Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
net/publication/322554768
CITATIONS READS
0 72
1 author:
SEE PROFILE
Some of the authors of this publication are also working on these related projects:
Desastres no Brasil: uma análise sócio-espacial da vulnerabilidade institucional através da evolução da decretação municipal de
situação de emergência (SE) e de estado de calamidade pública (EC View project
Entre brasas e fumaças: memória social e vida cotidiana de idosos afetados em desastres relacionados aos incêndios florestais em
Portugal View project
All content following this page was uploaded by Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio on 17 January 2018.
Norma Valencio1
1
Professora Sênior do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais
(PPGCAm) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Introdução
Quando um desastre ocorre, o termo caos é frequentemente empregado por aqueles que
vivenciaram ou o testemunharam o acontecimento. O conceito de caos, em sua acepção
teórica no âmbito das ciências matemáticas, diz respeito a uma sensibilidade às condições
iniciais de um sistema dinâmico, isto é, se refere a uma imprevisibilidade (Ding, Grebogi
and Yorke, 1997). Trata-se, assim, de um tipo de comportamento em um sistema
dinâmico o qual, através da aplicação de uma determinada força, pode ser controlado
(idem).
Quando passa a ser apropriado pelo senso comum em contexto de desastre, o uso do
termo caos deixa frequentemente de se referir a uma pequena perturbação nas condições
inicialmente dadas. Menciona-se, ao invés disso, a ocorrência de uma grande perturbação
inicial; porém, os seus efeitos seriam igualmente imprevisíveis e distintos daqueles
esperados por uma ordem social pré-estabelecida. Essa representação usual de caos é
frequentemente metafórica, isto é, os fundamentos matemáticos da construção teórica
sobre o caos não são realmente levados em conta. Mas, trata-se de uma metáfora potente
naquilo que indica uma turbulência imprevista, num certo nível, de uma ordem social
válida em termos de seus mecanismos convencionais de funcionamento. Um desastre
explicita a existência de processos sociais complexos, suscetíveis a variados graus de
perturbação e descontrole os quais, em parte se utilizando de elementos da ordem
antecedente e em parte refutando-os, procura configurar uma nova dinâmica de
funcionamento.
Em termos genéricos, é possível dizer que um desastre tem uma face visível de
dissolução da normalidade do mundo, mas cujo conteúdo efetivamente trágico reside no
quanto isso implica no desmoronamento de crenças na suficiência de ajustes paulatinos
frente aos desafios circunstanciais do desenrolar da vida social. Certezas acerca do bom
funcionamento da rotina de instituições e comunidades – no que concerne às formas
convencionais de sociabilidade pública e privada, à operacionalidade das normas e
procedimentos, à escala de prioridades nos afazeres e aos meios materiais que os
suportavam –, súbito esboroam-se diante condições extraordinariamente adversas. As
adversidades, que tomam a forma de inesperada perdas e danos coletivos, podem evoluir
de um modo mais desfavorável, tornando a crise crônica.
Os desastres catastróficos são caracterizados não apenas pela perda da integridade física
dos membros de uma dada coletividade (mortes, ferimentos e adoecimento inesperado) e
destruição/danificação dos bens que lhes são essenciais para a sua vida prática e universo
simbólico (Valencio, 2012), mas também pela incapacidade das autoridades fazerem
frente às ameaças que se apresentam (Quarantelli, 2006). Com o desmantelamento de
certas estruturas físicas do lugar e perda de meios essenciais (moradias; locais de
trabalho; estoques de alimentos; rebanho e plantações; veículos, pontes e estradas,
estabelecimentos escolares, de saúde, saneamento e energia e afins) assim como na
inviabilização de fluxos usuais que conectam os sujeitos (em termos virtuais ou
presenciais, indo da interrupção dos serviços de telecomunicação aos de transporte
público), as estratégias de prevenção e preparação revelam-se relativamente inócuas.
Mas, a dimensão trágica dos acontecimentos se amplia quando as providências
concernentes à reabilitação e recuperação de longo-termo também ficaram aquém do
esperado.
Assim, cabe não só insistir em revelar aspectos da ordem por detrás do caos, mas ilustrar
conformações contemporâneas da arquitetura de poder correspondentes. O nosso
propósito é frisar que, no contexto de desastre, a ordem e a desordem, controle e
descontrole não são pares de opostos, que se excluem mutuamente, mas caminham
simultaneamente em continuidades e descontinuidades vinculadas a uma racionalidade
frequentemente opressiva.
Para levantar diferentes tipos de considerações sobre essa problemática social, que é
secundarizada nas discussões sobre desastres, elencamos inicialmente alguns casos
internacionais de desastres associados à passagem dos furacões Irma e Maria pelo Caribe
e EUA, em 2017; à explosão da nave Challenger, em 1986, e ao complexo nuclear de
Fukushima, em 2011. Terão um caráter ilustrativo inicial para, em seguida, nos
debruçaremos mais detidamente sobre o contexto brasileiro de naturalização dos
desastres a fim de trazermos à tona mais elementos sociopolíticos que permanecem nas
margens do debate público no assunto.
Desastres ditos naturais são um dos acontecimentos trágicos que suscitam a decretação
de emergência; é dizer, as autoridades reconhecem que estão em meio a uma crise. De
um lado, a crise se caracterizaria pela situação considerada surpreendentemente adversa.
De outro, o estado de exceção seria justificado para respaldar a urgência de medidas
oficiais de remediação dos efeitos negativos da perturbação inusitada sofrida. Por seu
turno, o enquadramento de certos desastres como acidentes tecnológicos define tanto a
natureza social2 do evento desencadeador de uma perturbação inesperada num sistema
organizacional quanto a restrição espacial delineada pelos sujeitos responsáveis (em
associação com autoridades locais de emergência), os quais entendem que os danos são
gerenciáveis no âmbito da planta do empreendimento. Entretanto, não raro, acidentes
tecnológicos têm efeitos que extravasam das plantas que os desencadearam e abalam as
rotinas ao derredor tanto extensiva quanto intensivamente. Há os que se desdobram em
verdadeiros dramas sociais, devido a repercussão e simbolismo das perdas havidas. E os
que se transformam em catástrofes devido os efeitos imprevistos, em escala e
abrangência, e que estão muito além do que o previsto nos planos de contingência os
2
Trata-se da natureza social da tecnologia, vista como relação social de trabalho da qual derivam produtos
e processos e estes contribuem para maximizar a acumulação através do trabalho.
quais, uma vez acionados, se mostraram inconsistentes e insuficientes frente a realidade
dos danos causados. O espraiamento do problema e seu eventual agravamento absorve,
em maior grau, as autoridades e órgãos de emergência. A declaração de emergência é
emitida para poder agilizar providências de reabilitação mais agilmente. Por fim, há a
construção de nexos entre desastres ditos naturais e os acidentes tecnológicos, isto é,
autoridades alegam que eventos excepcionais da natureza deflagram certos acidentes
tecnológicos – por exemplo, chuvas intensas levariam ao rompimento de barragens que,
por seu turno, desencadearia outros desastres secundários, num mix que dilui
responsabilidades acerca dos danos e perdas havidos.
Essa ideia de que os desastres são excepcionalidades não previstas e que, uma vez
ocorridos, são manejáveis para aparatos técnicos que estão plenamente capacitados para
fazê-lo é uma construção representacional de um poder que tanto a realidade concreta
pode desmistificar quanto revelar seus intentos mais ocultos, conforme veremos nas
ilustrações abaixo.
Em A ordem das coisas, Foucault (1973) assinalou que a necessidade de classificação das
espécies no reino animal dentro de uma ordem evolutiva linear imperou por certo tempo
na taxinomia, até o momento em que o caráter de relacionamento interespécies passou a
ser identificado como elemento relevante de evolução. A tarefa de nominação dos seres
vivos significava, em última instância, colocar ordem no mundo para se assegurar que
aquilo que nos rodeava eram razoavelmente identificáveis em relação à sua filiação e ao
comportamento correspondente; portanto, habitávamos um mundo seguro devido a este
repertório de conhecimento sobre o ambiente circundante. Daí a sensação de
intranquilidade diante o ser desconhecido – o monstro – na medida em que esse sinalize
que algo está entre nós sem ter sido devidamente esquadrinhado pelo conhecimento
científico que alicerça o controle sobre humano sobre o mundo.
Nos desastres ditos naturais, as explicações mais imediatamente difundidas sobre a cena
de devastação, o caos, são recorrentemente postas fora do escopo das relações sociais.
Tudo se dá como se a dilaceração das rotinas ocorresse à revelia do conjunto de sujeitos
que tem o poder de definir as funções e o modo de funcionamento do espaço. Assim, se
apela para a procura desse algo que fora da esfera do mundo social, o monstro, o qual,
embora seja celeremente identificado, nominado, classificado e mensurado por parcela da
comunidade científica (o furacão, o terremoto, as chuvas), parece ter se manifestado
como nunca antes, exigindo suporte de pesquisa para que se saiba ainda mais sobre ele a
fim de nos tranquilizar quando de sua próxima aparição. Isso coloca uma fissura no
conhecimento sobre desastres, pois se torna incomodativo (e recorrentemente rechaçado)
supor que o monstro deva ser procurado o espelho, através das entranhas das relações
sociais e modus operandi da cultura de segurança.
Também fora do lugar foram postos milhões de moradores de Houston, numa evacuação
massiva que foi recomendada encorajada pelas autoridades governamentais estaduais
antes da chegada do referido furacão, ainda que algumas autoridades locais não a
endossassem, numa divergência de interpretação que aumentou o nível de incerteza do
cidadão comum (Wang, Wootson Jr and O’Keefe, 2017). A decretação de emergência
deflagrou uma reversão completa de prioridades dos sujeitos implicados. As famílias
dedicaram-se a proteger suas moradias com os meios que tinham, abasteceram veículos
(em filas intermináveis nos postos de combustível) e partiram em estradas que, logo,
ficaram abarrotadas e o trânsito não fluía. As que permaneceram em sua moradia,
fizeram compras adicionais de mantimentos para ter um estoque em caso de necessidade
(o que também se deu no enfrentamento de mais filas) e logo os itens mais procurados
escassearam nas prateleiras. Houve estresse coletivo decorrente das medidas preparativas
tomadas para resguardar a residência, muitas das quais foram rapidamente inundadas
com os seus membros ali dentro; da angústia da espera em abrigos provisórios, para os
quais as pessoas que não tiveram como deixar suas cidades foram orientados a
permanecer sem que a privacidade de cada família abrigada fosse ali resguardada; do
sofrimento relativo à verificação das perdas sofridas que, sobretudo aos mais pobres, é
sempre de mais difícil recomposição; do fluxo invertido em hospitais, com pacientes
sendo evacuados ao invés de recebidos. O desastre em Houston, como em Austin e em
outras localidades do Texas e da Louisiana, demonstrou o quanto os atendentes de
emergência não tinham capacidade de atuar amplamente na resposta (Moravec, 2017),
constatação que levou as pessoas a se socorrerem umas às outras com seus próprios
meios e de forma improvisada. A crença numa ordem está despreparada para lidar com
os complexos desafios desse tipo de situação, cujo evento não é um monstro, nem é
inesperado, posto que a região faz parte de uma rota de furacões que por ali passam de
maio a setembro.
Na passagem dos furacões Irma e Maria, os governos da França, Reino Unido e Holanda
foram criticados pela insuficiência de apoio a seus territórios ultramarinos caribenhos.
Nem houve apoio para as medidas preparativas antes da passagem do furacão Irma (que
ficou entre categoria 5 e 4 no Caribe) e, após esse, o apoio recuperativo foi claramente
insuficiente, levando os moradores locais a se sentirem abandonados, inclusive, na
iminência da chegada de outros furacões fortes. Nas suas próprias palavras, a falta de um
socorro condizente para a população local expressou que a mesma era considerada, pelas
autoridades do além-mar, como cidadãos de segunda classe (Boyle, Henderson and
Graham, 2017). Água e comida foram recebidos homeopaticamente através de militares
que desembarcaram em aeronaves dias após o Irma e nenhuma medida de reconstrução
tinha sido anunciada, sobrando apenas abrigos improvisados como recurso de moradia
por um tempo indefinido. Esse contexto de insegurança e incerteza era mais grave ainda
devido a existência de uma enormidade de detritos, correspondente à destruição da quase
totalidade das edificações locais, os quais não tinham ainda sido manejados e recebido
uma destinação final segura. Com a passagem de um novo furacão, denominado Maria
(que ficou entre categoria 4 e 3 no Caribe), poucos dias após, os moradores locais que
viram suas casas e demais estabelecimentos virarem detritos, agora viam os detritos
virarem verdadeiros mísseis que, com a força dos ventos atingiam o pouco que havia
restado, elevando o nível de apreensão coletiva. Com a composição majoritária do povo
dessas localidades caribenhas é constituída por negros, também ficou a impressão que
esse abandono social tem um aspecto de racismo ambiental.
Cerca de duas semanas após a passagem do furacão Harvey pelo Texas, foi a vez do
furacão Irma passar pela Flórida, com categoria 4, próximo às instalações do Centro
Espacial Kennedy, também da NASA e suas instalações sofreram alguns danos
(destelhamento, intrusão de água e problemas no sistema de resfriamento),
permanecendo fechado por alguns dias. Esses danos não foram vistos como graves, mas
algo menor frente às melhorias realizadas pelo centro devido a adoção de novos padrões
de segurança desde a passagem, em outubro de 2016, do furacão Mattew. Os modelos
teriam permitido traçar o impacto na Flórida com uma semana de antecedência, o que fez
com que os funcionários colocassem equipamentos e itens de escritório a salvo, e um
rodízio de equipe, durante a tempestade e logo após, fosse organizado para que, em
algum momento, todos estivessem perto de suas famílias; mas, as instalações tiveram que
sofrer reparos imprevistos, de qualquer forma (Heiney, 2017b).
Esse ajustamento às injunções ambientais foi celebrado pela alta cúpula da NASA como
sendo uma demonstração inequívoca de resiliência de suas equipes, que não negaram a
existência de riscos acima de sua capacidade circunstancial de controle, mas tentaram se
adaptar às circunstâncias e minimizar as perdas. Mas, essa maleabilidade nem sempre
esteve presente na história institucional, como ficou claro no caso do acidente
envolvendo o ônibus espacial Challenger, que explodiu durante seu lançamento em 1986,
matando todos os sete membros da equipe espacial, incluindo a primeira professora no
espaço, Sharon Christa McAulifee. Quando essa professora foi escolhida, entre milhares
de candidatos civis, para a missão, esse processo significava para o cidadão comum
americano que a confiança na técnica era tão alta que qualquer pessoa poderia entrar
nesse tipo de missão sem a necessidade de ter uma carreira dedicada à sua preparação
para tão exclusiva oportunidade. Porém, após o acidente, a opinião pública alterou-se
radicalmente, e a questão que se colocava era: "como poderia a NASA ter colocado um
civil nesta situação perigosa?". O simbolismo de ter agregado uma pessoa ordinária na
missão, como um apelo para reforçar a popularização e legitimação dessas caríssimas
missões especiais, reverteu-se em seu oposto, que era a de ter tirado a vida gratuitamente
de uma professora de High School que, dedicada ao ensino de História, conduziria alguns
experimentos no espaço (Challenger Center, 2017). Uma comissão presidencial foi
formada chamada a investigar esta tragédia simbólica, com a equipe composta por altos
administradores dos setores governamentais envolvidos, ex-astronautas famosos e um
avaliador externo, o físico eminente Richard Feynman - que era o único membro
autônomo da estrutura, e, portanto, capaz de analisar criticamente os procedimentos de
gestão desde uma perspectiva externa. Uma das primeiras descobertas relatadas pela
equipe foi a inexistência de opções de fuga para a tripulação, que provavelmente não
morreu devido à explosão, mas ao impacto no oceano após a queda (Rogers Comission,
1986). Era um problema facilmente evitável, mas desconsiderado. As estatísticas sobre
os riscos de falhas explosivas foram subestimadas pelos engenheiros, o que motivou
Feynman (1986) a indagar, em seu apêndice pessoal no relatório presidencial, que a fé na
gerência da maquinaria envolvida na missão implicava em que a ausência de falhas
observáveis em situações semelhantes servia de base para que não fossem buscadas em
situações novas; assim, suscetibilidades passariam desapercebidas aos invés de passarem
por uma tentativa séria de identificação e remediação. O apêndice da Feynman continua
revelando outra série de erros de gerenciamento, começando pelo setor de design do
motor e passando pelos administradores de análise de custo-benefício, encarregados de
definir o cronograma de lançamento das missões de transporte. Ou, mais
apropriadamente, devido a decisões superiores baseadas em contratos não razoáveis, os
riscos no nível inferior foram deliberadamente escolhidos para ser ignorados, até o ponto
de serem ignorados. Isso, segundo Feynman, teria tirado o realismo das decisões sobre
horários de voos, cumpridos por questões administrativas mais do que por rigor técnico.
O apêndice de Feynman é a única parte do relatório que aponta questões críticas sobre a
estrutura do poder institucional como causa fundamental desse acidente que, embora
parecesse adstrito à tripulação da Challenger, repercutiu em todo a sociedade americana e
se revelou um desastre do qual a administração institucional e do país tinham que dar
explicações públicas. Isso levantou questões não apenas sobre quão equivocadas
poderiam ser as análises técnicas, devido ao ambiente decisório ao qual estavam
submetidas, mas também sobre o nível de responsabilidade pública das instituições
quando ocorre um desastre.
Se os desastres podem ser vistos como um tipo de desordem, no Brasil essa desordem é
repetitiva ou, ambiguamente, é uma anormalidade rotineira. É possível vislumbrar,
através dos sucessivos estados de exceção, que a exceção se torna uma nova ordem, que
impõem um novo modo de funcionamento da burocracia estatal e das suas relações com
o meio social sob sua jurisdição. A gestão da precariedade em que se encontram os
grupos sociais afetados – em nome de quem a emergência foi declarada – mescla
assistencialismo no seu estado mais puro e submissão social dos atendidos, que nada
podem reclamar em relação ao que lhe é ofertado para remediar as perdas havidas. Não
se pode reclamar do valor do auxílio-moradia (quando o recebem) ou das condições
precárias do abrigo provisório (que chegar a perdurar por meses ou anos a fio), do
colchão em que dormem, da alimentação padronizada, das roupas usadas que lhes são
entregues, da falta de privacidade, da intranquilidade derivada da falta de solução
permanente, da solução de moradia que revela novos riscos sociais e pessoais (Valencio,
2012; Siena, 2014b). A decretação de situação de emergência (SE) ou de estado de
calamidade pública (ECP) tem evoluído no país como uma regularidade que nenhum dos
governos democráticos da última década consegue contornar (Gráfico 1). Há patamares
crescentes de abrangência espacial dos desastres na escala nacional, pois em relação ao
conjunto de municípios brasileiros, os percentuais de decretação municipal de
emergência evoluíram de forma preocupante: de uma média de 20% a 40% de
abrangência anual nos governos Lula, pulou-se para médias anuais de 40% a quase 70%
na maior parte dos anos dos governos Dilma (no ano de 2011, a média ficou em 20%,
mas as catástrofes foram maiores). E os dados relativos à Era Temer não apontam num
sentido de reversão dessa dinâmica. As formas de enfrentamento adotadas acabam sendo
meras contemporizações de caráter assistencialista (auxílios-moradias, cestas básicas,
colchões) e obras emergenciais de recuperação que, ao ampliarem os negócios do
desastre, tornam esses negócios parte da rede de interesses em que a situação se repita e,
ainda, desejam manter o poder os mesmos grupos técnicos com os quais se aliam para ter
seus préstimos contratados, sem licitação, quando a emergência for decretada novamente.
Assim, há uma falta de transparência social sobre como esses negócios são
movimentados, inclusive acerca dos critérios de distribuição de aluguel-social, a partir da
produção de informação técnica e das relações estabelecidas entre os ofertantes de
produtos e serviços e os gestores de emergências.
Gráfico 1: Evolução das portarias de reconhecimento dos decretos municipais de situação de emergência
(SE) e estado de calamidade pública no Brasil, período de 2003-2016, em valores absolutos e em
percentual (em relação ao total de municípios). Fonte: Secretaria Nacional de Proteção e Defesa
Civil/Ministério da Integração Nacional. Sistematizado pela autora.
Por fim, mas não menos importante, dentre as muitas armadilhas do conhecimento
científico sobre desastres que são postas no caminho das comunidades afetadas e das
autoridades públicas locais que se defrontam com essa situação, destaca-se a confusão
deliberada entre localidade da ocorrência do desastre e competências de pesquisa para
tratar do assunto. Tudo se passa como se a proximidade geográfica entre a área do
desastre e dadas instituições de pesquisa equivalesse mecanicamente à maior capacidade
científica destas para desvendar o problema e apontar recomendações. Amiúde, logo em
seguida a um desastre de grande repercussão midiática, as autoridades
(municipais/estaduais) convocam grupos de pesquisa das instituições em sua
circunscrição para que se debrucem sobre o caso, garantindo recursos extraordinários
para viabilização de atividades de pesquisa e extensão tal. Por seu turno, esses grupos se
apresentam como um elenco de especialistas no assunto, produzindo uma performance de
domínio científico no assunto ao qual, muitas vezes, estão apenas tateando com base no
senso comum, sem ter uma compreensão mínima do debate e das disputas teóricas
envolvidas. Dessa ânsia por influenciar o jogo político, resulta não apenas um
desacumulo do conhecimento sobre o tema dos desastres, uma vez que há um eterno
recomeçar interpretativo de um ponto muito primário de entendimento (que desconsidera
o que já foi publicado no assunto relativo ao aspecto examinado), mas preocupantes
retrocessos interpretativos no que concerne aos apontamentos críticos sobre o problema.
Os horizontes possíveis de enfrentamento social dos desastres que essas redes de poder
oferecem se reduzem ao mero ajustamento das comunidades a processos participativos
condizentes com objetivos e ditames tecnocêntricos. A participação social se torna um
mecanismo de subalternidade a uma racionalidade outra que solapa a sua emancipação
social. Há um autêntico círculo vicioso. A captura de sentidos mais imediatos e
palatáveis para grupos científicos emergentes, que precisam justificar o apoio recebido
das autoridades, será o da explicação dominante; esta reforça e converge com o
pensamento autoritário e assistencialista das forças atuantes em emergências. Firma-se,
assim, um pacto que dificilmente será rompido e que se nutre da continuidade de
anormalidades normais, da continuidade do caos, ao invés de desvelá-lo em sua raiz
como uma ordem injusta. Quanto mais ocorram as emergências, mais esses especialistas
são acionados e se legitimam. Uma vez que se vê nos desastres uma cascata interminável
de dinheiro, que jorra mesmo quando recursos para outras políticas públicas são
contingenciados, esse inchamento artificial da comunidade de especialistas faz uso
instrumental do sofrimento humano para retroalimentar verdades bem estabelecidas nessa
sociedade de desiguais e sequer se preocupam em coadunar-se com um efetivo avanço do
conhecimento no tema, já que as noções de pares e de debate – que forja as novas
questões de pesquisa e interpretações –, são substituídas por alianças que saqueiam as
esperanças e horizontes dos milhões de sujeitos em desamparo.
Porém, quanto mais um desastre se revele como uma crise crônica, mais evidente se
torna, para aqueles que o vivenciam, que seu sofrimento não se deve apenas àquele
momento súbito de deflagração da desordem, que se eterniza na memória, mas à própria
ordem (econômica, social, ambiental) estabelecida. Ordem social que resulte em
desordens nas rotinas – sistematicamente, a dos grupos mais desfiliados socialmente –
não é propriamente um caos, como assim a situação de desastre é reportada comumente.
São processos sociais que necessitam ser descortinados. Mas, as redes de poder que
atuam nos desastres não estão dispostas a isso, a começar pelas instituições de
emergência, mais preocupadas em reforçar sua visão militarista de ordem e adequar o
meio social à mesma.
Longe de ser uma excepcionalidade, os desastres são uma parte constitutiva e cada vez
mais presente na vida social contemporânea de inúmeros países, incluso o Brasil. A sua
manifestação não deriva apenas dos efeitos socioambientais deletérios de um progresso
material disseminado e sem freios, como enfatizou Beck (1992), mas também da
composição política e técnica anacrônica que embasa decisões que suscetibilizam os
lugares e corroem o ambiente democrático, mesmo quando afirma que estão a protegê-
los.
Agradecimentos
A autora agradece o Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais
(PPGCam), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pelo apoio concedido para
a inscrição e apresentação oral desse trabalho no presente Encontro da Anpocs.
Referências
Acselrad, H. Vulnerabilidade ambiental, processos e relações. II Encontro Nacional de
Produtores e Usuários de Informações Sociais, Econômicas e Territoriais, Rio de
Janeiro, 2006.
BBC Brasil. “A estranha criatura de dentes afiados encontrada em praia do Texas após a
passagem de furacão”. BBC. 14 setembro 2017. Acessada em 15 setembro 2017.
http://www.msn.com/pt-br/noticias/curiosidades/a-estranha-criatura-de-dentes-afiados-
encontrada-em-praia-do-texas-ap%C3%B3s-passagem-de-furac%C3%A3o/ar-
AArUfqF?li=AAggXC1&ocid=mailsignout
Beck, U. Risk society: towards a new modernity. London: Sage Ed., 1992.
Boyle, D., B. Henderson, and C. Graham. “Deadly Hurricane Irma tears path through
Caribbean as Florida evacuates”. The Telegrahph. 08 setembro 2917. Acessado 09
setembro 2017. http://www.telegraph.co.uk/news/2017/09/07/hurricane-
irma-13-killed-caribbean-florida-prepares-storm/
Bullard, R. D. “Varridos pelo furacão Katrina: reconstruindo uma “nova” Nova Orleans
usando o quadro teórico da justiça ambiental”. In S. Herculano e T. Pacheco. Racismo
Ambiental. Rio de Janeiro: FASE, 2006, 126-147.
Challenger Center. Christas lost lessons. Challenger Center. 2017. Acessado em 14 abril
2017. https://www.challenger.org/challenger_lessons/christas-lost-lessons/
CBS News. “8 dead at Florida nursing home where Irma knocked out power”. 14 de
setembro 2017. Acessado em 15 setembro 2017. https://www.cbsnews.com/news/florida-
nursing-home-8-people-dead-hurricane-irma/
Ding, M. C. Grebogi, and K.A. Yorke. Chaotic dynamics. In C. grebogi and James A.
Yorke. The impact of chaos on science and society. Tokyo-New York-Paris: United
Nations University Presse, 1997, 1-17.
Foucault, M. The Order of Things. An Archaeology of the Human Sciences. New York:
Vintage Books, 1973.
Graham, C. “Pensioners rescued after shocking photo of flooded Texas nursing home
goes viral”. The Telegraph. 27 agosto 2017. Acessada em 30 agosto 2017.
http://www.telegraph.co.uk/news/2017/08/27/pensioners-rescued-shocking-photo-
flooded-texas-nursing-home/
Milanez, B.; Losekann, C. (orgs). Desastre no Vale do Rio Doce: antecedentes, impactos
e ações sobre a destruição. Rio de Janeiro: Folio-Digital Letras e Imagem, 2016.
Moravec, E.R. “Texas officials: Hurricane Harvey death toll at 82, ‘mass casualties have
absolutely not happened’”. The Washington Post. 18 setembro 2017. Acessado em 19
setembro 2017. https://www.washingtonpost.com/national/texas-officials-hurricane-
harvey-death-toll-at-82-mass-casualties-have-absolutely-not-
happened/2017/09/14/bff3ffea-9975-11e7-87fc-
c3f7ee4035c9_story.html?utm_term=.a37e5a4bf1df
Mattedi, M.A. e I.C. Butzke. A relação entre o social e o natural nas abordagens de
hazards e de desastres. Ambiente & Sociedade, (9), 2001, 93-114.
McCurry, J. “Former Japan PM Accuses Abe of Lying over Fukushina Pledge”. The
Guardian, Sept 07, 2016. Accessed Feb 24, 2017.
https://www.theguardian.com/environment/2016/sep/07/former-japan-pm-junichiro-
koizumi-accuses-abe-lying-over-fukushima-pledge
McCurry, J. “Dying Robots and Failing Hope: Fukushima Clean-up Falters Six Years
after Tsunami”. The Guardian, March 09, 2017. Accessed 10 March, 2017.
https://www.theguardian.com/world/2017/mar/09/fukushima-nuclear-cleanup-falters-six-
years-after-tsunami
Quarantelli, E.” A social science research agenda for disasters of the 21st century:
rheoretical, methodological and empirical issues and their professional implementations”.
In R.W.Perry e E.L. Quarantelli (eds) What is a disaster? new answers to old questions.
USA: International Research Committee on Disasters, 2005, 325-396.
Quarantelli, E., P. Lagadec and A. Boin. “A heuristic approach to future disasters and
crises: new, old, and in-between”. In H. Rodríguez, E. L. Quarantelli e R. R. Dynes (eds).
Handbook of disaster research. Springer, New York, 2007, 16-41.
RFI. “Furacão Maria passa em Dominica e Guadalupe com ventos de mais de 250km/h”.
RFI. 19 setembro 2017. Acessado em 19 setembro 2017. http://www.msn.com/pt-
br/noticias/mundo/furac%C3%A3o-maria-passa-em-dominica-e-guadalupe-com-ventos-
de-mais-de-250-km-h/ar-AAsdiKC?li=AAggXC1&ocid=mailsignout
Rogers Comission. Report of the Presidential Comission on the Space Shuttle Challenger
Accident. Washington DC: NASA, 1986. Accessed Nov 18, 2015.
https://history.nasa.gov/rogersrep/v1ch2.htm.
Siena, M. Desastres y vulnerabilidade: um debate que no puede parar. Bulletin de
l’Institut Français d’Ètudes Andines, v.3, 433-443, 2014a.
The Guardian. “Strange eel: mystery of the Texas eyeless sea beast solved”. 14 setembro
2017. Acessado em 15 setembro 2017. The Guardian.
https://www.theguardian.com/environment/2017/sep/14/strange-eel-mystery-of-the-
texas-eyeless-sea-beast-solved
Thomaz, O.R. O terremoto no Haiti, o mundo dos brancos e o lougawou. Novos Estudos
CEBRAP (Impresso), 86(2010): 23-50.
Tierney, K., C. Bevc and E. Kuligowsky. Metaphors matter: disaster myths, media
frames, and their consequences in hurricane Katrina. ANNALS, AAPSS, 604, March
604(1), 2006, 57–81.
Valencio, N. Para além do “dia do desastre”: o caso brasileiro. Curitiba: Ed. Appris,
2012.
Valencio, N. “Desastres normais: das raízes aos rumos de uma dinâmica tecnopolítica
perversa”. In A. Siqueira, N. Valencio, M. Siena e M. Malagoli (orgs.). Riscos de
desastres relacionados à água: aplicabilidade de bases conceituais das Ciências
Humanas e Sociais para a análise de casos concretos. São Carlos: RiMa Editora, 2015,
79-120.