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FETICHISMO, GOLPE RETÓRICO E A CRÍTICA DA

MODERNIDADE EM MARX

Alexandre Abreu Medrado


Graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. E-mail: xandeabreu11@hotmail.com
André Américo da Silva
Graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. E-mail: andreamericosilva@gmail.com
Bruno Siqueira Fernandes
Graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. E-mail: brunoggsiqueira@gmail.com

Resumo

Marx, em sua obra O Capital (1867), apresenta uma relação estabelecida no seio
da sociedade burguesa moderna: o fetichismo da mercadoria. Por muito tempo
esse termo foi tratado com certo descaso e “o desenvolvimento das ideias de
Marx acerca do fetichismo da mercadoria não atraiu particular atenção” (Rubin,
1980, p. 68). O artigo parte então da observação do fetichismo enquanto teoria
e contribuição à crítica da economia política clássica e, sobretudo, da modernida-
de. O trabalho traz, a partir da contribuição do texto de Roger Sansi, a história
do termo ao longo do tempo, desde o seu uso e designío inicial e será levado
até o seu uso final como crítica modernidade-tradição. Feito isso, será mostra-
do como o golpe retórico utilizado por Marx a partir da inversão do uso desse
termo se apresenta como contribuição à sua crítica modernidade-modernidade.

Palavras-chave: Fetichismo, Teoria Marxista, Karl Marx, História do Termo, Rubin.

Abstract

In Das Kapital Marx presents a relation established in the core of the modern
bourgueois society: the commodity fetishism. For long time this term remained on
disregard and “the development of Marx’s ideas about commodity fetishism did not
attract particular attention” (Rubin, 1980, p. 68). The present paper starts from
the observation of fetishism as a theory and a contribution to the critics of classical
economics and modernity. From the contribution of the text by Roger Sansi, the
work brings a history of the term over time, from its use and initial designation to
Marx’s use, as a critic to tradition-modernity. Once this is done, it will be shown
how the rhetorical coup used by Marx from the inversion of the use of the term is
presented as a contribution to his critics to modernity-modernity.

Keywords: Fetishism, Marxist theory, Karl Marx, History of the term, Rubin.

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1- Introdução das relações de produção entre os indivíduos


de uma sociedade. Nesse contexto, a economia
Esse artigo é resultado da disciplina política teórica, trata da economia mercantil-
obrigatória Economia Política, ofertada por capitalista, ou seja, aborda as relações entre
Eduardo da Motta e Albuquerque, na FACE/ as forças produtivas e as relações de produção
UFMG. Parte de um esforço em perceber, a mercantil-capitalista. As características dessa
partir do conceito de Fetichismo da Mercadoria, formação econômica e das suas relações de
elaborado por Karl Marx (2013 [1867]), uma produção são representadas na teoria do
crítica à modernidade partindo da modernidade. fetichismo da mercadoria.
Em um primeiro momento, será A discussão acerca da teoria do
apresentada a origem do termo, desde seu fetichismo da mercadoria na literatura é extensa.
uso inicial como crítica modernidade-tradição, Para Rubin (1980), a teoria econômica de Marx
a partir do texto de Roger Sansi (2008). Em sobre o fetichismo da mercadoria não ocupou
seguida, a partir do livro de Rubin, será o lugar que merece no sistema econômico
mostrada a importância da teoria do fetichismo marxista, pois foi avaliada apenas como uma
enquanto teoria social crítica e real, não belíssima teoria sociológica da sociedade
metafísica. Num terceiro momento, será moderna capitalista. Em geral, é tratada como
mostrado o que Amaro Fleck denomina golpe uma parte “independente” da teoria econômica
retórico e como à luz dessa inversão feita no de Marx, fato que se justificaria até mesmo na
uso do conceito podemos entender o conceito disposição formal do capítulo primeiro de “O
de fetichismo como uma contribuição à crítica Capital”, no qual essa teoria é exposta de forma
da modernidade. separada (exceto na primeira edição alemã).
A metodologia a ser utilizada Além disso, Amaro Fleck (2012) cita que o
compreende a revisão bibliográfica de obras que conceito de fetichismo seria reduzido ao fato
auxiliam o entendimento a partir da análise de de que a economia política clássica naturaliza
Amaro Fleck, bem como a própria obra O Capital relações historicamente determinadas, de
de Karl Marx. Por fim, serão apresentadas modo que as torna inquestionáveis, sendo
as conclusões e as possibilidades que essa compreendido como o termo “robinsonada”, em
compreensão pode trazer à teoria social crítica. sentido metafórico.
Entretanto, tanto para Rubin quanto
2- O Papel Teórico do Fetichismo da Fleck, e para esse presente estudo, com fins
Mercadoria de se analisar o fetichismo da mercadoria de
Marx, é imprescindível ter em mente a própria
Segundo Rubin, já na introdução da organização social-econômica burguesa, ou
sua obra “A Teoria Marxista do Valor”, existe seja, a produção mercantil é indissociável do
uma relação conceitual próxima entre a teoria fetichismo das coisas (entendem-se como
econômica de Marx, a teoria do valor-trabalho, e coisas as mercadorias, produtos do trabalho,
a sua teoria sociológica, a teoria do materialismo assim como tratado por Marx) e o fetichismo é
histórico. Dito isso, ambas têm o mesmo ponto indissociável da produção mercantil burguesa.
de partida: o trabalho como elemento básico A teoria do fetichismo da mercadoria é
da sociedade. De forma sucinta, as formações transformada numa teoria geral das relações
econômicas são diferentes segundo o caráter de produção numa economia mercantil, numa

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propedêutica à economia política (RUBIN, de uso, é sabido que não há mistério. As


1980). mercadorias devem satisfazer as necessidades
humanas por meio de suas propriedades, não
2.1- A organização econômico- importando a natureza dessa necessidade ou
social burguesa capitalista e a forma o trabalho humano que gera como produto as
“fantasmagórica” da relação entre as propriedades. Por exemplo, em uma associação
coisas de homens livres, que trabalham com meios
de produção coletivos e despendam sua força
Primeiramente, vê-se necessário de trabalho como uma única força social de
explicitar as formas sociais e de produção da trabalho, as relações sociais dos homens com
economia capitalista. Os modos de produção seus trabalhos e seus produtos do trabalho
anteriores ao capitalismo funcionavam segundo permanecem transparentemente simples,
a lógica do que Marx irá chamar de “circulação tanto na produção quanto na distribuição
simples da mercadoria”. Para Marx, a forma (MARX, 2013, p. 153). Conscientemente,
mais imediata através da qual as mercadorias eles distribuem sua força de trabalho entre
circulam é a transformação da mercadoria em as atividades de produção necessárias para
dinheiro, seguida de nova transformação do obter determinadas quantidades dos diferentes
dinheiro em mercadoria: vender para comprar produtos que eles precisam como valor de
(M -> D -> M). uso. O valor (de troca) já está contido nessa
O capitalismo introduz uma nova lógica determinação, pois os produtos são distribuídos
de circulação das mercadorias, que Marx irá entre os membros da associação, conforme a
chamar de “comprar para vender”, onde existe organização destes.
uma transformação do dinheiro em mercadoria, Na organização capitalista, a
seguido de nova transformação do capital em característica marcante é a independência
dinheiro ( D -> M -> D). Na primeira forma, dos produtores de mercadorias. A produção é
o dinheiro converte-se em mercadoria para administrada diretamente pelos produtores de
servir através de seu valor de uso, enquanto na mercadorias isolados e não pela sociedade. A
segunda o objetivo final é manter em seu poder sociedade não regula diretamente a atividade
uma mercadoria com valor de troca (dinheiro). de trabalho de seus membros, não determina
É necessário que alguma das mercadorias o que vai ser produzido nem quanto (RUBIN,
compradas / vendidas seja capaz de criar valor, 1980, p. 21). A relação social dos homens com
para que se alcance o objetivo do capitalista de seus trabalhos e seus produtos do trabalho
aumentar o capital empregado anteriormente, não são mais tão transparentes assim, como
e Marx identifica na força de trabalho essa observado na associação supracitada. O
característica, já que, considerada também uma produtor passa a produzir objetivamente para
mercadoria como tantas outras pelo capitalista, a troca, e seu trabalho privado passa a assumir
é a única capaz de produzir coisas úteis, um duplo caráter social. O trabalho privado
adicionando valor, não apenas transferindo seu precisa ser parte do trabalho social, isso se faz
valor para o produto final. necessário para que este assuma esse duplo
Na obra de Marx (2013), o valor caráter. O trabalho social, diferentemente
aparece denotado no seu duplo-caráter: valor de ser uma força única dos produtores, é o
de uso e valor de troca. Em relação ao valor conjunto dos trabalhos privados dos membros

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da sociedade. Estes trabalhos só irão se tornar de trabalho humano do mesmo tipo.


Ao contrário. Porque equiparam
capazes de satisfazer as necessidades de seus entre si seus produtos de diferentes
produtores, na medida em que são úteis e tipos na troca, como valores, eles
equiparam entre si seus diferentes
podem ser trocados por outros trabalhos de
trabalhos como trabalho humano.
mesma característica (MARX, 2013, p. 148). Eles não sabem disso, mas o fazem.
Rubin (1980, p. 21) explica:
Em toda essa caracterização da
A divisão social do trabalho vincula economia mercantil-capitalista, encontramos
todos os produtores de mercadorias
num sistema unificado que é
o fetichismo da mercadoria. Ele é,
denominado economia nacional, essencialmente, a absorção das propriedades
num ‘organismo produtivo’ cujas
das relações humanas pelas relações entre as
partes se relacionam e condicionam
mutuamente. Como se cria esse mercadorias. Em outras palavras, a relação
vínculo? Através da troca, através entre as mercadorias possui determinadas
do mercado, onde as mercadorias
de cada produtor isolado aparecem características que, na verdade, são originárias
de forma despersonalizada, das relações humanas. A teoria do fetichismo
como exemplares isolados de um
determinado tipo de mercadoria, consiste em Marx ter visto relações humanas
a despeito de quem as produziu, por trás das relações entre as coisas, revelando
ou onde, ou sob que condições
específicas. a ilusão da consciência humana que se origina
da economia mercantil e atribui às coisas
Como se entende, afinal, essa relação características que têm sua origem nas relações
de produtores, a troca dentro do mercado? sociais entre as pessoas no processo de
Entende-se como uma relação entre coisas. produção (RUBIN, 1980, p. 19). O que é uma
As coisas (mercadorias) são o intermediário relação entre as pessoas, aparece como uma
da relação entre os produtores, e a circulação relação entre coisas. Segundo Marx (2013, p.
dessas é a representação das relações de 147):
produção entre as pessoas. Segundo Rubin
A forma-mercadoria e a relação de
(1980, p. 24-25), a coisa adquire características valor dos produtos do trabalho em
sociais e específicas, numa economia mercantil, que ela se representa não guardam
absolutamente nenhuma relação
graças às quais ela não só oculta as relações de com sua natureza física e com as
produção entre as pessoas, como também as relações materiais que derivam
desta última. É apenas uma
organiza, servindo como elo de ligação entre as relação social determinada entre os
pessoas. Vale destacar que, diferentemente da próprios homens que aqui assume,
para eles, a forma fantasmagórica
associação de produtores (uma representação de uma relação entre coisas.
da sociedade socialista), na qual esses atuam
conscientemente, na economia mercantil A seguir, será apresentada o histórico
capitalista o produto do trabalho assume do conceito de fetiche, desde seu uso inicial
um caráter enigmático, e os homens nessa até o momento em que Marx aplica à inversão
organização social agem sem saber. Marx do termo enquanto crítica da modernidade à
(2013, p. 149) esclarece: modernidade.

Os homens não relacionam entre


3- História do conceito de fetiche (de
si seus produtos do trabalho como
valores por considerarem essas Charles de Brosses à Marx)
coisas meros invólucros materiais

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miscigenação europeu-africano) e aos fetiches


Para uma problematização mais como as “coisas” mais abjetas da África
profunda é fundamental uma genealogia do (1705 apud SANSI, 2008), sendo o segundo
conceito de fetiche. Sua origem remonta, pano de fundo para diversas reflexões que
segundo Roger Sansi (2008), ao conceito de sempre tem como conclusão a inferioridade
“feitiço”, documentado pela primeira vez em dos africanos. No entanto, aquilo que Bosman
peças jurídicas de 1385 e 1403 em que o rei considera práticas de “fetiche” são muito
João I proíbe seus súditos de “obrar feitiços próximas às práticas religiosas europeias, em
ou ligamentos, ou chamar diabos” (PIETZ, especial aquelas relacionadas ao catolicismo.
1987 apud SANSI, 2008, p.128). Mais tarde, Os “santos” católicos, seres capazes de
o Vocabulário Portuguez e Latino (BLUTEAU, superar sua condição natural e realizar feitos
1713 apud SANSI, 2008, p. 129) apresenta extraordinários, eram também símbolos das
uma definição mais precisa, em que a feitiçaria, disputas iconoclastas travadas entre a Igreja e
sendo coisa humana, não teria um efeito seus desertores, os protestantes, sendo assim
natural, mas a intervenção do Demônio lhe dá natural identificar nos africanos características
poderes sobrenaturais. Assim, a feitiçaria seria do inimigo europeu, de modo a inferiorizá-los.
um evento que não poderia ser reduzido às suas Segundo Sansi (2008), na
causas naturais, exigindo um poder ulterior que interpretação dos protestantes, fetichismo e
a torne efetiva, bem como um milagre, mas em catolicismo transformam religião em negócio ao
sentido contrário. estabelecer e controlar canais de intermediação
Há uma distância entre os conceitos entre mundano e divino. Esse modo de
de “feitiço” e de “fetiche”, ainda que o primeiro pensar é inimaginável para os protestantes,
seja a origem do segundo. Enquanto que que interpretam a religião como um aspecto
os feitiços tinham a forma prática de uma privado da vida das pessoas, ao passo que
“magia” (análogas aos objetos sacramentais o comércio é assunto público, espaço para a
pagãos e mesmo cristãos católicos, além de construção de valores segundo as leis da “mão
pequenas formas de magia doméstica e pessoal invisível” do mercado. Marx, por sua vez, irá
europeias), consumadas através de objetos com interpretar essa “mão invisível” em termos de
uma historicidade própria e que, através dessa magia e a produção de valor das mercadorias
história, adquirem a possibilidade de servirem em termos de fetiche. Daí a necessidade de
como intermediários para a realização de feitos se entender esse aspecto da obra do filósofo
extraordinários, o fetiche surge como um termo alemão. No entanto, somente com Charles
utilizado para designar práticas religiosas de Brosses, em Du Culte des Dieux Fétiches
alheias (BRITTES, 2011), características de (1760), é que o termo será sintetizado de modo
povos colonizados, ou seja, “inferiores”. a adquirir uma consistência conceitual capaz de
Esse esforço de desumanização torná-lo útil para a filosofia e, mais tarde, as
do outro, de sua história e cultura até sua ciências humanas interpretarem as diferenças
constituição física, era recorrente no mundo entre o modo de pensar e as práticas religiosas
dos impérios coloniais, um caldeirão de culturas europeias e africanas.
e etnias. Willem Bosman, capitão holandês Até De Brosses o termo “fetichismo”
do Castelo de São Jorge de Mina tomado dos era utilizado somente para designar as práticas
portugueses, se refere às mulatas (fruto da religiosas dos povos das regiões denominadas

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“Costa do Ouro” (atual Gana) e “Costa dos características divinas àquilo que são incapazes
Escravos” (atuais Togo, Benim e Nigéria). Seu de compreender ou controlar.
livro tinha como objetivo comparar as religiões Nesse mundo absolutamente caótico,
fetichistas africanas com as religiões do antigo irregular, os fetiches eram escolhidos ao acaso,
Egito, mas vai além, se referindo também e seriam eles mesmos os objetos de adoração,
às práticas religiosas dos ameríndios, dos diferentemente do que acontece em religiões
apalaches, além dos antigos celtas, saxões, não-fetichistas, em que o objeto de adoração
gregos, entre outros, tendo sempre em comum (uma estátua, uma imagem) seria apenas uma
o fato de terem como objeto de adoração representação do divino ulterior. Isso denotaria
animais ou seres inanimados. Tal esforço de a incapacidade dos povos que praticavam
generalização só é possível fundamentado na religiões fetichistas de fazerem representações
ideia de que existiu uma religião antiga que deu abstratas, simbolizar, metaforizar, o que, para
origem a todos os fetiches, tratando-se de uma De Brosses, são os fundamentos da razão.
“classe particular dentre as diversas religiões Como resultado os fetichistas, inclusive aqueles
pagãs” (BROSSES, 1760, apud BRITTES, 2011, que se encontravam nas mais avançadas
p. 68). Tal fetichismo original é colocado por nações europeias, mas que ainda agiam como
De Brosses num grau de sofisticação inferior à os homens de Guiné, buscando a superstição,
todas as formas de culto religioso conhecidas na a magia e o misticismo, seriam incapazes de
época, como o sabeísmo e a adoração do sol e raciocinar, característica básica do humano
dos astros, o politeísmo e, obviamente, àquela enquanto tal, em oposição absoluta, na escala
que é considerada a forma de culto religioso dos “graus de humanidade”, ao homem racional-
mais sofisticada, o monoteísmo. E como os iluminista, que alcançara o grau máximo de
negros estavam presos à forma mais atrasada abstração através da filosofia, da ciência e da
de culto religioso e, indissociavelmente, à arte.
selvageria de modos e de pensamento, sem Popularizado por De Brosses, o
que dela conseguissem sair (ao contrário de conceito de fetichismo é utilizado mais tarde
outros povos, que conseguiram superar esse por vários filósofos, como Voltaire, que utiliza
estágio rudimentar de culto religioso) a escolha o termo para criticar as religiões africanas,
de um termo africano para designar o mais mas também o cristianismo, a escravidão e a
baixo dentre os ritos pagãos foi quase óbvia. filosofia otimista (1918 apud BRITTES, 2011);
Segundo De Brosses, todos aqueles Kant se refere ao fetichismo como a religião
que praticam as religiões fetichistas, os negros daqueles que estão longe do belo e do sublime,
africanos em especial, seriam ignorantes, e sinônimo de magia e superstição (1864 apud
dessa ignorância nasce o medo e a impotência BRITTES, 2011); Hegel atribui aos povos
diante do mundo natural, suas causalidades e fetichistas um caráter de ausência de história,
irregularidade. Assim, esses povos atrasados cujo único movimento possível capaz de retirar
passariam a personificar coisas e a natureza, esses povos de sua inércia seria um choque
ou seja, transferir aos objetos características exterior, como a escravidão, já que o espírito
humanas, como a intencionalidade ao agir, de não desenvolvido dos africanos os prendia às
modo a dar sentido ao mundo, mas de maneira formas primitivas de pensamento. Mas o mais
primitiva. Essa é também uma forma de claro exemplo de uso do termo para designar
divinização, já que os seres humanos atribuem uma inferioridade religiosa foi o de Comte, que

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consideraria o fetichismo como a primeira etapa europeus, tendo assim um caráter reflexivo no
no desenvolvimento da religião, observável uso do conceito, já que o utiliza para explicar a
inclusive nos animais superiores (1841 apud própria sociedade onde vive, e não para acusar
BRITTES, 2011). No entanto, a teoria de Comte o outro (ibidem p. 144). A ideia do filósofo
se diferencia daquela de De Brosses porque alemão não é igualar em termos de barbárie
para ele já existem traços de especulação no negros africanos e brancos europeus, mas
fetichismo, já que este é o momento em que apontar um elemento fetichista na sociedade
o homem se liberta do “torpor animal”, e o dita civilizada de modo a superá-la.
assombramento com o mundo o leva à reflexão, Antes mesmo de O Capital, Marx utiliza
ainda que primitiva. o termo “fetichismo” em algumas de suas
Lubbok irá definir, em concordância obras, com destaque para os Grundrisse. Nele
com Kant, o fetichismo enquanto crença o conceito aparece de forma mais consistente
na capacidade humana de influenciar as e relacionada com o signifcado que terá mais
divindades, provocando o extraordinário (2005 tarde, ou seja, o “fato de que são atribuídas
apud BRITTES, 2011). Mas existiria para ele um relações sociais às coisas” (ibidem p. 145). A
modo ainda mais inferior de religiosidade: a diferença é que nos Grundrisse Marx se refere
absoluta ausência dela, ou seja, a inexistência ao fetichismo como um erro que mistifica o
de qualquer ideia relacionada à divindade. Em objeto de estudos dos economistas ao atribuir às
comum, todos os autores citados têm o fato coisas qualidades naturais, quando na verdade
de acreditarem ser o fetichismo a forma mais são as relações sociais de produção entre os
baixa de pensamento religioso, ou uma das seres humanos que atribuem as qualidades
mais baixas, que se desenvolve com um grau aos objetos, enquanto no Capital o fetichismo
mínimo (ou nenhum grau) de abstração. Seria se refere às qualidades dos próprios objetos.
o culto do imediatismo físico, num contexto Em Para a crítica da economia política, o
em que o material era considerado inferior ao termo aparecerá para designar a naturalização
abstrato, espiritual, transcendente. da riqueza na forma de objetos materiais,
Ora, Marx utiliza o conceito de especificamente o ouro e a prata, como
“fetichismo” em um livro que trata das formas necessidade do modo de produção burguês,
de organização econômica em sociedades diferenciando-se assim da conotação subjetiva
desenvolvidas. Nesse sentido, o questionamento com que o termo aparece nos Grundrisse.
de Amaro Fleck em seu texto intitulado O Já nas Teorias da mais-valia, obra que já
conceito de fetichismo na obra marxiana é faz parte do arcabouço teórico do Capital, o
absolutamente relevante: “qual a relevância do conceito será utilizado nos dois sentidos citados
conceito de fetichismo na argumentação de O anteriormente (FLECK, 2012, p. 146).
Capital? Como este conceito se relaciona, caso Chegando ao Capital propriamente dito,
se relacione, com o restante da obra?” (2012 objeto último de nossa análise, o problema se
p. 142). Como dito anteriormente, o termo torna mais complexo. Dado que os objetos têm
“fetichismo” foi criado para se referir ao outro, valor de uso, esse valor poderia ser considerado
ao bárbaro, irracional, animal, não civilizado. estabelecido através do trabalho empregado
Marx o subverte quando o utiliza para se referir, na produção desses artigos úteis. Quanto
não aos negros de Guiné, mas aos brancos ao valor de troca, poderíamos estabelecer

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critérios semelhantes, e a questão foi bastante opacidade da sociedade medieval se dá através


discutida por Smith e Ricardo antes de Marx, da religião, enquanto na sociedade moderna é
que se apropria de suas reflexões. No entanto, causada pelo vínculo mercantil, o que acaba
quando observado de perto, é constatado que por provocar uma inversão da finalidade da
na verdade o valor de troca é estabelecido produção (FLECK, 2012, p. 151). As pessoas
única e exclusivamente por questões de trabalham não mais para produzir objetos úteis
costumes e tradição, à revelia daqueles que ao consumo, valor de uso, mas para produzir
produzem. Nesse sentido, podemos dizer que coisas que possam ser trocadas de forma a se
as mercadorias têm uma dupla existência: aumentar o montante inicial despendido, ou
pode ser utilizada para algum fim, em que os seja, para criar mais valor de troca.
homens desfrutam daquilo que produziram,
ou podem ser trocadas, dimensão na qual os 4- Inversão do conceito e contribuição à
homens não passam de portadores de valores crítica da modernidade
que irão se relacionar no mercado “de forma
quase autônoma” (MARX, 2013, p. 148). A partir da genealogia do termo, feita
O surgimento e intensificação do uso do no tópico anterior, finalmente chegamos ao
dinheiro agrava essa questão, já que o dinheiro momento em que Marx opta pelo uso deste.
não tem um valor de uso em si mesmo, mas Esse conceito, além de uma inversão, carrega
tem o maior valor de troca por ser o equivalente consigo uma crítica à sociedade dita moderna.
geral de todas as mercadorias, sendo assim
uma espécie de “encarnação direta” do valor 4.1- O conceito de Fetichismo e o nebuloso
(MARX, 2013, p. 149). O problema do valor Mundo da Religião
de troca das coisas que irão se relacionar no
mercado (à revelia dos produtores) no mundo Marx escolhe como ponto de partida
capitalista, que se intensifica na questão do de sua obra (O Capital) a mercadoria. O início
dinheiro (já que muitas vezes o valor de uso da investigação por esse ponto é justificado,
e o valor de troca são confundidos, o que não segundo ele (2013, p. 113), porque esta seria
acontece com o dinheiro), é o mesmo que o a manifestação da riqueza das sociedades onde
das coisas que também carregam valor de uso. reina o modo de produção capitalista. Além
Nesse sentido, podemos observar nos objetos disso, pelo fato da mercadoria individual ser
produzidos dentro do sistema capitalista uma sua forma elementar. Entretanto essa análise,
característica semelhante aos objetos descritos que à primeira vista aparenta ser trivial, se
anteriormente como origem de “fetiches” torna difícil pelas “sutilezas metafísicas e
religiosos: elas são o que são, mas são também melindres teológicos” dos produtos do trabalho
outras coisas (divindades ou trabalho passado) que assumem essa forma.
(MARX, 2013, p. 150). O desenvolvimento do sistema
Para Fleck, o papel do conceito de mercantil e da (produção para) troca, carrega
fetichismo no Capital é central. Isso porque, em seu seio o desenvolvimento de uma relação
ao utilizá-lo, Marx mostra que a sociedade social reificada. Para Marx (2013), a mercadoria
capitalista, dita civilizada, é tão “opaca” tem consigo um duplo caráter: o valor de uso
quanto a sociedade medieval que ela vem para e o valor de troca. Esse duplo caráter estaria
desconstruir e substituir. A diferença é que a relacionado à dupla natureza do trabalho

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representado nas mercadorias: trabalho única propriedade: a de serem produtos do


concreto e trabalho abstrato. A compreensão trabalho” (MARX, 2013, p.116). E é justamente
do movimento dialético desses termos para a a abstração de seus valores de uso que resulta
produção do que é conhecido como valor é de na abstração de seu trabalho concreto e útil,
suma importância para a igual compreensão do fazendo com que o “algo comum de mesma
processo de reificação das relações sociais na grandeza” seja, na verdade, o trabalho abstrato,
sociedade capitalista. o trabalho humano cristalizado na mercadoria.
Segundo Marx (2013, p. 114), “a A relação dialética entre todas estas
utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso”. naturezas duais do trabalho e do valor (de uso
Este valor está atrelado à efetividade do uso e de troca) se manifesta no valor. Sobretudo,
e, portanto, se dá no consumo da mercadoria o caráter místico da mercadoria “não resulta,
(ibidem). Os valores de uso formam, segundo portanto, de seu valor de uso. Tampouco resulta
Marx, a riqueza material de uma sociedade, do conteúdo das determinações de valor”
independente de sua forma social, além de (MARX, 2013, p. 146). Segundo Marx (2013,
servirem, no modo de produção mercantilista, p. 147), este enigma resultaria justamente
como “recipientes” para o valor de troca. da sua forma-mercadoria, que passa a ser a
O trabalho concreto e útil (2013, p. 124) é manifestação do valor dos produtos do trabalho.
responsável pela produção dos valores de uso, Por fim: “as relações entre os produtores, (...),
isto por ser um “dispêndio de força humana de assumem a forma de uma relação social entre
trabalho numa forma específica” (ibidem). os produtos do trabalho” (MARX, 2013, p. 147).
O valor de troca, por sua vez, “aparece Sendo assim, para Marx (2013, p. 148), “é
inicialmente como a relação quantitativa, a apenas uma relação social determinada entre
proporção na qual valores de uso de um tipo os próprios homens” que irá assumir “a forma
são trocados por valores de uso de outro tipo” fantasmagórica de uma relação entre coisas”,
e, segundo Marx (2013, p.114), é “uma relação portanto, a melhor analogia seria o refúgio no
que se altera constantemente no tempo e no “mundo religioso”.
espaço” o que revela seu caráter acidental e Esta inflexão ao mundo religioso faz
não intrínseco. Sobre o valor de troca, Marx usa com que Marx venha a utilizar seu termo: o
o seguinte exemplo: fetichismo da mercadoria. Esse movimento
rumo a essa “região nebulosa” pode resultar
Tomemos, ainda, duas mercadorias,
em interpretações errôneas como as de
por exemplo, trigo e ferro. Qualquer
que seja sua relação de troca, Hammacher, observadas por Rubin (1980,
ela é sempre representável por p. 68): “no entender deste, as origens dessa
uma equação em que uma dada
quantidade de trigo é igualada a teoria são puramente “metafísicas”; Marx
uma quantidade qualquer de ferro, simplesmente transferiu para o domínio da
(...). O que mostra essa equação?
Que algo comum de mesma economia as ideias de Feuerbach sobre a
grandeza existe em duas coisas religião”. Além disso, segundo Rubin (1980, p.
diferentes, (...). (MARX, 2013, p.
115). 69), para Hammacher a teoria do fetichismo
não contribui de maneira alguma para a teoria
Algumas páginas à frente o autor irá econômica.
dizer que “prescindindo do valor de uso dos Hammacher acerta ao ver nesta teoria
corpos das mercadorias, resta nelas uma uma “crítica à cultura contemporânea”, mas

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deixa esta análise incompleta ao afirmar o do seu conceito de Fetichismo da Mercadoria,


caráter puramente metafísico do fetichismo um processo que mantem a sociedade burguesa
enquanto teoria. Para Rubin (1980, p. 73), moderna alienada.
“o fetichismo é não apenas um fenômeno da Inicialmente, como mostrado na seção
consciência social, mas da existência social”. 3, o termo fetichismo era utilizado enquanto
E, portanto, é a manifestação da reificação uma crítica modernidade-tradição. Marx,
das relações sociais trazida pela sociedade porém, ao utiliza-lo o faz em tom de crítica
mercantilista ao mundo social. modernidade-modernidade. O golpe retórico
A sociedade mercantilista limita a utilizado por Marx ao apropriar desse conceito
relação dos trabalhadores a uma relação entre que antes era utilizado para designar o outro de
coisas. Como Marx (2013, p. 428) salienta o forma reflexiva, segundo Fleck (2012, p. 144),
que estabelece a conexão entre diversos e “abole, em primeira instância, a distinção rígida
variados trabalhos autônomos é a existência de entre o civilizado e o primitivo, mostrando,
seus produtos do trabalho como mercadorias. nesse caso específico, o quanto de primitivo há
A legitimidade desse processo se dá pela no civilizado”.
própria divisão social do trabalho da sociedade Algumas observações da primitividade
burguesa moderna, que, ao separar os trabalhos são antecipadas pelo Jovem Marx, inclusive
autônomos faz com que a única forma legitima na civilização burguesa moderna em seu livro
de reconhecimento seja a forma da concorrência Sobre a Questão Judaica (2010 [1843]). Como
via produtos do trabalho (mercadorias). Marx assinala Dalla (2014, p. 74):
(2013, p. 430), ao apresentar essa divisão do
Os três significantes que
trabalho em sua forma moderna, apresenta
embasam toda a codificação pós-
aspectos de extrema primitividade, chegando revolucionária francesa, Marx os
a relacionar ao reino animal, a uma “guerra de analisa, são liberté, égalité e sûreté.
(...). É aqui que aparece da forma
todos contra todos”. mais paradoxal a ruptura entre
o cidadão (ci¬toyen) e o homem
empírico (homme). Os direitos
4.2- A crítica modernidade-modernidade são declarações para o homem e o
cidadão – duas figuras que habitam
o mesmo corpo.
Uma melhor compreensão da obra
de Karl Marx passa pela necessidade de O autor ainda diz (ibidem, p. 75) que
conhecimento das raízes filosóficas do seu Marx “reconhecerá que tudo isso existe para a
pensamento. Desse modo, seu particular declaração do citoyen como serviçal do homme
interesse em uma sociedade “desalienada” é egoísta” e que, “quando vemos que a esfera em
resultado do hegelianismo que permeia sua que o homem existe como ente comunitário é
discussão e seu contexto ideo-histórico (VAZ, inferiorizada em relação àquela em que ele se
1982, p. 13). comporta como “ente parcial”, percebemos que
Para Vaz (ibidem), citando Hegel, “a “o real não é o citoyen, mas o homem como
história não é mais do que o “progresso na bourgeois”.
consciência da liberdade”, e, nesse sentido, a Estas passagens ressaltam a ruptura
visão hegeliana da história alonga-se sobre o com a “condição pós-revolucionária francesa”
caminho de superação das alienações”. Marx, da sociedade burguesa moderna. A dita
então, herda essa tradição e evidencia, a partir

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FETICHISMO MULTIFACE

modernização e o acesso à liberdade são individualização dos interesses como meio de


assaltados aqui pela figura do homme, mais ascensão social, é totalmente derrubado a
precisamente como bourgeois, e a liberdade partir do momento em que se verifica o início
como a propriedade privada. Como Harvey da realidade industrial pós-revolução industrial.
(2010, p. 42) salienta: “Thus Marx begins his O surgimento de novas doenças atrelados
attack on the liberal concept of freedom. The às práticas de trabalho e ao surgimento de
freedom of the Market is not a freedom at all. It uma “patologia industrial” (MARX, 2013, p.
is a fetishistic illusion”. 437), mostra o quanto, dentro do próprio
Marx (2013, p. 430) ainda mostra a conceito hegeliano de superação da alienação,
hipocrisia burguesa sobre a divisão social do a modernidade burguesa é na verdade um
trabalho (no trecho a divisão manufatureira) moderno precário e não atinge a totalidade
e seu posicionamento de festa/denuncia as social. O avanço na alienação de toda a família
questões relacionadas a propriedade privada. (mulheres e filhos), apesar de se basear no
Como ele mesmo aponta: conceito de liberdade, engendra um processo
de escravização e não libertação. Marx chega a
A mesma consciência burguesa
afirmar que o capital obriga ao trabalhador a,
que festeja a divisão manufatureira
do trabalho, a anexação vitalícia além de vender sua força de trabalho, vender
do trabalhador a uma operação sua mulher e filhos, como verdadeiro “mercador
detalhista e a subordinação
incondicional dos trabalhadores de escravos” (MARX, 2013, p. 469) e sendo um
parciais ao capital como uma verdadeiro ato de “corrupção moral” (ibidem,
organização do trabalho que
aumenta a força produtiva, p. 473). A modernidade burguesa pode então
denuncia com o mesmo alarde todo ser percebida pela sua verdadeira, nessa
e qualquer controle e regulação
social consciente do processo social perspectiva, faceta: o retrocesso.
de produção como um ataque aos
invioláveis direitos de propriedade,
liberdade e à “genialidade” 4.3- A inversão e a contribuição à crítica
autodeterminante do capitalismo da Economia Política Clássica
individual (MARX, 2013, p. 430).

Após apresentar diferentes trechos


Esse atraso e retrocesso, visto por Marx
onde Marx evidencia os efeitos e mal-estares
até mesmo na economia política clássica (2013,
do século XIX, vamos, agora, apresentar
p. 612), é um empecilho a uma verdadeira
as contribuições metodológicos da inversão
“condição moderna”. E ainda afirma, que a
do conceito de fetichismo da mercadoria,
economia política clássica, apesar de chegar
agora num sentido de crítica modernidade-
muito próximo a real relações das coisas, não
modernidade.
será capaz de faze-la se ainda estiver “coberta
Segundo Fleck (2012, p. 144), “esta
com sua pele burguesa”. Para além da própria
não é uma crítica que visa mostrar que “todas
crítica a economia política burguesa, há também
as vacas são pardas”, mas, “visa corrigir uma
(ibidem, p. 609) uma crítica a própria economia
visão deformada do mundo”. Essa “visão
vulgar, baseada puramente no “princípio do
deformada” diz respeito ao “indivíduo que
culto das aparências”.
afirma a superioridade da sua sociedade” e esse
O conceito de liberdade, legitimado
conceito é o método marxiano que evidência
pós-revolução francesa, muitas vezes
essa visão e busca suprimi-la. Fleck (ibidem)
associado à modernidade, ao capitalismo e à

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ainda afirma que “o objetivo não é a igualação”, 2012, p. 144).


ou seja, mostrar que em tudo existe o primitivo
(possibilidade de crítica), mas, ir além, “a 5- Conclusão
superação”. Evidenciar o elemento fetichista
coloca esse indivíduo em uma posição de crítica Sendo assim, a partir da análise do
a si mesmo e à sua própria sociedade. conceito de Fetichismo da Mercadoria de Karl
Reconhecer esse caráter fetichista, Marx, à luz da contribuição de Amaro Fleck,
segundo Fleck (2012, p. 144) é “somente revela-se um instrumento de crítica que permite
o primeiro passo”. No entanto, um primeiro a modernidade uma crítica a si mesma. Ou seja,
passo extremamente importante. A crítica aponta para um problema a ser resolvido para
proposta aqui, por Marx, engendra toda uma seguir no caminho do esclarecimento e possível
crítica ao (falso) esclarecimento e aponta emancipação.
para a existência de uma profunda forma Dito isto, a compreensão desse
sistêmica que atrapalha o próprio processo de conceito nos moldes apresentados consiste
esclarecimento. Como ressalta Fleck (2012, p. numa forte contribuição metodológica à teoria
144): “Marx cria uma nova posição ao criticar social crítica. Principalmente, no que concerne
a modernidade rechaçando o romantismo. Para a possibilidade de se verificar, mais de uma
ele a própria modernidade possui elementos vez, aspectos primitivos na organização da
fetichistas, elementos estes que impedem a sociedade dita moderna. Ou seja, o conceito
efetivação do próprio esclarecimento”. expõe as distorções sob a qual se apresenta a
O fetichismo da mercadoria, enquanto modernidade e, nas palavras do próprio Marx
conceito, apesar de não trazer todo o debate (2006, apud FLECK, 2012, p. 141): “O reflexo
exposto, engendra todo o modo posterior de religioso do mundo efetivo” só desaparece
alienação baseado na forma-mercadoria ou a partir do momento em que “as relações
mesmo na forma-dinheiro. A confiança da no mecanismo da vida prática cotidiana se
liberdade à lei das mercadorias (lei da troca) apresentarem para os homens diariamente
não se passa de um fetiche, de uma ilusão como referências transparentes e racionais de
da falsa modernidade. Esse termo, além de uns com os outros e com a natureza.” Nesse
compreender o próprio fenômeno de reificação sentido, o autor (ibidem) continua, “a figura do
das relações sociais, mostra, de forma clara, processo de vida social, isto é, do processo de
o primitivo em dialética ao moderno, e não produção material, despirá o seu véu de névoa
simplesmente uma relação dual, mas, uma mística apenas quando se colocar como produto
“relação antagônica”. Essa relação entre de homens livremente sociabilizados e sob seu
“um imenso potencial emancipatório” e controle consciente e planificado”.
“mecanismos repressivos que impedem a O horizonte de possibilidades que
efetivação da emancipação” cria a dinâmica se apresentam a partir do reconhecimento
do próprio sistema capitalista que nasce dali. dessa contribuição é incontável. Desde o
O termo de Marx, portanto, trata de “criticar apresentado no fim do texto de Amaro Fleck
a modernidade e o esclarecimento a partir da como contribuição a execução e prática do
própria modernidade e esclarecimento, de uma comunismo, até a possibilidade de efetivação
crítica imanente voltada ao futuro” (FLECK, de uma maior emancipação e liberdade no

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FETICHISMO MULTIFACE

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