nestor da pesquisa vocal”.40
O reino dos mortos é tão grande quanto as possibilidades de
registro e difusão de uma cultura. As mídias, segundo lemos em
Klaus Theweleit, são também sempre aparelhos para voar até o além.
Se lápides serviram de símbolos nos primórdios da cultura,41 a nossa
tecnologia de mídias traz de volta todos os deuses. De um golpe calam-
-se as antigas queixas sobre a transitoriedade, que sempre estiveram
escritas e ditaram a medida da distância entre escrita e percepções
sensoriais. Na paisagem das mídias, imortais voltam a existir.
War on the Mind (Guerra à Mente) é o título de um relatório
sobre as estratégias psicológicas do Pentágono. Ele relata que os oficiais
planejadores da guerra eletrônica (que por sua vez só dá seguimento à
guerra marítima no Atlântico42) já prepararam listas com os dias que,
segundo as crenças de cada um dos povos, trazem sorte ou desgraça.
Assim, a força aérea americana pode “‘sincronizar’ o momento de
um bombardeio com as previsões de quaisquer deidades”. As vozes
desses deuses também foram gravadas em fita para, de cima do heli-
cóptero, “assustar guerrilhas de nativos primitivos e os manter em

36 | GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER


suas aldeias”. Por fim, o Pentágono ordenou o desenvolvimento de
projetores de filme especiais com os quais é possível projetar os deuses
tribais em nuvens baixas na forma de filme.43 Um além implementado
tecnologicamente…

◁▷
Obviamente o Pentágono não mantém uma lista manuscrita
dos dias bons e ruins. A tecnologia burocrática acompanha o ritmo
da tecnologia das mídias. O cinema e o fonógrafo, as duas grandes
invenções de Edison com as quais o presente começou, foram comple-
mentados pela máquina de escrever. Os autores e editores de livros
estão tão acostumados ao tiposcrito que as histórias culturais, antes
adoradas, estão esquecidas. Como os grandes pensamentos, pequenos
aparelhos também chegam sorrateiros. Desde 1865, segundo a conta-
gem europeia, ou desde 1868, segundo a americana, a escrita não é
mais aquele traço a tinta ou a lápis de um corpo cujos sinais ópticos e
acústicos se perdiam sem salvação, fugindo – ao menos para os leito-
res – para a percepção substituta da escrita manual. Para que séries de
ruídos e rostos pudessem encontrar os seus próprios armazenadores,
a única tecnologia de registro da velha Europa teve que ser finalmente
mecanizada. Hans Magnus Johan Mailing Hansen, em Copenhague, e
Christopher Latham Sholes, em Milwaukee, desenvolveram máquinas
de escrever prontas para produção em série.
“Uma coisa promissora”, comentou também Edison quando
Sholes o procurou em Newark para lhe apresentar seu modelo recém-
-patenteado e para convidar o homem que tinha inventado a própria
invenção a trabalhar com ele.44 Mas Edison recusou a oferta – como se
o fonógrafo e o cinetoscópio esperassem por seu futuro inventor em
1868 e, assim, limitassem o seu tempo. Em vez disso, entrou na jogada
uma fábrica de armamentos que sofria com uma baixa no consumo
desde o fim da guerra civil americana, em 1865. Foi a Remington, e
não Edison, que assumiu a metralhadora discursiva de Sholes.
Não se chegou a criar uma única personagem milagrosa a
partir da qual teriam surgido as três mídias da modernidade. Pelo

Introdução | 37
contrário, o começo da nossa era foi marcado por separação ou
diferenciação.45 De um lado estão duas mídias técnicas que fixam
pela primeira vez os fluxos de dados irregistráveis, e do outro, “uma
‘coisa intermediária’ entre a ferramenta e a máquina”, como preci-
samente escreveu Heidegger sobre a máquina de escrever.46 De um
lado, está a indústria de entretenimento com suas novas percepções
e, do outro, uma escrita que, já na sua produção e não mais só na
reprodução – como os tipos móveis de Gutenberg –, separa papel
e corpo. As letras, em conjunto com sua ordenação, são padroni-
zadas como tipos e teclado desde o princípio, enquanto as mídias
se encontram no ruído do real – como o desfocado das imagens no
cinema, como nível de ruído de fundo na gravação de sons.

Phonogram Magazine, v. 2, n. 4-5, p. 111, April/May 1892. Disponível em


The Phonogram Magazine, Now Online, ARSC Blog, 3. Aug. 2016.

No texto-padrão, papel e corpo, escrita e alma se separam uns


dos outros. Máquinas de escrever não armazenam indivíduos, suas
letras não transmitem nada além para que alfabetos perfeitos possam
então alucinar quanto ao seu significado. Tudo aquilo que as mídias
técnicas armazenam desde as duas inovações de Edison desaparece
dos tiposcritos. O sonho de um mundo real, visível ou mesmo audível
feito à imagem das palavras, está acabado. Com a simultaneidade

38 | GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER


histórica do cinema, da fotografia e da datilografia, os fluxos de dados
da óptica, da acústica e da escrita se tornaram tanto separados como
autônomos. A capacidade que as mídias elétricas ou eletrônicas têm
de conectá-los não muda nada no fato dessa diferenciação.
Ainda em 1860, cinco anos antes da esfera mecânica de Malling
Hansen – a sua primeira máquina de escrever pronta para produção
em série –, as Mißbrauchte Liebesbriefe (Cartas de amor violadas)
de Keller anunciavam a ilusão da própria poesia: ao amor restaria
somente a impossível alternativa de “falar com a tinta negra”, ou “fazer
o sangue rubro falar”.47 Quando, por outro lado, datilografar, filmar e
fonografar se tornam três opções possíveis de mesmo peso, a escrita
perde tais percepções substitutivas. A poesia vira literatura, por volta de
1880. As letras padronizadas não mais transmitiriam o sangue rubro,
como em Keller, nem imagens internas, como em Hoffmann, mas
sim uma nova e bela tautologia técnica. Segundo o insight imediato
de Mallarmé, a literatura não diz nem mais nem menos do que o fato
de que se constitui das vinte e seis letras do alfabeto.48
A “distinção metodológica”49 de Lacan entre o real, o imaginário e
o simbólico é a teoria – ou mero efeito histórico – dessa diferenciação.
O simbólico compreende a partir de então os signos linguísticos na
sua materialidade e tecnicidade. Eles constroem – isto é, como letras
e números – uma massa finita, sem a qual a infinitude filosoficamente
sonhada jamais viria a ter importância. O que conta são apenas as
diferenças ou, para dizê-lo na língua da máquina de escrever, os espa-
ços entre os elementos de um sistema. Por isso, em Lacan, “o mundo
simbólico é o mundo da máquina”.50
O imaginário, por sua vez, surge como fantasma especular de
um corpo que parece ter uma perfeição motora maior do que aquela
da criança pequena. Pois no real tudo começa com falta de ar, frio e
tontura.51 Com isso, o imaginário implementa exatamente as ilusões
ópticas cuja pesquisa também já se encontrava no berço do cinema. No
lugar de um corpo desmembrado ou (no caso da filmagem) esquarte-
jado, entra a continuidade ilusória dos movimentos do espelho ou do
filme. Logo não é coincidência alguma que Lacan tenha preservado

Introdução | 39
a reação jubilosa de crianças pequenas com relação aos seus duplos
especulares com os meios comprobatórios do documentário.52
Finalmente, a partir do real não se pode trazer à luz mais do que
aquilo que Lacan pressupunha com sua condição – ou seja, nada.53
Ele constitui o resto ou descarte que nem o espelho do imaginário,
nem a grade do simbólico podem capturar – arbitrário fisiológico,
desordem estocástica dos corpos.
Claramente, as distinções metodológicas de uma psicanálise
moderna coincidem com as distinções técnicas de nossa paisagem
midiática. Cada teoria tem o seu a priori histórico. E o estruturalismo
enquanto teoria apenas soletra aquilo que, desde a virada do século,
corre nos dados por meio dos canais de comunicação.
Só a máquina de escrever fornece uma escrita como a seleção
do estoque contado e ordenado do seu teclado. A partir dela vale
literalmente o que Lacan ilustra com a antiquada caixa de tipos.54
Em oposição ao fluxo da caligrafia, aparecem lado a lado elementos
discretos e separados por espaços. Assim, o simbólico tem o status
das letras de forma. Só o filme armazena os duplos móveis nos quais
as pessoas, diferentemente de outros primatas, conseguem (des)reco-
nhecer55 seus corpos. Assim, o imaginário tem o status de cinema. E
só o fonógrafo fixa os ruídos que as laringes emitem antes de qual-
quer ordenação de símbolos e todos os significados de palavras. Para
sentir prazer, os pacientes de Freud não precisam mais querer o Bem
dos filósofos. Estes podem simplesmente dizer blá-blá-blá.56 Assim,
o real – particularmente na talking cure chamada psicanálise – tem
o status de fonografia.
Com a diferenciação tecnológica entre óptica, acústica e escrita –
da maneira como ela explodiu o monopólio de registro de Gutenberg
por volta de 1880 –, o assim chamado ser humano se tornou factível.
Sua essência transborda para equipamentos. As máquinas conquistam
funções do sistema nervoso central, e não somente, como todas as
máquinas antes disso, da musculatura. E é só com isso – não com a
máquina a vapor ou a estrada de ferro – que se chega à separação limpa
entre matéria e informação, entre real e simbólico. Para ser possível

40 | GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER


inventar o fonógrafo e o cinema, os antigos sonhos da humanidade
não são suficientes por si próprios. Olho, ouvido e cérebro têm que se
tornar objetos de pesquisa em suas próprias fisiologias. Para otimizar
maquinalmente a escrita, ela não pode mais ser sonhada como expres-
são de indivíduos ou como rastro de corpos. As formas, diferenças e
frequências de suas próprias letras têm que vir em fórmulas. O assim
chamado “ser humano” decai em fisiologia e tecnologia da informação.
Quando Hegel conceituou o alfabetismo perfeito de seu tempo,
esse conceito se chamava espírito. A legibilidade de todas as histórias
e de todos os discursos transformou o homem ou o filósofo num
deus. A revolução das mídias, em 1880, lançou a base para teorias
e práticas que não mais confundiam informação com espírito. No
lugar do pensamento, entrou a álgebra booleana; no lugar da cons-
ciência, um inconsciente que faz da Carta roubada de Poe (o mais
tardar na leitura de Lacan) uma cadeia de Markov.57 E o fato de que
o simbólico seja chamado de mundo da máquina abole o delírio do
assim chamado ser humano de ser diferente e algo mais do que uma
“máquina de calcular” por meio de uma “característica” chamada
“consciência”. Pois ambos, tanto gente quanto computador, estão
“expostos aos apelos do significante”,58 ou seja, ambos rodam segundo
um programa. “São homens ainda, pergunta-se então”, em 1874,
Nietzsche, oito anos antes de comprar uma máquina de escrever,
“ou talvez apenas máquinas de pensar, de escrever, de calcular?”59

◁▷
Em 1950, Alan Turing, o prático entre os matemáticos ingleses,
vai dar a resposta à questão de Nietzsche. Ela diz, com elegância
formal, que essa pergunta na verdade não existe. O artigo de Turing
“Can a Machine Think? – Computing Machinery and Intelligence”
(“Pode uma máquina pensar? Computadores e inteligência”),60
publicado justamente na revista de filosofia Mind, propõe para a
resolução dessa questão que se construa um experimento chamado
de teste de Turing.

Introdução | 41
Um computador A e um ser humano B se encontram em
intercâmbio de dados por meio de algum tipo de interface, como
o teletipo. O intercâmbio de textos é monitorado por um censor
C, que obtém somente informações escritas. Assim, ambos A e B
agem como se fossem humanos; C deve decidir qual dos dois não
está simulando, e quem é só a máquina de pensar, de escrever e de
calcular de Nietzsche. Porém, como a máquina consegue otimizar
seu programa por aprendizado a cada vez que ela se trai – seja por
erros ou, muito mais provável, justamente pela falta deles –, a disputa
fica para sempre em aberto.61 No teste de Turing, o assim chamado
ser humano coincide com a sua simulação.
E claramente isso só acontece porque ao censor não chegam
manuscritos, mas sim textos plotados ou datilografados. Decerto os
programas de computador também poderiam simular mãos humanas
com suas rotinas e falhas de tendões, daí sua chamada individuali-
dade – contudo Turing, o inventor da máquina discreta universal,
datilografava. Não era especialmente hábil ou melhor do que seu
gato Timothy, que podia pular sobre as teclas no escritório caótico
de Turing no serviço secreto,62 só um pouco menos desastroso do
que se escrevesse à mão. Nem mesmo os professores da honrosa
Public School Sherborne conseguiam “perdoar” seu aluno pelo modo
caótico em que vivia e pelo quanto borrava tinta ao escrever. Traba-
lhos de classe brilhantes em matemática recebiam terríveis censuras,
só porque a sua caligrafia era “a pior que já se viu”.63 Os sistemas
escolares se mantêm fiéis à antiga tarefa de produzir indivíduos – no
sentido literal da palavra – forçando-os a se habituarem a uma cali-
grafia bonita, coerente e individual. Porém Turing – um mestre em
minar toda formação – desviou-se, pois fazia planos de inventar uma
máquina de escrever “tremendamente primitiva”.64
Esses planos não deram em nada. Porém, quando lhe veio a
ideia da máquina discreta universal nos campos de Grantchester –
os campos de toda a lírica inglesa, dos românticos até Pink Floyd –,
o sonho deste aluno estava realizado e transformado. A patente da
máquina de escrever de Sholes, de 1868, emaciada até o princípio puro,

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carrega-nos até hoje. Turing simplesmente aboliu de uma vez por
todas o ser humano ou o estenotipista, tão necessários a Remington
& Son para a escrita e a leitura. Caso contrário, a máquina discreta
universal não teria sucesso ao simular esses seres humanos.
E isso porque uma máquina de Turing é ainda mais tremenda-
mente primitiva do que o projeto da máquina de escrever de Sherborn.
Tudo o que ela manipula é uma fita de papel, que representa simulta-
neamente seu programa e seus dados, seu input e seu output. Nessa fita
unidimensional Turing emaciou a típica página datilografada. Contudo,
as reduções vão ainda mais além: sua máquina não precisa das várias
letras, números e signos redundantes de um teclado de máquina de
escrever; ela funciona com um único signo e com a sua ausência, com
1 e 0. Essa informação binária pode ser lida ou (no termo técnico de
Turing) tateada pela máquina. Depois disso, ela pode deslocar a fita de
papel um campo à direita ou um campo à esquerda ou não deslocar,
trabalhando, por conseguinte, de modo tão brusco – isto é, discreto –
quanto as máquinas de escrever, que, à diferença da caligrafia, têm
letras de forma, tecla de retorno e barra de espaço (numa carta a
Turing se lê: “Pardon the use of the typewriter: I have come to prefer
discrete machines to continuous ones” [“Perdoe o uso da máquina
de escrever: passei a preferir máquinas discretas às contínuas”]).65 O
modelo matemático de 1936 não é mais um híbrido de máquina e
mera ferramenta. Como sistema retroalimentado, ele supera todas
as Remingtons, pois o signo tateado ou a sua ausência na fita de
papel determina o próximo passo de trabalho, que é uma escrita: da
leitura depende se a máquina deixará ou apagará esse símbolo ou, ao
contrário, se deixará um espaço vazio ou o sobrescreverá com um
símbolo etc.
Isso é tudo, mas nenhum computador que já foi ou que venha
a ser construído consegue fazer mais do que isso. As mais modernas
máquinas de Von Neumann – com memória de programa e unidade
de processamento – rodam mais rápido, mas não são em princípio
diferentes do modelo infinitamente lento de Turing. Além disso, nem
todo computador tem que ser uma máquina de Von Neumann, ao

Introdução | 43
passo que todos os aparelhos imagináveis de processamento de dados
são somente estados N da máquina discreta universal. Alan Turing
provou isso matematicamente em 1936, dois anos antes de Konrad
Zuse ter montado em Berlim o primeiro computador programável
juntando simples relés. E com isso o mundo do simbólico se tornou
de fato um mundo da máquina.66
A era das mídias – diferente da história, que aquela termina –
anda bruscamente como a fita de papel de Turing. Da Remington,
passando pela máquina de Turing, para chegar à microeletrônica;
da mecanização, passando pela automatização, até chegar à imple-
mentação de uma escrita que é algarismo e não sentido – bastou um
século para transladar o antigo monopólio de registro da escrita para
uma onipotência dos circuitos. Como os correspondentes de Turing,
todos migram de máquinas analógicas para as discretas. O CD digi-
taliza o gramofone, a câmera de vídeo, o cinema. Todos os fluxos de
dados desembocam em estados N da máquina universal de Turing;
números e figuras se tornam (à revelia do Romantismo) a chave para
todas as criaturas.
O cabeamento da República Federal pode avançar.

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