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Marcelo C.

Rosa

REFORMA AGRÁRIA E LAND REFORM: movimentos sociais e


o sentido de ser um sem-terra no Brasil e na África do Sul1

Marcelo C. Rosa*

Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa comparada sobre a atuação do Landless
People´s Movement (LPM), da África do Sul, e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-
Terra (MST), realizada entre 2005 e 2009. No lado brasileiro, impera a ideia de reforma
agrária, ou seja, uma ação política voltada para o uso produtivo ou agrícola da terra, que tem,
como pano de fundo, critérios legais de produtividade. Na parte sul-africana, vemos o embate
se estruturar sob a nomenclatura de land reform, slogan que remete a uma mudança na distri-
buição do território, visando à reparação das injustiças cometidas pelos governos do apartheid.
Sendo assim, indicamos que esses dois casos comportam tipos diferentes de sujeitos da ação
política. Tendo como referentes agentes históricos distintos, os movimentos sob análise, nesses
dois países, procuram se legitimar por meio de diferentes “grandezas” que justificam suas
existências e suas lutas. Neste artigo, procuraremos apresentar as especificidades de cada um
dos sem-terras desses movimentos, a partir das suas formas sociais de “engrandecimento e
justificação social” diante de suas bases e do Estado.
PALAVRAS-CHAVE: sem-terra, reforma agrária, África do Sul, movimentos sociais, MST.

INTRODUÇÃO2 elencar as diferenças na forma de organização e


mobilização de cada um, apontando para os pos-
A comparação entre o Movimento dos Tra- síveis limites das redes de movimentos sociais for-
balhadores Rurais Sem-Terra do Brasil (MST) e o madas nos últimos anos. Esses textos partem da
Landless Peoples Movement da África do Sul (LPM) premissa de que os movimentos são comparáveis
já foi tema de Rosa (2007, 2008) e Balleti et al. porque ambos representam os sem-terra em cada
(2008).3 O primeiro comparou a relação desses um dos países. O que nenhum deles parece colo-
movimentos com o Estado. O segundo procurou car em questão é justamente o fato de que terra e

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sem-terra podem não ter o mesmo sentido e o mes-
* Professor do Departamento de Sociologia da Universida-
de de Brasília – UnB. Pesquisador do CNPq. Campus Uni- mo significado político em cada um dos países. Se
versitário Darcy Ribeiro - ICC Centro - Asa Norte. Cep: os sentidos dos objetos aos quais se dedicam, em
70910-900 – Brasilia – DF – Brasil. marcelocr@uol.com.br
1
A pesquisa que sustenta este texto foi realizada com apoio suas lutas, não são necessariamente os mesmos,
do CNPq e da Fundação Ford. Essa pesquisa vem sendo
realizada conjuntamente com Antonádia Borges a quem os próprios movimentos podem, ao fim e a ao cabo,
agradeço por ter me introduzido e debatido diversas ideias não ser exatamente equivalentes. A comparação,
que estão no texto e também por sua cuidadosa revisão.
Sou grato também aos pareceristas anônimos que ajuda- no caso aqui proposto, não partirá, portanto, da
ram a esclarecer diversos pontos do artigo.
2
Neste texto, não trataremos da organização desses movi- aceitação da categoria sem-terra como equivalente
mentos, de suas ações coletivas ou formas de recruta- universal, mas de sua reconstrução feita pelas pis-
mento. Apesar de importantes, tais questões extrapolam
os limites da discussão sobre a noção de sem-terra em tas deixadas pelas agências dos próprios movimen-
cada país.
3
Ao contrário do que as informações dos entrevistados do
tos no espaço público.
artigo de Balleti et al (2008) sugerem, nossa investigação A análise, que todavia se pretende compa-
contesta a afirmação de que o LPM esteja morto. Tendo
realizado pesquisa contínua com membros desse movi- rativa, tomará como foco, seguindo os passos de
mento entre 2005 e 2010, observei mudanças nas táticas e
estratégias do movimento, bem como uma regionalização Boltanski (2000), a situação de disputa na qual cada
de suas ações na província de Kwazulu-Natal. Esse proces- um dos movimentos emerge como representante
so parece ter levado à crescente distinção entre o LPM e o
MST, objeto de outro texto, em elaboração. de demandantes por terra. Na visão desse autor,

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nessas situações os sujeitos envolvidos são cha- existe apenas na cabeça dos pesquisadores que se
mados a explicitamente apresentar provas de sua dedicaram a conhecê-los melhor. Desde a funda-
grandeza e de sua importância. Tais provas permi- ção do LPM, os dois movimentos têm mantido
tiriam, ao dessingularizar a posição dos actantes,4 intercâmbios, no Brasil e na África do Sul, por
constituir aquilo que Latour (2005) chama de cole- meio da La Via Campesina, movimento internaci-
tivos. Nessa perspectiva, tanto MST como LPM onal ao qual ambos são filiados. A própria pesqui-
seriam coletivos que se organizam associando a noção sa que deu origem a este texto foi desenvolvida a
de sem-terra a ações, símbolos, discursos, docu- partir da etnografia de uma das viagens que mili-
mentos e histórias que, por sua vez, constituem tantes brasileiros fizeram à África do Sul e dos
sentidos específicos a cada movimento. Será por dilemas que emergiram no contato cotidiano entre
meio da análise desses objetos, postos nas provas as duas organizações.
constituídas em situações públicas, que procurare- Em 2005, eu acompanhava um grupo de
mos, ao longo do texto, descrever os diferentes con- militantes do Movimento dos Trabalhadores Ru-
juntos que, em cada Movimento, dão sentido social rais Sem Terra (MST) que visitava o Landless People´s
aos sem-terra no Brasil e na África do Sul. Movement (LPM) na África do Sul.5 Durante um
Partindo dessas premissas, procuramos dos encontros iniciais, na província de Kwazulu-
apontar especialmente para o fato, negligenciado Natal, com pessoas ligadas ao movimento, a pri-
nas comparações já citadas, de que, se existem meira pergunta feita ao representante do MST foi a
diferenças cruciais nos termos empregados em cada seguinte: Por que há brancos (como o próprio mili-
país, as relações entre terra e sem-terra não podem tante que discursava) no MST?6 O questionamento
ser tomadas como estáveis, inequívocas ou abalou não apenas o militante como o pesquisador
unívocas: enquanto o movimento brasileiro luta que o acompanhava. Até aquele momento, para o
por “reforma agrária”, o movimento sul-africano militante e para mim, a associação entre sem-terra e
luta por uma “reforma da terra”. Por fim, defende- sujeitos brancos era absolutamente normal. Afinal,
remos a hipótese central de que questões raciais conhecendo a história do MST, sabíamos que o
próprias de cada país e a relação com a agricultura movimento nascera entre os colonos7 brancos que
são elementos-chave para o entendimento dessa organizaram ocupações de terras públicas no sul
diferença entre a terra e o sem-terra em cada lugar.
5
Agradeço ao MST e aos militantes Vanderlei Martini e
Inês Pinheiro, por me permitirem acompanhá-los em
sua viagem pela África do Sul e compartilhar, com eles,
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as surpresas e angústias de lidar com a questão da terra


QUANDO OS MOVIMENTOS SE ENCONTRAM naquele país. As inquietações que dão origem a este
texto são produtos coletivos das inúmeras conversas e
situações que tivemos durante um mês de convivência,
viajando entre as várias províncias sul-africanas. Peço
Para começar nossa análise, é preciso con- desculpas se as conclusões deste texto não puderem
refletir com exatidão o processo de aprendizado que ti-
siderar que a comparação entre MST e LPM não vemos naquele período. Agradeço também a Mangaliso
Kubheka e a Thobekile Radebe pela generosidade de per-
mitir minha visita.
4
O termo actante, tão familiar aos leitores de Bruno Latour, 6
Nesse encontro, havia um militante branco e uma militan-
foi cunhado pelo linguista Algirdas Julien Greimas. Gros- te negra do MST. Ele, nascido no Rio Grande do Sul, mas
so modo, é plausível afirmar que seu modelo “actancial” radicado em Minas Gerais, e ela, do estado do Maranhão.
inspira-se nas teorias de Vladimir Propp acerca das estru-
7
turas narrativas. Embora a abordagem estruturalista lhes Colono é um termo que se refere a quem se reconhece
seja, desde um olhar panorâmico, comum, Greimas sus- como descendente de imigrantes alemães, italianos, po-
tentou que o actante ocupa papéis actanciais a depender loneses, entre outros, que chegaram ao Brasil entre os
da trajetória da narrativa. Portanto um actante não é o séculos XIX e XX para viver e se dedicar a atividades
mesmo que um personagem e, consequentemente, não laborais no campo. Esta nota é importante por indicar
pode ser caracterizada de forma isolada, independente- que a narrativa histórica privilegiada por esses narrado-
mente da trama. A formulação de Greimas foi apropria- res busca a Europa dos camponeses como seu berço e
da por diversos intelectuais, posteriormente descritos também porque sublinha os aspectos positivos (leia-se,
como dedicados a pensar a “crise do sujeito”, como Julia produtivos) da ocupação colonial contemporânea no
Kristeva. Na obra de Latour, esse incômodo com a Brasil, obliterando a violência desse processo, em espe-
hegemonia do sujeito como único ator plausível se dissi- cial no que tange à construção da imagem de terras
pa com a aposta no conceito de actante, passível de ser devolutas, improdutivas, sem gente, à espera de serem
definido somente no processo de recomposição do social. cultivadas por sujeitos aptos, ou seja, os colonos.

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do Brasil, no final da década de 1970.8 Apesar dis- sição desse problema deriva das perspectivas de-
so, quase nunca se vê, em textos sociológicos ou senvolvidas por Luc Boltanski e Laurent Thevenot,
nos próprios relatos do movimento, a cor da pele dentre outros, em torno de uma sociologia das ações
caracterizando os sem-terra deste lado do Atlântico. sociais normativas, orientadas pelas justificações
O LPM, por sua vez, era formado, em sua totalida- postas em prática pelas pessoas em momentos de
de, por pessoas negras que, no pós-apartheid, rei- disputa. Mais especificamente, procuraremos seguir
vindicam a posse formal das terras em que viviam sua sugestão de analisar a “maneira pela qual as
ou em que viveram antes de serem removidas pelo pessoas criam causas, boas causas, causas coleti-
regime racista. Não demoraria muito para compre- vas” e como essas operações dependem sempre de
endermos que a questão não era simples e remete- um engrandecimento das pessoas, dos discursos e
ria aos próprios fundamentos da ação de ambos os de todos os demais objetos postos nessa contenda
movimentos. A cor do sem-terra, como veremos nas (Boltanski, 2000, p.26 et passim). Para esses auto-
partes seguintes, passaria a se impor para o enten- res, a fim de se tornar grande, outros poderiam di-
dimento não apenas das bases de sua ação coletiva, zer “digno” de participar em uma disputa, as pes-
mas, principalmente, do que se entende como luta soas agenciam objetos e situações em estados soci-
por terra em ambos os lugares. ais, de forma a criar equivalências cognoscíveis pe-
Juntamente com a cor do sem-terra, chega- los partícipes. São as reconstruções desses estados
mos a outro ponto importante que distingue esses que permitem que as relações sociais sejam analisa-
movimentos em seus discursos e documentos: o das a partir de tais paradigmas, que não são parâmetros
slogan de sua luta. No Brasil, todos os documen- de ação política extrínsecos aos contexto investigado,
tos do MST e discursos coletados durante a pes- mas, ao contrário, tecidos conceitualmente pelos su-
quisa se referem a uma luta por reforma agrária. Já jeitos em luta. O fundamental, nesse tipo de constru-
na África do Sul, usando os mesmos procedimen- ção sociológica, é o reconhecimento pelos actantes das
tos de pesquisa, nos deparamos com a referência à provas que são apresentadas de maneira legítima para
land reform, ou seja, reforma da terra. justificar a existência e a construção de uma determi-
Tomando como objeto de análise as formas nada relação social. Tomando de empréstimo a ideia
pelas quais os militantes, os movimentos, os soci- de Bruno Latour (2005) de que devemos reconstruir
ólogos e os governos justificam e engrandecem (no as associações que permitem a existência social de
sentido de atribuir escalas e magnitudes para defi- nosso objeto de pesquisa, procuramos demonstrar as

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nir relevâncias e importância de maneira relacional, formas como as ações de movimentos se conectam
como descreve Boltanski, 2000) suas ações em es- com a história e com a sociologia de cada país.
quemas teóricos, raciais, slogans, documentos e Em nosso caso, estaremos colocando em pers-
símbolos, pretendemos demonstrar que a associa- pectiva a forma pela qual, na situação acima descrita,
ção entre a cor dos sem-terras e suas respectivas os sem-terra da África do Sul e do Brasil, usando um
lutas pode ser um caminho fértil para o melhor conjunto específico de provas (como cores, slogans
conhecimento do sentido de suas ações. Essa com- e, também, conceitos sociológicos), em situações igual-
paração visa, mais do que a esclarecer e definir o mente particulares, organizam o que temos chamado
verdadeiro significado dessas lutas, a criar obstá- genericamente de lutas por terra.
culos e desafios epistemológicos essenciais, no
sentido proposto por Stengers (2002), para aque-
les que estão acostumados ao campo dos estudos A HOMOLOGIA ENTRE SEM-TERRA E AGRÁ-
rurais no Brasil e na África do Sul. RIO: discursos e narrativas como provas
Em termos metodológicos, a forma de expo-
8
O primeiro passo é tomar como ponto de
Maiores detalhes sobre essas ocupações estão desenvol-
vidos em Rosa (2009) e Sigaud, Rosa e Macedo (2008). partida uma análise das formas como o MST, por

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meio de seus militantes e documentos, se justifica sitário e, no outro, um segmento maior da socieda-
como um actante grande ou valorizado nas lutas de, incluindo o Estado) de forma a ser considera-
por terra no Brasil. Quais são os objetos e as pro- do legítimo. Ambas as definições são bem próxi-
vas que lhe permitem mobilizar pessoas, recursos mas àquelas que leremos nos primeiros manifes-
e teorias que, ao tornarem-no cognoscíveis, criam tos dos acampamentos de sem-terra no sul do Bra-
o próprio valor público do sem-terra na situação sil, encontradas no livro de Méliga e Janson (1982)
de emergência desse movimento? e na tese de Gehlen (1983), dentre outros.
Tendo em vista que nossa pesquisa teve como Tomando as formas de apresentação escrita
questão inicial uma comparação institucional dos em cada um dos casos, podemos pensar cada um
movimentos e de seus respectivos lugares de ação dos elementos associados à condição de sem terra
em cada um dos países, procuramos utilizar, como como um objeto que é usado como prova de sua
material analítico, os informes produzidos sobre grandeza (ou dignidade) pública. Nessas situações,
quem são e o que demandam os sem-terra de cada o trabalho produtivo na terra – resultado da apti-
país de seus respectivos Estados, a fim de cons- dão para atividade rural – aparece como a justifi-
truir uma resposta possível a essas questões. cativa para que se venha a receber um lote. A dis-
puta, que levará a certo tipo de ação política por
parte do movimento e por parte do Estado, como
QUEM SÃO OS SEM-TERRAS DO MST? veremos abaixo, se torna possível justamente a
partir do reconhecimento – pelo MST e por ou-
Nesta seção, apresentaremos textos produ- tros actantes – da relação obrigatória de equivalên-
zidos pelo MST ou por seus membros que bus- cia entre terra e espaço produtivo para a agricultu-
cam definir seus objetivos e suas bases sociais. ra .9 É importante notar que o sem-terra e a terra
Escrevendo para uma publicação que tenta dar não podem ser vistos ou analisados em tais mani-
conta das várias acepções que o termo terra pode festos como coisas que possuem um valor próprio
ganhar no Brasil, Ademar Bogo, uma das princi- ou independente de sua relação com outros obje-
pais lideranças nacionais do MST, assim define o tos. Ambos precisam ser engrandecidos por ou-
que seriam os sem-terras na sua perspectiva: “Ini- tros elementos, como trabalho e agricultura, que
cialmente é um substantivo composto que designa permitem sua diferenciação diante de um outro tipo
a condição social de quem vive do trabalho agríco- de terra e de um outro tipo de sem-terra: aquela
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la e tem aptidão para o mesmo, mas não possui que não é usada para a agricultura e aquele sujeito
sua própria terra.” (Bogo, 2004, p.419). que, apesar de não possuir terras, não trabalha ou
Na proposta de reforma agrária do MST de não tem aptidão para usá-la produtivamente.
1995, republicada em uma coletânea organizada Definindo-se como sujeito a partir dessas
por outro de seus principais líderes, encontramos associações, o MST, nos mesmos documentos,
outra definição que alude aos mesmos elementos: aponta como sua principal demanda e seu princi-
pal objetivo a realização de uma “reforma agrária”
Quem consideramos sem terra: trabalhadores ru- que faça parte da elaboração de um “novo modelo
rais que trabalham a terra nas seguintes condi-
ções: parceiros, meeiros, arrendatários, agrega- agrícola” para o país.
dos, chacreiros, posseiros, ocupantes, assalaria-
dos permanentes e temporários e pequenos pro-
prietários com menos de 5 hectares. (Stédile,
2005, p.178).

Mesmo distantes no tempo, nos dois mo-


mentos discursivos, o MST se apresenta diante 9
É importante notar que “Terra para quem nela trabalha”
de outros sujeitos (em um caso, o público univer- foi um dos slogans do MST adotado entre 1984 e 1988.

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Entender, a partir da sua expressão em dis- mais precisamente, forma-se como uma categoria
cursos públicos do Movimento, o sentido dessas para determinadas políticas públicas. Naquele
provas e associações entre a figura do sem-terra e momento, apontamos o governo de Leonel Brizola,
todos estes objetos que povoam os documentos no Rio Grande do Sul (1959-1963), como uma das
do MST, não é possível sem que consideremos fontes primordiais do termo.11 No referido contex-
essas características como construídas a partir de to, o sem-terra era identificado como um agricultor
uma disputa. pobre, que não tinha acesso à terra. A principal
Na leitura de seus documentos, a disputa causa disso, apontada em diversos documentos
principal do MST se trava contra o “latifúndio”, daquele governo, era a predominância do latifún-
como modelo produtivo e como unidade política. dio na região. Paulo Schilling, um dos responsá-
Em todos os documentos publicizados pelo MST veis pelo programa de reforma agrária daquele go-
ao longo dos últimos 20 anos, esse é o inimigo a se verno e também um dos fundadores do primeiro
combater: a grande propriedade, associada a di- movimento a usar a expressão sem-terra – o Movi-
versas outras provas cujas grandezas10 seriam sem- mento dos Agricultores Sem Terra (MASTER), fun-
pre negativas como: dado no estado do Rio Grande do Sul em 1960 –
define assim a situação:

Partindo da premissa inquestionável de que a


infraestrutura agrária [...] está condenada e deve
desaparecer, vejamos inicialmente quais os obje-
tivos a alcançar com a reforma agrária:
1) eliminação do latifúndio [...] como instituição
e latifundiário como classe (Schilling, [1965],
É importante notar que as categorias que 2005, p.234).
constroem o sem-terra do MST não são necessari-
amente correspondentes àquelas usadas para des- Outro elemento que não pode ser despreza-
tituir de valor seus contendores. Não estamos em do nesse coletivo de provas e actantes é a forma
um jogo de oposições, no qual os elementos teri- como o Estado, por meio de sua legislação que
am uma relação de equivalência permanente, cal- permite o acesso legal à terra, atrela os termos re-
cada em uma oposição substantiva. Trata-se bem forma agrária e sem-terra. No Estatuto da Terra (Lei
mais de uma contenda na qual se joga em diversas nº4.504, de 30 de novembro de 1964), principal

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frentes, associando todos os elementos disponíveis instrumento legal vigente para lidar com as deman-
para a caracterização de um determinado estado de das de movimentos como o MST, encontramos as
legitimidade do sem-terra ou de deslegitimação do seguintes passagens:
latifúndio.
Para um melhor entendimento dos quadros Art. 25. As terras adquiridas pelo Poder Público,
nos termos desta Lei, deverão ser vendidas, aten-
acima apresentados, precisamos ter em mente que didas as condições de maioridade, sanidade e de
o sem-terra não foi uma criação do MST e seu ini- bons antecedentes, ou de reabilitação, de acordo
com a seguinte ordem de preferência:
migo, o “latifúndio”, tampouco. Esses termos fa-
I - ao proprietário do imóvel desapropriado, des-
zem parte de um agenciamento que leva em conta de que venha a explorar a parcela, diretamente
o valor atribuído a eles em uma determinada situ- ou por intermédio de sua família;
II - aos que trabalhem no imóvel desapropriado
ação social. Em Rosa (2009), procuramos demons- como posseiros, assalariados, parceiros ou arren-
trar que a categoria sem-terra surge da interação datários;
entre demandas por terra e políticas de Estado,
11
O trabalho de Bernard Alves (2010) avança substanti-
vamente na compreensão da origem do termo no Brasil,
10
Os objetos relacionados no quadro representam ele- sendo uma referência fundamental para entendermos o
mentos associados ao latifúndio em documentos do MST conjunto de associações que estavam presentes quando
datados de 1985, de 1995 e de 2009. da constituição original do termo.

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III - aos agricultores cujas propriedades não al- dilemas dos processos sociais agrários para a es-
cancem a dimensão da propriedade familiar da
região; querda brasileira. A publicação, literalmente, as-
IV - aos agricultores cujas propriedades sejam socia visões intelectuais e políticas que ajudam a
comprovadamente insuficientes para o sustento
legitimar a causa defendida pelo MST; a principal
próprio e o de sua família;
V - aos tecnicamente habilitados na forma dá delas, sem dúvida, é a condenação do latifúndio
legislação em vigor, ou que tenham comprovada como matriz social, política e econômica. Tal asso-
competência para a prática das atividades agrí-
colas. ciação permite ao movimento se apresentar critica-
§ 1° Na ordem de preferência de que trata este mente diante de sua base, dos acadêmicos e do pró-
artigo, terão prioridade os chefes de família nu-
prio Estado (actantes que também se orientam pe-
merosas cujos membros se proponham a exer-
cer atividade agrícola na área a ser distribuída. los mesmos termos, quando se referem à questão
§ 2º Só poderão adquirir lotes os trabalhadores da terra no Brasil), legitimando um campo cognitivo
sem terra, salvo as exceções previstas nesta Lei.
(grifos meus). definido pela expressão “questão agrária”.
Esse breve apanhado, a partir do múltiplo
Como vemos, para o Estado brasileiro, so- universo de objetos postos à prova em diversas
mente poderá ocorrer reforma agrária se existirem situações na qual a terra aparece com um elemento
sem-terras que sejam trabalhadores competentes fundamental, é importante para compreendermos
para realizar práticas agrícolas. Ao trazer esses ele- também porque, no Brasil ela é sempre associada
mentos variados, queremos ressaltar que o MST, à realização de uma reforma agrária. Se a terra apa-
quando surge (em 1985) e tenta se impor como rece invariavelmente relacionada à questão agrá-
actante legítimo nas disputas por terra, procura ria, nada mais lógico que os programas políticos e
agenciar elementos que possam ser identificados acadêmicos (especialmente os publicados na cole-
por outros como justificadores de sua ações e tânea de Stédile) deem ênfase à reforma agrária
engrandecedores ou dignificadores de sua conduta. como uma ação legítima e necessária.
Ao pretender tomar para si a representação dos sem- É preciso esclarecer que, ao abordar esse
terra, o MST carregou uma série de provas que da- universo de objetos que constituem as chamadas
vam conta da importância dessa tarefa e que havia lutas por terra no Brasil dos últimos 50 anos, não
sido posta em jogo em outras disputas passadas. estou lhe atribuindo uma origem, e sim uma pos-
Se a relação entre sem-terra e latifúndio já sível associação que nos ajude a compreender o
era clara, por exemplo, no governo de Brizola, a caso que questão. Não defendo, portanto, a ideia
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construção do latifúndio como um problema para de que devamos fazer uma sociogênese dos ter-
a nação brasileira se devia também ao legado que a mos que aqui usamos, como faz Elias (1989) com
sociologia e as ciências sociais nacionais, de forma os termos cultura e civilização, por exemplo. Na
mais geral, deixaram desde seus primeiros momen- perspectiva teórica adotada neste texto, o intento é
tos. A esse legado o MST se filia publicamente por apenas mostrar como tem feito o próprio MST em
meio de seus veículos editoriais. publicações recentes, que esse sem-terra branco –
O reconhecimento de certos aspectos do como o militante sul-africano nos chamou a aten-
chamado pensamento social brasileiro e das gran- ção – é fruto de uma situação específica. Ele é o
dezas por ele acionadas é posto em jogo pelo MST, agente possível, em nossa narrativa histórica, para
como podemos evidenciar na coletânea “A ques- conduzir uma transformação da estrutura agrária e
tão agrária no Brasil”, organizada por João Pedro agrícola do país, porque, ao longo do tempo, os
Stédile (principal liderança do movimento) e agricultores comerciais reconhecidos e representa-
publicada pela editora também ligada ao movimen- dos como ideais – principalmente os grandes, mas
to. Nos cinco volumes organizados, temos mani- também os pequenos – foram sempre aqueles de
festos de movimentos e de partidos políticos colo- pele branca.
cados lado a lado com textos acadêmicos sobre os O que vimos até agora é que o MST incor-

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pora, em suas justificações, formas e fórmulas his- terra, em inglês).


tóricas já conhecidas. Por meio de um conjunto Em sua constituição interina, feita para apre-
específico delas, cria, assim, um “regime de sentar o movimento para fora, mas também para
engajamento” em sua luta (Thévenot, 2006). Nes- aqueles que gostariam de se associar à sua causa, o
se contexto, é preciso notar que a possibilidade de LPM (Landless People´s Movement) define clara-
um militante vir a se sentir digno de participar do mente quem são seus sem-terras:
movimento passa pela dessingularização da sua
situação individual (do corpo biológico ou dos li- Nós somos o povo que nasceu do choque entre o
colonialismo e neocolonialismo, da invasão de
mites de um movimento, partido ou instituição), nossa terra pelos países mais ricos do mundo, do
tornada plausível e possível graças ao agenciamento roubo de nossos recursos naturais e da explora-
ção forçada do trabalho pelos colonizadores.
correto do universo de objetos que vimos acima.
Nós somos o povo que nasceu do apartheid, das
Ser sem-terra no Brasil, ao menos no campo remoções forçadas de nossos campos e casas, da
discursivo, implica incorporar a relação com a ter- pobreza nas áreas rurais, da opressão nas fazen-
das e da fome, da negligência e da doença nos
ra que mantinham os colonos do sul do país, que Bantustões. Nós sofremos com o trabalho
se atribuem uma origem europeia, e, gradualmen- migrante que levou nossas famílias e comunida-
des ao colapso. Nós passamos fome em decorrên-
te, outras categorias de agricultores conclamados
cia do desemprego e dos baixos salários. Nós te-
às fileiras do MST ao longo dos últimos 25 anos. mos visto o parco desenvolvimento de nossas cri-
Sem conexão com esses objetos (como trabalho e anças em decorrência da falta de condições sani-
tárias, água e comida. Nós temos visto nossa terra
agricultura), suas ações não seriam cognoscíveis secar e ser levada pelo vento, porque fomos for-
como dignas (grandes) e poderiam ser vistas como çados a viver em lugares cada vez menores.
ilegítimas ou injustas por outras parcelas da soci-
edade ou do Estado. E, em sua carta de demandas, reivindicam
Em outras palavras, vimos que os sem-terra que: “toda a população negra da África do Sul que
do MST são o resultado de um agenciamento de precisa de terra deve ter o direito à reforma da ter-
narrativas históricas, interpretações sociológicas, ra, pois nós todos a perdemos durante o
marcos legais e situações sociais que estabelece- colonialismo e o apartheid.”
ram uma condição para sua ação. Nesses termos, Aceitando que esses documentos são formas
sem passar pelo crivo da questão agrária e da re- de justificação que permitem ou que permitiram ao
forma agrária, não há justificativa social comparti- LPM tomar um lugar de importância nas disputas

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lhada para ação dos sem-terra do MST. Tais consi- por terra nos últimos anos, percebemos, logo em
derações podem ser vistas como naturais e óbvias um primeiro momento, que as associações realiza-
para aqueles acostumados com os estudos desse das são muito diferentes das encontradas nos dis-
movimento. Porém, quando tomamos contato com cursos do MST, anteriormente apresentadas.
outras realidades, como a sul-africana, essa rela- O objeto fundamental apresentado é o
ção de homologia entre sem-terra e agrário desapa- colonialismo (e sua variação contemporânea, o
rece por completo. neocolonialismo) como o processo histórico mais
amplo para a compreensão do estado atual da ques-
tão da terra. Para o LPM, a condição da situação
QUEM SÃO OS SEM-TERRA DO LPM social de sem-terra foi resultado do processo de
ocupação do território hoje pertencente ao seu país
Seguindo o caminho trilhado para conhe- por holandeses e ingleses, dentre outros, ao longo
cer a forma pela qual o sem-terra do MST se apre- dos últimos séculos. O termo definidor da ação
senta e se legitima no Brasil e fora dele, passamos colonial não é outro senão o roubo das terras habi-
agora para o outro lado do Atlântico e para as as- tadas pelos “africanos” ou “indigenous people”,
sociações que envolvem as ações dos landless (sem- categorias que aparecem em distintas ocasiões como

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REFORMA AGRÁRIA E LAND REFORM ...

sinônimas.12 A partir do roubo originário, novos Um salto histórico é necessário para


objetos seriam postos em relação com a terra, como compreendermos que essas questões elevaram o tema
o preconceito racial, a pobreza, a fome, a migração da terra ao centro dos debates políticos sul-africanos
e o trabalho forçado.13 muito antes da existência do LPM. Durante todo o
Todavia o colonialismo não aparece sozinho período do apartheid e, especialmente, a partir da
nessa contenda. Sua principal associação é com o década de 1970, organizações não governamentais
apartheid, regime que instaurou oficialmente a (ONGs) atuavam na contestação das ações do governo
diferença de cor como uma diferença social na racista de remoção e alocação indiscriminada de terras
África do Sul. Para o LPM, o apartheid não começou rurais e urbanas. Uma das mais importantes foi a
com a chegada ao poder do Partido Nacionalista Association for Rural Advancement (AFRA),
em 1948 e com a instalação formal do regime fundada em 1979 para contestar as remoções de
segregacionista. O movimento reconhece que a comunidades negras para as reservas ou
situação colonial se tornou, ainda mais complicada bantustões15 na área da antiga província de Natal.
a partir de instauração das leis que deliberavam Dos projetos promovidos pela AFRA, surgiram os
sobre os limites para uso do solo permitidos à parte primeiros comitês de pessoas afetadas pelas
negra da população. O Natives Land Act de 1913 políticas de terra do apartheid. De tais comitês
restringia a possibilidade de propriedade negra da saíram as principais lideranças do Landless People´s
terra às chamadas reservas (territórios demarcados Movement, mais de 20 anos depois.16
especificamente para populações negras africanas) Essas ONGs e suas campanhas procuraram
e, em termos percentuais, limitava essas áreas a associar as práticas discriminatórias de remoção
apenas 10% do território do país. Ao Natives Land às condições de vida deterioradas tanto nas zonas
Act se seguiu uma legislação ainda mais restritiva, de reservas quando nos espaços urbanos
que criou os meios para um massivo processo de (townships), para onde muitas das famílias foram
remoção de pessoas negras de área rurais e urbanas, deslocadas. Tendo vários de seus membros como
com a concomitante transferência de suas terras militantes de partidos de oposição, foram as de-
para as mãos de fazendeiros brancos, em um mandas dessas ONGs que, segundo James (2007,
processo contínuo que teve seu ápice nas décadas p.34), orientaram as políticas do Congresso Nacio-
de 1960 e 1970. O único tipo de propriedade rural nal Africano (ANC) nas suas negociações para o
de terra que se permitia à população negra era, por final do apartheid.17
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assim dizer, “comunal”, nas reservas administradas A questão da terra colocou, de um lado, os
por autoridades tradicionais (chefes locais proprietários brancos que defendiam uma política
empossados pelo governo do apartheid), cuja
15
A AFRA tem sua base de atuação apenas na província de
principal função era deliberar sobre a alocação Kwazulu-Natal, uma das nove que passaram a compor o
das terras sob sua responsabilidade.14 país ao final do apartheid.
16
“Muitos dos debates iniciais sobre a reforma da terra
ignoram a participação dos sem-terras. Os sem-terras
marginalizados apenas ganharam acesso aos debates so-
12
Além dos documentos escritos, alguns dos termos aqui bre esse tipo de política por meio de eventos patrocina-
utilizados foram ouvidos em discursos, conversas e en- dos por ONGs, como a campanha “De volta para a terra”,
contros que envolviam a participação de membros do LPM. de 1993, e a Conferência de Terras da Comunidade, de
13
1994. Ambos os eventos foram organizados pelo Comi-
Na África do Sul, foram criados albergues, nas chama- tê Nacional da Terra (NLC), uma ONG de defesa dos
das townships, para abrigar moradores, em geral ho- direitos à terra com sede em Johhanesburg”. (Alexander,
mens, das reservas ou bantustões que migravam para 2004, p.13). Tradução do autor.
trabalhar, principalmente nas minas. Para esses traba- 17
lhadores, o salário era calculado sem levar em conta As ONGs tiveram um papel particularmente importan-
suas despesas com a família, pois sua reprodução social te na elaboração e implementação do programa de refor-
deveria se dar com a terra alocada em tais reservas. ma da terra. Elas emergiram em um contexto no qual as
14
comunidades ameaçadas de remoção (trabalhadores ru-
Sobre a alocação de terras por chefes tradicionais, ver o rais expulsos de fazendas onde trabalhavam e viviam ou
trabalho de Ntsebeza (2005). Segundo James (2007), a pequenos proprietários removidos pela política
imposição dos chefes tradicionais como autoridades para eliminadora dos chamados black spots) necessitavam
alocação de terra nas reservas foi obra do “The Bantu de ajuda para se defender das ações do Estado”. (James,
Authorities Act” de 1951. 2007, p.35). Versão do autor.

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Marcelo C. Rosa

agrária presentista que salvaguardasse os interes- Essas são as palavras do senhor Sol Plaatjie, o
primeiro secretário geral do Congresso Nacional
ses do setor comercial e, de outro, as ONGs que Africano, retiradas de seu livro “A vida nativa na
postulavam uma política de terras orientada por África do Sul”. Naquela data, o decreto 27 de
1913 delineou uma divisão clara entre as ex-
um passado de perda ou “despossessão” racial-
plorações brancas e negras, segregando
mente orientada.18 O resultado dessa controvérsia territorialmente europeus e africanos. Lavouras
foi a incorporação da questão da terra na constitui- negras somente seriam permitidas nas “reservas
nativas”, compreendendo 8% das terras de todas
ção do país, da seguinte forma: as terras daquele tempo. Em 1936, o Decreto de
Associações e Terras Nativas (decreto 18 de 1936)
Uma pessoa ou comunidade cuja posse da terra adicionaria mais 6 milhões de hectares, desti-
tenha se tornado legalmente frágil como resultado nando um total de 13,7% da área total do pais.
de práticas ou das leis racialmente discriminatórias Em 1994, o mesmo padrão altamente desigual
do passado tem o direito, por um Ato do Parlamen- de propriedade da terra continua vigente. Esse é
to, a uma posse que seja legalmente assegurada ou o legado do apartheid que o novo governo demo-
a uma reparação compatível. crático começou a tentar resolver quando che-
Uma pessoa ou comunidade cuja propriedade gou ao poder (DLA, 2006).
foi tomada depois de 19 de junho de 1913, como
resultado das práticas ou leis discriminatórias,
Se a questão da terra foi sendo tratada pe-
tem o direito, por um Ato do Parlamento, a uma
posse que seja legal ou a uma compensação com- los actantes (ONGs, Estado e pesquisadores) da
patível (James, 2007, p.5). forma como vimos acima, nada mais lógico que a
associação entre o colonialismo e o apartheid –
A questão da terra foi vista como uma ques- entendidos como processo de destituição – como
tão de reparação de direitos sociais ao contingente fundamental para o conceito e o sentimento do
de pessoas agredidas pelas políticas segregacionistas. sem-terra sul-africano no pós-apartheid. Na África
Antes de tudo, visava-se a garantir a equidade em do Sul, o processo de perda de terras é fortemente
termos de posse do território. Uma série de leis, associado à perda de direitos formais de uso do
atos e emendas constitucionais veio a regulamen- solo do país. É nesse contexto de associações que
tar essa política, cujo objetivo mais geral era retornar
devemos colocar as definições lançadas pelo LPM
30% das terras do país para as mãos de pessoas em seus manifestos a partir de 2001. As provas e
negras.19 Para muitos dos analistas locais, essa for- os objetos de que o movimento tem lançado mão
ma de incorporação do direito à terra ao texto cons- tornam sua ação justificável diante de uma quadro
titucional ficou conhecida como o rights based de disputas que se estabeleceu na África do Sul
approach.20

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dos últimos 100 anos, e que alcança seu ápice ao
Em um documento apresentado no ano de final do apartheid. A referência ao texto clássico
2006 pela ministra da agricultura, em um evento de Sol Plaatjie é, nesse caso, equivalente às narra-
organizado pela Food and Agriculture Organization tivas sociológicas brasileiras citadas acima. “Native
(FAO), vemos claramente os sentidos que a políti- Life in South Africa” ajudou a conformar os
ca de terras sul-africana adquire para o próprio parâmetros dentro dos quais a relação com a terra
governo: seria enquadrada e narrada sociologicamente na-
quele país.21
Despertando em uma sexta-feira pela manhã,
dia 20 de junho de 1913, os nativos da África do Ao contrário do que observamos no caso
Sul se encontraram, não verdadeiramente como do MST, em nenhum momento o LPM apoia suas
escravos, mas como párias em sua terra natal.
provas em alicerces como trabalho, produção ou
18
Uma breve descrição dessas negociações e da posição
agricultura. Seus inimigos públicos também não
adotada pelo ANC pode ser encontrada em Ntsebeza são os latifúndios. Não porque os membros do LPM
(2005).
19
Sobre a legislação referente ao tema da terra na África do
Sul, ver Claassens e Cousins (2008). 21
Essa narrativa é classificada por Walker (2008) como a
20
Em português, “uma abordagem baseada na garantia de “master narrative”, que orienta toda a estrutura do pro-
direitos”. grama de reforma da terra sul-africana.

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não se interessem pela terra ou porque os latifundi- em todos os eventos públicos do LPM entre 2005
ários não sejam um entrave à sua luta. A ausência e 2009. Apesar de tremularem juntas e serem mui-
desse tipo de prova não invalida que tenham aspi- to similares, as duas bandeiras são, no entanto,
rações agrárias, mas nos mostra qual o universo de ícones e conjuntos que refletem também os distin-
grandezas legítimas na situação de demandas por tos contextos nacionais de disputa. Suas diferen-
reparação das injustiças do passado. ças e similaridades também nos ajudarão a trazer
novos elementos para nossa análise sobre os sen-
tidos de ser sem-terra.
OBJETOS POSTOS À PROVA: bandeiras e Ambos os movimentos, em seus documen-
seus significados tos públicos, atribuem um lugar específico para
explicar o significado de suas flâmulas, tanto pe-
Como apontou Lygia Sigaud (2000), o las cores, como pelas imagens utilizadas. Em cada
hasteamento de uma bandeira se tornou, no Bra- um dos casos, como veremos abaixo, elementos
sil, um elemento central das disputas por terra. que poderiam ser pensados como similares adqui-
Colocar bandeira em uma área ocupada aponta qual rem sentidos muito diferentes quando utilizados
o movimento e qual o tipo de organização de cada para justificar a luta de cada movimento.
acampamento. No caso sul-africano, não há ocu- Para o MST, a bandeira adotada a partir de
pações de terras ou acampamentos, mas manifes- 1987 é composta pelo seguinte conjunto de sím-
tações tais como marchas, sit-in em prédios públi- bolos e significados: vermelho, que representa o
cos, velórios e julgamentos.22 Em todos esses ca- sangue que corre em nossas veias e a disposição
sos, as bandeiras são o sinal diacrítico que aponta de lutar pela Reforma Agrária e pela transformação
o autor e tipo de demanda que está sendo realiza- da sociedade; branco, que representa a paz pela
da. Ela indica que tipo de coletividade e que tipo qual lutamos e que somente será conquistada quan-
de questão estão postas em jogo. do houver justiça social para todos; o verde repre-
Ao lançar o olhar, como na Figura 1, para senta a esperança de vitória a cada latifúndio que
as duas bandeiras, reconhecemos facilmente cor- conquistamos; o preto representa o nosso luto e a
respondências entre elas. Suas cores,
proporcionalidades e figuras deixam claro que
a bandeira dos sul-africanos tem alguma re-
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lação com a do movimento brasileiro.23


Como podemos ver na foto acima, ti-
rada no dia em que o LPM promoveu e co-
memorou o enterro de uma de suas militan-
tes sem a permissão do fazendeiro (dono da
área onde residia sua família), as bandeiras
dizem não apenas de quem é o protesto, mas
com quem os manifestantes se aliam (Borges,
2011). De fato, a bandeira do MST apareceu

22
Ao longo dos últimos cinco anos, as ações mais Figura 1 – Bandeiras do LPM e do MST em protesto organizado pelo
LPM em 2007, na província de Kwazulu-Natal.
frequentes que envolveram o LPM eram os en-
terros de pessoas ligadas ao movimento que vivi-
am dentro de fazendas de brancos que não permitiam
esse tipo de ritual; e também mobilizações para acompa- nossa homenagem a todos os trabalhadores e tra-
nhar julgamentos judiciais de casos de conflitos entre
donos de terras e moradores de fazenda. balhadoras que tombaram, lutando pela nova so-
23
O texto de Mnxitama (2006), um dos fundadores do ciedade; o mapa do Brasil representa que o MST
LPM, deixa claro como o movimento foi influenciado
por seu parceiro brasileiro. está organizado nacionalmente e que a luta pela

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Marcelo C. Rosa

Reforma Agrária deve chegar a todo o país; traba- prio ordenamento das cores: no caso de LPM re-
lhador e trabalhadora representam a necessidade vela o sentido da pergunta que abre este texto. A
da luta ser feita por mulheres e homens, pelas fa- primeira cor mencionada é a preta. Ela serve para
mílias inteiras; o facão representa as ferramentas simbolizar as massas e não o luto, como no caso
de trabalho, de luta e de resistência. do MST. A luta do LPM, assim como atesta a cor
Na constituição interina do LPM, as cores e da pele do homem e da mulher presentes no seu
objetos aparecem definidos na seguinte ordem e logo, é uma luta dos negros sul-africanos. Já no
da seguinte forma: preto – pelas massas; verde – logo do MST, temos um homem e uma mulher
pela nossa terra; vermelho – pelo sangue derrama- brancos conferindo legitimidade à sua luta.
do por nossa terra; branco – pela paz que lutamos A cor dos personagens e o uso da cor verde
e que será conseguida assim que houver terra e nos revela uma ordem de grandezas de suma im-
alimentos para todos; logomarca – o logo do LPM portância na história de cada luta. Enquanto, para o
deverá ser uma mulher e um homem liderando MST, o verde significa a terra conquistada do lati-
uma marcha de sem-terras sobre um fundo verme- fúndio, para o LPM, a terra é aquela pertence aos
lho e verde, colocados dentro do símbolo do po- nativos da África do Sul, desde antes da coloniza-
der das mulheres, cercado pelo nome do Landless ção. Isso nos conduz ao próprio tempo histórico no
People´s Movement e pelo slogan: Terra já! Organi- qual se inscrevem essas definições. O MST não re-
zar e unir! A mulher deverá estar segurando uma clama uma terra que já foi de seus representados,
bandeira do LPM em uma mão e com o punho da como o faz o LPM, seguindo a lógica do memorável
outra mão cerrado. O homem deverá estar segu- texto de Sol Plaatjie. O MST quer tomar, para si,
rando uma ferramenta agrícola e com o punho da uma terra agora ocupada pela grande lavoura.
outra mão cerrado.

Figura 2: Logomarcas do LPM e do MST. COLONIALISMO E COLONIZAÇÃO: quando o


indígena é ou não sem-terra

Outro elemento que parece ser impor-


tante para compreender os distintos regimes
de justificação em ambos os países é o uso de

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termos como colonização e colonialismo.
Quando o sem-terra sul-africano perguntou ao
seu colega brasileiro sobre as razões de um
branco se considerar e ser considerado um
legítimo sem-terra no Brasil, era também a es-
sas diferenças que ele aludia. Como vimos,
Comparando a forma como as bandeira são na sua bandeira, nos seus documentos e nos seus
apresentadas, encontramos algumas semelhanças discursos, o LPM agencia uma série de objetos que
e também muitas diferenças que nos remetem aos procuram provar que a situação atual de seus mem-
contextos de luta descritos na parte anterior. Entre bros é fruto direto do colonialismo.
as semelhanças, vemos o branco como sinônimo No universo de grandezas no qual se ins-
de paz, o fato de mulheres e homens estarem lado creve o MST e suas demandas, a questão colonial
a lado (o homem sempre com o instrumento de ganha obrigatoriamente outros contornos. Se lem-
trabalho na mão) e até o vermelho do sangue que brarmos que a mobilização que deu origem ao
anima e é derramado nas lutas por terra. movimento era chamada de “movimento dos colo-
As diferenças começam a aparecer no pró- nos”, podemos começar a entender que o MST não

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pode negar o colonialismo, sob pena de invalidar É exatamente o contrário disso que ocorre
sua própria existência: o colono, no discurso do MST, no caso sul-africano. Como a população negra é a
é aquele que também sofre os efeitos deletérios da maioria (muito mais no LPM do que dentre os in-
grande propriedade agrícola. Outra vez, as provas telectuais que publicam sobre ele), categorias como
apresentadas pelo MST não surgem do autointeresse, essas são tomadas de assalto dos colonizadores
mas de um universo de grandezas muito peculiar. para constituírem armas de grandeza sem igual.
Se, na África do Sul, o termo corrente é colonialismo, Ser nativo, ser negro, ser africano é ser vítima da
no Brasil, temos adotado – em termos de sociologia e expropriação mais do que qualquer outro, e essa
de movimentos sociais – muito mais frequentemente condição de grandeza anula qualquer objeto liga-
a ideia de colonização.24 Sem precisar retornar ao do ao mundo da produção, do mercado ou da eco-
mundo dos clássicos do pensamento social brasilei- nomia. A reforma de terra (defendida pelo LPM)
ro, anteriormente referido, poderíamos apenas lem- remete, assim, a um universo de grandezas que
brar que suas críticas ao latifúndio se fundam na não encontra equivalente na ideia de reforma agrá-
associação desse tipo de uso da terra a um processo ria, entendida no sentido de aptidão para agricul-
específico de colonização: aquela baseada na grande tura, como vimos em uma das definições ofereci-
lavoura de exportação. Em momento algum, como é das por uma liderança do MST.
recorrente na literatura sul-africana, a sociologia e os No universo sul-africano, a relação com a
movimentos políticos brasileiros colocam em xeque terra ultrapassa a cronologia da nação – como cons-
o colonialismo como prática ilegítima. Alguns auto- tatam, com incompreensível estupefação, autoras
res, como Sérgio Buarque de Hollanda, por exem- como Walker (2008) e James (2007) – e leva a uma
plo, criticaram o tipo de colonização e administração reivindicação que coloca em disputa o próprio sen-
implantado por Portugal, comparando nosso caso tido da terra como unidade de produção. No Bra-
com os das colônias espanholas. Porém o sil, o que está em disputa é o tipo e qualidade da
colonialismo, em si, não foi posto em questão. Nessa produção (em seus diversos sentidos sociológicos)
chave de pensamento, o que interessa é compreen- que irá se desenvolver. O que se defende é uma
der os limites e pensar em maneiras de reconstruir produção que permita uma maior divisão social
ou redirecionar o processo de colonização, que foi do uso da propriedade e da terra.
uma matriz ingrata.
Não precisamos fazer muito esforço para
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compreender que o sem-terra, assim como os ci- CONSIDERAÇÕES FINAIS: a reforma agrária,
entistas sociais brasileiros consideram, são fru- a questão da terra e a sociologia branca
tos do processo colonial, mas nem um nem outro
se associam a uma ideia de nativos ou indíge- Não há qualquer novidade em dizer que a
nas.25 Isso não significa que o MST não reconhe- sociologia é uma ciência social branca – em todos
ça as lutas por terras de outros agentes como os os sentidos possíveis. Talvez a principal diferença
indígenas e descendentes de escravos africanos com a antropologia social mais tradicional
(quilombolas). Pelo contrário, o MST expressa (colonialista) é que essa última era uma ciência dos
publicamente a legitimidade desses grupos e de brancos sobre os não-brancos – outrora chamados
suas lutas, mas, por questões históricas, não os até de nativos; enquanto que a sociologia sempre
classifica como sem-terras. se pensou como uma ciência dos brancos sobre
24
eles mesmos.26 O fato de já sabermos isso, no en-
É digno de nota o fato de teorias como o pós-colonialismo
e o de-colonialismo terem pouca influência em nossa
sociologia, comparado com o que acontece na África, Ásia 26
Certamente, a sociologia nunca usou o termo branco
e boa parte dos demais países da América Latina. para se definir. Ao invés disso, preferiu termos ou pro-
25
É importante notar que, até os dias de hoje, foram poucos cessos como modernidade, secularização, revolução ou
os representantes da população indígena brasileira que se racionalização, que nunca deixaram de se confundir com
tornaram cientistas sociais ou líderes políticos nacionais. a cor dos sujeitos que os engendravam.

110
Marcelo C. Rosa

tanto, não nos levou a incorporar esse obstáculo rente de organização produtiva. Vimos, ao longo
epistemológico ao centro de nossas reflexões e do texto, que, em suas atividades críticas, o MST
ações políticas. Ao contrário, a naturalização tem lançado mão de termos como o latifúndio, agri-
hegemônica e opressora de uma cor, uma forma de cultura e principalmente reforma agrária como ob-
pensar, de trocar, de reivindicar e de se organizar jetos que os legitimam diante daqueles que dese-
ofuscou qualquer dissonância empírica que viesse jam mobilizar e também diante de actantes como
a desestabilizar essa mesma epistemologia branca, os governos, os acadêmicos e outras organizações.
única autorizada para pensarmos nossos objetos. Associando, de forma dinâmica, termos que, para
A questão levantada pelo sem-terra sul-afri- muitos dos analistas do caso brasileiro, sempre for-
cano para seus colegas brasileiros trazia esse obs- maram parte de um mesmo conjunto, o MST nos
táculo em toda sua potência. Nenhum brasileiro dá pistas para entender quais as grandezas de ser
ali presente – pesquisador ou militante – jamais um sem-terra. Tais grandezas não são exatamente
havia pensado naqueles termos. Neste texto, pro- congruentes com duas questões fundamentais para
curamos mostrar como a análise daquela situação o LPM: o fato de serem indígenas e negros.
pode ser interpretada, nas palavras de Boltanski O significado da cor preta na bandeira do
(2000), como uma disputa na qual a cor do sem- LPM foi peça essencial para conhecermos melhor
terra foi usada para justificar a luta do LPM. Ao as equivalências sul-africanas em relação à experi-
mesmo tempo, ela serviu para tensionar o papel ência brasileira. Lá, o sem-terra é, sobretudo, ne-
do militante branco do MST e para despertar uma gro. Ser negro na África do Sul é ser vítima do
análise dos objetos e das provas que constituem a colonialismo e do apartheid. Ser negro é ser indí-
própria sociologia das lutas por terra no Brasil e gena e querer ter uma terra que foi roubada de seus
na África do Sul do último século. ancestrais (Borges, 2011). A associação entre esses
Quando Moyo e Yeros (2005) cunham a ex- diferentes objetos utilizados em situações de dis-
pressão recuperando a terra para descrever o res- puta por terra constroem um sentido de justiça
surgimento dos movimentos rurais no que agora que passa por uma reforma do espaço rural que
vem sendo chamado de sul, eles estão descreven- não pode ser equivalente ao agrário. O objeto agrá-
do um processo de mobilização cujo ícone maior é rio (nas mesmas equivalências que aparecem no
esse objeto chamado terra. Ao estudar o encontro caso do MST, por exemplo) não deixa de ter valor
entre dois dos movimentos que também aparecem na África do Sul, porém, tendo em vista o fato de

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na obra desses autores, percebemos que, apesar serem os colonizadores brancos que, nessa mesma
de estarem orientados pelo mesmo ícone (a terra) e disputa, o mobilizam nesse sentido, sua grandeza é
fazerem da sua falta uma identidade de mobilização, menor. É menor porque, além de ser sinônimo de
os agenciamentos empreendidos localmente são branco, o agrário é também equivalente ao
bastante diferentes. As grandezas associadas à ter- colonialismo naquele contexto político específico.
ra são de magnitudes incomparáveis. Tais diferen- Entenderemos melhor ainda essas disputas
ças apontam para um conjunto de objetos e pro- se pensarmos que, na África do Sul, há um minis-
vas que tem servido para justificar que exista uma tério dedicado aos “assuntos da terra” e que nele
questão da terra e, principalmente, de movimen- se encontram todas as políticas de reorganização
tos que lutam por ela. Além disso, entram, nessas da distribuição do território no pós-apartheid.27
disputas, actantes como o Estado, ONGs e os pró- Enquanto isso, no Brasil, o ministério responsá-
prios cientistas sociais, para limitar os exemplos vel pelo mesmo objeto se dedica ao “desenvolvi-
ao escopo do que tratamos neste texto. mento agrário”.
Tornar a questão da terra como central no As breves referências ao encontro entre
Brasil é associá-la diretamente a uma transforma-
27
ção do espaço social em direção a uma forma dife- Department of Land Affairs.

111
REFORMA AGRÁRIA E LAND REFORM ...

Landless People´s Movement e o Movimento dos reforma da terra. E isso não só não os afasta, como
Trabalhadores Rurais Sem-Terra mostram como a cria obstáculos epistemológicos estimulantes para
sociologia sempre esteve muito mais equipada e as ciências sociais.
confortável para tratar do MST e do agrário, do
que do LPM e da terra. Esse desconforto não se
refletiu apenas no estranhamento da associação (Recebido para publicação em 22 de março de 2011)
(Aceito em 11 de maio de 2011)
entre sem-terras e indígenas, que foi imposto a mim
e ao MST na pesquisa. Ele permeia todos os traba-
lhos recentes que procuraram compreender os sen- REFERÊNCIAS
tidos e os impactos do compromisso com a
redistribuição de 30% do solo sul-africano. Auto- ALEXANDER, A. Rights beyond the urban-rural divide:
South Africa’s landless people’s movement and the
res como Ntsebeza (2007) tentam chamar a atenção creation of a landless subject. Durban: UkZN, 2004.
Disponible en: www.ukzn.ac.za/ccs. Aceso en: 12 feb. 2012.
para o fato de que a questão da terra é sobretudo
______. Not the democracy we struggled for: the landless
uma questão de direitos e que não se pode people’s movement and the politicisation of urban-rural
desconectar essa questão dos programas de Esta- division in South Africa. 2004. 194f. Honors Thesis,
Harvard: Harvard College, 2004.
do. Por outro lado, autores como Cousins (2009),
ALVES, B. A política agrária de Leonel Brizola no Rio
Walker (2008) e James (2007), reproduzindo um Grande do Sul: governo, legislação e mobilização. 2010.
86 f. Dissertação (Mestrado em Ciências) - Curso de Pós-
modo equivalente ao brasileiro de olhar para a Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do
questão da terra, irão concentrar suas análises na Rio de Janeiro, CPDA 2010. Disponível em: http://
falha do Estado em transformar a questão da terra r1.ufrrj.br/cpda/wp-content/uploads/2011/08/
dissertacao_bernard_jose_pereira_alves_2010.pdf
em questão agrária, ou seja, em promover aquilo BALLETTI, L. et al. Late mobilization: transnational
que chamam de desenvolvimento rural.28 Esse peasant networks and Grassroots Organizing in Brazil
and South Africa. Journal of Agrarian Change, [S.l.], v.8,
desencontro talvez seja o mesmo experimentado n.2-3, p.290–314, apr./july, 2008
pelo militante do MST quando visitou seus cole- BOGO, A. Sem-terra. In: MOTTA, Márcia. Dicionário da
terra. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004.
gas do LPM. Na África do Sul, o sem-terra e suas
BOLTANSKI, L.; THEVENOT, L. De la justification. Paris:
lutas não são necessariamente agentes do desen- Galimard, 1991.
volvimento agrário. Já no Brasil, não há dúvidas ________. El amor y la justicia como competências. Buenos
Aires: Amorrotu, 2000.
de que o MST tem desempenhado esse papel.
BORGES, A. Sem sombra para descansar: etnografia de
Desse contraste, aprendemos que é preciso funerais na África do Sul. Anuário Antropológico 2010/I,
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 99-114, Jan./Abr. 2012

ter cuidado para não considerar as lutas dos sem- dez. 2011.

terra como se justificáveis apenas quando associa- CAMARGO, A. A. Brésil nord-est: mouvements paysans
et crise populiste. 1973. Tese de (Doutorado) - Universi-
das ao agrário, como vemos predominar na socio- dade de Paris, 1973.
logia em geral (excluindo a etnologia e os emergen- CLAASSENS, A.; COUSINS, B. Land power and custom:
controversies generated by South Africa’s Communal
tes estudos sobre quilombolas no Brasil, que nun- Land Rights Act. Cape Town, UCT Press, 2008.
ca aparecem associados à ideia de sem-terra). Fu- COUSINS, B. Land reform in South Africa. Journal of
Agrarian Change, [S.l.], v.9, n.3, 2009. p.421-431.
gir dessa associação – política e sociológica – nos
GEHLEN, I. Uma estratégia camponesa de conquista da
permitiria ver que esses movimentos, agora asso- terra e o Estado: o caso da Fazenda Sarandi. 1983. Disser-
ciados, possuem projetos políticos distintos para tação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1983.
o futuro dos sem-terras que representam. Um é HALL, R. Another Countryside? Policy options for land
orientado para a reforma agrária; o outro para a and agrarian reform in South Africa. Cape Town: School
of Government, University of the Western Cape, 2008.
JAMES, D. Gaining Ground: “rights” and “property” in South
28
Esses autores concentram suas críticas na ideia de land African land reform. Londres: Routledge-Cavendish, 2007.
reform como um política pública de garantia de direitos LATOUR, B. Reassembling the social an introduction to actor-
(rights based aproach). Para eles as políticas do governo network-theory. Oxford: Oxford University Press, 2005.
sul-africano e as lutas do LPM (James, 2007) não têm
sido capazes transformar as condições materiais de exis- MAFEJE, A. The ideology of tribalism. The Journal of Modern
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CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 99-114, Jan./Abr. 2012

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REFORMA AGRÁRIA E LAND REFORM ...

AGRARIAN REFORM AND LAND REFORM: RÉFORME AGRAIRE ET LAND REFORM: les
social movements and the sense of being a mouvements sociaux et la raison d’être un
landless worker in Brazil and South Africa paysan sans-terre au Brésil et en Afrique du Sud
Marcelo C. Rosa Marcelo C. Rosa
This article presents the results of a Cette étude présente les résultats d’une
comparative research developed between 2005 and recherche comparative faite entre 2005 et 2009 sur
2009 on the actions of the South African Landless le rôle des Landless People´s Movement (LPM), en
People’s Movement (LPM) and the Brazilian Landless Afrique du Sud, et le Mouvement des Travailleurs
Rural Workers’ Movement (MST). In Brazil, the Ruraux Sans Terre (MST) au Brésil. Du côté
concept of an agrarian reform prevails, that is, a brésilien l’idée de réforme agraire domine, c’est-à-
political action towards a productive agricultural dire celle d’une action politique visant une
use of the land, having the productivity criteria as utilisation productive ou agricole des terres avec,
its main frame of reference. In South Africa, the comme toile de fond, des critères légaux de
conflict is structured under the term of land reform, productivité. En Afrique du Sud, la lutte se base
a slogan that refers to the changes in territory sur une nomemclature de land reform, slogan qui
distribution, aiming to make up for the harm caused fait appel à un changement au niveau de la
by apartheid. Thus, we point out that each case distribution des terres afin de réparer les injustices
involves different types of subjects within their commises par les gouvenements de l’apartheid. Il
political actions. By having different historical agents est donc important de faire remarquer que ces deux
as their reference, the movements analyzed in both cas se rapportent à des types différents de sujets
countries attempt to gain legitimacy through parti- de l’action politique. Vu notre référence à des agents
cular dimensions that justify their existence and historiques distincts, nous pouvons dire que les
struggle. In this article, we intend to show the mouvements analysés dans ces deux pays cherchent
specificities of the landless workers in each leur légitimation dans des “grandiosités”
movement, according to the forms of “social différentes, qui justifient leur existence et leurs
elevation and justification” regarding their peers luttes. Dans cet article, sous essayerons de montrer
and the State. les spécificités de chaque paysan sans terre
appartenant à ces mouvements, à partir de leurs
manières de “se mettre en valeur et de se justifier
socialement” face à leurs bases et à l’État.
KEY-WORDS: landless workers, agrarian reform, South MOTS-CLÉS: paysans sans-terre, réforme agraire,
Africa, social movements, MST. Afrique du Sud, mouvements sociaux, MST.
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 99-114, Jan./Abr. 2012

Marcelo C. Rosa – Doutor em Sociologia. Professor Adjunto no Departamento de Sociologia da Universidade de


Brasília – UNB. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na mesma universidade. Pesquisador
Bolsista de Produtividade Nivel 2 do CNPq. Atuou como professor vistante na Universidade de Cape Town (Africa
do Sul) e na Universidade de Buenos Aires (Argentina). Tem experiência na área de Sociologia, atuando principalmente
nos seguintes temas: teoria sociológica, movimentos sociais, mudança social. Nos últimos anos suas atividades de
ensino e pesquisa têm sido direcionadas para uma sociologia das formas não-exemplares que as ações coletivas e o
Estado ganham nos países africanos e latino-americanos. É coordenador do Laboratório de Sociologia Não-exemplar.

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