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Da dívida como culpa ao cuidado com o outro: as

perspectivas de Nietzsche e de Winnicott [*]

Jurandir Freire Costa


http://jfreirecosta.sites.uol.com.br/

Nietzsche[1] diz, em Genealogia da


moral – Uma polêmica, que a
“consciência de culpa” ou “má
consciência” se originou do “conceito
muito material de dívida”[2]. Sugiro que
a idéia é inconsistente. Nietzsche, em
meu entender, não consegue mostrar,
de forma convincente, a relação causal
ou de sentido entre “dívida material” e
“sentimento ou consciência de culpa”.
Penso, em contrapartida, que ele
consegue oferecer uma descrição da
gênese da culpa mais convincente em
A gaia ciência[3]. Pretendo desenvolver
o argumento, revendo, de início, o
hipotético elo lógico existente entre
dívida material e culpa.
Retomo o trecho da Genealogia... no
qual a questão é mencionada: “Esses
genealogistas da moral teriam sequer
sonhado, por exemplo, que o grande
conceito moral de ‘culpa’ teve origem no conceito muito material de ‘dívida’? Ou
que o castigo, sendo reparação, desenvolveu-se completamente à margem de
qualquer suposição acerca da liberdade ou não-liberdade da vontade? – e isto a
ponto de se requerer primeiramente um alto grau de humanização, para que o
animal ‘homem’ comece a fazer aquelas distinções bem mais elementares, como
‘intencional’, ‘negligente’, ‘casual’, ‘responsável’ e seus opostos, e a levá-las em
conta na atribuição do castigo. O pensamento agora tão óbvio, aparentemente
tão natural e inevitável, que teve de servir de explicação para como surgiu na
terra o sentimento de justiça, segundo o qual ‘o criminoso merece castigo
porque podia ter agido de outro modo’, é na verdade uma forma bastante tardia
e mesmo refinada do julgamento e do raciocínio humanos; quem a desloca para
o início, engana-se grosseiramente quanto à psicologia da humanidade antiga”.
[4]
Observe-se como Nietzsche passa, quase imperceptivelmente, do tema da culpa
para o dos castigos morais, como se o vínculo de compreensão entre os dois
estivesse indiscutivelmente estabelecido. A passagem citada, no entanto, se
limita a constatar: 1) a transição histórica do castigo físico para o castigo moral e
2) o advento, em conseqüência disso, do vocabulário da “intencionalidade”,
“negligência”, “casualidade” e “responsabilidade” que justificaria, racionalmente,
a aplicação de punições.
No texto é dito, em outras palavras, que a contrapartida material pelo não
pagamento da dívida é substituída pela satisfação íntima de fazer o outro sofrer.
E, para legitimar, moralmente, a substituição feita, imputa-se ao devedor
disposições mentais como intenção, responsabilidade ou negligência no ato da
infração.
Por que ocorre tal metamorfose? A explicação de Nietzsche é sumária. No
período da punição física, diz ele, quem punia não sentia culpa por obter prazer
na crueldade e o punido não padecia o sofrimento com a intensidade sentida
posteriormente. Em um dado momento, houve uma mutação na sensibilidade à
dor, devida a dois motivos. Primeiro, a dor passou a ser mais penosa porque o
sofrimento perdeu sua razão de ser. Para Nietzsche “o que revolta no sofrimento
não é o sofrimento em si, mas a sua falta de sentido: nem para o cristão, que
interpretou o sofrimento introduzindo-lhe todo um mecanismo secreto de
salvação, nem para o ingênuo das eras antigas, que explicava todo sofrimento
em consideração a espectadores ou a seus causadores, existia tal sofrimento
sem sentido”[5]. Segundo, pelo fato da “dor agora doer mais”, a crueldade se
sublimou, se tornou mais sutil e se ornou de “nomes tão inofensivos” que “não
despertam suspeitas nem mesmo na mais delicada e hipócrita consciência
(...)”[6].
Os mecanismos da sublimação da crueldade são, assim, elucidados.
Continuamos, porém, a não entender porque a dívida material pode provocar
culpa. Entendemos que o prazer da crueldade moral dissimula o velho prazer da
crueldade física e que o abandono do último decorre do aumento da
sensibilidade à dor do agredido e do agressor, que passaram a sofrer mais, ao
perderem a habilidade de dar sentido ao sofrimento.
A nova sensibilidade dolorosa, entretanto, não explica a emergência da culpa,
nem em quem pune, nem em quem é castigado. Nietzsche, aliás, afirma isso de
forma clara, ao discutir o “prazer de ultrajar” ou de “faire le mal pour le plaisir de
le faire”. Ao contrário dos que acham que a punição produz culpa, ele sustenta
que o castigo “endurece e torna frio; concentra; aguça o sentimento de distância;
aumenta a força de resistência. Quando sucede de ele quebrar a energia e
produzir miserável prostração e auto-rebaixamento, um tal sucesso é sem dúvida
ainda menos agradável que o seu efeito habitual: que se caracteriza por uma
seca e sombria seriedade”[7].
O castigo físico ou moral, dessa maneira, torna o indivíduo mais duro, frio,
recalcitrante, prostrado ou auto-rebaixado, mas não culpado. Em outro
momento, de forma ainda mais explícita, Nietzsche dissocia culpa de castigo ao
afirmar: “Mas se considerarmos os milênios anteriores à história do homem, sem
hesitação poderemos afirmar que o desenvolvimento do sentimento de culpa foi
detido, mais do que tudo, precisamente pelo castigo – ao menos quanto às
vítimas da violência punitiva. Não subestimemos em que medida a visão dos
procedimentos judiciais e executivos impede o criminoso de sentir seu ato, seu
gênero de ação, como repreensível em si: pois ele vê o mesmo gênero de ações
praticado a serviço da justiça, aprovado e praticado com boa consciência:
espionagem, fraude, uso de armadilhas, suborno, toda essa arte capciosa e
trabalhosa dos policiais acusadores, e mais aquilo feito por princípio, sem o afeto
sequer para desculpar, roubo, violência, difamação, aprisionamento, assassínio,
tortura, tudo próprio dos diversos tipos de castigo – ações de modo algum
reprovadas e condenadas em si pelos juízes, mas apenas em certo aspecto e
utilização prática. A “má consciência”, a mais sinistra e mais interessante planta
da nossa vegetação terrestre, não cresceu nesse terreno – de fato, por
muitíssimo tempo os que julgavam e puniam não revelaram consciência de estar
lidando com um “culpado”. Mas sim com um causador de danos, com um
irresponsável fragmento do destino. E este, sobre o qual, também parte do
destino, se abatia o castigo, não experimentava outra “aflição interior” que não a
trazida pelo surgimento súbito de algo imprevisto, como um terrível evento
natural, a queda de um bloco de granito contra o qual não há luta”[8].
O fecho do raciocínio é claro: o nexo compreensivo entre dívida e castigo moral é
insuficiente para dar conta da gênese da culpa. Qual, então, a origem dessa
modalidade de sentimento ou consciência de si? Nietzsche, nesse ponto, troca a
base evidencial que dá suporte à suas suposições. A origem da culpa estaria,
agora, na revolução histórica que encerrou o homem “no âmbito da sociedade e
da paz”[9].
Os homens, em função da mudança, foram obrigados a renunciar aos impulsos
primitivos: “Para as funções mais simples sentiam-se canhestros, nesse novo
mundo não mais possuíam os seus velhos guias, os impulsos reguladores e
inconscientemente certeiros – estavam reduzidos, os infelizes, a pensar, inferir,
calcular, combinar causas e efeitos, reduzidos à sua “consciência”, ao seu órgão
mais frágil e mais falível! Creio que jamais houve na terra um tal sentimento de
desgraça, um mal-estar tão plúmbeo – e além disso os velhos instintos não
cessaram de repentinamente de fazer suas exigências! Mas era difícil, raramente
possível, lhes dar satisfação: no essencial tiveram de buscar gratificações novas,
e, digamos, subterrâneas. Todos os instintos que n ao se descarregam para fora
voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim
que no homem cresce o que depois se denomina sua “alma”. Todo o mundo
interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se
expandindo e se estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na
medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora. Aqueles
bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos instintos de
liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões – fizeram com que
todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para
trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na
perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando
contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência”[10].
O homem, preso à paz social “por falta de inimigos e resistências exteriores,
cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes,
impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo,
esse animal que querem ‘amansar’ (...) tornou-se o inventor da ‘má consciência’.
Com ela, porém, foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje
não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo:
como resultado de uma violenta separação do seu passado animal, como que um
salto e uma queda em novas situações e condições de existência, resultado de
uma declaração de guerra aos velhos instintos nos quais até então se baseava
sua força, seu prazer e o temor que inspirava”[11].
O Estado responsável pela interiorização do homem foi criado pelos primeiros
conquistadores: “está claro a que me refiro – algum bando de bestas louras, uma
raça de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente e com força
para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população
talvez imensamente superior em número, mas ainda informe e nômade. Deste
modo começa a existir o ‘Estado’ na terra: penso haver-se acabado aquele
sentimentalismo que o fazia começar com um ‘contrato’. Quem pode dar ordens,
quem por natureza é ‘senhor’, quem é violento em atos e gestos – quem tem a
ver com contratos! Tais seres são imprevisíveis, eles vêm como o destino, sem
motivo, razão, consideração, pretexto, eles surgem como o raio, de maneira
demasiado terrível, repentina, persuasiva, demasiado ‘outra’, para serem sequer
odiados. Sua obra consiste em instintivamente criar formas, imprimir formas,
eles são os mais involuntários e inconscientes artistas – logo há algo novo onde
eles aparecem, uma estrutura de domínio que vive, na qual as partes e as
funções foram delimitadas e relacionadas entre si, na qual não encontra lugar o
que não tenha antes recebido um “sentido” em relação ao todo. Eles não sabem
o que é culpa, responsabilidade, consideração, esses organizadores natos (...)
Neles não nasceu a má consciência, isto é mais do que claro – mas sem eles ela
não teria nascido(...), sob o peso de seus golpes de martelo, da sua violência de
artistas, um enorme quantum de liberdade não tivesse sido eliminado do mundo
(...). Esse instinto de liberdade tornado latente à força – já compreendemos -,
esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim
capaz de desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus
começos a má consciência”[12].
As bestas louras impedem a expressão do “instinto de liberdade” ou “vontade de
poder[13]”, os quais, obrigados a se voltarem para dentro, criam a má
consciência. Mas como a vontade de poder, mesmo domesticada na má
consciência, continua a ser liberdade instintiva, persiste em seus objetivos de
dominar: “somente que a matéria na qual se extravasa a natureza conformadora
e violentadora dessa força é aqui o homem mesmo, o seu velho Eu animal – e,
não, como naquele fenômeno maior e mais evidente, o outro homem, outros
homens. Essa oculta violentação de si mesmo, essa crueldade de artista, esse
deleite em se dar forma, como a uma matéria difícil, recalcitrante, sofrente, em
se impor a ferro e fogo uma vontade, uma crítica, uma contradição, um desprezo,
um Não, esse inquietante e horrendamente prazeroso trabalho de uma alma
voluntariamente cindida, que a si mesma faz sofrer, por prazer em fazer sofrer,
essa ‘má consciência’ ativa também fez afinal – já se percebe -, como verdadeiro
ventre de acontecimentos ideais e imaginosos, vir à luz uma profusão de beleza
e afirmação nova e surpreendente, e talvez mesmo a própria beleza...”[14].
Nietzsche, com a interpretação, muda de assunto sem resolver o que se
dispusera a explicar. Sua nova tese é que a má consciência surge da
interiorização da vida instintiva do mais fraco, que converte a crueldade em
sofrimento auto-imposto. Mas a introversão da crueldade, por si, não é condição
suficiente do surgimento da culpa e muito menos da suposta relação lógica entre
dívida e culpa. Dizer que o indivíduo submetido ao mais forte pode retornar sua
agressividade contra si é uma coisa; dizer que a auto-agressão é o mesmo que
consciência de culpa pela dívida não paga é outra. Para que o sofrimento auto-
infligido assuma a feição da culpa, é preciso a mediação de outros fatos ou
conceitos até então ausentes do argumento.
É o que Nietzsche tenta fazer, ao avançar sua terceira opinião sobre o
nascimento da culpa. A origem da culpa, nessa última leitura, estaria nos
primórdios histórico-antropológicos da cultura: “A relação de direito privado entre
o devedor e seu credor, da qual já falamos longamente, foi mais uma vez, e de
maneira historicamente curiosa e problemática, introduzida numa relação na
qual talvez seja, para nós, homens modernos, algo inteiramente
incompreensível: na relação entre os vivos e seus antepassados. Na originária
comunidade tribal – falo dos primórdios – a geração que vive sempre reconhece
para com a anterior, e em especial para com a primeira, fundadora da estirpe,
uma obrigação jurídica (e não um mero vínculo de sentimento: seria lícito
inclusive contestar a existência deste último durante o mais longo período da
espécie humana). A convicção prevalece de que a comunidade subsiste apenas
graças aos sacrifícios e às realizações dos antepassados – e de que é preciso lhes
pagar isso com sacrifícios e realizações: reconhece-se uma dívida [Schuld], que
cresce permanentemente, pelo fato de que os antepassados não cessam, em sua
sobrevida como espíritos poderosos, de conceder à estirpe novas vantagens e
adiantamentos a partir de sua força.(...) os ancestrais das estirpes mais
poderosas deverão afinal, por força da fantasia do temor crescente, assumir
proporções gigantescas e desaparecer na treva de uma dimensão divina
inquietante e inconcebível – o ancestral termina necessariamente transfigurado
em deus. Talvez esteja nisso a origem dos deuses, uma origem no medo,
portanto!...”[15]
A partir daí, a conclusão: “Como mostra a história, a consciência de ter dívidas
para com a divindade não se extinguiu após o declínio da forma de organização
da “comunidade” baseada nos vínculos de sangue (...) O sentimento de culpa em
relação à divindade não parou de crescer durante milênios, e sempre na mesma
razão em que nesse mundo cresceram e foram levados às alturas o conceito e o
sentimento de Deus.(...) O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora
alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa.”[16]
Note-se os sucessivos deslizamentos de argumento operados por Nietzsche, ao
elaborar sua genealogia da culpa. Na primeira fase do raciocínio, a culpa nasce
da dívida material não paga e da sublimação da punição física em punição moral.
Esse esquema, entretanto, não elucida a questão, pois o autor se encarrega de
anulá-lo, ao dizer que o infrator castigado se torna mais frio, duro, indiferente
etc. Na segunda fase, aparece a tese da introversão crueldade que, de maneira
similar, em nada esclarece o que era obscuro. Na terceira fase, finalmente, surge
a hipótese mais aceitável da produção da culpa, qual seja, o receio do poder dos
antepassados.
Como a última explicação, a rigor, dispensaria todas as demais, ele tenta
conciliar o papel da dívida material com a hipótese mais recente, dizendo que
“de maneira historicamente curiosa e problemática” a “relação de direito privado
entre o devedor e seu credor” foi introduzida “na relação entre os vivos e seus
antepassados”. Ao fazer isso, entretanto, minimiza, inadvertidamente, a
relevância genealógica das duas primeiras hipóteses. A dívida material passa a
ser um mero enxerto, acrescentado a título de suplemento, na dívida dos vivos
para com os antepassados. .
Na verdade, duas teorias sobre a gênese do sentimento de culpa são propostas,
ambas independentes, dos pontos de vista lógico e empírico. Na primeira, a
culpa é atribuída à inadimplência da dívida material e ao sofrimento auto-
imposto pela introversão da crueldade. Essa teoria, em minha opinião, é
incoerente, pelas razões mencionadas. Na segunda, os argumentos têm outro
teor lógico. A culpa é associada à dívida para com os antepassados e não
apresenta relação alguma com a introversão da crueldade e o prazer de fazer
sofrer a si mesmo. Nietzsche procura somar as duas como se da soma pudesse
surgir a compreensão satisfatória da genealogia material da culpa.
A fragilidade do artefato teórico consiste em querer conectar, de modo
necessário, o que é lógica e empiricamente contingente. Divida, introversão da
crueldade e culpa se tornam termos indissociáveis do mesmo conjunto histórico-
conceitual porque Nietsche queria confirmar ou reafirmar sua versão da natureza
decadente e ressentida do cristianismo. Sua genealogia da culpa, no fundo, parte
do desprezo que ele sentia pela compaixão cristã, para, retrospectivamente,
encontrar as baixas origens do que todos consideravam bom, nobre ou
verdadeiro.
Mas, mesmo supondo que sua teoria sobre a culpa cristã fosse admissível,
estender esse modelo a qualquer relação de dívida seria um procedimento
indevido. Essa, a meu ver, é a maior fraqueza da tese sobre a culpa na
Genealogia.... Inspirado, inconscientemente, pelo caso do cristianismo, Nietzsche
é levado a confundir os dois tipos de pacto que analisa.
Ora, as características centrais da relação de dívida material e da relação de
dívida para com os antepassados são diferentes. Na primeira, a dívida é
contraída por iniciativa do devedor. Alguém pede alguma coisa que não tem
condições de pagar, e, por isso, é punido. Na segunda, tudo se passa de outra
forma. Em primeiro lugar, o ciclo da dívida material começa por iniciativa do
devedor e não do credor. É o primeiro que se compromete a pagar por algo que
deseja e que só o outro tem. Em segundo lugar, na dívida material o devedor,
por princípio, poderia restituir o empréstimo ao credor ou ressarci-lo com algo
equivalente, pois eram seres ontologicamente comensuráveis. O bem negociado
poderia pertencer aos dois, já que se tratava de algo que qualquer ser humano
poderia possuir. A dívida, desse modo, era passível de ser paga. A punição se
baseia, portanto, na má fé ou inconseqüência do devedor que quis enganar o
credor ou superestimou sua capacidade de cumprir a promessa feita.
A dívida para com os antepassados é de outro gênero. Numero um, ela nasce de
um gesto de doação do futuro credor que antecede ao desejo, vontade ou ação
do futuro devedor. Diferente da primeira, não deriva de uma promessa quebrada.
Número dois, é uma dívida que, desde o princípio, é impagável, pois credor e
devedor são incomparáveis como tipos ontológicos.
A economia do endividamento, no segundo pacto, é totalmente distinta da
primeira. O devedor não pode ressarcir o credor, pela simples razão de não
poder dar vida a quem lhe deu a vida, nem tampouco devolver ou recusar o que
recebeu, sob pena de não mais existir. A primeira dívida pode ser negociada; a
segunda requer, inevitavelmente, submissão ou morte.
Na dívida material, a lógica é do empréstimo e da falta; na dívida para com os
antepassados é a da doação e da posse inalienável. No segundo tipo de divida, o
beneficiário já possui o que valoriza. Não se trata, portanto, de pedir o que não
se tem, mas guardar o que se recebeu. O problema é outro: o Bem recebido não
pode ser recusado e só um, o doador, pode ser fonte autônoma de doação. Essa
economia emocional sui generis é ilustrada por Nietzsche em A gaia ciência, pelo
exemplo do amor e da cupidez[17]. Vejamos de que maneira.
Na passagem em que trata do tema, Nietzsche afirma que cupidez e amor são
duas manifestações do instinto ativo, ofensivo. No amor, o instinto insatisfeito
visa uma nova propriedade. O impulso para a posse – que seria equivalente ao
impulso do credor - glorifica a si mesmo, ao se qualificar como “bom”. Quem ama
quer a posse da pessoa que deseja; “quer exercer um poder exclusivo tanto
sobre sua alma como sobre seu corpo; ele quer ser amado por ela de forma
exclusiva e quer habitar e dominar essa alma como se isso fosse o que houvesse
de mais elevado e desejável para ela”[18]. Ou seja, o credor, o doador,
insatisfeito com o que já tinha, dá vida a uma criatura, da qual espera, em troca,
gratidão amorosa pelo amor recebido, de forma gratuita. O beneficiário, o
amado, por seu turno, deseja conservar o bem recebido, mas, para isso, tem que
alienar sua vontade ao sacrifício amoroso. É a vida ou a alma; a existência ou a
liberdade.
A dinâmica da dívida e da culpa é enriquecida com um evento mental novo, a
ambivalência afetiva do credor para com o devedor. O evento não tem comum
medida com o empréstimo, a falta e a posse de bens materiais. Dever dinheiro
ou mercadoria a alguém não se pode comparar com dever a vida a algo ou
alguém. As duas dívidas se assentam na cupidez, ou seja, no impulso para
possuir o que não se tem ou manter o que se ganhou. Mas a cupidez material é,
logicamente, opcional. O Bem que está em jogo poderia ser recusado. Na cupidez
existencial, ao contrário, a dívida é obrigatória e se duplica pelo reconhecimento
do ato amoroso do doador.
Sem esse reconhecimento, ignorado por Nietzsche, não pode haver culpa.
Nenhum castigo, nenhum interiorização da agressividade pode conduzir à
idealização amorosa do outro. E, só quando se ama o opressor, benevolente ou
cruel, pode-se sentir culpa pelo desejo de lesá-lo ou privá-lo da retribuição que
ele exige.
Não bastam, portanto, dívidas materiais, castigos morais e introversão da
crueldade para a explicar a gênese da consciência de culpa. Sem o amor ao
censor, sem a servidão voluntária, não há culpa. Culpa só existe onde o
sentimento de impotência de quem deve corresponde à onipotência amorosa de
quem doa. A aquiescência do devedor quanto ao valor inestimável do Bem
recebido e sua incapacidade de reverter o sentido da doação, é condição
necessária ao nascimento da culpa.
Nietzsche, todavia, imagina soluções para o dilema, além das que foram
expostas. Ao falar da culpa em relação aos antepassados, dá margem a que
possamos pensar em um “sentimento de divida” sem “sentimento de culpa”.
Explicitando, ao abordar o mito dos antepassados, sugere duas possíveis
respostas ao reconhecimento da dívida: uma que se faz acompanhar de culpa e
outra não. Assim, no aforismo 117, intitulado “o remorso do rebanho”, é dito:
“(...) durante o período mais longo da vida da humanidade, nada havia de mais
aterrador para o homem do que sentir-se isolado. Estar só, experienciar como
indivíduo, não obedecer nem dominar, significar um indivíduo não era um prazer
nessa época, era uma punição; o homem era condenado a ‘ser um indivíduo’. A
liberdade de pensamento era considerada o mal-estar por excelência. Enquanto
hoje nós sentimos a lei e a integração como constrangimento e prejuízo, no
passado o homem sentia o egoísmo como algo penoso, como uma verdadeira
desgraça. Sermos nós próprios, avaliarmo-nos segundo o nosso próprio peso e
medida era então algo que colidia com o gosto. A tendência para isso teria sido
considerada desvario, porque à condição de estar-se só estavam ligadas todas as
misérias e todos os medos. A “vontade livre” era, outrora, acompanhada sempre
de perto pela má consciência, e, quanto menos livremente o homem agia, tanto
mais transparecia da sua ação o instinto de rebanho e não o sentido pessoal,
tanto mais moral o homem se considerava. Tudo o que prejudicava o rebanho,
resultante ou não do desejo do indivíduo, provocava nele remorsos, provocava-os
no seu vizinho e, até na totalidade do rebanho! Foi quanto a este ponto que mais
alteramos a nossa maneira de pensar e sentir”[19].
Em outros termos, a oposição entre o ímpeto para agir e pensar de modo livre e
o medo de se apartar da coletividade faziam do processo de individualização, do
“ser um indivíduo”, uma tarefa que redundava em culpa. A vontade de liberdade
e o medo da represália a esse impulso se convertiam em remorso porque o
indivíduo queria ter autonomia sem ferir o outro percebido como fonte do Bem
supremo, a vida.
O devedor se torna, dessa forma, prisioneiro de um impasse: continuar a ser
amado pelo credor e ocupar seu lugar ontológico, tornando-se criador. Aí estaria
o solo da culpa. A dinâmica do amor e da cupidez faz com que qualquer gesto em
direção ao autogoverno e à criação dos próprios valores resultem em sentimento
de culpa.
Existe, no entanto, respostas emocionais que podem superar a culpa originada
na moral do ressentimento. Antecipando, de forma breve, o que será
desenvolvido, penso que Nietzsche, embora de modo tácito, assinala a
possibilidade da experiência da dívida sem o correlato da culpa.
O sentimento de culpa, como foi visto, emerge na teia afetiva do amor e da
cupidez. O devedor, como o credor, é levado a crer que a retribuição do amor
recebido é tudo que de mais elevado pode desejar, pois essa crença é a garantia
de sua vida. Visto de outra perspectiva, o devedor só se sente culpado enquanto
acredita na onipotência do credor e em sua própria impotência. A medida que
aprende a confiar em seu poder de criar, pode continuar a reconhecer o valor do
que lhe foi dado, sem, por isso, se sentir culpado por querer pensar e agir de
modo livre.
A distância ontológica entre credor e devedor pode, nessas condições, ser
reduzida e transfigurada. Ao ultrapassar a dinâmica da falta e do empréstimo, do
amor e da cupidez, o sujeito pode admitir, sem culpa, sua autonomia no
pensamento e na ação. Essa solução exige, é claro, a desidealização do outro e a
idealização da própria criatividade. Nietzsche se refere a tal possibilidade no
aforismo 58 de A gaia ciência: “só enquanto criadores podemos destruir! Mas há
outra coisa que não devemos esquecer: basta criar novos nomes e apreciações e
probabilidades para, a curto prazo, criar novas coisas”[20].
Isto é, ao se aceitar como criador, o indivíduo não necessita mais se sentir
culpado. A consciência de culpa é atributo dos que se acham na posse de um
Bem cuja origem não está em si mesmo e sim no outro, concebido como um Ser
radicalmente heterogêneo em seus predicados ontológicos. Ao se redescrever
com criador, o sujeito deixa de ver no outro uma ameaça e passa a vê-lo como
um parceiro no ato da criação.
É importante enfatizar o último tópico. Nietzsche, inúmeras vezes, alude ao ato
criador como ato destrutivo de coisas ou pessoas, no sentido físico. Mas, muitas
vezes – e penso que é o essencial – fala de destruição no sentido de destruição
de valores, visões de mundo ou esquemas de pensamento que inibem a
criatividade, a ação inédita, a vontade de poder. É sobretudo nesse terreno que
se dá a luta contra a culpabilidade que advém do reconhecimento da dívida. Ao
dar novos nomes a coisas antigas ou inventar novos nomes e coisas novas,
podemos criar sem nos tornarmos truculentos e irresponsáveis como as besta
nietzscheanas, dos inícios dos tempos civilizatórios. Opor-se ao outro, combater o
outro, não significa, compulsoriamente, querer destruí-lo físico-moralmente;
significa destitui-lo de sua pretensa onipotência ou do monopólio da criação que
ele pode reivindicar.
O reconhecimento da dívida é, desse modo, compatível com o reconhecimento
do próprio poder de criar e do idêntico poder do outro. Essa interpretação da
genealogia da culpa pode parecer edulcorada para o gosto corrente de alguns
estudos nietzscheanos. Acredito, no entanto, que Nietzsche era sensível à idéia
do respeito aos valores do outro, desde que fossem valores dos fortes, dos
criadores, e não do rebanho.
No aforismo 259, de Além do Bem e do Mal – Prelúdio a uma filosofia do futuro,
ele diz: “Abster-se de ofensa, violência, exploração mútua, equiparar sua
vontade à do outro; num sentido tosco isso pode tornar-se um bom costume
entre indivíduos, quando houver condições para isso (a saber, sua efetiva
semelhança em quantidade de força e medidas de valor, e o fato de pertencer a
um corpo). Mas tão logo se quisesse levar adiante esse princípio, tomando-o
possivelmente como um princípio básico da sociedade, ele prontamente se
revelaria como aquilo que é: vontade de negação da vida, princípio de dissolução
e decadência”[21].
No trecho ficam retratados, uma vez mais, os redundantes ataques de Nietzsche
ao igualitarismo democrático e à ética compassiva do cristianismo, responsáveis,
a seu ver, pela moral conformista do rebanho. Fica, no entanto, igualmente
patente o apreço que tinha pelos valores dos fortes, dos que acreditam no
próprio poder de criação de si e do mundo. Essa ética de produção autônoma do
sentido da vida, de admiração pelos “homens de estilo” recebe o aval inequívoco
nos aforismos 273, 274 e 275 de A gaia ciência. Nessa passagem, Nietzsche diz:
“A quem chamas de perverso? Àquele que pretende sempre envergonhar os
outros”; “Que é para ti o que há de mais humano? Poupar alguém à vergonha”;
“Que é o selo da liberdade alcança? Nunca mais nos envergonharmos de nós
próprios”[22].
Trazendo a questão, de maneira abrupta e elíptica, para o campo da psicanálise,
diria que a alternativa nietzscheana para a culpa se aproxima da saída
winnicottiana para o mesmo problema. Para Winnicott, se formos capazes de
experimentar nossa “onipotência criadora”não precisamos sentir culpa em
relação ao outro ao qual nos opomos com nossa criatividade. No lugar da culpa,
experimentamos o cuidado, a preocupação, o “concern”.
A noção de cuidado, atenção, concern, indica a mudança de posição do devedor
em relação ao credor. Winnicott diz que, a partir da experiência do concern, o
devedor deixa a condição de ressentido, culpado, para experimentar gratidão e
potência. Ou seja, passa-se da dinâmica do amor e da cupidez, que é a forma do
instinto de posse comandado pelo medo, para a dinâmica da “preocupação”, que
é a forma do instinto de posse comandado pela confiança na própria vontade.
A vontade, todavia, nem é a força da “besta loura”, inconseqüente em sua
inocência cruel, nem a violência muda do fraco, que inveja a potência do forte e
quer sempre tomar para si o que reconhece ser do outro. A força do sujeito ideal
winnicottiano não está, apenas, na capacidade de reconhecer a potência do
outro; está na capacidade de saber que essa força alheia a si, embora tenha lhe
oferecido resistência e feito sofrer, é indispensável para que ele tenha podido
adquirir sua própria força. Além do mais, ao entender que a força ideal é
sinônima de “dar um estilo próprio ao caráter”, o sujeito winnicottiano aspira
para si o que o tipo forte nietzscheano também poderia aspirar.
A superação do sentimento de culpa em relação à dívida equivale, assim, à
passagem da ética da sobrevivência à ética da criação autônoma do sentido da
vida. Na primeira predominam o medo, a desconfiança, a dependência e a
impotência; na segunda, a gratidão, o respeito e a admiração pelo poder dar
início ao novo.
Em síntese, como disse Giacoia: “O grande homem é grande pelo espaço de
liberdade de suas paixões: mas ele é suficientemente forte para fazer desses
monstros seus animais domésticos”[23]. A culpa e o ressentimento são alguns
dos monstros que nos cabe dobrar e por a serviço do cuidado de si e do cuidado
com os outros.

Notas:

[1] Nesse texto, todas as palavras em francês ou inglês, assim como todos os
itálicos, aspas, parênteses etc. são originais do autor. Só nos casos em que os
grifos forem de minha autoria, a marcação será assinalada.
[2] Nietzsche, Friedrich. Genealogia da moral – Uma polêmica, Tradução, notas e
posfácio de Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 52,
2/4.
[3] Nietzsche. A gaia ciência, Obras escolhidas, volume três, Lisboa, Relógio
d’Água Editores, 1998.
[4] Nietzsche, Friedrich. Genealogia da moral – Uma polêmica, op. cit. pp. 52-53.
[5] Ibid. p. 58.
[6] Ibid. p. 57.
[7] Ibid.
[8] ibid. pp. 70-71.
[9] ibid. p. 72.
[10] Ibid. pp. 72-73.
[11] ibid. p. 73.
[12] Ibid. p. 75.
[13] Ibid. p. 76.
[14] Ibid.
[15] Ibid. p. 78.
[16] Ibid. pp. 78-79.
[17] Nietzsche, Friedrich. A gaia ciência, op. cit. pp. 28-30.
[18] Ibid. p. 29.
[19] Ibid. p. 70.
[20] Ibid. p. 70.
[21] Nietzsche, Friedrich. Além do Bem e do Mal – prelúdio a uma filosofia do
futuro. São Paulo, Companhia das Letras, Tradução, notas e posfácio de Paulo
César de Souza, 1992, terceira edição, pp. 170-171.
[22] ________. A gaia ciência, op. cit. p. 186.
[23] Giacoia Jr., Oswado, Labirintos da alma – Nietzsche e a autosupressão da
moral, Campinas, Editora da Unicamp, 1997, p. 172.

[*] In: Saúde, Sexo e educação, Rio de Janeiro, v. 34-35, p. 24-33, 2004

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