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AS VICISSITUDES DA ESCRAVIDÃO E DA IMIGRAÇÃO EM MINAS GERAIS:

A COMPANHIA UNIÃO E INDÚSTRIA, OS ESCRAVOS E OS ALEMÃES


(1852-1879)
Fernando Gaudereto Lamas1
Luís Eduardo de Oliveira2

A Rodovia União e Indústria e seu impacto para a economia regional


A Rodovia União e Indústria é considerada, por muitos autores, como uma das obras
mais importantes, em termos rodoviários, realizadas no país no terceiro quartel do século
XIX.3 Ligando Juiz de Fora à Petrópolis,4 esta estrada macadamizada e carroçável foi
construída, entre 1855 e 1861, pela Companhia União e Indústria (CUI), empresa organizada
em 1853 pelo cafeicultor Mariano Procópio Ferreira Lage, detentor de uma concessão
imperial para manter e explorar a estrada durante meio século – o que não ocorreu de fato,
pois por volta de 1879, essa empresa extinguiu-se, levando a um relativo abandono dessa via e
seus diversos ramais.5 Contemporânea dos primeiros ramais ferroviários implantados no
Brasil, a União e Indústria deve ser encarada, a princípio, como parte do esforço realizado
pelas elites escravistas para se adequarem aos novos padrões impostos pela segunda

1
Mestre em História Econômica e Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor do
Departamento de História das Faculdades Integradas de Cataguases-MG e da Faculdade de Minas (FAMINAS),
em Muriaé-MG.
2
Doutorando em História Social no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense.
3
Ver BARBOSA, Waldemar de Almeida. História de Minas. Belo Horizonte, Comunicação, V. 2, 1979, p. 479
e SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana. São Paulo, Nacional / USP, 1974, p. 210.
4
Desse ponto para os portos do Rio de Janeiro, a viagem continuava pela antiga estrada da Serra da Estrela e, em
seguida, pelos 14,5 Km de trilhos da E. F. Mauá, ferrovia inaugurada em 1854 e considerada a primeira do país.
5
Além dos 144 quilômetros macadamizados e carroçáveis da Rodovia União e Indústria, a Companhia União e
Indústria construiu também, até 1868, outros quatro ramais (Posse-Aparecida, Serraria-Mar de Espanha,
Paraibuna-Flores e Juiz de Fora-Ubá), com 264 quilômetros de caminhos vicinais interligando aquela estrada-
tronco às mais importantes áreas cafeeiras do Vale do Paraíba Fluminense e da Zona da Mata mineira. Ver
STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães. Juiz de Fora, FUNALFA,
1979, pp. 121-145.

1
revolução industrial, que primavam pela modernização dos meios de transportes visando a
agregar valor aos produtos primários.6
No plano regional, a constituição desse sistema viário tecnologicamente avançado
para a época, abriu novos horizontes à cafeicultura da Zona da Mata mineira, permitindo o
escoamento regular e em larga escala, para o porto do Rio de Janeiro, de uma produção que
continuou expandindo-se vigorosamente até 1926.7 Além disso, a entrada em operação da
Rodovia União e Indústria, com seus vários ramais, representou um marco fundamental para
o incremento e diversificação da população e das funções econômicas do núcleo urbano de
Juiz de Fora que, entre as décadas de 1860 e 1870, se consolidou como um dos mais
importantes entrepostos comerciais da província de Minas Gerais.8 Isto porque, durante quase
todo esse período, parte significativa dos produtos exportados e importados por diversas
regiões de Minas (Centro, Oeste, parte do Sul e da Zona da Mata) e de Goiás tinha que passar
por esta cidade, permitindo que nela se desenvolvesse um vigoroso comércio varejista e
atacadista e, ao mesmo tempo, inúmeras atividades manufatureiras.9

O papel determinante da mão-de-obra escrava na construção da Rodovia União e Indústria


De acordo com Wilson de Lima Bastos, autor de um estudo de cunho laudatório sobre
Mariano Procópio, publicado originalmente em 1961 para marcar o centenário da inauguração
da União e Indústria, as obras de abertura dessa rodovia só tomaram impulso a partir do ano
de 1858, com a chegada de um contingente significativo de artífices e colonos germânicos a
Juiz de Fora. Segundo ele, teriam sido estes imigrantes os únicos responsáveis pela

6
Ver GITAHI, Maria Lúcia Caira. Os trabalhadores da construção civil (1889-1914). In Anais do II Congresso
Brasileiro de História Econômica e 3º Conferência Internacional de História de Empresas. Niterói, 1996, pp.
49-50 e SEVCENKO, Nicolau. “Introdução: prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso”. In
SEVCENKO, Nicolau. História da vida privada no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, V. 3, 1998, pp.
07-48.
7
Sobre a dinâmica da economia cafeeira da Zona da Mata, entre 1870 e 1930, ver: PIRES, Anderson José.
Capital Agrário, Investimento e crise na cafeicultura de Juiz de Fora (1870-1930). Dissertação de Mestrado.
Niterói / UFF, 1993 e SARAIVA, Luiz Fernando. “Estrutura de Terras e transição do trabalho em um grande
centro cafeeiro, Juiz de Fora, 1870-1900”. In Revista Científica da FAMINAS – Vol. 1, Nº 2, Muriaé,
FAMINAS, 2005, pp. 185-189.
8
Papel que foi posteriormente reforçado e ampliado, tendo em vista que a partir de 1876, Juiz de Fora passou a
ser servida também pela “Linha do Centro” da Estrada de Ferro D. Pedro II, que do Vale do Paraíba fluminense,
“subia” em direção à Minas, em trajeto mais ou menos paralelo ao da Rodovia União e Indústria. ver:
BLASENHEIN, Peter. “As ferrovias de Minas Gerais no século dezenove”. In Locus: revista de história. Juiz de
Fora, NHR / EDUFJF, 1996, vol. 2, n.º 2, pp. 81-110 e MELO, Hildete Pereira de. “Ferrovias e café: Rio de
Janeiro e Minas Gerais 1850/1910”. In LIBBY, Douglas Coly e PAIVA, Clotilde Andrade (org.). 20 anos do
seminário sobre a economia mineira: história econômica e demografia histórica. Belo Horizonte, Cedeplar, v. 2,
2002, pp. 173-195.
9
Como conseqüência, desde meados da década de 1860, o centro urbano de Juiz de Fora passou a aglutinar
grandes interesses, tornando-se a partir de então palco de vultosos negócios, de intensa circulação de mercadorias
e acumulação de capitais. Ver PIRES, Anderson José. Op. cit., pp.110-113 e GIROLETTI, Domingos.
Industrialização de Juiz de Fora (1850-1930). Juiz de Fora, EDUFJF, 1987, pp. 28-35 e 46-47.

2
construção dessa afamada estrada, uma vez que não fez nenhuma menção à utilização de
escravos em tais serviços.10 Na verdade, este tipo de análise, que excluiu da história local a
fundamental participação da mão-de-obra dos negros, ao passo que atribuiu boa parte do
desenvolvimento econômico desse município e seu núcleo urbano a indivíduos de outras
nacionalidades – sobretudo alemães, italianos e portugueses - pode ser percebida também em
algumas publicações recentes, como as lançadas durante a celebração do sesquicentenário da
cidade (2000) e em decorrência do seminário Juiz de Fora: História, texto e imagem,
realizado em 2003 sob o patrocínio de instituições públicas.11
Entretanto, como atestam relatos de coevos e dados reunidos por diferentes
pesquisadores, em seus empreendimentos rodoviários a Companhia União e Indústria (CUI)
não utilizou apenas mão-de-obra livre, como obrigava o contrato que firmou com o governo
imperial e sugerem ainda hoje certos estudiosos da história local.12 Carlos Oberacker Júnior
chegou a afirmar que houve participação de escravos na construção da Rodovia União e
Indústria, principalmente nos serviços mais brutos, sem contudo precisar a quantidade.13
Enquanto que Luiz José Stheling, Domingos Giroletti e Sérgio de Oliveira Birchal, em
especial, demonstraram que entre 70% e 80% da força de trabalho dos serviços de abertura
dessa estrada compunha-se de cativos, num total de cerca de dois mil mancípios, em geral,
alugados das companhias inglesas de mineração de Cocais e de Congo Soco e de fazendeiros
das regiões cortadas por aquela via.14

10
O biógrafo do organizador da Companhia União e Indústria procurou realçar positivamente os fortes vínculos
mantidos por Mariano Procópio com D. Pedro II, sem se preocupar esclarecer, contudo, questões obscuras, como
o processo de encampação da CUI pelo Império em 1864 - que entre outras coisas, implicou na transferência
para o Estado de dívidas da ordem de 8.266:342$660. Ver BASTOS, Wilson de Lima. Mariano Procópio
Ferreira Lage: sua vida, sua obra, sua descendência, genealogia. Juiz de Fora, Edições Paraibuna, 1991, pp. 23-
25 e 133-137.
11
Ver Imigrantes: 150 anos Juiz de Fora (caderno suplementar da Tribuna de Minas). Juiz de Fora, Esdeva,
2000 e FAZOLATTO, Douglas. “Juiz de Fora. Primeiros tempos” e DILLY, Roberto. “Origens de Juiz de Fora”
ambos publicados In Juiz de Fora história, texto e imagem. Juiz de Fora, FUNALFA Edições, 2004, pp 07-18 e
19-25.
12
A esse respeito, apesar de enfatizarem no seu livro Viagem ao Brasil (1865-1866) que normas contratuais
proibiam expressamente o emprego de escravos na construção da rodovia que ligava Juiz de Fora a Petrópolis, o
naturalista Louis Agassiz e sua esposa, Elizabeth Cary Agassiz, indicaram também que, na prática, tal regra foi
ignorada, pois constataram que “nos trabalhos de certo gênero não se achou meio de substituir essa pobre gente.”
Ver AGASSIZ, Luís e AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil (1865-1866). Brasília, Senado Federal, 2000,
pp. 80-83.
13
OBERACKER JÚNIOR, Carlos H. A contribuição teuta à formação da nação brasileira. Rio de Janeiro,
Presença, V. 2, 1985. p. 297.
14
Vale lembrar, a este respeito, que o uso de escravos por mineradoras inglesas era objeto de severas críticas por
parte da opinião pública, tendo em vista as pressões da Inglaterra para que o Brasil abolisse de vez a
escravidão.Ver STEHLING, Luiz José. Op. cit., pp. 144-145; GIROLETTI, Domingos. Op. cit., pp. 63-65;
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo, UNESP, 1997, p. 80 e BIRCHAL, Sérgio de
Oliveira. “O mercado de trabalho mineiro no século XIX”. In História Econômica & História da Empresa, n.º 01,
São Paulo, Hucitec, 1998. Disponível em: http://www. ceaee.ibmecmg.br.wp/wp12.pdf. Capturado on-line: 12
jan. 2006, pp. 10-11.

3
Ao chamarmos atenção para a presença determinante do braço servil nos penosos e
complexos trabalhos de construção da Rodovia União e Indústria, bem como de seus variados
ramais na fronteira entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro, entendemos ser fundamental
lembrar ainda que estas, segundo números de Emília Viotti da Costa e Robert Conrad,
figuravam como as duas principais províncias escravocratas do país na segunda metade do
século XIX.15 A utilização extensiva e intensiva de cativos em tal obra rodoviária, portanto,
estava em consonância com o caráter fortemente escravista da economia cafeeira da Zona da
Mata e do Vale Paraíba, que concentravam então boa parte da produção brasileira de café.16
Para além disso, nos interessa realçar que o alto grau de dependência dos cafeicultores e
potentados dessas regiões em relação à força trabalho servil, nesse período, não ficou restrita
ao mundo rural, tendo também se estendido para as iniciativas vinculadas à implantação de
uma infra-estrutura eficiente de transportes, condição indispensável tanto para o incremento
contínuo da atividade agroexportadora, quanto para o crescimento e consolidação de um
mercado interno de consumo, notadamente na vasta área polarizada pela cidade de Juiz de
Fora.17
Em sintonia com as informações apresentadas anteriormente por outros autores, nossa
pesquisa indica, em primeiro lugar, que foi sobretudo a partir de janeiro de 1855, que o
presidente da Companhia União e Industria, em flagrante desrespeito aos contratos firmados
com o Império, deu início à prática de alugar cativos para as obras de implantação da rodovia
que ligaria Juiz de Fora a Petrópolis. Encontramos evidências consistentes disto ao
analisarmos a documentação cartorária sob a custódia do Arquivo Histórico do Município de
Juiz de Fora, especialmente os livros de compra e venda da Comarca de Barbacena (1853-
1855), de escrituras públicas de compra e venda da Comarca do Paraibuna e de escrituras

15
Segundo o recenseamento imperial de 1872, Minas Gerais e Rio de Janeiro possuíam 370.459 e 341.576
indivíduos escravizados, respectivamente, enquanto que São Paulo contava com 156.612 cativos. Entre os
maiores municípios escravistas mineiros, no ano de 1877, figuravam Leopoldina, com 15.253 escravos, e Juiz de
Fora, que até às vésperas da Abolição preservou uma população mancípia superior a 20 mil “almas”, como
informa Rômulo Andrade. Ver COSTA, Emília Viotti da. Op. cit., p. 196; CONRAD, Robert. Os últimos anos
da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, pp. 351-353 e ANDRADE,
Rômulo.“Apontamentos sobre a microeconomia do escravo e sua interação com a família e as solidariedades
(Zona da Mata de Minas Gerais, século XIX)”. In Anais do 10º Seminário sobre a Economia Mineira.
UFMG/CEDEPLAR: Diamantina 2002, (CD-ROM), pp. 01-03. Disponível em:
http://www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2002/D09.pdf. Capturado on-line em: 13 dez.
2005.
16
Sobre a forte dependência da cafeicultura matense em relação ao trabalho servil até 1888, ver: SARAIVA,
Luiz Fernando. Um correr de casas, antigas senzalas: a transição do trabalho escravo para o livre nas fazendas
de café, 1870 – 1900. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História UFF, 2001.
17
Ver OLIVEIRA, Luís Eduardo de. A formação de Juiz de Fora e sua gradual transformação em principal
centro urbano, comercial e manufatureiro do complexo cafeicultor da Zona da Mata mineira - 1850/1880. In
Anais do I Seminário de História do Café: História e Cultura Material. Disponível em:
http://www.mp.usp.br/cafe/textos/Lu% C3%ADs%20Eduardo% 20de%20Oliveira.pdf.

4
públicas de compra e venda do cartório do Primeiro Ofício de Notas de Juiz de Fora, ambos
referente ao triênio 1854-1856.18
De fato, ao longo de 1855 e 1856, paralelamente às diversas ações que desenvolveu
para capitalizar a companhia que havia organizado e que presidia com plenos poderes,
Mariano Procópio se empenhou firmemente para compor o plantel de escravos que julgava
necessário para deslanchar os trabalhos de abertura da Rodovia União e Indústria. É o que
demonstra também, de modo inequívoco, os dados coletados por Sérgio de Oliveira Birchal
em relatórios das assembléias gerais de acionistas da CUI, particularmente nos referentes aos
anos de 1856 e 1857. Como explica o autor, além de contar com a colaboração de grandes
fazendeiros da região, o citado cafeicultor recorreu à locação massiva de cativos de
companhias mineradoras localizadas no centro da província de Minas Gerais:
“Em 7 de junho de 1855, por exemplo, a CUI assinou um contrato com a Companhia
de Cocais para alugar 305 escravos. (...) No relatório de 1857, o presidente agradeceu
dois acionistas pelos serviços prestados à companhia: José Antonio da Silva Pinto [o
barão de Bertioga] e Lino José Ferreira Armond. Entre outras coisas, [Silva] Pinto
alugou à companhia mais de 100 escravos de seu próprio plantel que estavam
trabalhando na construção da rodovia entre Matias [Barbosa] e a ponte sobre o rio
Paraibuna.”19

Nesta perspectiva, as escrituras públicas de engajamento de escravos que


conseguimos localizar no Arquivo Histórico do Município de Juiz de Fora, demonstram
primeiramente que o número de cativos alugados pela Companhia União e Industria, nos
anos de 1855 e 1856, era pelo menos 31,35% maior do que os 405 cativos mencionados no
trecho citado acima. Como indicam os dados que coletamos nos fundos cartoriais descritos,
dados estes que se encontram parcialmente coligidos no Quadro 01, nesse biênio, Mariano
Procópio celebrou 11 contratos de locação com proprietários domiciliados nos municípios de
Juiz de Fora e Barbacena, envolvendo ao todo 127 mancípios.20 Na verdade, esse aspecto
quantitativo de nossa pesquisa reforça sobremaneira as análises de Sérgio de Oliveira Birchal,
que havia apontado também, em uma tabela com a composição aproximada da força de

18
Elione Silva Guimarães e Valéria Guimarães apresentaram dados de três contratos firmados pela CUI com
proprietários locais, todos no primeiro semestre de 1856, envolvendo o engajamento de trinta e três escravos nas
obras da Rodovia União e Indústria. Ver GUIMARÃES, Elione Silva e GUIMARÃES, Valéria Alves. Aspectos
cotidianos da escravidão em Juiz de Fora. Juiz de Fora, Funalfa, 2001, pp. 21 e 32-36.
19
BIRCHAL, Sérgio de Oliveira. Op. cit., pp. 10-11.
20
A CUI necessitou alugar 25 escravos em Barbacena, em maio de 1855, por ter firmado com o governo
provincial um contrato para recuperar a antiga estrada de ligação entre Juiz de Fora e aquela cidade. O emprego
de cativos nesses serviços foi sancionado pelas autoridades, como sugere esse trecho de um relatório oficial da
época: “A reparação, e conservação da estrada atual do Paraibuna tem exigido constante emprego de não
diminuto pessoal”. Ver Relatório que a Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais apresentou na
abertura da sessão ordinária de 1856. Conselheiro: Herculano Ferreira Penna, Presidente da Mesma
Província. Ouro Preto, 1856, p. 12.

5
trabalho da CUI entre 1855 e 1865, que essa empresa teria empregado, naqueles dois anos
iniciais, de 515 a 900 indivíduos escravizados.21

QUADRO 01 – ESCRITURAS PÚBLICAS DE ENGAJAMENTO DE ESCRAVOS


FIRMADAS ENTRE A CUI E PROPRIETÁRIOS DA REGIÃO – 1855-1856

Ano Mês N.º de escrituras N.º de mancípios engajados


Janeiro 01 19
Fevereiro 03 23
1855
Maio 01 25
Agosto 04 40
Junho 01 10
1856
Dezembro 01 10
Total 11 127
Fonte: AHCFJ. 1º Ofício de Notas. Caixa 1: Livro 2, fls. 06-30. 1855 e Livro 3, fls. 01 e 02. 1856.
Por outro lado, a análise qualitativa dessas onze escrituras permitiu-nos reunir
informações bastante relevantes e esclarecedoras sobre as condições, prazos e valores
estabelecidos nesses acordos comerciais, que, de modo geral, envolviam o arrendamento de
cativos ou grupos de cativos por períodos que variavam de 2 a 5 anos. Os contratos de locação
estabelecidos entre a Companhia União e Indústria e distintos proprietários de escravos da
região previam engajamentos de curto prazo, de apenas 6 meses, podendo ou não serem
renovados, porém sempre com essa mesma duração. Caso o locador optasse por romper o
acordo, por razões diversas, deveria deixar isto claro trinta dias antes da efetivação do
reengajamento. O pagamento pelo aluguel realizava-se trimestralmente e à CUI era garantido,
se lhe conviesse, o direito de sublocar o escravo para terceiros.22
Caso o cativo adoecesse, fugisse ou se ferisse durante o contrato, as despesas
correriam por conta da Companhia União e Indústria. Se após quinze dias, o mancípio doente
ou fugido não se recuperasse ou não fosse encontrado, o seu proprietário seria
responsabilizado, ficando ao encargo deste o tratamento ou recuperação da “mercadoria”
alugada. Por outro lado, se a empresa de Mariano Procópio julgasse ter recebido um escravo
inválido para o tipo de trabalho a ser exercido, intimaria o locador a tomar as devidas
providências e substituir a “peça de ébano” em questão por outra mais apropriada.23 Ainda

21
Ver BIRCHAL, Sérgio de Oliveira. Op. cit., p. 10.
22
Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora (AHCFJ) 1º Ofício de Notas, Caixa 01, Livro 2. Fls. 08-09. 1855.
23
Notas-se assim, que as leis do Império brasileiro e o Código Comercial de 1850, em particular, em certa
medida, deram continuidade às Ordenações Filipinas, que no Livro 4, Título 13, determinavam que em caso de
compra de escravos e/ou mulas “defeituosos”, sem que o vendedor esclarecesse devidamente ao comprador, este
último teria o direito de trocar a “mercadoria”, ou de ter ressarcido o dinheiro gasto em tal compra. Ver AHCFJ.
1º Ofício de Notas, Caixa 1, Livro 2. Fls. 08-09. 1855 e “Livro 4, Título 13: Dos escravos e mulas que mancam”.
In Ordenações Filipinas. Edição organizada por Cândido Mendes de Almeida. Rio de Janeiro, 1870.

6
assim, como explica Rômulo Andrade, a locação de escravizados constituía uma transação
comercial bastante rentável para as duas partes que firmavam o contrato:
“Apesar de representar para o proprietário um contrato de risco – já que sobre ele
pesava o ônus da fuga ou doença prolongada do escravo - a locação lhe era
interessante, porquanto representava liquidez imediata, economia na manutenção
alimentar do cativo e perspectiva de reembolso a médio prazo do capital investido.
Para o locatário significava a ausência de desembolso de capital vultoso,
possibilitando-lhe diversificação nos investimentos. Em suma, excluído o escravo, era
um tipo de transação lucrativa para as partes envolvidas.”24

No caso especifico das onze escrituras públicas de engajamento de escravos que


estamos analisando, entendemos ser de fundamental considerar também que durante o prazo
aproximado de abrangência desses contratos, que coincidiu com os anos de construção da
rodovia entre Petrópolis e Juiz de Fora, o preço da mercadoria escrava neste município
valorizou-se em 67%, elevando-se entre 1854 e 1859 de 1:350$000 para 2:250$000.25 Deste
modo, no que se refere ao impressionante plantel de trabalhadores escravizados que compôs
para a implementação do seu complexo projeto rodoviário, tudo indica que as estratégias
urdidas pela Companhia União e Indústria foram duplamente bem sucedidas. Por um lado,
num curto espaço de tempo, essa empresa conseguiu arregimentar cerca de 900 mancípios,
aparentemente negociados em condições privilegiadas e extremamente favoráveis à firma
locatária. Em razão disto, notadamente de 1856 a 1866, no período de intensificação e
diversificação de suas atividades, a companhia presidida por Mariano Procópio não enfrentou
maiores dificuldades para manter, permanentemente mobilizados, centenas de operários e
jornaleiros cativos e livres, nacionais e estrangeiros. Como evidenciam as informações
coletadas por Sérgio de Oliveira Birchal em relatórios internos da CUI, no ano de 1856:
“A companhia [União e Indústria] empregava 1.102 pessoas; entre elas, 900 escravos
que constituíam quase 82% da força de trabalho total. Dos 900 escravos, 48 eram
empregados na produção de carvão; 96 eram empregados como pedreiros, cozinheiros
etc., e como seus assistentes e aprendizes, nas várias oficinas e seções da estrada; os
756 restantes trabalhavam na construção e manutenção da rodovia. (...) Em 1857,
havia 804 escravos trabalhando para a companhia. (...) Em 1858, a companhia
empregava 2.636 trabalhadores: 1.136 eram empregados na seção da rodovia entre
Juiz de Fora e Paraíba [do Sul]. Deste número, 800 eram escravos; isto é, 70%. (...) Os
outros 1.500 eram empregados na seção entre Petrópolis e Paraíba do Sul, mas não há

24
Ver ANDRADE, Rômulo. “Escravidão e Cafeicultura em Minas Gerais: O Caso da Zona da Mata”. In Revista
Brasileira de História, ANPUH, vol. 11, n.º 22, 1991, pp. 106-108.
25
Sobre a evolução dos preços e a dinâmica de funcionamento do mercado de escravos em Juiz de Fora, entre
1850-1888, ver: MACHADO, Cláudio Heleno. “Tráfico interno de escravos na região de Juiz de Fora na
segunda metade do século XIX” In I Seminário de História Econômica e Social da Zona da Mata Mineira, 27 a
29 de maio de 2005, Juiz de Fora, (CR-ROM), 2005 e ANDRADE, Rômulo. Op. cit., pp. 103-108.

7
informação acerca do status destes trabalhadores (...), porém, é razoável supor que a
mão-de-obra escrava representava uma grande parcela.”26

Por outro lado, como revela a nossa pesquisa, no processo de negociação com os
proprietários que lhe alugaram 127 desses cativos, invariavelmente, a Companhia União e
Indústria obteve preços bastante vantajosos, sobretudo se lembramos que tais preços foram
fixados – com prazos de 2, 4 e até 5 anos - no momento em que os valores correntes no
mercado regional de escravos se elevaram significativamente. Com base nos dados presentes
nas escrituras cartoriais a que tivemos acesso, estimamos que a CUI pagou 137$500, em
média, pelo aluguel anual de cada um dos mancípios que engajou, por meio desses contratos
do biênio 1855-1856, nos serviços gerais de abertura da estrada-tronco sob sua concessão.27
Convém ressaltar, nesta perspectiva, que esse valor locatício representava apenas 52,89% dos
260$000 anuais exigidos em 1867, segundo Rômulo Andrade, por locadores de escravos que
residiam na extensa zona rural de Juiz de Fora.28
Diante das informações que apresentamos até aqui, acreditamos que a relativa
facilidade que encontrou para compor rapidamente e manter por alguns anos um enorme
plantel escravista, aliada às condições bastante vantajosas e aos preços reduzidos negociados
junto a diversos locadores de cativos, foram determinantes para que a Companhia União e
Indústria, durante a construção da rodovia entre Juiz de Fora e Petrópolis, fizesse uso
extensivo e sistemático dessa modalidade servil de mão-de-obra. Como procuraremos
demonstrar a seguir, o recrutamento suplementar de artífices e jornaleiros livres, de múltiplas
nacionalidades, realizado gradativamente pela CUI na mesma época, será direcionado a partir
de parâmetros semelhantes, sobretudo no que se refere à obtenção rápida e a custos baixos de
um contingente expressivo de trabalhadores, com graus distintos de qualificação – algo que
será garantido em razão do acesso privilegiado a enormes somas de recursos públicos e por
meio do aviltamento das condições sociais dessa força de trabalho.

A mão-de-obra livre nos empreendimentos da CUI: germânicos, portugueses e brasileiros.

26
Segundo Sérgio de Oliveira Birchal, entre 1857 e 1859 o número total de trabalhadores livres e escravos
empregados pela CUI saltou de cerca de 1.000 para 3.500 indivíduos. A partir de 1861, com o término das obras
da Rodovia União e Indústria, no entanto, houve uma sensível diminuição do número de operários a serviço da
Companhia: “em 1865, por exemplo, a companhia empregou um total de 344 pessoas, mas não há informação
sobre o emprego de escravos e não-escravos.” Ver BIRCHAL, Sérgio de Oliveira. Op. cit., pp. 08-12.
27
Chegamos a esse valor locatício anual médio baseando-nos, fundamentalmente, em quantias estipuladas nas
escrituras firmadas pela CUI em 21/01/1855, 06/05/1855 e 07/06/1856, envolvendo o aluguel de 54 cativos. Os
dois primeiros contratos eram de 4 anos, abrangiam 44 mancípios e tinham preço total de 17:352$000, enquanto
que o terceiro estabelecia uma duração maior, de 5 anos, e compreendia 10 cativos ao custo final de 8:750$000.
Ver AHCJF. 1º Ofício de Notas. Caixa 1: Livro 2, fls. 6-8 e 19-20 e Livro 3, fls. 1-2.
28
Ver ANDRADE, Rômulo. Op. cit., pp. 106-107.

8
No ano de 1856, como indicamos anteriormente, 18% dos 1.102 homens engajados nos
serviços de construção da União e Industria compunha-se de jornaleiros livres. A maior parte
desses 202 indivíduos, era formada por portugueses e brasileiros, alguns qualificados e
possivelmente recrutados no Rio de Janeiro e nos arrabaldes de Juiz de Fora, onde a CUI
instalou a sede de sua administração, a Estação Rio Novo e suas principais oficinas e
armazéns.29 Desse contingente de operários não-escravos, fazia parte ainda um grupo de
aproximadamente vinte oficiais de ofício germânicos, contratados em Hamburgo no segundo
semestre de 1855 e que chegaram nessa cidade mineira, com suas respectivas famílias, em
janeiro do ano seguinte.30 Tratava-se, como explicam Luiz José Stheling e Domingos Giroletti,
de artífices experientes e de ramos manufatureiros variados - mecânicos, fundidores, ferreiros,
folheiros, ferradores, segeiros, seleiros, carpinteiros, marceneiros, pontoneiros, pedreiros,
pintores e oleiros - que dispunham de um contrato com a Companhia União e Indústria que,
em resumo, lhes garantia trabalho durante dois anos, com salários médios de 2$000 por dia,
pagos ao final de cada mês, além de transporte, moradia e alimentação durante todo esse
período.31
Cerca de dois anos depois, entre janeiro e agosto de 1858, novas levas de imigrantes
germânicos foram trazidas a Juiz de Fora, desta vez não apenas para trabalharem nas oficinas,
estações e estradas que a CUI construía na região, como também para povoarem uma colônia
agrícola organizada por essa empresa, com vultosos recursos obtidos por sua direção junto ao
governo imperial. Acreditamos que mais do que garantir, a um custo baixíssimo, a mão-de-
obra qualificada que os seus empreendimentos exigiam, a entrada da CUI no ramo de

29
Entre 1855 e 1861, a CUI estabeleceu, numa área ao norte de Juiz de Fora, a sua estação e seus escritórios
centrais, bem como suas oficinas e armazéns, uma olaria, um hotel e uma escola para colonos. No corpo técnico
e administrativo dessa empresa – composto de engenheiros, arquitetos, agrimensores, gerentes e seus assistentes
- predominavam estrangeiros, sobretudo de origem francesa e germânica. Ver BIRCHAL, Sérgio de Oliveira.
Op. cit., pp. 10-12 e PASSAGLIA, Luiz Alberto do Prado. A preservação do patrimônio histórico de Juiz de
Fora – medidas iniciais. Juiz de Fora, PJF / IPLAN, 1982, pp. 29-31.
30
O Relatório da Assembléia Geral dos Acionistas da Companhia União e Indústria, relativo ao ano de 1856,
segundo Sérgio de Oliveira Birchal, confirma que o número de operários especializados alemães contratados
inicialmente pela empresa não excedia duas dezenas. Estes artífices, juntamente com seus familiares, partiram de
Hamburgo com destino ao Brasil, a bordo do veleiro Antílope, no dia 02 de novembro de 1855. Desembarcaram
no Rio de Janeiro em 28 de dezembro, seguindo em carroções para Juiz de Fora, onde teriam sido recebidos com
“grande festa” uma semana depois. Ver BIRCHAL, Sérgio de Oliveira. Op. cit., p. 11
31
Eram estes, pelo menos, os benefícios garantidos no “contrato-padrão” firmado, em 11/10/1855, entre o
preposto da CUI em Hamburgo, H. F. Eschels, e o mestre de seges Heinrich Griese (1826-1917), natural de
Preetz, Holstein. Além desse segeiro, Luiz José Stheling identificou apenas outros cinco artífices germânicos que
se estabeleceram dessa forma na cidade: os ferreiros Pedro Schubert Sênior e João Ulrico Schiess, os seleiros
João Stiegert e Baltazar Weydt e o folheiro Frederico Peters. A este grupo deve ser acrescentado o nome do
ferreiro Balthazar Espeschit (?-1890), originário do Grão-Ducado de Essen, no vale do Rur, onde trabalhou para
a família Krupp. Ver STEHLING, Luiz José. Op. cit., pp. 149-152, 415-432 e ESPESCHIT, Lindolpho. Pelos
caminhos do Brasil o que encontrei: histórias que me contaram, histórias que pesquisei, historias que vivi. Belo
Horizonte, Mazza, 1995, pp. 149-150.

9
imigração e colonização visou, fundamentalmente, nas palavras de Luiz José Stheling, “o
dinheiro existente nos cofres da Repartição Geral de Terras Públicas.” De fato, este órgão
estatal repassou antecipadamente para Mariano Procópio a expressiva quantia de 200:000$000,
destinada contratualmente para a importação e assentamento de 2.000 alemães – ainda que
apenas 1.162 tenham sido efetivamente trazidos e fixados na Colônia D. Pedro II. Tais
recursos, além de auxiliarem na capitalização da Companhia União e Indústria, permitiu que
seus dirigentes adquirissem e subdividissem uma vasta área inculta ao norte da cidade,
obtendo lucros consideráveis, ao que parece, com a venda a prestações de cerca de 188 prazos
aos colonos.32
Na verdade, esses imigrantes se fixaram no município sob condições bastante diversas
daquelas oferecidas, pelo menos em termos contratuais, aos artífices germânicos que desde
janeiro de 1856 viviam e trabalhavam em Juiz de Fora. Isto, primeiramente, porque os colonos
chegados em 1858, além de serem obrigados a reembolsar as despesas com as viagens
marítima e terrestre e pagar por outras “antecipações” eventualmente recebidas (moradia,
víveres, ferramentas, pequenos animais de criação), deviam saldar também o valor dos seus
respectivos prazos na Colônia D. Pedro II. Por outro lado, quando estes se empregavam como
operários nas oficinas e canteiros de obra da CUI, tinham que se submeter a ordenados bem
menores, de 1$000 em média.33
Em dezembro de 1860, segundo cálculos de Domingos Giroletti, a CUI empregava em
suas obras, estações e oficinas aproximadamente 70% da população masculina da Colônia D.
Pedro II apta ao trabalho. Dos salários recebidos por esses operários, cerca de um quarto era
destinado compulsoriamente à amortização de suas respectivas dívidas com tal firma. Esse
endividamento, como notou o autor, mantinha grande parte dos colonos atada aos ditames da
empresa: “De um montante de 73,8 contos em 1867, a dívida foi reduzida para 67,3 contos em
1870, ou seja, (...) não havendo acréscimo de juros por mora, seriam necessários mais de trinta
anos para integralizá-la”, se mantida a média de sua redução anual em 2,1 contos de réis.34

32
Tais trabalhadores provinham, em sua maioria, do Grão-Ducado de Hessen, do Tirol, da Prússia, Holstein e
Baden e pertenciam a distintos segmentos profissionais: agricultores, sapateiros, alfaiates, barbeiros, carpinteiros,
pedreiros, padeiros, carroceiros, relojoeiros, marceneiros, ferreiros, funileiros, pintores, ferreiros, carpinteiros de
carros, serralheiros, dentre outros. Ver STEHLING, Luiz José. Op. cit., pp. 149-207.
33
Por volta de 1860, a Colônia D. Pedro II dividia-se em três regiões: a Villagem (hoje bairro Fábrica), onde
residia a maior parte dos colonos empregados na CUI; a “colônia de baixo” (atual bairro Borboleta) e a “colônia
de cima” (região hoje conhecida como São Pedro e Cidade Alta), essencialmente agrícolas. Em dezembro de tal
ano, esse núcleo colonial abrigava 1.144 pessoas, 54,4% do sexo masculino e cerca de 45% de credo luterano.
Ver STEHLING, Luiz José. Op. cit., pp. 188-191 e PASSAGLIA, Luiz Alberto do Prado. Op. cit., pp. 29-31.
34
Ver GIROLETTI, Domingos. Op. cit., pp. 56-62.

10
Por contrastar em tudo com o que havia sido anteriormente prometido pelos
representantes da Companhia União e Indústria em Hamburgo, essa realidade degradante –
que se tornava mais grave com os constantes atrasos de salários, as péssimas condições de
habitação e a escassez de gêneros alimentícios - se constituiu na principal causa de uma
tentativa de sublevação na Colônia D. Pedro II em fins de 1858. Apesar dessa ameaça de
levante ter sido prontamente reprimida pelo destacamento policial local, que encarcerou por
alguns dias os seus supostos líderes, o clima de tensão não diminuiu, motivando inclusive o
protesto formal do representante diplomático do Reino da Prússia no Brasil, barão de
Meusebach, contra “os maus tratos e as explorações que constatara pessoalmente nas visitas”
que realizou, nessa época, à citada colônia agrícola. Segundo Luiz José Stheling, aconselhados
pelo diplomata prussiano, desde então muitos colonos se recusaram a pagar a dívida que lhe
era atribuída pela empresa, enquanto alguns preferiram ainda se mudar para outras áreas, na
cidade ou fora dela.35
Embora sejam ainda bastante restritos e fragmentados as dados disponíveis sobre os
trabalhadores lusos e brasileiros empregados pela CUI, de meados dos anos 1850 até fins da
década de 1870, há fortes razões para acreditarmos que esses operários recebiam os mesmos
salários baixos e aviltantes pagos, então, aos colonos germânicos.36 Soma-se a essas precárias
condições de existência, dando a elas um aspecto ainda mais grave, o fato de que nas cidades e
fazendas das províncias cafeeiras, particularmente na fronteira de Minas com o Rio de Janeiro,
grande parte dos imigrantes europeus, a exemplo do que ocorria com muitos jornaleiros
nacionais livres, eram obrigados a labutar, ombro-a-ombro, com cativos de todos os tipos.37

35
Ressaltamos que a difícil situação imposta aos habitantes da Colônia D. Pedro II era bastante semelhante aos
problemas enfrentados pelos cerca de 900 alemães assentados, entre 1840 e 1850, na fazenda Ibicaba, em
Limeira – SP. Embora trazidos ao Brasil com recursos públicos, estes imigrantes estavam submetidos a um
“sistema de parceria” que os obrigava tanto a entregar ao latifundiário e senador Nicolau de Campos Vergueiro
metade da renda obtida com o cultivo de cafezais e de outros produtos agrícolas, quanto a saldar os
“adiantamentos” feitos (transporte marítimo e terrestre, ferramentas, gêneros alimentícios e habitação).
Indignados e exigindo “tratamento justo”, em dezembro de 1856, os colonos se revoltaram e se recusaram a
pagar suas dívidas, que se avolumavam a cada ano, em virtude da incidência de juros e da manipulação de seus
valores pelo citado cafeicultor. Ver STEHLING, Luiz José. Op. cit., pp. 206-207; CARNEIRO, Deivy Ferreira.
Conflitos, crimes e resistência: uma análise dos alemães e teuto-descendentes através de processos criminais
(Juiz de Fora – 1858/1921). Rio de Janeiro, UFRJ, PPGHIS, 2004, pp. 183-208 e FERRÃO, André Munhoz de
Argollo. Colonos na fazenda Ibicaba, empresários em Piracicaba: a evolução sócio-econômica de um grupo de
imigrantes alemães (1850-1880). In III Congresso Brasileiro de História Econômica e IV Conferência
Internacional de História de Empresas. Curitiba, UFPR / ABPHE, 1999, CD-ROM, pp. 03-06.
36
Segundo Sérgio de Oliveira Birchal, ao lado de artífices e trabalhadores braçais germânicos e lusitanos, a CUI
diversos brasileiros, em funções qualificadas e não qualificadas: “Em 1856, por exemplo, a companhia empregou
um total de 80 brasileiros não-escravos no empedramento da estrada. O relatório de 1857 (...) afirmava que o
número de brasileiros recrutados tinha aumentado e que as oficinas estabelecidas em Juiz de Fora empregavam
tanto alemães quanto brasileiros.” Ver BIRCHAL, Sérgio de Oliveira. Op. cit., pp. 10-12.
37
A citada passagem do barão de Meusebach por Juiz de Fora, ilustra bem essa situação. Ao que parece, antes de
inspecionar a Colônia D. Pedro II, o representante diplomático do reino da Prússia junto ao governo brasileiro

11
Esse cotidiano de exploração e miséria, permeado pelas brutalidades do sistema
escravista, não estava muito distante da realidade enfrentada, na maior parte do terceiro quartel
do oitocentos, pelos operários germânicos, portugueses e brasileiros nos empreendimentos e
domínios da Companhia União e Indústria. No regime de trabalho em que esses indivíduos
juridicamente livres encontravam-se inseridos, por conseguinte, muitas práticas características
do mundo senhorial se faziam presentes, como evidenciam as jornadas de mais de dez horas
diárias que tinham que cumprir, os salários baixíssimos que recebiam - geralmente com
atrasos de até onze meses e com descontos que chegavam à metade do seu valor nominal– e a
repressão e punição daqueles que ousassem se contrapor a esse quadro de injustiças.38
Por outro lado, além de possibilitar à direção da CUI exercer um forte domínio sobre o
conjunto de operários livres que empregava, a utilização em larga escala de cativos alugados
restringiu sobremaneira a inserção e o campo de atuação dos não-escravos na construção da
rodovia que ligava Juiz de Fora a Petrópolis, bem como de seus vários ramais na região. Nos
empreendimentos da Companhia União e Indústria, com efeito, os artífices assalariados
configuraram-se enquanto maioria apenas em certos serviços especializados, como a
edificação de pontes, a operação das estações de muda e carga distribuídas ao longo dessas
vias e das grandes oficinas, da olaria e da telheira - onde eram produzidos carroças, diligências
e boa parte do material requerido pelas obras realizadas então por essa empresa.
Entre o início dos anos 1860 e meados da década seguinte, o trabalho e a produção
permaneceram intensos no complexo manufator mantido pela CUI nos arrabaldes de Juiz de
Fora, tendo em vista o crescimento contínuo verificado no volume de carga e passageiros,
principalmente de café, pela Rodovia União e Indústria e por seus diversos ramais.39 Nesse
mesmo período, em função da demanda cada vez maior dos cafeicultores dessas regiões por
cativos, os trabalhos de manutenção constante exigidos por essas estradas carroçáveis, cuja

havia percorrido diversas fazendas localizadas na divisa das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, onde
contatou serem procedentes, de fato, as denúncias feitas por colonos alemães de que estariam recebendo o
mesmo tratamento brutal dispensado por feitores e senhores aos cativos. Ver STEHLING, Luiz José. Op. cit., pp.
206-207
38
Em cartas enviadas à Alemanha, entre 1859 e 1862, o colono João Ziegler informou a seus parentes, dentre
outras coisas, que trabalhava então cerca de dez horas por dia em uma pedreira da CUI e que metade de seu
ordenado era retida mensalmente pela empresa a título de amortização de dívidas. Numa carta de abril de 1862,
dizia estar enfrentando grandes dificuldades: “Pois estamos agora construindo uma nova casa e há oito meses a
Companhia não faz pagamento porque ela está ruim. (...) Já há muito tempo porém estávamos esperando o
pagamento e como ouvimos falar este poderá demorar ainda três meses.” Citado por: STEHLING, Luiz José. Op.
cit., pp. 306-310.
39
Dados compilados por Albino Esteves demonstram que o volume de cargas transportado anualmente pela
Rodovia União e Industria passou de 746.407 arrobas em 1858, para 3.591.527 arrobas em 1869. No mesmo
período, o movimento anual de passageiros por esta estrada saltou de 5.499 para 23.975 pessoas. Ver ESTEVES,
Albino. “Mariano Procópio: trabalhos originais”. In Revista do IHGB. Rio de Janeiro, jan / mar. 1956, pp. 244-
264.

12
extensão total chegou a 408 Km, ficaram quase que exclusivamente à cargo de operários
livres, como notou em 1865 a escritora Elizabeth Cary Agassiz:
“Para a conservação das estradas, (...) para as reparações, por exemplo, que exigem
grande quantidade de trabalhadores constantemente em ação, explorando as pedreiras,
quebrando pedras para o macadame, cobrindo o sulco deixado pelas rodas, retificando
os taludes, etc., só se admitem trabalhadores livres. Esse cuidado em excluir os
escravos dos trabalhos públicos (...) inspira-se na idéia de limitar pouco a pouco o
trabalho servil às ocupações agrícolas, afastando os escravos das grandes cidades e
suas vizinhanças.”40

Deste modo, após ter sido amplamente empregado nas obras de implantação de uma
extensa e intricada rede rodoviária entre as províncias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, o
braço servil foi fortemente confinado nas lavouras de café que se alastravam por essa região,
principalmente pela Zona da Mata mineira. Nesse processo, perceptível já em meados de 1860,
caberá a jornaleiros e artífices germânicos, portugueses e brasileiros, basicamente, a realização
dos serviços rotineiros de operação e manutenção da referida malha viária, sobretudo da
Rodovia União e Indústria, cuja importância e viabilidade financeira, na segunda metade da
década de 1870, acabaram literalmente atropeladas pelos trilhos da Estrada de Ferro D. Pedro
II. Isto porque, à medida que novos trechos dessa ferrovia eram franqueados ao tráfego,
diminuía o fluxo geral de carroças e diligências pela estrada que ligava Juiz de Fora à
Petrópolis, situação esta que contribuiu decisivamente para a própria extinção da Companhia
União e Indústria.41

40
Ver AGASSIZ, Luís e AGASSIZ, Elizabeth Cary. Op. cit., pp. 80-83 e 93-96.
41
No início de 1879, o contrato que mantinha com o Império, para operação e manutenção dessa estrada, expirou
e não foi renovado pela CUI, que encerrou definitivamente as suas atividades e teve seu patrimônio e negócios
entregues a uma Comissão Liquidante, que conduziu os processos de alienação do patrimônio da empresa e de
extinção da Colônia D. Pedro II, ocorrida em 1885. Ver STEHLING, Luiz José. Op. cit., pp. 240-243 e 311-313.

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