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FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA E HERMENÊUTICA

ALTERNATIVAS PARA O D I R E I T O*

Edmundo L. de Arruda Jr.**

Marcus Fabiano Gonçalves***

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SUMÁRIO

Introdução ....................................................................... 4
1. Alternativas do Direito na Modernidade ..................... 33
1.1. Um diagnóstico autocrítico do MDA ........................... 33
1.2. Compreensão e ultrapassagem do positivismo .................. 39
2. Mínimo Ético e Eficácia Normativa............................ 58
2.1. Mínimo ético: uma escavação sob os relativismos axiológicos
................................................................................... 58
2.2. Direito e mínimo ético: a possibilitação da ética pelo direito
................................................................................... 85
2.3. Liberdade e igualdade nas capacidades e oportunidades .. 101
2.4 Direito e ética: impunidade e estratégias de resistência à
exclusão social .............................................................. 121
2.4. Direitos humanos, igualdade e desenvolvimento ............. 139
2.5. Direito e desenvolvimento na América Latina .............. 183
2.6. Hegemonia e corrupção: repolitização da legitimidade e
remoralização da política ................................................ 189
2.7. Educação para a ética, direitos humanos e ensino jurídico
................................................................................. 196
3. Observações sobre o Sentimento de Justiça .............. 204
3.1. O sentimento de justiça na filosofia do direito orientada pela
sociologia e antropologia jurídicas ..................................... 204
3.2. Eficácia normativa e substrato ético da experiência jurídica
................................................................................. 215
3.3. O sentimento de justiça e a formação do sentido de igualdade
................................................................................. 219
3.4. Sentimento de justiça e concretização do mínimo ético ..... 222
3.5. A dialética do jurista-cidadão e do cidadão-jurista: dois focos
na apreensão do fenômeno jurídico .................................... 226
4. Hermenêutica ........................................................... 230
4.1. Da pura discricionariedade à fundamentação da pré-
compreensão ................................................................. 230

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4.2. A pré-compreensão jurídica e a pré-compreensão da
subjetividade do intérprete: limites e relações ........................ 247
4.3. A hermenêutica da juridicização e a linguagem jurídica .. 265
4.4. A interpretação conforme a Constituição e a Constituição
como parâmetro interpretável ........................................... 283
4.5. A concepção de descoberta da verdade na hermenêutica
heurística .................................................................... 301
4.6. Hermenêutica e novos consensos: ressignificando o mundo
jurídico ....................................................................... 318
4.7. Da hermenêutica ao mínimo ético .............................. 328

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alternativas para o direito

Introdução

Modernidade é a designação genérica adotada


para se caracterizar um período histórico, na verdade mais
um processo social, marcado pelo colapso das
fundamentações tradicionais. Uma fundamentação pode
ser considerada tradicional quando valores sociais e
normas instituídas justificam privilégios, prerrogativas e
diferenças ofensivos àquela igualdade primária pela qual
progressivamente é sedimentado nosso ideal de uma
universalidade laica e racionalista. A contextura laica da
razão demarca um território de coisas não sagradas que
tampouco chegaram a ser imediatamente heréticas. Um
profano mitigado passa gradualmente a ser conquistado ao
longo de várias negociações, com avanços e retrocessos. A
luz do iluminismo não teve o caráter impetuoso de um fiat
lux, não iluminou de repente; foi iluminando, como nas
intensidades de penumbras sucedidas num alvorecer.
Porém, se a Modernidade paulatinamente foi lançando luz
sobre as trevas medievais, não deixou de afligir a história
com seus próprios infortúnios. As vicissitudes da
fundamentação da ética moderna pós-tradicional
desnudavam problemas sociais cujas causas, agora
humanas e materiais, haviam sido relegadas à esfera
determinista da transcendência. O humano e o material
foram compreendidos como social. E este, como político
e econômico.
As explicações teológicas foram outrora o
signo mais claro daquela transcendência fundamentadora
do imobilismo tradicionalista e conservador. As pás da
ciência se puseram a cavar trincheiras de resistência às
ingerências desse além. Mecanicismo, materialismo,

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positivismo e incontáveis posturas cientificistas somaram


forças nesse combate. No entanto, durante o calor dessa
luta, a fundamentação pós-metafísica restou produzindo
suas próprias transcendências. Retrospectivamente,
percebemos hoje que a atitude metafísica não esteve
somente nos domínios da religião. Pôde estar também na
própria ciência, ou ainda na extensão de seus predicados
de previsibilidade calculável para domínios humanos
eminentemente contingenciais, como o da história e do
comportamento social. A fundamentação moderna, pelo
seu caráter pós-tradicional, reivindicou revestir-se também
de um temperamento pós-metafísico. Mas se é certo que
essa fundamentação promoveu a autonomização de
diversas esferas sociais (estética, política, econômica,
jurídica, moral), também é verdadeiro que experimentou
novas formas de justificação que hoje poderíamos
caracterizar como metafísicas. O desencantamento do
mundo medieval reclamou sua reorganização cognitiva por
uma determinada idéia de sistema, a nova figura arquetípica
de uma mitologia racional. O homem agora sujeita o mundo
a seus propósitos na medida em que se apossa dele pelo
cálculo, pela previsibilidade, pela produção e pela
organização cognitiva. O otimismo cientificista generalizou
a idéia de progresso. Descobertas as leis da sociedade, tal
como outrora foram descobertas as leis da natureza, fez-se
possível o vaticínio comunista: inexoravelmente as
contradições do sistema capitalista conduziriam o mundo
ao socialismo.
Na modernidade industrial, ciência e arte
divorciaram-se e passaram a viver em domínios
longínquos. A arte experimentou a especificação pelo
estilo: a sutileza de uma sensibilidade particular,
manifestada em uma composição, individualizava um
autor. Liberto do jugo religioso, o autor moderno, o artista

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burguês, tornava-se senhor pleno de sua obra. Uma


racionalidade estritamente estética imunizou a ciência
contra os efeitos das emoções. Emoções e sensibilidade só
poderiam ser experimentadas em domínios diversos da
técnica e da política. Razão e sensibilidade seguiram cada
qual seu próprio rumo. Hoje, no zênite da Modernidade,
uma atenção ao que disseram homens póstumos como
Nietzsche nos causa assombro ante a confirmação de seus
prenúncios: o sufocamento do dionisíaco reclama agora
seu preço. Um tecido social hiperestético sobrepuja a
racionalidade da política e toma dianteira até sobre a
produção econômica. A máquina dos partidos políticos
tradicionais, os príncipes modernos no dizer de Gramsci, é
substituída por agências de publicidade. As empresas
produzem conforme uma economia das necessidades
produzidas pela mídia. E em meio ao delírio plástico dos
políticos-produto e da manipulação irresponsável do
desejo, a felicidade e o sofrimento só freqüentam a ordem
do dia como apelos emocionais e como estratégias de
consumo.
Mas, apesar desses acidentes de percurso, a
modernidade foi gestada sobretudo como a época da
descoberta dos problemas humanos enquanto humanos. A
desigualdade social agravada em virtude da
superacumulação acelerada pelo desenvolvimento
tecnológico agudizou-se quando o curso da história
consumou uma modernidade predominantemente
capitalista. O drama da exploração do homem pelo homem
não era resolvido, mas antes agravado pela ciência. Novas
formas de submissão, formas especificamente modernas,
sucederam à vassalagem, assim como outrora essa
vassalagem havia sucedido à escravidão. No entanto,
também surgiram novas formas de emancipação moderna
nesse mundo de homens livres para vender a própria força

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de trabalho: os movimentos sociais se fizeram herdeiros da


continuidade e do aprofundamento das reivindicações de
1789.
Crenças fundadas na atitude de fé cederam
espaço a valores fundados em justificações ás quais todos
poderiam acentir. Agrupamentos desses valores na forma
de sistemas de idéias e justificações tornaram-se ideologias.
E um mundo outrora coeso pelas fundamentações
tradicionais experimentou um estilhaçamento
caleidoscópico sem precedentes. Uma explosão em
diversos fragmentos desenhou o quadro do politeísmo de
valores tão bem analisado por Weber. Desde então a vida
em sociedade tornou-se uma permanente tensão entre a
apologia às virtudes pluralistas desse estilhaçamento e a
busca de uma unidade precária que possibilitasse
identificar nesses fragmentos as partes de um mesmo ex-
todo. Uma totalidade harmônica deixava de ser a causa da
unidade coerente de um mesmo mundo. Sucumbiam as
explicações organicistas, ascendiam as fundamentações
individualistas. E, segundo esse individualismo, a
totalidade social tornava-se um constructo a ser
permanentemente buscado nas composições provisórias e
mutáveis entre as diversas forças sociais em disputa por
valores e ideologias que representavam agora interesses
antagônicos. Os extremos do nazismo e do stalinismo
foram indicativos de um desconforto com esse
estilhaçamento. Representaram descaminhos de uma razão
histórica tão totalitária quanto a metafísica teológica, pois
buscaram recompor uma unidade cindida por meio da
violência e da eliminação física da diversidade.
Com o capitalismo, não tardou esse mundo da
razão a atingir uma nova condição mítica. A lanterna do
iluminismo foi conduzida para o rumo da barbárie. A

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ciência tornou-se a grande ideologia comum dos Estados


Modernos. Soviéticos e americanos disputavam um
mesmo terreno, previamente considerado valioso. A
técnica a serviço da dominação ofuscou as forças
emancipatórias. E o que em outros tempos foi dominação
atingia um paroxismo inusitado: a dominação determinada
pela divisão do trabalho agora extermina o dominado.
Aqueles que protestaram contra a injustiça da Divisão
Internacional do Trabalho traçada pelo imperialismo
jamais chegaram a pensar que um dia deixasse de existir
até trabalho explorador a dividir. Juristas críticos
procuraram levar o direito para os rumos da
transformação social. O pluralismo jurídico romântico
reduzia o direito moderno a um monismo de índole
burguesa a ser extirpado. Juristas tradicionais lembravam: o
direito é um instrumento de conservação social. A história recente
prova o quanto esses juristas tradicionais acabaram se
tornando paradoxalmente certos: a barbárie neoliberal
impõe a conservação da sociedade, sua preservação contra
a supressão do direito e a exclusão social.
Mas, como lembra Boaventura de Sousa
Santos no seu livro A Crítica da Razão Indolente, a
modernidade não nasceu capitalista, tornou-se. A
supremacia da ideologia cientificista selou essa união: o
ideal positivista do progresso indicava um sulco de luz
desbravado pela razão em meio às trevas. O culto à
tranqüilidade cultivada por essa ordem não demorou em
reprimir os domínios da vida social não imediatamente
reguladores. Boaventura identifica aí um sufocamento das
energias emancipatórias da modernidade pelo capitalismo.
O exame da tensão surgida no decurso da modernidade
entre os extremos do par regulação–emancipação torna-se
decisivo. E o papel do Estado no equilíbrio dessa tensão
não pode mais ser universalizado em desconsideração às

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peculiaridades históricas de cada sociedade situada em


estágios distintos de edificação do projeto moderno. Ainda
mais na América Latina, onde sociologicamente o aparato
burocrático do Estado não só antecede a sociedade civil,
como também chega a fundá-la em muitos casos. Quando
esse Estado torna-se, ou permanece, como destinatário
dos apelos por emancipação, seja para chancelá-los na
forma de reconhecimento pelo seu direito positivo, seja
para promover estratégias assecuratórias e efetivantes, isso
acena à ocorrência de algo deveras importante: esse
Estado é ainda identificado como o protagonista de uma
comunidade em via de afirmação histórica na forma de
uma sociedade a ser mantida minimamente coesa pela
eliminação das exclusões maciças. As demandas dirigidas
ao Estado são assim sintomas de um estágio primordial de
socialização cooperativa ainda não plenamente
conquistado.
Talvez o pensador contemporâneo mais
célebre por sua defesa vigorosa da modernidade seja
Jürgen Habermas. Ele enxerga o projeto moderno como
incompleto, como algo que poderia ainda ser consumado
mediante a adoção de algumas alternativas gestadas ao
longo dos caminhos e descaminhos da própria
modernidade. Já Boaventura prefere pensar a modernidade
como não podendo ser consumada, ao menos nos exatos
termos como ela até então vem sendo concebida enquanto
momento anterior ao que comumente é designado como
pós-modernidade. Cada um desses autores tem lá suas
razões para assim pensar. Postulando a modernidade num
contexto europeu, Habermas provavelmente estaria
correto, não fosse o fato notório de a modernidade não
ser um fenômeno apenas europeu. Em contextos de
sociedades periféricas, a modernidade social, política e
jurídica muitas vezes nem bem chegou e já dá ares de

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obsolescência. E isso demonstra mesmo a inépcia dos


pensamentos etapistas que, além de corroborarem um
certo eurocentrismo, não conseguem vislumbrar o além da
modernidade através dela mesma, algo como uma transpós-
modernidade. Em uma analogia, essa é uma situação muito
semelhante àquelas recomendações de direção defensiva
feitas aos condutores de automóveis em auto-estradas:
olhar através dos pára-brisas dos outros veículos para
enxergar além deles, diminuindo assim o risco de acidentes.
Parece então ser bem esse o nosso desafio, pois se não
conseguirmos vislumbrar o além através da modernidade,
poderemos ter o alcance de nossa visão bloqueado por um
obstáculo erguido pela sua configuração capitalista: a
constante cooptação das energias emancipatórias pelas
forças regulatórias. Aliás, o próprio ideal democrático
sofre um arrefecimento de sua aptidão transformadora no
curso dessa cooptação regulatória. E até mesmo a prática
das reformas sociais perde sua urgência à vista do colapso
do que poderia sobrevir na sua ausência: a revolução.
O ideal democrático não pode então ser mais
exclusivamente uma diretriz para a esfera pública reduzida
à política. A criatura concreta escondida sob a pele do
moderno homem-cidadão, capacitado a participar
politicamente, sente cada vez mais ânsia por se expressar e
se realizar em dimensões da existência social distintas da
política. A diversão, a arte, o amor, a cultura, o lazer, a
religiosidade, a intimidade, o consumo de bens e serviços
fazem dessa criatura concreta um ser multidimensional em
suas aspirações. O ideal democrático necessita, assim,
desdobrar-se em éticas para essas e muitas outras
dimensões da vida social e individual cada vez mais
requisitadas nas discussões políticas da esfera pública
tradicional. Mas nem o comparecimento dessas questões à
esfera pública, e tampouco o interesse imediato de muitos

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envolvidos, vertem-se necessariamente em participações


efetivas. Muitos afetados, por vezes, não desejam
participar das deliberações cujos resultados podem atingi-
los. E essa deserção participativa não pode ser
diagnosticada de maneira simplista como pura alienação
ou apoliticidade. Ocorre mesmo que a esfera pública
também passou a se desenvolver em outros segmentos da
vida social não imediatamente políticos.
O surgimento dessa esfera pública burguesa,
magnificamente apreciada por Habermas em Mudança
Estrutural da Esfera Pública, em muito se deveu à associação
entre indivíduos particulares preocupados com o que
Boaventura vem designando como uma racionalidade
estético-expressiva: os cafés, os círculos literários, a
freqüência aos teatros e aos concertos. O homem da esfera
pública no alvorecer da modernidade originalmente fazia
parte de movimentos culturais. Hoje, porém, contingentes
enormes dos participantes potenciais das sociedades
contemporâneas foram absorvidos por modalidades de
expressão sem repercussões políticas e nem mesmo
culturais. O puro hedonismo e o consumo de produtos de
entretenimento de baixíssima qualidade cultural recrutam
legiões de indivíduos passivos em países com diferentes
estágios de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a política
é vista por tais indivíduos, várias vezes não sem razão,
como atividade longínqua e promíscua, fonte de corrupção
e de oportunismo. Os poucos ensaios de participação
geram frustração por não chegarem a produzir resultados
em um lapso de tempo desejado. Assim, muitos teóricos
da sociedade recusam-se a analisar essas manifestações
estéticas por considerá-las desprovidas de conteúdos mais
significativos. Mas a verdade é que essas análises são muito
complexas, pois envolvem a criação de linguagens
conceituais para o tratamento de fenômenos bem

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diferentes das ideologias políticas, das legitimidades ou das


configurações institucionais.
O chamado tribalismo pós-moderno reforça entre
os indivíduos maneiras estéticas e performáticas de troca
de imagens e códigos denotadores de uma pertinência
grupal responsáveis pelo atendimento de uma demanda
por auto-estima e identidade social. O ato de pertencer a
um grupo sacia a sede por identidade em meio a
sociedades diluídas no gigantismo anônimo das massas. O
aglutinante desses novos grupos sociais designados como
pós-modernos definitivamente não é mais um vir a ser
utópico, ideológico e bastante improvável em curto prazo.
Esse aglutinante social teve sua maior expressão orgânica
nos partidos políticos e em suas ideologias. Diversamente,
tal aglutinante social é hoje uma composição entre duas
disjuntivas: (a) ter/não-ter e (b) ser/não-ser. Sujeitos
sociais dificilmente cerram fileiras nos dias atuais pela
causa do comunismo (vir a ser), mas não hesitam em
constituir um grupo reivindicatório para resolver
problemas como o daqueles que carecem de habitação hic
et nunc (ter/não-ter). Sem chegar a questionar as razões
globais do sistema socioeconômico que lhes nega
habitação, a demanda desses sujeitos sociais é
maximamente imediatista e seu caráter corporativo
freqüentemente não tergiversa em recorrer ao arrivismo
para atendê-la em detrimento das reivindicações de um
grupo diverso. Aglutinações assim (ou, caso se prefira,
sujeitos sociais coletivos) podem ser conflitantes entre si e
muitas vezes subsistem sem nenhum grande princípio
político ou ideológico unificador além da premente
necessidade. E nem seria exagerado acrescentar que a
constituição de muitas dessas organizações já nasce com
seu prazo de validade determinado: precisamente o da
satisfação da demanda que lhes dera gênese.

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De outra parte, também temos hoje


incontáveis associações formadas pelo aglutinante (b)
ser/não-ser. Trata-se do compartilhamento daquilo
designado por Max Horkheimer como o minimal self dos
indivíduos. Podemos perceber o ingresso de pessoas em
agremiações relativamente informais sendo impulsionado
pela comunhão de atitudes sociais e características
fenotípicas entre seus membros: tatuagens, roupas,
brincos, piercings, cortes de cabelos, gostos musicais,
artefatos desportivos, formas do próprio corpo e ainda
muitos outros objetos e comportamentos fetichizados que
identificam os membros daquilo que se convencionou
chamar tribo. Nos anos 1970 e 1980, a depressão
econômica produziu grandes contingentes de jovens
desempregados, dentre os quais muitos se tornaram os
revoltosos punks na Inglaterra. A iminência de um conflito
nuclear mundial que havia gerado o pacifismo amoroso
dos hippies nos anos de 1960 produziu mais tarde o
niilismo mórbido dos darks e góticos com o ar blasé das
sociedades européias. Simultaneamente, a crescente
angústia das populações juvenis produzia na sociedade
norte-americana, e nas demais que seguem seu estilo de
vida, a violência gratuita das gangues de artes marciais.
Mas foi mesmo nos anos 1990 que esses grupos ditos pós-
modernos aumentaram em número e diversidade. Como
aspecto positivo, poderia ser destacada a proliferação de
reivindicações com caráter planetário em defesa da
preservação ambiental e da qualidade de vida. Todavia,
também cresceram pelo mundo a xenofobia e o
preconceito étnico responsáveis pela disseminação dos
skinheads e outros agrupamentos intolerantes. No Brasil, a
implacável exclusão econômica e social da juventude negra
recrudesceu sua guetificação. Apareceram os rappers, os
MCs, os pagodeiros e os funkeiros. Favelados e integrantes

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das classes baixas reúnem-se para fruição de suas


produções artísticas, muitas imitadoras de padrões norte-
americanos, ou simplesmente para a diversão catártica em
grandes eventos na periferia das metrópoles. Ainda nos
anos 90, cada vez mais segmentos formados por
integrantes da classe média ou das camadas abastadas de
vários países foram sendo assimilados pela cultura
midiática demandante de uma obsessão pelo consumo
estético. Os clubbers, os cybers, os models e incontáveis outros
grupos menores aglutinam-se pelo consumo de marcas,
tecnologias e produtos semiculturais, ou pela simples
ostentação narcísea de corpos meticulosamente torneados
em centros estéticos como academias ou clínicas de
cirurgia plástica. Difundidas nas sociedades de consumo
como valores em si, as buscas da celebridade e de um
específico padrão de beleza apresentaram-se como
verdadeiras metas sociais. Décadas de conscientização
feminista foram suplantadas por um novo tipo de
machismo, aliciador das próprias mulheres para sua
disseminação. No Brasil, espécies de mulheres-produto são
lançadas à hiperexposição na mídia, constrangendo o bom
gosto remanescente com sua brutal ignorância, sua
futilidade excessiva e suas táticas grosseiras de escalada
social, baseadas na sedução de homens ricos e poderosos.
Em meio a sociedades exageradamente
massificadas, essas e muitas outras práticas oferecem
oportunidades para indivíduos em busca de identidade
pessoal e de realizações materiais. Essa identidade e essa
realização material buscadas são componentes
indispensáveis ao reconhecimento e à constituição da
auto-estima que transforma anônimos em alguém, se não
para toda a sociedade, ao menos para esses mesmos
grupos que, funcionando como espelho, devolvem-lhes
uma certa imagem de si mesmos. Assim, ao ser limitado à

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dimensão político-participativa da esfera pública, o ideal


democrático tem seu potencial emancipador drasticamente
comprometido. As aspirações por identidades e realizações
materiais merecem a atenção dos programas modernos de
individualização possibilitados pelo direito e pela política.
Mas isso não necessita significar imediatamente uma
juridicização ou mesmo uma politização dos seus sujeitos
demandantes. Logo, recomendações e prognósticos a essa
transpós-modernidade reclamam muitas precauções e
sutilezas. É urgente retornarmos ao indivíduo, mas sem
cairmos novamente na armadilha do individualismo
dispersante ou exclusivamente politizante. Também é
recomendável não menosprezarmos essa dimensão
estético-cultural tão contundente nas sociedades
contemporâneas: não é pela baixa relevância institucional
das manifestações estéticas e expressivas que suas práticas
não determinam muitas outras representações sociais. É da
mesma forma emergencial recuperarmos a dimensão ética
do Estado, mas sem incidirmos no seu autoritarismo ou na
sua radical dicotomização com a sociedade civil.
As prerrogativas filosóficas da modernidade
foram atribuídas à subjetividade individual e abstrata,
formulada enquanto entidade ético-jurídico-política do
Homem-sujeito de direitos-cidadão com aspirações
igualitárias. Mas essa subjetividade abstrata foi sendo
lentamente desligada do mundo real na qual
concretamente acontecia ou, mais precisamente, deveria
acontecer. O ideal dessa subjetividade abstrata, recoberto
pelo formalismo jurídico, tornou-se um obstáculo à efetiva
realização do programa social da modernidade. E esse
mundo real no qual a modernidade deveria acontecer foi
justamente aquele no qual ela muitas vezes nem pôde
ensaiar sua aparição: o mundo das relações sociais e
econômicas alienadas, o mundo do trabalhador explorado

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e reificado, o mundo dessubjetivado das mercadorias e do


abismo antiigualitário estabelecido pela superacumulação
capitalista. Ao longo da modernidade no século XX,
existiram ainda alguns desastrosos afãs por realizações
aceleradas de seu programa. A classe e o clã foram
reivindicados como maneiras de se provocar o advento
dessa subjetividade bloqueada pelas versões abstratas e
formalistas. A aventura do socialismo real, iniciada com a
Revolução de 1917, recentemente culminou nessa
catástrofe material e espiritual a que todos assistiram entre
os anos de 1980-1990. Por outro lado, quando o conceito
de demos tentou ser revigorado diretamente pela noção de
ethnos, tivemos os racismos transmutados em fascismos.
Agora, precavidos contra esses afãs e auxiliados pela visão
de uma transpós-modernidade (o além através da
modernidade), necessitamos assegurar a possibilidade da
experiência social por um certo ethos. Nossa idéia do
mínimo ético pretende incorporar algumas tematizações
das subjetividades modernas, sem, no entanto, reincidir em
abstracionismos melancólicos: a saudade do que teria ido
sem jamais ter propriamente chegado. Ora, o que ainda
não veio não pode mais ser exatamente o mesmo do
momento em que se acredita que devesse ter vindo. Em
razão disso, o mínimo ético não menospreza as expressões
identitárias e estéticas pelas quais o sujeito abstrato da
modernidade contemporânea preenche seu vácuo de
impessoalidade naquelas maneiras de individualização não
imediatamente políticas ou jurídicas. A resolução dos
entraves igualitários surgidos na formação capitalista da
modernidade é aqui pressuposta como condição para a
expressão livre do homem em todas as suas possibilidades,
que, como tais, evidentemente não são mais apenas
aquelas mesmas possibilidades que se poderia antever na
aurora da modernidade.

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O referido sufocamento das energias


emancipatórias da modernidade contou também com uma
concepção de comportamento social subjacente ao
positivismo jurídico: o registro de uma tradição coativa
que necessita ser urgentemente repensada. A ênfase
heteronomista e sancionatória tende a assimilar a regulação
social ao uso efetivo ou potencial da violência.
Administrada sob sociedades traumatizadas com os
excessos históricos de variadas formas de violência, o
efeito perverso dessa cultura repressiva atinge níveis
incomensuráveis. As sociedades latino-americanas
experimentaram uma continuidade laico-patrimonialista
das éticas tradicionais de fundamentação desigualitária,
embora em nada semelhantes àquelas vigentes na Europa
durante a Idade Média. E em tal contexto, essa cultura
jurídica repressiva só pode fazer uso de uma violência
estatal que recaia sobre parcelas dramaticamente excluídas
do acesso às benesses da cooperação comunitária. Nesse
ciclo perverso, o Estado desempenha o avesso de sua
função socializadora. O discurso da coatividade oficial foi
o verniz com o qual se tentou recobrir um
patrimonialismo pré-moderno há muito putrefato. Nas
sociedades tradicionalistas de caráter patrimonial, a cultura
coativa patrocinada em nome do Estado operou uma
extensão do poder privado – branco e masculino –
exercido sobre o núcleo familiar e suas adjacências. Muitos
são os exemplos desse quadro e maiores ainda as
deformações herdadas. Ilustra esse estado de coisas o
servilismo semi-escravo dos peões aos fazendeiros, dos
cassacos de engenho aos seus senhores, dos caboclos aos
patrões seringalistas; no Brasil de sul a norte. Na
Argentina, podem ser lembrados os negritos, descendentes

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de índios, mantidos distantes dos núcleos urbanos de


predominância euroascendente. Podemos também
recordar os camponeses mexicanos rebelados contra seus
senhores, que pretendiam marcá-los com ferro em brasa,
como uma espécie de gado humano, para que não se
evadissem dos domínios de seus latifúndios. Na América
Latina, a disseminação de uma cultura colonial
heteronomista impediu de ser vislumbrada a fragilidade
dos fundamentos ético-conviviais sobre os quais mais
tarde se pretendeu assentar edifícios jurídicos de
arquitetura européia. O avassalamento de civilizações e
culturas autóctones pelas éticas e direitos oficiais dos
dominadores relegou à marginalidade uma série de
hábitos, costumes e práticas normativas que, a despeito de
jamais terem perdido completamente sua eficácia
vinculativa, principiam agora a ter sua dignidade resgatada
para o pluralismo do fenômeno jurídico revisto à luz das
localidades.
O desempenho da violência oficial durante
situações de cisão do pacto cooperativo e de indiferença
ao sofrimento de milhões de pessoas conduz o sistema
jurídico a cumpliciar-se com a histórica exclusão social em
razão da qual a própria legitimidade do direito passa a ser
duramente questionada. É esse o caso da sociedade
brasileira, onde historicamente desenvolveu-se uma
apropriação do poder social do direito por uma elite
empenhada em pô-lo a serviço da manutenção de
privilégios absolutamente infundamentáveis, que atingem
toda a capacitação oportunizante em virtude da qual
crescem as chances de se conquistar alguma igualdade
material precária.
Todavia, reprovações românticas ao monismo
jurídico também constituem um problema crítico da

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herança positivista a ser administrada. Evidentemente, um


espaço democrático de produção normativa deve manter a
ordem jurídica estatal permeável às exigências
emancipatórias gestadas ao largo dos domínios
institucionais. Existem inúmeras dessas práticas
emancipatórias voltadas diretamente ao reconhecimento
de suas reivindicações na forma do direito positivo estatal.
Aliás, em momentos de tempestade desregulamentadora e
flexibilizante, o reforço tático das estruturas eficaciais do
direito positivo estatal representa um porto seguro no qual
podem ser ancoradas muitas garantias ameaçadas. Mas,
por outro lado, é prudente evitar ingenuidades, pois nem
toda reivindicação ou prática nomogênica apresenta
alguma substância libertária simplesmente por exibir em
sua origem alguma normatividade paralela ou plural em
relação ao Estado. Logo, é no espaço público de
negociação da normatividade vigente, com suas
vicissitudes de hegemonia política e subjetividade dos
intérpretes, que muitas dessas mesmas práticas
emancipatórias vão medir suas aptidões efetivas para
generalizar e assegurar propostas e pontos de vista na
modalidade de direito oficial. A maior ou menor
permeabilidade do espaço normativo oficial às
reivindicações oriundas de movimentos emancipatórios
oscila de sociedade para sociedade. E essa permeabilidade
pode ainda ser regulada pelas ações da cidadania política,
que, por seu turno, jamais deixam de supor
preliminarmente certas capacidades participativas
viabilizadas graças à efetivação dos direitos humanos e
fundamentais, hoje especialmente sociais e econômicos.
O discurso dos direitos humanos constitui
atualmente um núcleo ético comum e irredutível do direito
moderno. Longe de ter florescido de algum consenso
racional estabelecido entre os povos do ocidente, essa

19
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

espécie proliferou mesmo através do transplante


sistemático de certas exigêcias por segurança e
previsibilidade surgidas no contexto do modelo de Estado
europeu moderno. O apelo igualitarista e libertante desses
direitos humanos difundiu e orientou sua apropriação por
sociedades de aspiração pós-convencional. Tal discurso,
entretanto, tem hoje permanecido refém da pura
igualdade formal, facciosamente alardeada como um valor
intocável por intelectuais de tradição conservadora.
Enquanto isso, no imaginário social, o potencial
pacificador dessa igualdade formal, que aliás sempre
permaneceu relativamente baixo, foi praticamente
cancelado pelos sucessivos testemunhos de desmentido
fornecidos pela intensa crueldade das situações concretas
absurdamente antiigualitárias. Essa nossa referência ao
antiigualitário pretende apresentar algo ainda mais grave
que o simplesmente desigual. A palavra desigual refere-se a
alguma situação na qual não se conseguiu alcançar uma
certa equalização tida como justa. Antiigualitário, porém, é
o que, além disso, segue provendo essa fonte de
desigualdade, seja para reproduzi-la em outros casos, seja
para agravá-la. Nesse sentido, a sociedade brasileira
adquire feições nitidamente antiigualitárias em variados
níveis de sua estruturação. Abordar seriamente as relações
entre ética e direito com vistas à superação dessa
configuração antiigualitária requer um compromisso
constante com o problema conexo da eficácia, seja sob o
ângulo do conjunto conceitual teoricamente adotado para
essa análise, seja do ponto de vista das realidades concretas
às quais ele pretenda se reportar. Da maneira como o
estamos elaborando, o tema da desigualdade pretende
sempre remeter à detecção dos sintomas de uma
configuração social antiigualitária. Assim, a justiça social
passa a envolver o conjunto daquelas medidas pelas quais

20
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

certas manifestações agudas desses sintomas devem ser


urgentemente atacadas, sem serem jamais esquecidos o
tratamento das causas desse quadro antiigualitário e a sua
prevenção contra futuras recidivas e distorções.
Diante do drama da exclusão social maciça, a
experiência ética reclama do direito a consignação de seu
poder e de sua força para ela própria se tornar possível.
Configurações sociais antiigualitárias inviabilizam a
ocorrência dessa experiência ética entre indivíduos
membros de uma comunidade, quando já não tratam de
por o direito a serviço de seu próprio agravamento.
Configurações sociais antiigualitárias obstaculizam a
própria representação dos indivíduos do que possa ser por
eles compreendido como uma sociedade da qual fazem
parte. Mas não se trata de o direito ir recolher na ética, ou
nas incontáveis concepções de justiça das várias éticas,
algum critério de validade duvidoso para contextos
modernos de relativismo axiológico. A proposta de o
direito possibilitar a experiência ética significa o mesmo
que ele possibilitar a própria sociedade. E isso não pode
significar imediatamente a adesão a nenhuma concepção
particular de justiça, senão antes mesmo a construção de
um espaço social onde essas justiças possam circular.

O patrimônio semântico acumulado ao longo dos séculos


pela palavra justiça muitas vezes produziu, ao invés de
fortuna, ruína. Filósofos e mesmo teólogos arriscaram
ousadas transações com esse patrimônio na bolsa das
idéias e das teorias. Foi assim que essa atividade
especulativa com a semântica da justiça provocou amiúde
um distanciamento dos processos de produção social
envolvidos na sua possibilidade de ocorrência concreta. Na
marcha das idéias, o direito moderno acabou por adquirir
uma racionalidade formal e, logo em seguida, fustigado o

21
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

jusnaturalismo, as preocupações com a justiça perderam


uma parte considerável de seu sentido. Atualmente,
entretanto, muitos pensadores do direito esqueceram ser
essa racionalidade jurídica conquistada na modernidade
sobretudo uma racionalidade formal, e assim tentam,
novamente, reiniciar as transações com o capital semântico
da justiça. A retomada de um certo otimismo, por vezes
inocente e por outras oportunista, com as elucubrações
principiológicas e aistóricas constitui a mais recente versão
dessa que pode ser notada como uma velha e conhecida
prática especulativa. Mas quem sabe agora, atentando para
Weber, enxerguemos com mais nitidez que essa tentativa
de uma racionalidade substancial ou conteudística para o
direito não pode ser buscada em conjecturas abstratas de
filósofos profissionais que pretendem falar para o mundo
inteiro como se ele fosse um só. Nem a filosofia e
tampouco a ciência têm condições de oferecer coerência e
harmonia a conteúdos axiológicos intrinsecamente
conflitantes, ainda mais quando observamos de perto as
sociedades reais freqüentemente negligenciadas no nível da
estratosfera filosófica. O que podemos e até devemos
postular, agora saindo desses limites mais formais, é uma
maior atenção aos processos sociais de produção e
circulação da sociabilidade. Ao invés de especulação com o
capital semântico da justiça, a economia dos saberes sociais
necessita, com toda pressa, de pesados investimentos
teóricos nas configurações materiais e culturais de
produção da experiência convivial ausentes nas sociedades
empíricas de baixo desenvolvimento e sem justiça social.
Essa mudança de enfoque econômico na circulação dos
saberes sociais, a passagem da especulação para os
processos de produção, está na base da análise eficacial
norteadora desse trabalho. Como assinalamos, o que então
entra em pauta agora é a própria ética ir buscar, na força

22
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

do direito, as condições materiais mínimas para sua


possibilitação. Esse mínimo de ética torna-se um mínimo
de sociedade. E isso não representa de maneira alguma um
recuo jusnaturalista simplesmente porque significa apenas
uma aposta decisiva no financiamento da autonomia dos
indivíduos pela qual até mesmo a atividade coativa do
direito pode diminuir sua freqüência e sua intensidade.
Também por isso, em respeito à diversidade moral, essa
busca da ética nas cercanias do direito deve permanecer
cingida àquilo que for cultural e materialmente
indispensável para sua ocorrência. Chamaremos essa busca
de um mínimo ético. Pensadores tão distintos entre si como
Bentham, Pachucanis, Jellinek, Schopenhauer e Hartmann
já se utilizaram em suas reflexões dessa expressão ou de
alguma outra muito similar: mínimo ético, mínimo de ética,
mínimo moral, ética mínima, etc. Nós, entretanto, não
assumimos qualquer vínculo imediato com as propostas
desses ou de outros pensadores, embora relações possam
até existir entre o que eles designaram como mínimo ético e
o que nós mesmos estaremos tratando também sob esta
idêntica nomenclatura. Trata-se então apenas do
compartilhamento de uma expressão significante, sem
maiores compromissos que daí possam ser extraídos para a
relação com seu referente fenomênico na sociedade.

O mínimo ético constitui o alicerce possibilitador


da sustentação da experiência convivial, sendo composto
da mesma substância cooperativa e mutual que integra o
Estado, o direito e a moral. A idéia de um mínimo ético
não pode ser malversada como o oferecimento de mais um
outro núcleo axiológico suprapositivo ou metafísico, bem
ao estilo dos inúmeros jusnaturalismos. O mínimo ético é
representado pelo conjunto de medidas culturais e
materiais a partir das quais se reverte, pela concretização e

23
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

efetivação dos direitos humanos e fundamentais, o quadro


da exclusão social. O mínimo ético almeja então o
(re)ingresso dos excluídos no pacto social e, por
conseqüência, acarreta o próprio incremento de
legitimidade do direito. O mínimo ético anseia por aquele
mínimo de condições necessárias à possibilitação da
experiência social solidária. Expressa, por esse viés, um
direito à oportunidade de moralização: o direito dos
indivíduos a uma identidade digna sendo equalizado pela
contrapartida do atendimento aos deveres de
expectatividade e cooperatividade afiançados pela força do
Estado. Mas, no mundo moderno, além dos seus aspectos
conviviais, a ética também envolve uma obrigação política
de submissão ao Estado como representante da ordem
pública, à qual devemos atender mediante certas
contrapartidas que, entre outras coisas, assegurem a
subsistência dos indivíduos como seres livres para o
exercício da diferença e iguais em dignidade e nas
condições práticas dessa mesma liberdade. Com isso é
assinalado que a obediência não envolve tão-somente
problemas de autoridade e coerção mas também um dado
essencialmente ético, fundado no reconhecimento da
mutualidade nas prestações entre o Estado e a sociedade
negociadas no espaço democrático.
Uma sociedade merece tal designação quando
fornece aos seus membros condições para seu
desenvolvimento moral e possibilidades reais de
atendimento material àquelas expectativas que lhes são
dirigidas na forma de obrigações, deveres, e promessas
empenhadas. De outro lado, esses membros anuem em
cooperar com sua comunidade, abstendo-se de prejudicá-
la e, quando possível, empreendendo ações altruístas para
seu aprimoramento. O equilíbrio havido nessa
mutualidade, estabelecida entre indivíduos e sociedade,

24
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

incrementa a própria legitimidade do pacto social. Isso


tudo assim resulta porque, quando os indivíduos recebem
a chance de ser alguém perante seus parceiros de convívio e
perante suas auto-estimas, essa chance, além de altamente
valorizada, tende a ser traduzida no atendimento a certos
deveres próprios de quem é ou tornou-se alguém: mais
confiabilidade, mais sociabilidade, mais honestidade, mais
solidariedade, mais respeito à coisa pública, mais
responsabilidade, mais vergonha moral, mais decência.
Elaborada dessa maneira, a adesão de um indivíduo à
moralidade não depende de nenhuma condição intrínseca
de subjetividades naturalmente boas ou más. Antes, essa
adesão à mutualidade da moralidade exige certas
contrapartidas materiais: benefícios realmente
vislumbrados por quem ingressa na reciprocidade de um
convívio regulado por normas. Mas como exigir de uma
mãe, com sua prole faminta em um barraco, que não se
empregue na distribuição de cocaína nas favelas do Rio de
Janeiro? Na ausência de contrapartidas sociais mínimas, é
melhor ser incluída como desempregada ou excluída como
uma traficante? Mas é realmente possível formular tal
disjuntiva, justamente quando a opção pela licitude e pela
moralidade já significa riscos à própria subsistência? Pode
alguém, em meio à guerra pela sobrevivência, optar pelo
respeito ao direito quando este significa a própria fome ou
mesmo o fim?
A efetivação do mínimo ético torna-se
imprescindível a uma estratégia de possibilitação do direito
nos Estados de modernidade periférica, especialmente
quando passa a viger o consenso de que o dever de
obediência ao poder instituído há de estar baseado no
reconhecimento, e não na pura força. O reconhecimento
funda-se também na possibilidade de a sociedade sentir a
coisa pública como sua, e não apenas como uma

25
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

hospedaria infestada de parasitas e escroques. Por essa


razão, o debate sobre os direitos humanos acaba fazendo
convergir para um mesmo foco os temas da igualdade
material, da democracia e da participação. Nesse foco
comum, a exigência é por espaços nos quais seja exercida a
diversidade da autonomia coletiva com garantias
preliminares à subsistência. O mínimo ético representa o
atendimento àquelas condições culturais e materiais
essenciais, a partir das quais a própria pluralidade de
concepções axiológicas pode ser manifestada como
expressão maior da liberdade e da participação. A atenção
ao mínimo ético equaliza a mutualidade desde a qual
começa a ser possível uma sociedade. Logo, esse mínimo
ético, ao renunciar à adesão a qualquer constelação axiológica
específica, faz-se condição de possibilidade dessa própria pluralidade.
Para que haja diversidade de valores numa sociedade, há
de existir, antes, a própria sociedade. É das condições de
existência dessa sociedade em um contexto moderno pós-
tradicional que o mínimo ético pretende cuidar. O mínimo
ético é, portanto, um mínimo social que repudia não só a
cisão entre incluídos e excluídos, senão também a
dominação dos incluídos sobre os excluídos em nome do
direito. A fala em nome desse direito, porém, teve
diversas vezes a dicção de uma voz do além: solene,
neutra, intrinsecamente boa. O lugar oculto dessa fala foi a
instância de um saber que se pretendeu apresentar como
ciência: a ciência do direito.
O conhecimento social da maioria esmagadora
dos porta-vozes dessa ciência do direito tornou-se um saber
de impostores. Oscilando entre os improvisos e a
arrogância, opiniões mais ou menos preconceituosas, do
tipo Hebe Camargo, desperdiçam a experiência acumulada
com o amadurecimento de diversos estudos sociais.
Boaventura propõe uma crítica da razão indolente contra

26
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

esse desperdício da experiência. Também a ignorância dos


juristas sobre as formas não-jurídicas de regulação social
contribui para uma hipertrofia coativa do direito. As
interdições epistemológicas, verificadas no âmbito da
ciência jurídica, não são perceptíveis apenas na dogmática
dos vários ramos do direito material. Tais interdições
epistemológicas também se encontram fortemente
instituídas na tecnologia do direito processual disponível.
Essas sérias limitações dos instrumentos oferecidos para o
asseguramento jurisdicional dos direitos humanos e
fundamentais, especialmente sociais e econômicos, têm
convocado regularmente a criatividade dos pensadores do
processo a apresentar inovações que se prestem à
realização da justiça social na perspectiva do mínimo ético.
Felizmente, diversos juristas da área processual têm
corajosamente atendido a esse chamado urgente para a
construção de um direito integrativo para toda a
sociedade, e não apenas para aqueles segmentos que
historicamente sempre tiveram acesso à justiça. Porém,
esses heróicos processualistas ainda são poucos para
mudar um senso comum teórico sedimentado por décadas
de conservadorismo e tecnicismo neutral.
Qualquer ciência já impõe uma certa pré-
constituição de seu objeto pelas perguntas que consegue
ou prefere fazer. Com a ciência jurídica positivista não
haveria de ser muito diferente. Uma das tarefas da crítica
parece ser então a de procurar a reformulação dessas
perguntas para as quais a ciência jurídica positivista
pretendeu oferecer respostas unívocas. Alargando-se assim
a percepção do direito pelo filtro cognitivo de seus
operadores, poderá ser inserida, nesse ponto de vista pré-
compreensivo, a consciência da dimensão ética
fenomenicamente subjacente a qualquer experiência
jurídica em sociedade. O paradigma cognitivo da moderna

27
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

ciência do direito orbitou em torno das múltiplas questões


técnicas derivadas de sua teoria da validade.
Sistematicamente, a chamada teoria geral do direito afastou
para longe de si aqueles problemas ligados à justiça e à
eficácia. A justiça foi rebaixada a um estatuto relativista e,
às vezes, irracionalista, enquanto a eficácia dispersou-se
por vários tópicos da rubrica sobre a legitimidade na hoje
chamada ciência política. Pesquisada com certa atenção,
entretanto, a temática da eficácia exibe um longo percurso
na história do pensamento ocidental. Já em Platão
observamos preocupações com o que poderíamos designar
de táticas eficaciais para um ordenamento jurídico. Em As
Leis (662b), mesmo sabendo tratar-se de uma doutrina
duvidosa, Platão propugna a divulgação da idéia de que
somente o homem justo é feliz, com o intuito de alcançar a
máxima obediência voluntária dos cidadãos às normas da
Polis. Todavia, apesar dessa longa trajetória, não é difícil
vislumbrar o que aconteceu com a problemática da eficácia
na modernidade: ela sofreu um eclipsamento pelo
problema da justiça, responsável por monopolizar o
interesse de filósofos e juristas por muitos séculos. E, com
o advento do positivismo jurídico, eficácia e justiça foram
meticulosamente isolados daquele outro fenômeno, desde
então considerado jurídico por excelência e excludência: o
da validade.

Mais dramático ainda foi o encobrimento das


abordagens hermenêuticas ínsitas à construção social do
fenômeno jurídico-judicial. A temática hermenêutica
experimentou um longo exílio no mundo encantado dos
métodos científicos de interpretação. Esse obscurecimento,
porém, não ocorreu de modo gratuito. A afirmação do
programa positivista de uma ciência do direito moderna
necessitava arredar aquelas dimensões do fenômeno

28
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

jurídico que eventualmente representassem incertezas e


variabilidades das decisões, de vez que essas eram
características frontalmente opostas tanto à segurança jurídica
como ao ideal de uma ciência rigorosa. Ora, se há uma
dimensão do fenômeno jurídico que exalta sua incerteza e
sua variabilidade, essa dimensão é a hermenêutica. A
libertação da hermenêutica desse mundo encantado dos
métodos só tornou-se possível graças ao avanço das
pesquisas filosóficas sobre a linguagem e à apresentação de
novas abordagens da interpretação jurídica, de inspiração
menos cientificista. Desde a década de 1930, com os
progressos da filosofia hermenêutica, a reflexão sobre o
fenômeno interpretativo, que não é exclusivo do direito,
avançou em muitas direções. Especificamente no campo
jurídico, a hermenêutica vem deixando de ser uma
hermenêutica técnica, um debate apenas sobre a semântica
de textos normativos. A hermenêutica passou a tematizar a
estruturação global do fenômeno jurídico: da criação
normativa pela instância legislativa, passando pelas
dogmáticas específicas e pela aplicação concretizadora, até
a análise do comportamento dos destinatários e intérpretes
desses comandos. Sem desconhecer as conquistas da teoria
da validade, essa nova hermenêutica apresentou-se como
um saber disposto a enriquecer a percepção do fenômeno
jurídico em seus diversos setores de estruturação.
A maior contribuição da hermenêutica
contemporânea foi a de evidenciar que o conteúdo
concreto do direito resulta, em último caso, de uma
definição interpretativa. A dialética da criação jurídica
revelou-se como um âmbito cuja racionalidade prática não
era propriamente científica. A retomada da matriz
argumentativa e retórica somou-se a esse entendimento.
Paulatinamente as várias visões sobre o fenômeno jurídico
trataram de apresentar suas problematizações

29
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

hermenêuticas. Com o direito alternativo não poderia ser


diferente. O direito alternativo, seguramente o movimento
de juristas progressistas mais discutido na América Latina,
reclama agora também seu amadurecimento hermenêutico.
Portador do gérmen reivindicativo de uma modernidade
incumprida, o direito alternativo discute agora sua
refundação sobre bases teóricas mais consistentes. A
primeira delas remonta a um aspecto conteudístico e tenta
oferecer reflexões em torno da seguinte questão: como
construir alternativas às questões da justiça e da eficácia que não
reincidam no jusnaturalismo e tampouco sejam novamente reféns dos
relativismos? A segunda, por sua vez, remonta a um aspecto
hermenêutico, oferecendo reflexões sobre as seguintes
questões: quais alternativas existem ao discurso pseudocientífico dos
métodos de interpretação? De que maneira é possível uma percepção
hermenêutica para a efetivação do mínimo ético e para o
desenvolvimento de uma responsabilização conseqüencial dos
intérpretes-aplicadores? Analisados desde a perspectiva das
teorias de fundamentação, esses dois campos temáticos, a
ética e a hermenêutica, constituem a articulação central
deste livro, que oferece teses para uma refundação do
pensamento jurídico crítico. Este livro, no entanto, até por
seu caráter ensaístico, não pretende oferecer nenhuma
teoria integral do direito alternativo. Tendo nascido como
um movimento de juristas, o direito alternativo não é uma
escola doutrinária. Mas isso tampouco significa sua
aversão pela reflexão teórica. O presente exame de
fundamentação ética e hermenêutica, além de municiar
uma prática alternativa, sugere novas maneiras para a
compreensão do fenômeno jurídico. Assim, as idéias aqui
expostas não se destinam apenas aos integrantes ou
simpatizantes do Movimento de Direito Alternativo, senão
também a todos os interessados em exaltar no direito seu
compromisso com a eliminação da exclusão social.

30
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

O primeiro capítulo inicia-se por um


diagnóstico do Movimento de Direito Alternativo,
contextualizando sua abordagem no panorama do
positivismo jurídico contemporâneo. Logo após, os
conceitos de eficácia e validade são deslindados a fim de se
compreender a funcionalidade do direito no processo de
exclusão social.
No segundo capítulo, as relações entre direito
e ética são analisadas com vistas à fundamentação do que
estamos denominando como mínimo ético. São aí
aprofundadas as matrizes analíticas e psicossociais do
chamado mínimo ético, tomando-se em consideração as
pesquisas de Ernst Tugendhat, da teoria dos sentimentos
morais e da psicanálise. Em seguida, a proposta do mínimo
ético é contextualizada num espaço simultaneamente
filosófico, sociológico e antropológico. Uma abordagem
da teoria das capacidades, da teoria da igualdade e de
algumas idéias da economia política torna-se indispensável.
Também são sondados o fenômeno da corrupção e a
premência do mínimo ético como critério de legitimidade
para o sistema jurídico brasileiro. Ao final, é proposta uma
pedagogia dos direitos humanos, destinada a dar conta da
formação ética dos operadores do direito.
O terceiro capítulo apresenta o antigo
problema da justiça de um ângulo nada usual. A justiça é
agora compreendida como um sentimento moral situado no
contexto de uma sociologia jurídica da observância
normativa. Após a explicitação dessa perspectiva, a análise
do sentimento de justiça é deslocada para um âmbito mais
psicológico, procedendo-se a uma incursão às pesquisas de
Piaget a respeito da formação do sentimento de igualdade.
Depois, são estabelecidas algumas relações entre o plano
eficacial do direito e o aspecto motivacional do sentimento

31
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

de justiça. Por último, os problemas até então


apresentados são articulados com o capítulo seguinte, que
é sobre hermenêutica. Para tanto, são sugeridas as
categorias do cidadão-jurista e do jurista-cidadão, demarcando
os limites e alcances das ações técnicas e políticas nas
esferas corporativas e democráticas mais amplas.
O quarto capítulo dedica-se à problemática
hermenêutica. Reflexões sobre a aplicação efetivante das
idéias substanciais do mínimo ético são propostas. De
início, certas noções da hermenêutica filosófica têm sua
pertinência examinada para a esfera do direito. É suscitada
a problemática das pré-compreensões dos intérpretes,
oferecendo-se uma abordagem sobre o papel da
fundamentação dessas pré-compreensões na
discricionariedade aplicativa. Segue-se a isso uma reflexão
hermenêutica sobre o direito alternativo, procurando-se
responder à seguinte questão: afinal, o que é alternativo no
direito alternativo? Logo após, são analisadas as distinções
entre a pré-compreensão subjetiva do intérprete e a pré-compreensão
jurídica, no contexto da aplicação normativa. Essa reflexão
geral é reunida sob o nome de hermenêutica genealógica. Os
fenômenos da incidência e da juridicização são
criticamente apreciados em perspectiva hermenêutica.
Recolhendo inspiração na metódica estruturante de
Friedrich Müller, em seguida é abordada a interpretação
conforme a Constituição no contexto de uma
hermenêutica preocupada em discutir a fundamentação
das pré-compreensões dos intérpretes. Ao final, são
retomadas as categorias do jurista-cidadão e do cidadão-
jurista a fim de se conciliar a responsabilidade pela
concretização do mínimo ético com o compromisso
hermenêutico de clarificação das pré-compreensões
elevadas à condição de posições fundamentáveis.

32
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

1. Alternativas do Direito na Modernidade


1.1. Um diagnóstico autocrítico do MDA

Comemoramos, no jubileu de 2001, o décimo


aniversário do Movimento de Direito Alternativo (MDA).
Mas não se trata de apenas festejarmos, com ares
saudosistas e talvez melancólicos, os bons tempos dos
grandes congressos. Nem tampouco de atestarmos o
necrológio do MDA, tantas vezes lavrado
precipitadamente por exultantes legistas dos setores
conservadores. No atual contexto, comemorar não
significa apenas festejar, mas, especialmente, rememorar:
trazer à memória algo de nosso passado a fim de
recuperarmos, no exercício dessa retrospecção, possíveis
direções prospectivas. Eis aí o melhor sentido para esse
Congresso que assinala a primeira década do MDA.1
Inegavelmente, ao longo de mais de uma
década, houve substancial contribuição do MDA para o
desenvolvimento do pensamento crítico no direito. Essa
importância pode ser aquilatada objetivamente: grandes
congressos, edições avidamente recebidas, diversas
dissertações e teses de excelente nível acadêmico, atração
imediata do interesse dos discentes, diálogo inusitado entre
profissionais de distintas áreas jurídicas, antes
ensimesmados em suas corporações, e, desde então,
aglutinados na luta pela efetivação do Estado de Direito
Democrático. Também há de se considerar a simpatia
angariada dos movimentos sociais, não apenas para o
MDA, mas para as próprias instituições jurídicas. A
atuação do MDA contribuiu para que muitos desses
movimentos sociais abandonassem o ranço das imagens
negativas e estereotipadas das instituições jurídicas, vistas

33
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

como um lugar onde se praticava um eterno jogo de cartas


marcadas. Todavia, muitas outras oportunidades de
conquistas e avanços foram desperdiçadas pelo MDA,
especialmente em dois níveis: um de ordem conceitual e
outro de uma conseqüente ordem prática. A letargia atual,
malgrado algum voluntarismo de muitos, deve ser
atribuída à inércia e à desarticulação nesses dois níveis,
principalmente no teórico.
A crise do MDA tem muitas causas. Avaliá-las
todas seria aqui impróprio. Mesmo assim, é proveitoso
salientarmos algumas: certa despotencialização histórica
em face da desvalorização da normatividade estatal
engendrada pelo contexto neoliberal; a cegueira da ação
corporativa reiterada por muitos profissionais do direito; o
mútuo distanciamento entre a produção acadêmica e o
mundo das práticas jurídicas extra-universitárias; o
desgaste da energia utópica da militância tradicional; a
desarticulação orgânica com os segmentos progressistas
dos movimentos populares, tradicionais e novos; e,
principalmente, a ausência de discussão sistemática sobre
questões teóricas. É inadmissível para um movimento que
congrega intelectuais descurar a reflexão sobre as formas
de produção do direito e o alcance das lutas empreendidas
na sua esfera prática. A ausência dessas reflexões conduziu
a um praticismo bem intencionado, muitas vezes altamente
heterogêneo em linhas de ação e razões de fundamentação.
Nesse quadro, a própria identidade do MDA restou
parcialmente comprometida. Sob o mesmo signo
reuniram-se intervenções cuja unidade poderia tornar-se
duvidosa. A recuperação da influência do MDA no direito
positivo, como vetor do processo de configuração
institucional, deve ser agora assentada no
compartilhamento de algumas concepções teóricas e
históricas sobre o significado e a urgência da realização da

34
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

modernidade jurídica e social no Brasil. Nossa situação,


aliás, não é das mais animadoras nesse terreno de
implantação e/ou manutenção da modernidade: a evasão
de divisas pelo pagamento de uma dívida e(x)terna ilegal; a
falência das economias nacionais, no plano produtivo e nas
oportunidades de circulação; a combinação entre a sedução
publicitária das camadas médias pelo consumo noveau rich e
sua paradoxal ameaça de ingresso, pelo desemprego, na
cadeia de exclusão social; a insensatez da regulação das
economias por variáveis incontroláveis (o capital
estrangeiro); a des-moralização material e simbólica do
Estado, a situação vegetativa da democracia induzida ao
coma pela deserção social dos integrados e pela
impossibilidade de participação dos excluídos; a violência
social, pública e familiar, com seus efeitos perversos na
solidariedade e na capacidade geral de socialização dos
indivíduos; a recidiva de doenças endêmicas e epidêmicas
sobre os alijados do sistema de saúde; a crescente
concentração de renda, riquezas, terras, cultura, direitos,
capacidades e oportunidades; a atuação de uma
criminalidade muito mais organizada que as agências de
combate aos delitos; a cegueira dos políticos e juristas ao
insistirem na regulação social ultrapunitiva; a desatenção às
políticas públicas de financiamento da autonomia ética e
cultural dos indivíduos; a fome e a subnutrição, nas suas
versões crônica e aguda; a devastação ambiental; a
displicência com o acesso à educação de qualidade,
especialmente das crianças; a desatenção às desigualdades
regionais provocadas pelas políticas de concentração de
recursos de um federalismo fictício; o neocoronelismo dos
políticos parasitas; e uma crise geral na auto-estima do
povo brasileiro.
Entretanto, nem tudo são espinhos: o Brasil, à
diferença de outros países periféricos, não é dividido por

35
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

conflitos religiosos. No Brasil, embora certamente haja


racismo, este não atinge níveis de ódio social. Somos
unidos por uma mesma língua em toda nossa extensão
territorial. Nosso patrimônio natural e estético é um dos
mais abundantes do planeta. Desfrutamos de uma cultura
pacifista e não sofremos com nenhum movimento
separatista digno de consideração. Ademais, o episódio do
impeachment de Collor consolidou perante o mundo nossa
capacidade de preservação da arquitetura institucional por
sobre as mazelas da conjuntura política.
Sem aderir a um pessimismo fatalista, a
unidade do MDA é também caracterizada pela comunhão
não-dogmática de uma consciência acerca do papel ativo
do direito no solucionamento desses percalços de nossa
modernidade. Diante disso, a auto-análise crítica da
trajetória e dos acúmulos do MDA torna-se um imperativo
que antecede a potencialização de sua intervenção. Sem
uma análise crítica radical, sua pulverização tenderá a se
ampliar, restringindo e até cancelando seu alcance para a
próxima década.
Não postulamos, contudo, o lançamento das
bases de um movimento completamente novo.
Pretendemos mudar a direção do caminho a percorrer sem
descuidar do quanto já foi até aqui palmilhado. Cumpre,
assim, revisitarmos algumas experiências já acumuladas
pelo MDA para, a partir delas, apresentarmos a edificação
de algo mais vigoroso. Propomos, então, a refundação do
Movimento de Direito Alternativo. E estamos com o
presente ensaio oferecendo algumas idéias para avivar esse
debate. Desse modo, as teses a seguir expostas
essencialmente constituem um conjunto de reflexões para
os próximos congressos do MDA.

36
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

O espírito de refundação ora proposto conduz


para além de uma mera retrospectiva dos acertos e
desacertos praticados ao longo dessa década que se
completou. A mera ruminação do passado não desvela as
possibilidades do futuro. Esse próximo congresso não
deve, pois, estar com os olhos voltados para trás,
preocupado apenas com as autocríticas que por si só nada
removem do passado nem promovem no futuro, já que os
erros poderão ser sempre outros. Esse congresso deve, isto
sim, apontar para uma nova articulação, em termos mais
aglutinadores e consistentes, de um dos movimentos de
juristas críticos e democráticos de maior importância e
repercussão no panorama nacional e latino-americano.
Para refundar o MDA, urge fundamentá-lo
melhor, sob o risco de, se não o fizermos, afundarmos no
oceano das boas intenções ideológicas ou no mar do
voluntarismo inorgânico das práticas de membros
atomizados. O presente ensaio não pretende, contudo,
suprir essa fundamentação cuja carência ora se aponta.
Não poderíamos pretender nesse curto espaço exauri-la.
Trata-se, antes de qualquer coisa, de suscitar o debate
sobre essa fundamentação. Para tanto, estamos
apresentando algumas reflexões para o compartilhamento
com todos os interessados na construção de um direito
comprometido com a transparência do processo decisório,
com a integração dos excluídos e com a justiça social. Esse
debate deve ainda ser balizado pelo rechaço ao
dogmatismo, pela pluralidade e transdisciplinaridade de
pontos de vista teóricos e políticos, e, sobretudo, pela
unidade estratégica na implementação de algumas tarefas
que estão ao alcance de nossa ação impulsionar,
especialmente como juristas-cidadãos, mas também como
cidadãos-juristas, no contexto do Estado de Direito
Democrático. Falamos da garantia concreta e do acesso

37
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

efetivo à dignidade materialmente realizável para milhões


de pessoas.
A capacidade do MDA de intervir de maneira
efetivamente democrática na redefinição histórica da
instância jurídica, e da própria sociedade, depende, assim,
do revigoramento de suas bases teóricas. Trata-se
especialmente de nosso empenho como juristas-cidadãos.
Contudo, esse empenho não olvida aquela outra luta, mais
exterior à esfera jurídica, precisamente a da disputa política
ampla, que atinge a todos e a nós enquanto cidadãos-
juristas. Da luta do cidadão-jurista pela realização da
modernidade jurídica e social, porém, não nos compete
aqui tratar pormenorizadamente. Até porque essa luta
envolve o arranjo de um novo bloco histórico no
horizonte dos posicionamentos político-partidários, com
os quais não podemos imediatamente nos comprometer.
O jurista-cidadão e o cidadão-jurista podem
ser um mesmo homem histórico, mas ao MDA não
compete exigir a confluência total dos posicionamentos de
ambos. Ademais, à assunção radical da pluralidade como
diretriz organizativa repugna qualquer monolitismo
ideológico ou restrição de agremiação partidária. O MDA,
agora situado desde uma perspectiva interna ao direito,
privilegia a luta do jurista-cidadão no meio jurídico. Nesse
meio, a guerra de posições interna ao direito é parte de
uma concepção de embate processual pela afirmação
concreta da igualdade material e das instituições modernas
vitais para a democracia e para a sobrevivência da própria
sociedade.
Almejamos então provocar uma discussão
dirigida a toda comunidade jurídica e compartir reflexões
com intelectuais dispostos a apresentar teses referentes às
duas grandes áreas temáticas cujas carências notamos

38
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

como mais evidentes: (1) a teoria de fundamentação do


substrato ético do direito; e (2) a fundamentação de uma
nova modalidade cognitiva para o conhecimento e prática
jurídicos, priorizando o aspecto hermenêutico, cuja
expansão vem, pouco a pouco, logrando espaços
acadêmicos e institucionais entre os juristas de todo o
mundo. Essas duas áreas temáticas, a ética e a
hermenêutica, vêm perpassadas por dois eixos políticos
mais amplos, perceptíveis na esfera de ação do cidadão-
jurista. O primeiro desses eixos exige um compromisso
com a ética dos direitos humanos, enquanto o segundo
conclama por alternativas para uma outra hegemonia no
processo histórico de construção do desenvolvimento
social do Brasil.
Cumpre então procedermos à análise de cada
uma dessas áreas temáticas, cotejando-as com a prática
empreendida pelo MDA e com as possíveis linhas de
compreensão para o saneamento dessas carências teóricas
que tanto repercutem na prática do direito. A partir dessas
áreas temáticas (ética e hermenêutica), sugerimos também
uma seqüência de discussões mais específicas, em
congressos regionalizados a serem organizados a partir de
2002.

1.2. Compreensão e ultrapassagem do positivismo

O dado que assinala o ingresso na


modernidade jurídica contemporânea é o progressivo
abandono do paradigma jusnaturalista, especialmente nas
suas versões teológicas e racionalistas. A determinação do
que é o direito deixa de pertencer à transcendência, muito

39
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

bem representada no mundo terreno por seus epígonos,


para estar à disposição da própria criação humana. O mala
en se é gradualmente substituído pelo mala prohibita. O
crime paulatinamente conquista sua distância do pecado e
aproxima-se de visões cientificistas. Mundaniza-se o
direito. Com esse movimento de mundanização muitos
problemas são superados, enquanto outros tantos são
também criados. O processo de superação dos
jusnaturalismos expõe a produção do direito a diversas
outras vicissitudes da vida social: as incertezas da política,
os interesses econômicos, a diversidade de moralidades e
religiões circulantes, as influências das ciências naturais. A
certeza sobre o critério pelo qual se definia a própria
juridicidade das normas a aplicar é reclamada para a
estabilização das expectativas sociais. A busca da chamada
segurança jurídica torna-se um imperativo e uma ideologia. E
o positivismo jurídico foi a doutrina que melhor expressou
uma tentativa de atendimento a essa ânsia na aurora do
Liberalismo.
Entretanto, para o pensamento jurídico do
século XX, o positivismo é marcado por ambigüidades
das quais frutificaram muitas confusões. Ocorre assim que
o positivismo hoje considerado significa, simultaneamente,
algo louvável e insuficiente, bom e ruim. Louvável no
positivismo é o golpe de morte desferido na
fundamentação jusnaturalista do direito. Insuficiente,
porém, tornou-se a sua fundamentação do direito
enquanto pura validade para o acautelamento do convívio
regulado por normas nas sociedades contemporâneas.
Assim, o positivismo merece o apreço devido a doutrina
que conseguiu virar uma importante página na história do
direito. E é importante reafirmar esse apreço porque, no
livro aberto da história, todas as páginas podem ser
desviradas, e também reescritas, rasgadas, embaralhadas e

40
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

até apagadas. Todavia, esse apreço não significa nenhuma


cegueira para a crítica que se faz hoje necessária. Em uma
consideração histórica, a crítica necessária significa um tipo
de exame que se vale das conquistas do positivismo para
avançar no presente para além dele. Entretanto, inúmeras
críticas dirigidas ao positivismo, inclusive de matriz
alternativa, não tiveram esse condão de incorporar suas
conquistas. Muitas dessas críticas, especialmente as mais
carentes de perspectiva histórica, preferiram adotar a
clivagem ideológica da sua satanização. E essa satanização
do positivismo prejudica a crítica que pretende superá-lo
agregando seus acúmulos ao longo da modernidade.
Todavia, o positivismo não foi uma resposta
imediata aos clamores da modernidade jurídica, sequer foi
a primeira tentativa. Dos jusnaturalismos teológicos ao
positivismo jurídico, muitas construções de índole
racionalista se intercalaram na renitente busca de soluções
para o dilema da segurança jurídica através da postulação
de conceitos de justiça. Nesse curso, Deus foi sendo
substituído por várias elaborações da Razão, das quais
eram extraídas tantas outras formas de justiça. Isso se
passou assim até que uma doutrina resolvesse buscar uma
solução para o critério de juridicidade fora desse âmbito da
justiça. As exigências por certeza quanto a um critério de
definição da juridicidade que pudesse mesmo incrementar
a segurança jurídica receberam uma resposta diferente por
parte da teoria da validade proposta pelo positivismo. Essa
teoria da validade oferecia então uma maneira de se
identificar o que é o direito a aplicar sem recorrer a
critérios de justiça marcados por um infinito cardápio
metafísico. Contudo, como veremos adiante, muitas outras
dificuldades surgiram com essa resposta.

41
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Diversos juristas críticos, imbuídos de uma


visão hiperideológica da justiça, não compreenderam
profundamente o significado da questão da validade no
contexto da modernidade jurídica. Vale dizer: muitos ainda
buscavam critérios de juridicidade fora do ordenamento
jurídico, acabando por deslegitimá-lo antes mesmo de
compreender a forma específica de construção de sua
legitimidade interna. Compreendida historicamente a
modernidade como o ciclo de gradual autonomização da
esfera jurídica, uma das maiores faltas de que se ressentem
os juristas críticos é a de uma fundamentação teórica mais
articulada nos campos da filosofia jurídica, da
epistemologia jurídica geral e das próprias dogmáticas
doutrinárias específicas (civil, penal, tributária, trabalhista,
constitucional, etc.). Constata-se tal precariedade, neste
último nível, na ausência de verdadeiras dogmáticas
alternativas, capazes de enfrentar a tarefa, inegavelmente
lenta e custosa, de (re)significação do direito positivo
vigente; uma tarefa de recomposição dos conteúdos do
direito moderno na conjuntura adversa da barbárie
neoliberal. Infelizmente, o MDA apresentou apenas
algumas brilhantes abordagens críticas, lamentavelmente
não compartilhadas nem incorporadas pela comunidade
jurídica. A desatenção para com esse instrumental teórico-
analítico de fundamentação dificultou a compreensão
profunda do significado da modernidade especificamente
jurídica, traduzida na questão da autonomia do direito
diante dos outros domínios sociais e das várias concepções
de justiça interagentes num quadro geral de respeito ao
pluralismo axiológico. Provocou-se, assim, a
supervalorização de discursos de ênfase denunciativa, mais
próprios à esfera da ação diretamente política. Podemos
então dizer, em tom autocrítico, que o MDA não soube
dar o devido valor estratégico ao tema da autonomia

42
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

específica do sistema jurídico. Tampouco soube o MDA


constranger os setores reacionários e conservadores,
agentes de práticas e interesses nitidamente pré-modernos.
Sarcasmo, ironia, proximidades apenas ideológicas e pouca
consistência teórica constituíram entraves para o melhor
desenvolvimento quantitativo e qualitativo do MDA.
Entretanto, essa ênfase política também teve lá sua
importância, especialmente para o desempenho público do
MDA perante a apatia política e moral dos cidadãos-
juristas. Também não se pode negar que, no plano
jurisdicional, efetivamente foram produzidas algumas
decisões heróicas, inteligentes e acertadas. Porém, fruto de
um certo talento subjetivo que poderíamos denominar
com Gramsci de bons exemplos de voluntarismo ético,
atualizadores do melhor Juiz Magneaud. O poder de
ressonância positiva dessas decisões foi em grande parte
asfixiado por, no mínimo, dois fatores co-implicados. O
primeiro poderíamos denominar barreira da identidade
externa: a assunção pública da distinção como alternativo
implicava imediatamente que as decisões desse operador
passassem ao ataque preconceituoso e desmoralizador por
parte da crítica tradicional (positivista-conservadora,
sistêmica-alienígena e pós-moderna deslumbrada). O
segundo e mais importante desses fatores de sufocamento
da repercussão do desempenho do MDA chamaremos de
barreira da identidade interna. Trata-se dessa mesma
fragilidade na fundamentação teórica examinada, revelando
definições intuitivas de difícil sustentação (justiça para os
pobres, justiça dos explorados, atuação contra o direito e
Estado burgueses por obra dos intelectuais da classe
trabalhadora ou revolucionária). A essa segunda barreira, a
da identidade interna, podemos agregar o seguinte
diagnóstico: a baixa reflexão de fundamentos nas
intervenções do MDA provocou a sua dispersão em

43
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

práticas isoladas, embora muitas vezes de caráter crescente,


ocasionando uma diminuição tendencial de sua capacidade
aglutinativa. Restaram então aqueles vínculos construídos
por uma solidariedade fraterna e pelo compartilhamento
intestino de uma insatisfação social que não encontrava
ressonância na esfera política.
Muitos membros do MDA sofreram
estigmatizações espúrias e perseguições. Foi assim que
diversos operadores tiveram de manter clandestina sua
vinculação para não comprometerem o exercício de seus
misteres, fugindo ao cerco político-institucional que a
direita do direito costuma deitar àqueles que lhe
contestam. Mas será que não teríamos contribuído, em
alguma medida, para o reforço dessa
marginalização/despotencialização?
Em vez de arrostar as posições adversas no
terreno da dogmática, muitos membros do MDA optaram
pela reiteração do discurso-denúncia. Tal opção representou,
em verdade, uma falta de opções mais consistentes. Subjaz
a essa postura a idéia instrumental de que o direito está
sempre a serviço de um poder, ignorando-se que as práticas
jurídicas já são, elas mesmas, o próprio poder. Assim, em
vez de ser proposta uma alterdogmática, deslocando-se as
disputas para um terreno hermenêutico-argumentativo e
fundamentador, escolheu-se muitas vezes uma pregação
contra(a)dogmática. Isso representou um equívoco a ser agora
reparado. Outrossim, o tom inflamado dos discursos
produzidos no lugar das teorias que jamais vieram à luz,
deploravelmente, também atingiu autores paradigmáticos
para a fundamentação do direito na Modernidade. O
ataque superficial a Kelsen e sua doutrina da validade das
normas e do ordenamento jurídico é o exemplo mais
nítido. Cumpre recuperarmos criticamente alguns

44
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

elementos dessa teoria para o prosseguimento de nossa


análise.
Como apontamos, a teoria positivista da
validade foi uma resposta inovadora à indagação sobre o
critério de juridicidade. Mas, afinal de contas, o que se
pretende dizer com o emprego da palavra validade? Os
comentadores apontam que a problemática da validade
mereceu de Kelsen diversos tratamentos distintos, que,
apesar das variações, apresentam-se sempre como
complementares.2 (1) Na Teoria Pura do Direito, nos é
apresentada a clássica formulação de que a validade é o
modo particular de existência de uma norma jurídica.
Quando mantém isso, Kelsen refere-se à forma
ontologicamente específica de haver das normas de direito,
que desde sempre existiriam como dever ser, e não como
meros eventos fáticos e constatáveis da ordem do ser.
Afirmando a validade como a forma específica de
existência das normas jurídicas, Kelsen também tentou
alcançar outro objetivo: demarcar uma peculiaridade
discriminante do mundo jurídico tal como ele o vê, como
objeto, pelo filtro cognitivo-purificante de sua ciência do
direito. Ele tentava assim evitar o recurso a um conceito
imediatamente empírico ou mesmo psicologista de
validade, pois isso poderia devolvê-lo novamente ao
terreno da eficácia, próprio à sociologia jurídica. (2) Por
outro lado, Kelsen também afirma que a validade deflui de
uma norma jurídica ter sido produzida segundo um
sistema de derivações autorizativas, específico do direito,
chamado por ele de sistema dinâmico. Por tal sistema
dinâmico, uma norma, ao ser estatuída de acordo com
outra que lhe regulou a produção, encontra nesta o seu
fundamento de validade. Atento ao cometimento da falácia
naturalista, Kelsen só admite a derivação lógica de um dever
ser de outro dever ser. (3) Disso tudo também é extraída uma

45
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

outra importante caracterização: para uma norma poder


ser considerada como válida ela não pode existir
isoladamente, tendo sempre de pertencer, como integrante,
a um ordenamento jurídico cuja validade, por sua vez, vem
condicionada (mas atenção: não fundamentada
logicamente) por um mínimo de eficácia global já
conquistada. (4) E, por fim, é aduzido um outro
significado à validade de uma norma: trata-se da validade
como vigência, no sentido vinculativo de obrigatoriedade e
de observância. A vigência é aí percebida como a efetiva
obediência dos destinatários aos comandos editados, sejam
eles pessoas ou instituições, bem como sua efetiva
aplicação pelos órgãos jurisdicionais. São convenientes
ainda alguns esclarecimentos sobre o aludido sistema
dinâmico.
Para Kelsen,3 a validade de uma norma em um
dado sistema pode ser explicada segundo dois princípios: o
princípio estático (mais próprio à moral) e o princípio
dinâmico (mais próprio ao direito). Pelo princípio
dinâmico uma norma é válida quando tiver sido
formalmente produzida conforme a autorização prevista
em uma norma superior. Uma sentença judicial seria válida
segundo o sistema dinâmico por ter sido produzida por
um juiz competente para prolatá-la de acordo com uma
Lei Geral da Magistratura que, por seu turno, fora
produzida por uma delegação da Constituição a um poder
legislativo ordinário autorizado a repartir competências
jurisdicionais. Em sentido diverso mas não oposto, pelo
princípio estático uma norma é válida quando seu
conteúdo tiver sido logicamente derivado de uma outra
norma superior ou mais geral. Assim, do conteúdo do
mandamento bíblico não desejarás a mulher do próximo
derivam as normas particulares de não cortejar a esposa de
outrem, não flertar ou se abster de enviar flores.

46
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Tomando-se em consideração esses dados, podemos agora


sugerir a seguinte conceituação sintética: válida é a norma
aplicável para a produção de outras normas por um órgão
estatal, jurisdicional ou não, e que existe obrigatoriamente
para seus destinatários, pertencendo a um ordenamento
jurídico globalmente eficaz, tendo sido produzida
conforme o princípio dinâmico, em acordo com outra
norma que, sendo-lhe hierarquicamente superior, será o
seu fundamento de validade.
Podemos hoje dizer retrospectivamente: essa
concepção de validade não oferece mais respostas
satisfatórias para a fundamentação do direito, embora, na
sua gênese, tenha surgido como o uma importante
elaboração alternativa às incontáveis concepções de justiça,
especialmente aquelas de viés metafísico-religioso ou
racionalista. No ápice do Estado Liberal, Kelsen chamou a
si a tarefa de construir uma teoria cujo mote era o da
segurança jurídica garantida pela certeza sobre como e quem
determina o direito a aplicar. Como qualquer teoria, o
positivismo kelseniano tinha seus próprios problemas a
resolver. E ao resolvê-los, tratou de criar outros tantos. As
muitas dificuldades criadas com a tentativa de fundamentar
a validade da Constituição por uma norma fundamental
gnosiológica (Grundnorm) são mais do que conhecidas. Mas
muito embora contenha diversos problemas impossíveis
de serem sondados neste breve espaço, a Teoria Pura do
Direito surgiu mesmo como um saber anfíbio, com vida
tanto no terreno de uma epistemologia jurídica como no
meio eficacial de uma teoria do Estado, ampliando a
ambigüidade na subsunção histórica e conceitual entre
direito positivo moderno e positivismo jurídico. Assim, a
expressão positivismo jurídico não deve ser novamente
malversada. Positivismo jurídico aqui significará que se
aceitam apenas como direito aquelas normas produzidas

47
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

pelo Estado passíveis de serem adequadamente


reconduzidas a uma mesma origem jurídico-positiva: a
Constituição. O positivismo jurídico é constituído por uma
doutrina das fontes jurídicas do direito, dispondo sobre os
órgãos do Estado constitucionalmente autorizados a
produzir normas cuja validade é aferida pelo próprio
Estado. A doutrina do direito positivo trata assim de
excluir outras fontes duvidosas como critério de
juridicidade: a Razão, Deus, uma raça, algum credo, a
Natureza, uma classe social, as justiças, as ideologias, a
vontade arbitrária do soberano. Dizer direito positivo é
então dizer o direito predominantemente estatal que nasce
e ganha, logo após, relativa autonomia diante de uma cena
política hegemonicamente configurada.
Kelsen também nos mostrou como a validade
das normas em um ordenamento jurídico depende da sua
prévia eficácia global, que pode ser lograda pelas sutilezas
da hegemonia que se conquista (eficácia enquanto
legitimidade), ou mesmo pela força do poder que se impõe
vencendo as resistências (eficácia enquanto obediência
coativamente imposta). Ao longo de muitos anos, o efeito
geral da teoria kelseniana foi altamente realista ao
apresentar explicitamente o fenômeno jurídico em sua
íntima articulação com o poder e suas mais diversas
configurações axiológicas, exorcizando as metafísicas
jusnaturalistas, teológicas ou racionalistas. Mas
infelizmente o pensamento de Kelsen foi posto em bloco
sob suspeita pelos arautos das reprovações ideológicas. E
acabou indigitado como inimigo por uma série de
interpretações pretensamente críticas que nada ou muito
pouco construíram sobre as ruínas do que pensavam estar
destruindo. Desconstruções do jurídico beirando o leviano
não passavam de descontextualizações, semiologias do
amor, do inconsciente, da verdade, da justiça e de outras

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

tantas metafísicas que contribuíram para tornar Kelsen um


Dreyfuss da filosofia e da teoria do direito. Salvo escassas
exceções, desperdiçou-se a preciosa oportunidade de
assimilação crítica de um dos maiores avanços do direito
moderno: o da teoria da validade e da constitucionalidade.
Oscar Correas foi um desses poucos que lobrigou a
importância da apropriação da obra de Kelsen durante os
congressos dos juristas de formação crítica. Raros foram
os que pretenderam fazer a crítica construtiva de Kelsen. A
grande maioria, mesmo sem compreender as conquistas
representadas por sua teoria, tratou de considerá-lo o pai
do monismo jurídico. Alguns jusnaturalistas mais oblíquos
e oportunistas até sugeriram ter a idéia de pureza kelseniana
participação nas atrocidades fascistas da busca de uma
pureza eugênica. Kelsen, todavia, jamais pretendeu sequer
purificar o próprio fenômeno jurídico, inextrincavelmente
complexo em sua essência. Tratou antes de purificar a
ciência jurídica, ao definir com clareza seu objeto
prioritário como sendo o direito positivo. Mas quantos
vieram a público agradecer a Kelsen por essa purificação
metodológica da ciência jurídica? Quantos, dos ditos
críticos, chegaram a perceber que Kelsen foi o responsável
pelo fim da intromissão das ciências naturais, o que, dentre
outras coisas, livrou-nos de vexames tão aterradores como
o lombrosianismo? Quantos conseguem agora perceber,
transposto o umbral do século XXI, a importância do
debate sobre a especificidade social do conhecimento
jurídico voltando à ordem do dia? Ainda mais agora,
quando o apelo sedutor da biologia molecular e da
neurofisiologia nos assombra com o espectro de um
neolombrosianismo de fundo genético.
Entretanto, não estamos aqui propondo um
retorno à epistemologia kelseniana. O saber sobre o direito
demarca as grandes regiões de possibilidade do fenômeno

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

jurídico. A relação entre conhecimento do direito e a


situação concreta dos ordenamentos jurídicos não pode ser
pesquisada somente pela suposição de vínculos imediatos
entre a epistemologia jurídica da modernidade e a
preponderância de conteúdos normativos de pouco
compromisso com a realização da justiça social. Quem
pretende creditar o estado atual do direito apenas ao saber
jurídico esquece seu substrato ético-político e sua
submissão aos rumos incertos da história. Não há
conhecimento jurídico que possa se resguardar
completamente contra os assaltos à Razão por outras razões
cujos resultados ostentam as proporções de suas forças. A
história apresenta diversos vínculos entre positivismo e
jusnaturalismo e a vigência de conteúdos normativos
totalitários. Quem pretende culpar apenas o direito por
abrir o flanco da sociedade ao totalitarismo deveria antes
buscar as responsabilidades da política e das suas diversas
hegemonias ideológicas conjunturais, coaguladas nas
pautas do direito positivo legislado. Respostas pela
realização das possibilidades de determinada concepção de
justiça social não podem ser buscadas exclusivamente na
epistemologia jurídica. Aqueles que se empenham
exageradamente em culpar o positivismo ou o
jusnaturalismo pelas desgraças das sociedades geralmente
carecem de abordagens políticas e históricas mais acuradas.
Não obstante isso, a idéia de neutralidade
postulada pelo positivismo produziu formas vazias que
foram diversas vezes preenchidas pelos piores conteúdos.
Conteúdos, aliás, impossíveis de serem universalizados em
razão de suas características dissolventes da própria
experiência convivial. A neutralidade possibilitou o
agenciamento de conteúdos que atacavam diretamente o
mínimo ético. Porém, a defesa tática da ausência de valores
na formação do edifício jurídico fora mesmo estratégica

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

para o positivismo lograr a ultrapassagem do


jusnaturalismo: os conteúdos normativos foram deixados
ao sabor das vicissitudes da política e de suas correntes.
Nesse caso, originário da política era tudo aquilo que
significava a supremacia do mundo laico contra os
obscurantismos metafísicos. E nessa época de extensão
das luzes liberais sobre o mundo jurídico, jamais se
imaginou até onde pudesse descer o homem em sua vilania
e crueldade revestida como direito. Não tardou e o
pensamento jurídico conformado pelo positivismo
formalista sofreu uma dura linha de crítica após superada a
ameaça totalitária da Segunda Guerra Mundial. Percebeu-
se não bastarem os anseios por uma sociedade
juridicamente regulada do ponto de vista formal. Ao
direito faltou uma substância invariante, pois tanto o
fascismo como o nazismo haviam operado como ordens
formalmente jurídicas. E o que era ainda pior: a eficácia
que lhes desencadeava o ciclo de validade muitas vezes não
fora conquistada com base na pura força, mas a partir de
mecanismos políticos de conquista da legitimidade. Assim,
logo o constitucionalismo posterior passou a professar um
compromisso com a democracia, a pluralidade, a dignidade
da pessoa humana e a tolerância como integrantes
conteudístico-substanciais dos próprios procedimentos
operacionais das ordens jurídicas. Determinados
conteúdos essenciais ao convívio foram sacralizados
enquanto formas. Desde então, tem-se apresentado o
problema da concretização efetivante e das garantias
dessas formas substancializadas.
Queremos então assinalar a teoria da validade
como uma aquisição estratégica para a constituição da
modernidade jurídica. Uma aquisição relevante, embora
incapaz de, sozinha, dar conta desse encargo histórico.
Algumas elaborações teóricas mais atuais destacam a

51
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

importância de Kelsen, tentando corrigir suas faltas. Seria


absurdo pretender coligi-las neste espaço. Basta
recordarmos a título de exemplo que o próprio
desenvolvimento da teoria garantista de Ferrajoli assimilou
muitos avanços lançados pela Teoria Pura do Direito,
agregando-os e desenvolvendo-os. A polêmica tese do
garantismo, a proposição de um conceito simbiótico de
vigência, não seria possível não fosse a clareza conceitual
propiciada por Kelsen na apreciação das nuanças
implicadas nas relações entre os temas da justiça, validade
e eficácia.
O positivismo jurídico, entretanto, não
resolveu definitivamente o problema da relação entre
direito e moral certamente. Não podemos mais definir o
que é ou deixa de ser jurídico segundo o que
compreendemos por justo ou injusto. E não podemos
mais fazer isso especialmente quando as concepções de
justiça tornam-se tão variadas. A modernidade, vista da
perspectiva da sociedade, é marcada pela crise das
fundamentações tradicionais da ética e pelo estilhaçamento
da unidade moral em um pluralismo axiológico sem
precedentes. Weber denominou esse estado de coisas de
politeísmo dos valores. Kelsen, por seu turno, vislumbrou a
relação entre essa pluralidade de éticas e o direito positivo
na forma de um relativismo axiológico impossível de ser
dirimido.
A postura de relativismo axiológico do
moderno positivismo jurídico foi uma casamata
estrategicamente erguida no coração da teoria do direito
com o fito de debelar as éticas particulares que insistiam
em propugnar padrões axiológicos específicos (concepções
de justiça) como critérios de validade. Nessa época, a
guerra era declarada contra as incertezas oferecidas pelo

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

jusnaturalismo. Contudo, o tratamento dispensado ao


revestimento do poder pela forma jurídica não deixou
margens para a apreciação do Estado como um ente
essencialmente ético, isto é, como uma parcela especial da
própria sociedade. Em sentido diverso, filósofos de grande
relevância para a cultura jurídica e política ocidental
trataram de conceber o Estado justamente a partir dessa
sua essência ética. Foi assim com as idéias de eticidade, em
Hegel; com a noção de vontade geral, proposta por
Rousseau; e com a concepção de política como prática do
bem cooperativo numa Pólis regida por leis, em
Aristóteles. A diferença crucial, entretanto, é que, ao
contrário do positivismo jurídico, nem Hegel nem
Rousseau, tampouco Aristóteles, tornaram-se referências
específicas do direito positivo contemporâneo. A luta
positivista contra a justiça, ou melhor, contra as justiças
vigorantes como possíveis critérios de validade obstruiu a
apreensão das dimensões correlatas do fenômeno ético
presente no convívio de uma comunidade organizada sob
a forma de um Estado. O ideal de uma ciência do direito
neutra reforçou essa obstrução.
De um lado a descrição do fenômeno jurídico
proposta pelo positivismo é bastante fiel à autoprodução
do direito sucedida na Modernidade. Todavia, de outro
lado, esse mesmo positivismo embaraça-se com crenças
cientificistas ao pretender reivindicar essa descrição desde
instâncias epistemológicas que punham em circulação
valores travestidos de antivalores: neutralidade, rigor,
metodologização, apoliticidade, caráter supra-ideológico. A
invocação de uma esfera epistemológico-transcendental
pretendeu fazer do direito uma ciência com estatuto
cognitivo próprio. Mas essa invocação simultaneamente
desfez os laços que possibilitavam pensar o fenômeno
jurídico desde sua complexidade ética, política,

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

comportamental, econômica e antropológica. A tentativa


positivista de vedação do direito em relação à ética e à
política fracassou com o emprego de um tampão
epistemológico de dimensões incompatíveis com o
tamanho da embocadura do sistema jurídico. A norma
fundamental pensada pelo positivismo kelseniano
apresentou-se como um vedante gnosiológico de baixa
resistência. As construções de sua filosofia transcendental
não conseguiram conter a pressão dos fatos e dos valores.
Sempre a eficácia vazava, contaminando o sistema jurídico
em suas pretensões de ostentar um conceito de validade
puro, inerte às substâncias extrajurídicas, especialmente
éticas e políticas. A América Latina experimentou o sabor
amargo desses fenômenos que o positivismo
paradoxalmente deixou transparecer: substituições ou
modificações abruptas das constituições vigentes eram
tornadas válidas mediante a conquista da eficácia global
pela pura força. Em situações drásticas de abalo
institucional, o conceito positivista de validade sempre
acabava curvando-se às determinações eficaciais. O que
não significa dizer que essa validade não tenha instaurado
um âmbito especificamente jurídico, relativamente
autônomo ante a política e a ética, para situações de
regularidade institucional. Evidentemente, democratas
como Kelsen não defenderiam posturas golpistas, só as
descreveriam... Mas se o positivismo não deu destino fatal ao
problema das relações entre validade e eficácia, o mesmo
não se pode dizer em relação ao problema da justiça. Os
freqüentes apelos às justiças, como instâncias legitimadoras
de uma validade rudimentar e pré-positiva, foram
fulminados pelo argumento relativista e pela recusa
ostensiva às metafísicas dos vários jusnaturalismos.
Sobraram mesmo as relações entre validade e eficácia, que,
se não foram bem equacionadas, ao menos puderam

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

atingir um índice de latência altamente problemático.


Recuperamos no presente trabalho a elaboração dessas
relações. E ainda sugerimos uma maneira alternativa de
compreensão da problemática ética, recorrendo a uma
idéia de justiça social que não se dilui no panorama do
relativismo axiológico nem tampouco se esvanece na
bruma espessa das metafísicas salvíficas ou bem
intencionadas. Apresentamos a ética como um problema
eficacial e convocamos o direito a cerrar fileiras na defesa
dessas condições fundamentais de viabilização da estrutura
social sobre a qual ele mesmo se edifica.
As pesquisas de Norbert Elias indicam como a
disjuntiva homem-natureza, consagrada na clássica
problemática sujeito-objeto, vem sendo progressivamente
substituída pela disjuntiva homem-sociedade.4 Mesmo sem
todas as respostas que talvez o rigor filosófico exija para o
delicado assunto da relação interior-exterior, a ciência
indiscutivelmente conseguiu impor seu senhorio à
natureza, frutificando-o em incontáveis resultados, muitos
até devastadores. Dominada a natureza, o problema central
do homem tornou a ser novamente a sociedade. O exterior
ao homem-indivíduo deixou de ser apenas a natureza
opaca para ser também e cada vez mais sua própria
sociedade. Agora porém as sociedades não mais suportam
ser cindidas por epistemologias originalmente pensadas
para resolver questões das relações homem-natureza e
sujeito-objeto. A epistemologia do positivismo jurídico
constituiu um caso paradigmático a ilustrar essa situação.
Comprometido com os projetos cognitivista e
contratualista fusionados no caldo do liberalismo, o
positivismo jurídico conseguiu municiar o Estado do
século XX com uma técnica pretensamente neutra. Por
uma série de seccionamentos epistemológicos, o
fenômeno jurídico foi reduzido drasticamente à temática

55
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

da validade e da aplicação, virando-se de costas para sua


própria eficácia. Hoje, porém, a complexidade da inserção
dos indivíduos nas sociedades exige uma outra
apresentação desse fenômeno jurídico, mais sofisticada. As
respostas teóricas granjeadas no terreno das ciências
sociais cujas epistemologias mimetizaram postulados
cognitivos das ciências naturais exaurem seu último fôlego.
O esgotamento das matrizes cientificistas do pensamento
jurídico repõe a temática da aptidão desse pensamento
para enxergar a si mesmo na contextura onde se
entrecruzam outras formas não imediatamente jurídicas de
relações sociais. Sem correr o risco de uma diluição em
outros domínios ou de perda de sua especificidade
conquistada a duras penas, o direito necessita com
urgência voltar-se para o fenômeno da sua (in)eficácia. É
por essa razão que o tema da eficácia assume relevância
central nesse trabalho. Entretanto, não falamos mais
daquela eficácia míope, reduzida às vicissitudes de um
poder judiciário constituído de superjuízes na visão de
alguns. Falamos de uma eficácia complexa, na qual os
problemas da aplicação normativa sejam reunidos aos
problemas da observância e da motivação, de maneira a
tornar-se viável meditarmos os fundamentos éticos e
hermenêuticos dos aspectos comportamentais supostos na
base de toda experiência convivial. Por isso mesmo, a
disjuntiva homem-sociedade necessita agora ser
teoricamente mediada por uma fenomenologia do acontecimento
da experiência social. Um acontecimento no qual o direito
seguramente desempenha uma função possibilitadora não
só para o florescimento da sociedade como também dos
indivíduos.
Logo, é o conhecimento sociológico e
filosófico dessa fenomenologia do acontecimento da
experiência social que necessita ser retomado e devolvido

56
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

aos operadores jurídicos na forma de saberes. Todavia,


esses saberes não têm sido produzidos e muito menos
disponibilizados aos juristas. Estará então a ética, substrato
comportamental espontâneo da sociedade, condenada a
ser devorada pelo minotauro do relativismo no labirinto da
modernidade? Vejamos como essas relações entre ética e
direito podem ser atualmente exploradas.

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

2. Mínimo Ético e Eficácia Normativa


2.1. Mínimo ético: uma escavação sob os relativismos axiológicos

Quando, em sentido bastante prosaico,


cidadãos clamam por ética na política ou ética na
administração pública, estão em realidade protestando
contra a corrupção. Ética, nesse emprego infelizmente
hoje tão corriqueiro, expressa a indignação e a censura à
desonestidade e à ausência de probidade. Todavia, essa
forma de emprego da palavra ética não consegue dar conta
dos motivos pelos quais, afinal de contas, nos indignamos
e podemos censurar alguém. Como sentimentos morais,
indignação e censura acionam certas capacidades para o
reconhecimento da transgressividade de algumas condutas.
Devemos então tentar compreender como são
desenvolvidas tais capacidades no curso do processo de
socialização de um indivíduo. Chamaremos essas
capacidades situadas à base da subjetivação e dos
sentimentos morais de capacidades conviviais. É do
asseguramento de seus desenvolvimentos que dispõe o
mínimo ético. As capacidades conviviais merecem essa
denominação porque ensejam ações e representações
sociais necessárias ao convívio mediado por normas.
Seguindo algumas diretrizes das pesquisas em ética
analítica de Peter Frederick Strawson e Ernst Tugendhat,
analisaremos como a operatividade normativa da ética
supõe a idéia de aprovação de ações por uma comunidade,
possível de ser elaborada por palavras como bem/bom,
justo, devido, correto e seus contrários mal/mau, ruim,
injusto, indevido, incorreto.
Empregadas em uma acepção moral,
doravante examinada, essas palavras expressam o que é

58
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

considerado como devido, como desejável, como


cooperativo, como elogiável, enfim, como algo
considerado bom para a sociedade. A ética, nesse sentido, é
subjetiva enquanto trata de certos sentimentos, mas
rapidamente torna-se objetiva se nos dermos conta de que
esses sentimentos são comuns, compartilhados e
circulantes em uma rede social de mutualidades. Entre os
juristas, é necessário reconhecer como altamente
insatisfatórias as tentativas de se responder à questão o que
é a ética? O caminho árido da análise do fenômeno moral é
geralmente substituído pelo atalho das definições,
invariavelmente incompletas e unilaterais. Muitos não
resistem à tentação de buscar fazer um fenômeno moral
caber nos limites estreitos de uma predicação. Ademais,
apreensões sobre a fenomenologia da ocorrência ética
rapidamente são desviadas para pregações de catálogos
axiológicos mais ou menos elaborados. Essa falta de
cuidado na aproximação da questão ética seguramente
opõe enormes empecilhos para se pensar a estruturação
comportamental do fenômeno jurídico a partir do
fenômeno moral. Mas tampouco os filósofos de profissão
estão a salvo dessa imputação: vivendo no mundo etéreo
das transcendências e transcendentalidades, são raros
aqueles que ousam descer ao quotidiano para esmiuçar a
ética como ela acontece na concretude das relações sociais.
Há ainda uma terceira fonte de confusões na forma de
proposição da problemática ética: os falsos filólogos e
etimólogos de final de semana querem instaurar diferenças
entre a ética e a moral por definições que recorrem ao
argumento dos usos pregressos. Nesse âmbito, as
pesquisas sobre a ética acabam sendo buscas pela resposta
certa para perguntas erradas.
Etica e moral são, atualmente, termos
intercambiáveis e podem ser utilizados indistintamente,

59
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

como é feito ao longo deste trabalho. Ambos se referem


ao fenômeno moral (ou ético). Algumas dessas tentativas
artificiosas de regresso etimológico almejam, a partir da
análise dos étimos de ethos e mores, estabelecer, para os dias
de hoje, os conceitos de ética e moral. Como salienta
Tugendhat, pelo modo como essas palavras foram
apropriadas pelo discurso filosófico e leigo, a pergunta
sobre “em que consiste em si a diferença entre ética e moral seria
absurda. Ela soa como se a gente quisesse perguntar sobre a diferença
entre veados e cervos.”5
Historicamente, porém, foi Cícero quem
consagrou o emprego filosófico da palavra moral em nossa
tradição latina. Cícero afirmava que a ciência “que se refere
aos costumes, que os gregos chamam nós [romanos]
deveríamos chamar a esta parte da filosofia de uma filosofia dos
costumes [mos], mas convém enriquecer a língua latina e chamá-la
moral”6. Nesse ponto reside o nó górdio da confusão
instaurada. Acontece que Aristóteles definiu suas
especulações a respeito da ética no sentido de um estudo
teórico sobre as propriedades boas e más do caráter
humano: as virtudes e os vícios. E, como lembra
Tugendhat, leitor qualificado do grego filosófico
interpretado na melhor tradição analítica, existe um erro de
tradução aí, pois na ética de Aristóteles “não apenas ocorre o
termo éthos (com „e‟ longo), que significa propriedade do caráter, mas
também o termo éthos (com „e‟ curto), que significa costume, e é para
este segundo termo que serve a tradução latina”. 7
De um modo preliminar, podemos estipular
que a forma como algumas condutas são, na prática do
convívio social, consideradas aprováveis ou reprováveis
chama-se ética. Além de um dado essencialmente
consuetudinário e cultural, essa ética também congrega
aspectos psicológicos ou comportamentais. A

60
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

normatividade ética exige a atenção às condutas aprováveis


e às reprováveis segundo as idéias de norma, dever e
proibição. No seu funcionamento quotidiano, essa ética é
então povoada de normas e valores. Mas em si mesma
considerada, a abordagem ética que estamos apresentando
não é um valor no sentido axiológico, pois dispõe antes
sobre a própria possibilidade de ocorrência de uma
sociedade na qual existam valores e normas eficazes.
Nossa apresentação da ética não pretende
apelar diretamente àquela dimensão da moralidade que
praticamente tornou-se sinônimo de ética atualmente, qual
seja, a dimensão dos valores ou a axiologia. Especialmente
no campo jurídico, a compreensão da ética pela dimensão
dos valores conduz facilmente à construção de
monumentos axiológicos cujo gosto é sempre deveras
discutível. A apresentação da ética que privilegia sua
dimensão axiológica pode conduzir muito facilmente a
duas situações insatisfatórias. A primeira delas é a rejeição
em bloco das construções axiológicas mediante a recusa de
aceitação de seus fundamentos. Esse procedimento é
bastante corriqueiro no caso das engenharias
principiológicas empreendidas pelos juristas. Edifícios
axiológicos inteiros, com todos os seus andares,
corredores, galerias e finos adornos podem vir abaixo
mediante um rotundo não, mais ou menos justificado,
dirigido aos seus alicerces de postulados. A segunda
situação insatisfatória, decorrente da apresentação
axiológica da ética, seguramente derivada da primeira, é a
postura do relativismo, que reduz a ética como fenômeno
social a um maneirismo de preferências e preciosismos
abstratos. A compreensão relativista da ética ainda dá
margem a uma série de atitudes oportunistas que se valem
da confusão sobre a correção de certas ações criada pela
nuvem de conflitos entre valores submetidos a infinitas

61
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

polêmicas interpretativas, guiadas pelos mais diversos


interesses. Nas mãos de hábeis advogados sabemos como
a manipulação de princípios abstratos pode ser posta a
serviço da defesa das ações mais perversas e
flagrantemente violadoras dos interesses comunitários.
Diversas teorias consensualistas lançaram-se na busca de
saídas a esse relativismo axiológico, responsável muitas
vezes por reduzir o debate ético-fundamentativo a um
concurso de beleza entre sistemas. Outras teorias trataram
de apresentar sugestões hierarquizantes a respeito da
ordem de precedência e prioridade na derivação dos
princípios, almejando oferecer taxionomias definitivas.
Ambas as saídas apontadas fracassaram completamente ou
lograram resultados muito tímidos. A via consensualista
abstrata e a via taxionômica mais fizeram recriar o
relativismo numa escala n+1 de complexidade.
Retornavam sempre as discussões sobre os sistemas para
se descobrir quais valores, e por que, estariam incluídos
nesses núcleos consensuais, ou quais, e novamente por
que, seriam os valores dourados a encabeçar uma escala de
derivações. Desligados de problemas concretos, esses
debates rapidamente conduziam a delírios teóricos.
Contudo, essas considerações não devem
causar a impressão de um desmerecimento da relevância
social dos valores. Não desconsideramos em absoluto os
valores e nem suas expressões jurídicas mais freqüentes,
os pricípios. A referência a valores e princípios se faz
presente na determinação das políticas públicas, na
configuração das subjetividades, inclusive dos intérpretes, e
na justificação argumentativa de muitas decisões. Valores
sempre indicam a valiosidade de condutas, bens ou ações
consideradas boas e, portanto, socialmente aprováveis.
Entretanto, o discurso dos valores não explica como um
sujeito social pode chegar a elaborar essa valiosidade.

62
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Desde um ponto de vista exclusivamente axiológico, não


se dispõe de teorias que expliquem satisfatoriamente a
eclosão dessa valiosidade dos valores. As axiologias em
regra estão sempre mais preocupadas com as vicissitudes
internas de seus sistemas específicos. E a tentativa de uma
axiologia geral acaba invariavelmente reincidindo na
apresentação de mais um sistema global de valores, pelo
qual as outras formulações sistemáticas são
compartimentalizadas em verdadeiras hierarquias
criptoaxiologizantes. Assim, pela abordagem axiológica, a
explicação da valiosidade dos valores, a sua bondade, a sua
significatividade enquanto coisas abstratamente aprováveis,
são em regra tomadas como auto-evidentes. Expresso de
maneira mais sintética, o discurso dos valores não permite
compreendermos como a ética funciona ou acontece na
operatividade concreta do uso desses valores na circulação
do sentido ético propulsionado pelos atores sociais.
Por outro lado, o surgimento do discurso dos
valores indica um amadurecimento na própria história das
tentativas de fundamentação da ética. A busca axiológica,
enquanto expedição a um terreno onde o relativismo tem
cidadania, representa um passo à frente nas buscas por
fundamentos absolutos, comumente transformados em
deontologias metafísicas. Da fundamentação pela crença
no absoluto à fundamentação pela racionalidade dos
valores, muito se conquistou. Essa passagem assinala o
trânsito de uma ética tradicional para uma ética pós-
tradicional: a passagem de uma ética onde os fundamentos
absolutos justificavam uma imutabilidade de privilégios e
prerrogativas hoje sepultados pela moral igualitária de
extração iluminista. Da fundamentação da prática dessa
igualdade, e de sua consumação real, é que trata o nosso
mínimo ético.

63
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Pretendemos então com a palavra ética indicar


um certo conjunto de fenômenos psicossociais pelos quais
esses valores podem chegar a valer, isto é, podem chegar a
ser compreendidos como coisas boas. Nosso interesse
dirige-se agora às condições de possibilidade da axiologia.
Queremos tratar daquelas estruturas psicossociais sem as
quais não é possível a organização da experiência convivial
mediada por normas. Essa apresentação da ética recorrerá
a uma caracterização do fenômeno moral desde uma
análise das condições indispensáveis ao desenvolvimento
das capacidades conviviais nos e entre os indivíduos. Por isso
mesmo, ao invés de sobrevoarmos os valores na busca da
localização de alguma zona de consenso, pretendemos
escavar por baixo do relativismo axiológico. Chegaremos
assim ao núcleo eficacial da ética, desde o qual se dá a
inscrição dessas capacidades conviviais na estrutura de ação e
intersubjetivação dos membros de uma comunidade
orientada ao convívio social. Auxílios por categorias da
sociologia e da psicologia serão muito bem-vindos na
análise desse tema tradicionalmente apresentado como de
interesse exclusivo da filosofia.
Recuperando as linhas gerais da argumentação
proposta por Tugendhat8 em suas preciosas investigações
de ética analítica, realizaremos uma exposição sucinta de
um conjunto de categorias que os filósofos
convencionaram chamar como tríade de Strawson:
indignação, censura e vergonha. Investigaremos assim a
forma prática de elaboração do juízo aprovativo ou
reprovativo que fornece conteúdos às normas morais e
também jurídicas. Pretendemos, ao cabo, alcançar algum
esclarecimento sobre como certas ações podem ser
socialmente consideradas boas ou más e, neste último caso,
merecedoras de sanção. Para a clareza dessa argumentação,

64
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

é conveniente elucidarmos uma certa seqüência de


conceitos.
Desde o nascimento até a vida adulta, o
desenvolvimento de um indivíduo em meio a uma
comunidade envolve seu progressivo acesso bem sucedido
ao desempenho de algumas habilidades, cujas práticas são
avaliadas segundo escalas que vão do pior ao melhor.
Acompanhando a classificação proposta por von Wright e
retomada por Tugendhat em seus estudos, uma ordenação
dessas habilidades pode incluir as chamadas (1) habilidades
corporais (andar, falar, correr), (2) as habilidades
instrumentais ou de produção (construir, cozinhar), (3) as
habilidades técnicas (cantar, pintar), até chegarmos, na vida
adulta, ao desempenho dos diversos (4) papéis sociais
(advogado, médico, professor, mãe, cozinheiro
profissional).
O desempenho público dessas diversas
habilidades e papéis oferecidos à expectação social produz
vários retornos de avaliações que são computados na
formação da auto-estima de um indivíduo. A auto-estima é
assim sedimentada pela certeza de sermos reconhecidos
como bons naquelas habilidades que elegemos como parte
fundamental de nossa identidade. Envolve, portanto,
expectação e avaliação de desempenhos. Mas, antes disso,
a possibilidade de auto-estima envolve uma decisão
preliminar: a de sabermos como pretendemos ser
compreendidos na e perante a sociedade. Também por
esse motivo, a auto-estima será sempre referida à definição
de qual é, também para nós mesmos, nossa identidade social
em função daquelas habilidades especiais pelas quais
queremos ser reconhecidos e aceitamos ser exigidos. Ter
auto-estima então significará ser reconhecido como bom no
desempenho de um determinado papel social previamente

65
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

escolhido. Entretanto, esse bom ainda é mais técnico do


que propriamente ético. O fracasso perante espectadores
competentes no desempenho dessas habilidades e papéis,
pelos quais definimos nossa identidade, produz o
sentimento de vergonha.
Logo, quem se apresenta como engenheiro
deve ser bom na arte da construção, tal como quem se diz
motorista profissional deve ser hábil no domínio de um
automóvel. Mas quem quer ser reconhecido como
engenheiro e só comete erros de cálculo, ou quem quer ser
reconhecido como motorista e só provoca acidentes de
trânsito, sente vergonha quando tais fracassos sucedem-se
diante de pessoas competentes em tais ofícios.
Provisoriamente, podemos então definir vergonha como o
sentimento de mal-estar interior causado pela perda da
auto-estima diante de espectadores competentes, que
podem criticar nosso desempenho fracassado naquelas
habilidades almejadas como constituintes de nossa
identidade. A ocorrência dessa vergonha provoca então
um abalo de nossa certeza sobre nós mesmos enquanto
criaturas sociais. E embora ela se produza na
intersubjetividade social, pode ainda nos atingir
individualmente em nossa identidade circulante na
socialização.
Ao lado dessas habilidades especiais, e de
nosso esforço para sermos bons nos seus desempenhos,
existe também o que Tugendhat chama de uma capacidade
central para a socialização: uma habilidade geral para sermos
bons como entes cooperadores segundo os padrões de uma
dada sociedade. Nessa capacidade central para a
socialização não somos bons ou criticáveis como motoristas,
engenheiros, padeiros, médicos ou advogados. Somos
bons ou censuráveis apenas como parceiros de cooperação.

66
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Isto é, somos bons enquanto membros de uma


comunidade que colaboram com suas condições de
funcionamento solidário. São justamente as normas éticas
que tratam de fixar os conteúdos e exigir a observância a
esses padrões gerais de cooperatividade do ser bom perante
uma comunidade, pois nos “juízos em que dissemos que pessoas
e ações são boas e más, julgamos as pessoas não relativamente a
capacidades especiais [para nós: habilidades e papéis], mas com
respeito a esta habilidade central [para nós: capacidade geral
para cooperação].”9 Eis aí o recorte especificamente ético
das aprovações e reprovações presentes em nossos juízos
morais: referem-se ao desempenho de uma capacidade
cooperativa geral exigida na mutualidade da expectação
social e veiculada na forma de normas. Contudo, assim
como o desempenho das habilidades especiais encerra uma
vergonha nos casos de fracasso, essa capacidade central para a
socialização também enseja um sentimento desse tipo.
Todavia, quando se suceder um fracasso relativo a essa
capacidade geral para a cooperação, essa vergonha será
denominada de vergonha moral.
A vergonha moral se distingue da simples
vergonha pelo fracasso nas habilidades especiais porque
diante dela nossos espectadores experimentam ainda um
sentimento de indignação e exteriorizam sua censura.
Indignação e censura dos parceiros de convívio são,
respectivamente, o sentimento moral e a manifestação
pública que acompanham nossas reprovações aos fracassos
no desempenho dessa capacidade geral para a cooperação.
A vergonha moral assim se distingue do que podemos
chamar de vergonha simples (ou vergonha do ridículo),
cujos fracassos nas habilidades especiais podem ser
acompanhados de sentimentos e manifestações como
escárnio, indiferença, crítica ou comiseração. Vejamos

67
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

como essas distinções podem ser mais bem estabelecidas


através de alguns exemplos práticos.
Quando alguém fracassa em sua habilidade
especial como padeiro, permitindo que vá para as prateleiras
do comércio uma fornada de pães crus, isso não chega a
configurar nenhum episódio moral. Nosso juízo sobre a
conduta desse padeiro permanece restrito ao desempenho
técnico daquela habilidade especial pela qual ele mesmo
autorizou-nos a avaliá-lo como mais ou menos bom. É esse
o bem típico das chamadas excelências técnicas ou
habilidades especiais. Assim, o bom do bom padeiro não é
de caráter imediatamente ético. Não chegamos a nos
indignar moralmente com ele, e nem seria razoável
crermos que só por vender pães crus ele tenha atentado
contra as estruturas da cooperação social. Esse fracasso no
desempenho de uma habilidade especial ou excelência técnica
é alvo de uma simples crítica, não de censura, isso se
concordarmos que as críticas se dirigem a ações enquanto
a censura, a pessoas. Entretanto, um mau padeiro, ruim
porque desastradamente vendeu pães crus, seguramente é
muito diferente de um mau funcionário público, que se
corrompe e/ou se apropria de recursos do erário.
Enquanto os pães do padeiro serão alvo de nossa crítica
(deveriam ter sido mais assados), o funcionário será alvo
de nossa veemente censura (ele não deveria roubar o
dinheiro de todos nós) e de nossa indignação (ele não é mais
digno, isto é, não mais merece aquela consideração e
respeito devidos a qualquer um que se submeta as regras
de cooperação, iguais para todos os membros de uma
comunidade). Alcançamos com esses esclarecimentos mais
um dado a ser agregado ao nosso conceito de reprovação
ética: o de que sua ocorrência pode ser detectada quando
estivermos diante dos fenômenos correlativos da censura e
da indignação dos espectadores e da vergonha moral

68
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

perceptível nos indícios de mal-estar experimentado por


aquele indivíduo transgressor moralmente avaliado.
Abordaremos a seguir o modo como essa vergonha moral
pode ser melhor compreendida a partir da repercussão da
indignação e da censura dos espectadores sociais na
estrutura psíquica do próprio transgressor. Para tanto, nos
serviremos das noções de sentimento de culpa e sanção interna.
Restou então por ser elucidada a ocorrência
dessa vergonha moral agora com relação à auto-estima
daquele indivíduo que pratica uma violação flagrada por
parceiros de convívio cooperativo capazes de julgá-lo
moralmente. Continuaremos analisando um exemplo de
vergonha moral no qual um indivíduo frauda a previdência
social e locupleta-se. Certamente, todos nós reagimos com
censura e indignação ao reprovarmos esse indivíduo como
um péssimo cooperador. Indignamo-nos e dirigimos a ele
uma severa censura por se tratar de alguém que atentou
contra as condições de manutenção da sociabilidade para
as quais todos devemos igualmente colaborar, porque
todos podemos dela também usufruir. Isso ocorre porque
“os membros de uma sociedade exigem uns dos outros não serem
maus nesse sentido”.10 É dizer: pelas normas morais
reciprocamente os indivíduos impõem-se um ter de ser bom
incondicional no âmbito da cooperação para a
sociabilidade.
Prosseguindo em nosso exemplo,
suponhamos agora que esse funcionário público corrupto
cubra o rosto diante das câmeras de televisão que o
flagraram. Nesse momento, ele está efetivamente sentindo
vergonha moral: está experimentando o sentimento de mal-
estar provocado pela perda de auto-estima ao fracassar no
desempenho daquela capacidade geral para a cooperação.
Nossos questionamentos agora passam a ser de outra

69
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

ordem: (1) será que esse indivíduo sente vergonha moral


porque sabe ter violado uma norma ética? (2) Caso saiba
ter violado uma norma ética, como esse indivíduo pode
saber isso? (3) Por que essa consciência que ele tinha do
que era moralmente aprovável e correto não foi suficiente
para impedi-lo de realizar essa transgressão? (4) Por que
ele experimenta a censura e a indignação de seus
expectadores como um estado interior ruim? Tentaremos
oferecer algumas respostas a essas questões. Para tanto,
voltaremos momentaneamente a tratar das habilidades
especiais.
Tugendhat sugere que apenas criticamos ou
até rimos dos fracassos de um mau violinista caso um
indivíduo já tenha se apresentado como tal (como
violinista, no caso). Ninguém critica o desempenho de
alguém em um papel ou habilidade especial sem saber se
essa pessoa antes a reivindicou como definidora de sua
identidade. Logo, só podemos exigir desse violinista que
ele tenha de tocar bem seu instrumento quando,
anteriormente a esse ter de dirigido à sua atuação, existir, da
sua parte, uma decisão subjetiva com a forma de um eu
quero ser compreendido e reconhecido como violinista.
Assim, é esse prévio eu quero que nos autoriza, como
espectadores, a exigir dele um bom desempenho na forma
de um ter de. Isso, por óbvio, com relação ao desempenho
das habilidades especiais. De outro lado, agora quanto
àquela capacidade geral para a socialização, também deve
existir um prévio eu quero situado à base das normas morais
mutuamente exigidas entre os membros de uma
comunidade. Porém, no terreno da capacidade geral para a
cooperação, este eu quero tem um caráter muito mais fluido,
tácito até. E diz respeito a um eu quero conceber-me
eticamente na forma de uma integração como parte de
uma sociedade mantida e regulada pelas aprovações e

70
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

reprovações e seus respectivos sentimentos de apreço,


indignação e censura. Desse modo, o eu quero relativo à
capacidade geral para a cooperação é mesmo um eu quero
compreender-me moralmente. Tem a forma, portanto, de uma
cláusula de ingresso na mutualidade de um convívio social;
uma cláusula de aceitação e submissão às regras dos seus
ter de e não podes referentes aos deveres e aos benefícios
envolvidos nas práticas cooperativas.
Para seguirmos respondendo às nossas
indagações sobre como opera a vergonha moral na
consciência do transgressor, devemos ainda recuperar um
outro dado precioso. A exigência de comportamentos
segundo estruturas normativas que impõem diversos ter de
e não podes mutuais deve ainda ser compreendida como
sendo relativa a sanções. Freqüentemente é dito pelos
filósofos que essas sanções, no caso da moral, são sanções
internas. Mas o que pode significar a interioridade dessas
sanções? A expressão sanção interna significa que o
indivíduo que compartilha o convívio social mediado por
normas submeteu-se a um processo de socialização pelo
qual algum dispositivo psíquico seu compreende e
reconhece a significatividade de deveres (ter de) e
proibições (não podes). Ao compreender o que é devido e o
que é proibido, entretanto, absolutamente nada assegura
que esse indivíduo vá mesmo agir em conformidade com a
ética. A consciência a respeito do que é certo e do que é
errado, conquistada no curso do processo de socialização,
enseja a vergonha moral como a capacidade de experimentar,
como um mal-estar interior, a censura e a indignação dos
espectadores que o flagraram agindo contra os ter de ou os
não podes justamente após ter “anunciado” um eu quero
incluir-me na mutualidade cooperativa de uma sociedade.
A vergonha moral envolve então o tormento psíquico de
sabermos que não só desapontamos gravemente nossos

71
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

parceiros de convivência, como também os deixamos


indignados. Pela vergonha moral, a indignação deles é
interpretada como o anúncio de uma punição ou de uma
exclusão do convívio, isto é, como indício de prováveis
sofrimentos. É portanto a ressonância da indignação e da
censura dos expectadores na estrutura psíquica do
transgressor que provoca o efeito tormentoso chamado
sanção interna. Todavia, à diferença da sanção externa, que é
a punição jurídica, essa sanção interna também pode se dar
mesmo quando uma transgressão não chega a ser
consumada, e esse tipo de tormento, causado pela
suposição ou planejamento de uma ação sabidamente má,
é provocado graças ao que Freud denomina de sentimento de
culpa.
Retidos esses esclarecimentos, retornemos ao
nosso exemplo. Podemos agora sustentar que nosso
funcionário público corrupto cubra o rosto diante das
câmeras de televisão por estar sentindo vergonha moral.
Sua vergonha é fruto de quem pode experimentar, como
um estado interior ruim, a indignação e a censura dos
outros como uma sanção interna. Logo, a vergonha moral
desse prevaricador indica-nos sua consciência da violação
de um ter de posteriormente ao seu próprio eu quero
participar dessa sociedade. Mas somente é possível
falarmos de uma internalização da sanção para aqueles
casos nos quais os sujeitos sociais já tenham desenvolvido
uma certa capacidade sociopsicológica para se sentirem
culpados ou para experimentarem, como um estado
interior ruim, a indignação ou a censura alheias. No
entanto, como surge essa capacidade de sentir culpa ao
longo do processo de subjetivação de um indivíduo?
Com efeito, é por esse querer pertencer à
sociedade que os indivíduos podem vir a sentir vergonha

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

moral quando fracassam moralmente, ou indignação quando


outros fracassam moralmente. Poder-se-ia agora objetar ao
nosso exemplo a idéia de que, se o prevaricador chegou a
internalizar a vergonha moral, de modo a sentir a
indignação alheia como sanção interna, isso deveria tê-lo
impedido de agir mal. Entretanto, não assiste razão a essa
idéia. O querer pertencer à ordem social, que produz a
vergonha moral, ainda não significa nenhum compromisso
definitivo com condutas ativas no sentido positivo de um
ser-bom cooperador. Esse querer pertencer não obsta
imediatamente as condutas contrárias aos ter de,
principalmente quando tais condutas transgressivas
envolvem grandes ofertas de prazer sobre as quais recaem
expectativas de que não sejam jamais descobertas.
Condutas lesivas ou anticooperativas têm a possibilidade
de não provocarem indignação pela simples ignorância de
sua ocorrência por parte daqueles que poderiam se
indignar caso soubessem. Portanto, a internalização da
vergonha como capacidade de sentir culpa não situa o
âmbito moral num paraíso de perfeição comportamental.
A moral jamais estará além da mútua expectação desde
sempre estabelecida entre os indivíduos em uma sociedade.
Onde desaparecem ou se reduzem drasticamente essas
expectações potencialmente reprovativas, é reduzida
também a aptidão geral de controle das normas morais.
Desse modo, por mais internalizada que seja a vergonha
moral, ela sempre será uma vergonha moral social e não
meramente psicológica, pois estará apoiada numa
alteridade que, se não for real e presente, será ao menos
suposta e temida. Devemos agora sugerir algumas
indicações sobre como se processa essa interiorização de
uma capacidade de sentir culpa responsável pela
ressonância da vergonha moral. Para tanto, seguiremos a
pista de algumas idéias de Freud.

73
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

A internalização da sanção capacita uma


estrutura psíquica a compreender a transgressividade de
condutas e a imperatividade de deveres. Como
assinalamos, deveres e proibições têm suas observâncias
asseguradas por sanções. Mas essas sanções, sejam
aplicadas ou apenas meras ameaças, não são
compreendidas enquanto tais desde suas exterioridades.
Fosse assim, o direito ocuparia completamente as funções
da moral. Para que alguém se conduza conforme a moral e
o direito, é necessária uma representação do sentido dessas
sanções bem como o desenvolvimento de alguma estrutura
psíquica orientada para o reconhecimento de deveres e
proibições. Freud chamou essa estrutura de superego. Como
estrutura, o superego não garante completamente a
observância ao dever e às proibições, apenas permite
compreendermos que a atenção a essas diretrizes
comportamentais se elabora na tensão entre o que foi
chamado de princípio da realidade e princípio do prazer. Não é
este o espaço mais apropriado para recuperarmos
meticulosamente as idéias do fundador da psicanálise,
muito menos de seus contendores e/ou continuadores.
Basta por ora dizermos, repetindo Freud, que o superego se
origina na superação do impasse edipiano pela
interiorização da função do pai como ideal do ego do filho.
A presença inexorável do pai faz ceder a recusa do filho a
ele, inconscientemente considerado como um bloqueio ao
fluxo de prazer representado pela constância da presença
materna de caráter anaclítico. Ao render-se à presença do
pai antes repelida, a estrutura psíquica de um indivíduo
paulatinamente cede às interdições à constância do fluxo
de prazer e passa a desenvolver o princípio da realidade.
Esse pai, agora alçado à condição de ideal do ego do filho,
opera na construção de sua personalidade por duas
diretrizes que sedimentarão seu superego: tu deves ser tal qual

74
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

teu pai e tu não podes tudo aquilo que teu pai pode. A primeira
dessas diretrizes (tu deves ser tal qual teu pai) enseja no
superego a aptidão para o reconhecimento da
significatividade de deveres, modelos e ordens. A segunda
diretriz (tu não podes tudo aquilo que teu pai pode) enseja a
detecção da significatividade dos poderes de proibir, de
interditar e eventualmente também de punir. Assim, é
graças ao superego que se dá aquela capacidade de
reconhecimento da transgressividade das condutas
praticadas por um indivíduo sem a necessidade de uma
censura real. O superego permite a alguém supor qual seria
a reação social em caso de transgressão. Originando-se da
repressão ao princípio do prazer, a forma social desse
superego exige renúncias que são incorporadas às exigências
do convívio social, muitas das quais são cristalizadas em
normas morais e jurídicas. A ´´descoberta`` do superego por
Freud permite-nos compreender como a agressividade de
um indivíduo é reenviada para sua instância psíquica no
lugar de se exteriorizar. Logo, o ideal do ego, ao
possibilitar a superação do complexo de Édipo, consistirá,
inicialmente, em um eu quero ser assim que, dadas certas
condições biológicas (como a percepção sensória) e
socioculturais (como a família e as instituições), irá se
diferenciar gradualmente do ego enquanto função da
personalidade. Aí surgirá propriamente o superego. Freud
assevera então que o superego “não é simplesmente um resíduo
das escolhas objetais do id; ele também representa uma formação
reativa enérgica contra essas escolhas. A sua relação com o ego não se
exaure com o preceito: „Você deveria ser assim (como o seu pai)‟. Ela
também compreende a proibição: „Você não pode ser assim (como o
seu pai)‟, isto é, você não pode fazer tudo o que ele faz; certas coisas
são prerrogativas dele”.11
A vinculação ética vista desde essa perspectiva
psicológica não ocorre como algo natural ou

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

simploriamente espontâneo. Uma censura moral só torna-


se eficazmente válida enquanto tal se puder atingir um
indivíduo na sua correspondente capacidade de sentir
culpa. Evidentemente, isso só pode ocorrer mediante a
prévia adesão desse indivíduo às regras constitutivas
daquela comunidade na qual ele pretenda se inserir de
modo não parasitário. Aí se tornam necessários alguns
requisitos de socialização para que as capacidades
conviviais atinjam uma funcionalidade razoável.
Abstratamente analisado, o constructo freudiano do
superego sugere-nos uma maneira de se compreender
como se dá a interiorização do sentido moral. No entanto,
socialmente considerado, um indivíduo pode ser levado a
elaborar sua não-inclusão no sistema de mutualidades
regulado pela indignação, pela censura e pela vergonha
moral que têm por base uma comunhão de superegos.
Socialmente encaradas, as capacidades conviviais são
eventos de caráter intersubjetivo e não puramente
psíquico. Além disso, são eventos sociais cuja ocorrência
não é de nenhum modo naturalmente garantida.
O que chamamos de capacidades conviviais reúne
a capacidade geral para a cooperação àquelas habilidades
especiais que constroem conjuntamente a subjetivação de
um indivíduo voltada à intersubjetividade na qual se
processa o mutualismo das expectações, sejam elas morais
ou jurídicas. Por isso mesmo, com a idéia de capacidades
conviviais é sublinhada a necessidade de se assegurar um
mínimo ético social para o desenvolvimento de uma
aptidão superior em complexidade para a cooperação. Ao
tratar do fenômeno da exclusão social, o mínimo ético
propõe o implemento das condições materiais ao
desenvolvimento dessas capacidades conviviais pelas quais
o próprio direito pode se tornar mais eficaz pela via da
observância espontânea tornada viável. Essas capacidades

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

conviviais partem de uma base psicossocial e vão desde o


acesso às habilidades especiais (capacidades
oportunizantes) até a construção de uma identidade social.
Só pode agir eticamente aquele que consegue se auto-
representar como alguém. Tornar-se alguém num contexto
de intersubjetivação é algo indissociável da possibilidade
de ação ética. O desenvolvimento dessas capacidades
supõe a promoção de instituições como a família e a
escola, nas quais se desenvolve a subjetivação de uma
criança em meio à autoridade e ao carinho daqueles que
exercem a função de seu ideal do ego.
Mas a ética não pode ocupar o espaço do
direito, senão complementá-lo. O direito não pode
simplesmente renunciar por completo aos efeitos
intimidativos da punição como técnica de controle social.
Embora a ética constitua um sistema normativo mantido
pela operatividade de sanções internas, o direito também
administra a subjacente capacidade de sentir culpa dos
indivíduos, isto é, também influi no acionamento
preventivo do superego, tornando real a ameaça de
sofrimento. Por outro lado,tampouco pode o direito eleger
esses efeitos intimidativos da punição como o único
aspecto a fundamentar seu funcionamento, pois, nesse
caso, pessoas seriam punidas exemplarmente apenas para
constranger outros a não agirem de modo semelhante.
Essa compreensão da motivação para o agir conforme o
direito é centrada exclusivamente no seu aspecto jurídico-
utilitário. A eficácia do medo da sanção na causação da
conduta conforme o direito é algo cada vez mais relativo
nas complexas sociedades contemporâneas; relativo à
capacidade de sentir medo; relativo à oferta de prazer e
satisfação que compensa a punição; relativo àquilo que
literalmente vale a pena; e, ainda, relativo às chances reais de
que essa punição jurídica efetivamente sobrevenha. De

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

mais a mais, nas sociedades em que o mínimo ético está


por ser construído, o direito não pode reservar-se somente
a indicar condutas ruins ou indesejadas. A intervenção
social do direito deve sempre procurar estimular a prática
daquelas condutas socialmente cooperativas. O direito
deve estimular o que é desejável, além de ameaçar e punir
o que é eticamente reprovável. Isso representa uma via de
reconciliação entre a ética e o direito. Ao contrário disso,
uma fundamentação instrumentalista da intervenção
jurídica, bem ao estilo pragmático-behaviorista do
utilitarismo, romperia com essa idéia de reconciliação entre
ética e direito, de complementaridade entre autonomia
voluntária e heteronomia coativa. Além do mais, a
fundamentação instrumentalista parte de uma suposição
causal bastante pobre em relação ao sistema motivacional
de ação dos indivíduos concretos: a de que o medo da
sanção é causa eficiente e suficiente no desestímulo às
condutas transgressivas.
No direito penal, a punição e, especialmente, a
pena cocretamente determinada em um caso, sempre
contém elementos que expressam o índice de
reprobabilidade moral da conduta juridicamente
considerada ilícita, no caso, como crime. A idéia de justiça
da pena não pode, portanto, adotar exclusivamente uma
fundamentação utilitária e instrumentalista. Para
Tugendhat, essa mediação entre os aspectos jurídico-
punitivos da pena e a compreensão de seu significado
moral perante a comunidade pode ser determinada ainda
segundo a idéia de merecimento. A idéia de merecimento
estabeleceria o nexo de proporcionalidade entre as
significações jurídica e moral de uma transgressão. Isso
porque essa noção forneceria indicadores concretos sobre
a intensidade variável dos sentimentos de indignação e
censura que repudiam o cometimento de uma transgressão

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

cuja gravidade também oscila em sua consideração como


crime.12 É seguramente por isso que um assassino merece
uma pena maior do que um ladrão. Tais relações entre o
direito e a ética demonstram como os sentimentos morais
de uma comunidade sempre operam sob os
comportamentos mediante a suposição de um sentimento
de justiça também orientado por essa noção de merecimento.
Pela noção de merecimento é mensurada a lesividade de
uma conduta pela quantidade de indignação e censura
mobilizada na sua reprovação. O volume e a intensidade
desses sentimentos auxiliam a estabelecer o gradiente de
uma pena para o âmbito jurídico.
Mas o direito e a ética não regulam somente
ações cercadas por uma aura punitiva. A ética também
envolve o atendimento a certas expectativas, o
cumprimento de determinadas promessas, enfim, a
capacidade de atender a certas obrigações da vida civil. Por
essa razão, um modo relacional de apresentarmos a ética
pode recorrer à idéia de confiança ou, mais precisamente, à
idéia de relação de confiança. A idéia de confiança sugere
certas capacidades organizadas de um modo ético.
Fidelidade, confiança, fiança, fé, fides, boa-fé: palavras que
expressam a qualidade de uma relação. O princípio geral da
boa-fé torna-se hoje uma diretriz no direito civil. Toda
teoria sociológica das expectativas desenvolveu-se por uma
atenção a essa noção de confiança: uma noção relativa às
ações projetadas em função de algo esperado.
Recentemente, a noção de espera, própria da boa-fé e até
personalizada como um traço de caráter daquele de quem
se espera (o homem de boa-fé, o homem confiável),
experimentou alguns processos de objetivação. Civilistas
falam hoje em dia de um princípio da boa-fé objetiva. E
ainda mais recentemente essa idéia que outrora se chamou
fides foi apresentada como parte de uma teoria dos sistemas

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

sociais, onde passou a assumir a conotação de risco, hoje


muito bem representada por Rafaelle de Giorgi. A teoria
do risco propõe uma abordagem contingencial das
decisões tomadas por um sistema jurídico que administra
estratégias normativas para o encaminhamento das
frustrações de expectativas não atendidas. Essa teoria,
porém, não aborda diretamente a confiança. Mas a idéia de
confiança parece estar aí suposta como um substrato ético
das relações sociais. A relação de confiança pode então ser
por nós definida como o compartilhamento da suposição razoável
de uma mútua expectatividade. Isso significa que, dadas
determinadas circunstâncias consideradas razoáveis ou não
excepcionais, não só esperamos algo de alguém, senão
também autorizamos esse alguém a esperar o mesmo de
nós. Ora, o que dá sentido à espera é o esperado. Se esse
esperado é propriamente algo que ainda não existe ou não
se deu, essa espera tem seu impulso na projeção da
virtualidade desse algo como uma possibilidade. Assim,
expectativas sociais de caráter normativo conjungam a um
dever ser um poder ser. Mesmo sendo algo virtual para
pessoas e instituições, ações e procedimentos são
desencadeados segundo a suposição de consumação dessas
possibilidades. E essa estrutura toda tece uma malha de
expectativas por onde se dá a circulação do sentido social
normativo. Logo, por essa sua precedência estrutural e
fenomênica, a confiança freqüentou definições de moral tão
discrepantes, fundadas em categorias bastante distintas,
como as virtudes, os valores, os interesses, os bens e os
deveres.

Ainda mais alguns esclarecimentos tornam-se


convenientes. Como dissemos acima, as idéias de bom
(auto-estima) e mau (vergonha simples) envolvidas no

80
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

sucesso e no fracasso no desempenho das capacidades


especiais não trazem acepções propriamente éticas dessas
palavras pertencentes ao campo semântico de bem e mal.
No entanto, isso não quer dizer que as capacidades
especiais ou habilidades técnicas sejam, por alguma
maneira, secundárias ou menos importantes em relação
àquela capacidade geral para a cooperação -- na qual a palavra
bem vem empregada em sentido eminentemente ético. Uma
observação do fenômeno moral clivada pela índole
empírica percebe a complexa interconexão estabelecida
entre essas capacidades especiais e a geral. Portanto, seus
isolamentos em estados puros podem ser muito difíceis em
inúmeras situações. A postulação de uma capacidade geral
para a cooperação constitui uma maneira eminentemente
filosófica de se tentar explicar a sedimentação
sociopsicológica do sentido sinérgico pelo qual uma
comunidade de indivíduos que desempenham variados
papéis torna seu convívio possível graças à mutualidade
dos deveres e das proibições reciprocamente exigidos na
proteção de um núcleo de comunalidades constituído
essencialmente de bens, valores e direitos. A relação entre
as capacidades ou habilidades especiais e geral envolve
assim diversos deveres (ter de) e proibições (não podes)
exigíveis no desempenho convivial dos vários papéis
sociais desde os quais a própria identidade individual
circula eticamente nos espaços de troca intersubjetiva, real
e simbólica, de uma comunidade mantida coesa pela
cooperação. É a funcionalidade integradora e adaptativa
estabelecida entre a constituição e a desconstituição desses
papéis sociais que torna um agregado humano convivente
merecedor da distinção de sociedade.

Todavia, se, historicamente, essa troca entre as


subjetividades em algum instante precedeu ou foi precedida

81
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

pelo processo de constituição dessas mesmas


subjetividades é um problema que não pode ser aqui
filosoficamente dirimido, exceto se já passarmos à tese
sociológica central do mínimo ético: só pode haver
circulação intersubjetiva, e, portanto, o desenvolvimento
do compromisso recíproco entre os indivíduos com a
cooperação, se, e somente se, as condições materiais e
espirituais de integração à mutualidade de uma
comunidade oferecerem chances reais e acenarem com
vantagens efetivas para um sujeito decidir por auto-representar-
se e socialmente apresentar-se como alguém que aceita ser
exigido como membro daquela sociedade. Ao contrário do
que supõem muitas sociologias, o efetivamente ser e o poder
auto-representar-se como membro de uma comunidade não
constituem dados naturais e nem mesmo algum fato social
a priori. O desenvolvimento de um sentido ético-
cooperativo ocorrido durante a inclusão dos indivíduos em
uma comunidade envolve um sofisticadíssimo
enfeixamento de condições de possibilidade. A análise da
possibilitação dessa inclusão social converte-se, assim, em
um tema de delicada captura teórica, especialmente porque
o aparente sentido auto-evidente que essa inclusão
pseudonatural recebe naquelas sociedades com elevados
coeficientes de justiça social torna sua problematização um
desafio para ambientes intelectuais acostumados a
importar doutrinas e a distorcer problemas seus com lentes
ajustadas a outras realidades. Conseqüentemente, a eficácia
vinculativa da chamada capacidade geral para a cooperação está
sempre em estrita dependência do prévio acesso àquelas
condições sociais de subjetivação garantidas pela ética
igualitária materialmente edificada e sustentada pelas ações
do direito e da política. Do ângulo da sociologia e de uma
filosofia social, quando apreciamos uma sociedade
relativamente bem integrada, o ser alguém apresenta-se

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

como praticamente simultâneo ao ser alguém eticamente


capacitado (embora isso não equivalha a alguém eticamente
bom). E isto assim se dá porque este ser alguém eticamente
capacitado só tornou-se possível graças ao próprio advento
da sociedade que, quando já for ou aspirar a ser moderna,
deverá aceitar certos compromissos com a promoção e a
proteção da igualdade pela qual qualquer um deve ter acesso
à chance de se tornar alguém.

Com essas observações pretendemos explicitar


como as chances de moralização dos membros de uma
comunidade dependem intensamente de algumas
estruturas psicossociais específicas, tornadas possíveis
graças ao asseguramento de determinadas condições
materiais viabilizadoras da subjetivação e da
intersubjetivação dos indivíduos. Assim, só se há de falar
em moralidade, e em desenvolvimento das capacidades
conviviais, caso se possa também falar de famílias, de
ocupações decentes, de sistema de saúde, de escolas, de
direito, de Estado, de dignidade material. O mínimo ético
cuida do asseguramento, pelo direito, dessas condições
viabilizadoras do amadurecimento das capacidades
conviviais. Almeja evitar, portanto, a desagregação social
desencadeada pela deterioração das capacidades conviviais
provocada pelo sentimento de exclusão social. Esse
sentimento de exclusão aciona poderosas estratégias
psíquicas pelas quais um indivíduo se desobriga da
cooperação social e, em muitos casos, pode até chegar a
compreender como ilegítimas muitas expectativas de
comportamento que lhe são dirigidas. A confiança na
justiça dos sistemas jurídico e econômico também motiva
a atuação conforme o direito e a moral. A exclusão social,
associada à falta de condições reais de atendimento às
expectativas de uma comunidade, dificulta enormemente a

83
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

possibilidade prática de os indivíduos expressarem os seus


eu quero integrar-me moralmente a essa comunidade. A exclusão
social, portanto, praticamente suprime aquela cláusula de
ingresso pela qual a moral começa a vincular alguém
enquanto membro de uma sociedade. A falta de condições
materiais para o atendimento efetivo às expectativas sociais
e a sonegação de acesso às capacidades conviviais jogam
esses indivíduos na pura exterioridade das sanções
jurídicas, desde então interpretadas por eles como
imerecidas, injustas e persecutórias. Desde um ponto de
vista sociológico, a reflexão do mínimo ético pretende
suscitar aí uma questão precedente: antes de um indivíduo
expressar o seu eu quero, pelo qual ingressa na moralidade
social, é necessário averiguar as condições preliminares que
a sociedade lhe assegura para poder expressar validamente
esse seu assentimento. Dito de maneira bem simples: a
todo eu quero precede um eu posso, relativo às condições de
ingresso na mutualidade das expecatações sociais. E isso
assim se passa porque a aceitação da submissão aos
padrões da moralidade e da juridicidade representa, para
os membros de muitas sociedades, um grave risco; um
risco de vida para os que sobrevivem não só na mas
também da ilegalidade, quando está ausente a efetivação de
um mínimo ético que garanta aquele eu posso prévio. Que
um indivíduo queira ser moral é algo precedido da
possibilidade positiva de que ele antes sempre possa querer
isso. Um indivíduo só pode realmente optar pelo seu
ingresso na mutualidade ética caso a sociedade
efetivamente lhe assegure condições dessa opção como
algo que não seja uma fraude ou uma ilusão formalista.

84
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

2.2. Direito e mínimo ético: a possibilitação da ética pelo direito

Diante da crescente complexidade das


sociedades modernas, o positivismo não satisfaz mais as
exigências de um direito que efetivamente dê conta da
regulação social de toda a comunidade (e não apenas de
uma parcela). Historicamente, o positivismo pôde nos
oferecer uma arquitetura institucional que em si representa
um certo conjunto de garantias, caso implementada. Trazia
consigo, então, um objetivo bastante definido: eliminar ou
reduzir a incerteza sobre o modo de definição do direito
válido. Renegou-se a incerteza dos critérios de justiças em
nome de uma validade definida de modo constitucional e
competencial. Pretendeu-se com isso varrer a metafísica do
direito. Contudo, os sistemas jurídicos modernos,
funcionando pela definição jurídica do direito positivo
válido, livres agora das metafísicas e messianismos,
acabaram produzindo ciclos de retroalimentação
indiferentes aos anseios sociais. O positivismo que
rechaçava a metafísica e o arbítrio, ao implementar a teoria
da validade, trazia consigo uma concepção de ciência que
estendia postulados de neutralidade e tecnicidade à
intervenção social dos juristas. Mas a metafísica banida
solenemente pela porta da frente retornava pelos fundos:
trocava-se o método da fé pela fé no método. O
positivismo moderno apresentava-se assim como uma
determinada epistemologia. A superpreocupação com a
validade em uma instância epistemológica ensejou um
brutal desconhecimento dos dados eficaciais pelos quais
um sistema jurídico mensura e corrige sua real aptidão para
realizar seus propósitos: o convívio social em graus
toleráveis de paz e desigualdade. Grave mesmo, porém, é o
reflexo desse estado de coisas nas sociedades de
modernidade periférica, nas quais nem o sistema político

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

cuida dos seus encargos (a qualidade de vida de todos os


segmentos sociais), nem tampouco o sistema jurídico
consuma seu programa de autonomização (a operação
guiada pelas noções de constitucionalidade e validade).
Muitos tiveram dificuldade em analisar corretamente essas
questões envolvidas no positivismo jurídico do século XX.
E acabaram por confundir o programa de autonomização
do direito com uma causa exclusiva de sua indiferença à
sociedade, cuja modernidade o próprio sistema jurídico
pode e deve, em muitos casos, auxiliar a implementar.
Cumpre aqui enfatizarmos essa nuance: é que o
positivismo jurídico do século XX, além de almejar, no
plano social, certeza sobre um critério não-metafísico e
não-arbitrário de juridicidade, também acabou difundindo,
agora no plano epistemológico, uma concepção específica
sobre o saber jurídico, guiada pelas idéias de neutralidade e
cientificidade. Mas esse caráter paradoxal é a própria
história do positivismo.
A busca por certeza e segurança não configura
um ideal a ser traduzido apenas na ciência ou nas
reclamações por segurança jurídica. É também uma forma
laica de aplacamento de uma angústia que na Modernidade
não mais pôde ser direcionada ao mundo transcendente. A
vida mundana tornou-se mais tormentosa com um deus
menor. A ruptura definitiva com o mundo medieval
ensejou uma vertigem social. As ninfas da nova deusa
Razão, a ciência, a verdade, a segurança, a previsibilidade, a
descrição, a experimentação, a calculabilidade, foram
postas a serviço da sublimação desse encolhimento do
domínio religioso. Mas a ânsia por segurança e
previsibilidade não expressava exclusivamente um ideal
político-econômico da Modernidade. As tentativas de
tranqüilizar a angústia produzida pelo vácuo teológico
culminariam nas filosofias existencialistas do século XX. A

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

estrutura geral da espera social não tematizava mais


exclusivamente o juízo final, mas agora também o vir a ser
de uma história contingente e sobre a qual os próprios
homens podiam influir como sujeitos de suas possibilidades.
Alheio a essas incertezas da história, o positivismo jurídico
seguiu alimentando uma epistemologia cientificista.
Vejamos alguns reflexos dessa matriz cognitiva na esfera
social.
A ênfase exclusiva na temática da validade
propiciou uma tecnicização do saber e da prática jurídicos
em regime de verdadeira alienação. Essa alienação dos
membros do sistema jurídico vem sendo nutrida pela
crença conveniente na cientificidade e neutralidade das
decisões e interpretações. O efeito perverso dessa crença
pode ser notado numa indiferença social realmente
intolerável, a ser desmentida como verdadeira
irresponsabilidade para com os destinos dos segmentos
excluídos da sociedade. A conveniência das crenças
tecnicistas engendra uma abominável conivência com a
degradação da dignidade humana. A perfídia da
combinação entre essa conveniência cientificista e essa
conivência com a exclusão social desenha o triste quadro da
demência de um direito autista – um direito voltado apenas
para si mesmo, alheio a tudo e incapaz de interagir com
aquilo que se passa em seu entorno. Trata-se de um direito
enfermo, vivendo o delírio de uma modernidade que não
alcança a sociedade inteira, embora pareça atingi-lo, em
lampejos de lucidez, naqueles momentos em que se
contenta por estar apto a produzir decisões através da
manipulação correta das peças coloridas do seu jogo da
validade normativa. Alheia à responsabilidade social pela
repercussão de suas decisões, a abordagem técnica da pura
validade tem funcionado como um daqueles brinquedos
que cativam esquizofrênicos. Mas para quem de fora

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

contempla, sem interação alguma, um autista absorto na


apatia de suas rotinas e na simploriedade de seus
brinquedos só pode sentir ali uma brutal tristeza e uma
infeliz solidão. É essa tristeza e essa solidão que os
segmentos sociais excluídos experimentam, na forma de
indiferença, quando dirigem seus olhares e desistem de
voltar seus anseios para o sistema jurídico. A cura desse
autismo requer uma interação do sistema jurídico com a
sociedade pela assunção de uma responsabilidade eficacial
e conseqüencial. Uma interação respeitadora de sua forma
peculiar de operar com a validade sem que isso represente
descompromissos com a efetividade de um mínimo
material que, ademais, não represente de modo algum a
recidiva de conceitos metafísicos de justiça. Esse mínimo
material é mesmo um mínimo ético, elaborado como um
mínimo de sociedade na qual é possível haver coisas como
o próprio direito. Abandonando rotulações maniqueístas e
aceitando o encargo de análises mais cautelosas, eis então a
súmula de nosso balanço: o positivismo trouxe consigo o
tema da validade e da arquitetura institucional do sistema
jurídico moderno. O consumo interno dessa validade
solucionou em parte a irracionalidade e o perigo dos
inúmeros – e, portanto, incertos – critérios de justiça
disponíveis. Contudo, agora considerado no plano
epistemológico, esse mesmo positivismo restou por
difundir determinadas concepções sobre o saber jurídico
que redundaram em imperativos tecnicistas de neutralidade
e, por via de conseqüência, numa indiferença em relação
ao problema correlato da eficácia normativa envolvendo o
asseguramento das capacidades conviviais do mínimo ético
na aplicação jurídica. A eventual variabilidade desses
resultados da aplicação normativa, meditada em seu
aspecto eficacial, deveria ser mantida como secundária
para a ciência jurídica, pois era signo de incerteza e

88
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

imprevisibilidade. Essa atenção à variação eficacial poderia


perturbar a serenidade do projeto de uma ciência jurídica
rigorosa.
A pior degeneração dessa indiferença da
ciência jurídica ao aspecto eficacial reside ainda no
seguinte: um descompromisso com aquele mínimo de
condições conviviais, a serem asseguradas também pela
força do sistema jurídico, que garantem a permanência
pacífica daquilo que podemos denominar de sociedade. O
positivismo esqueceu assim de atualizar a lição de Ulpiano:
ubi societas, ibi ius. Interpretando à luz de nosso argumento
esse brocardo latino, talvez hoje gasto pela sua aparente
trivialidade, podemos agora inferir: para haver direito, deve
haver sociedade, mas para que esta sociedade exista ou
subsista, o próprio direito deve concorrer. Isso pretende
significar que, uma vez distantes das ficções
contratualistas, nas comunidades contemporâneas a
relação entre direito e sociedade não pode mais ser
temporalizada em uma ordem meramente diacrônica.
Direito e sociedade exigem-se e possibilitam-se mútua e
simultaneamente.
O cuidado dispensado pelo direito a esse
mínimo de sociedade é então o cuidado do próprio terreno
sobre o qual é erguido o edifício jurídico. Como
apontamos, sem sociedade não há direito, embora isso não
tenha parecido, na prática, tão óbvio aos juristas vitimados
pelo autismo epistemológico acima referido.
Denominamos esse mínimo social de mínimo ético. Mas com
a palavra ético não queremos apontar nenhum núcleo
axiológico supernormativo, senão as condições materiais e
espirituais de ocorrência daquelas estruturas de convívio
pacífico e cooperativo integrantes das aquisições da
modernidade social. Justamente pela consideração dessas

89
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

sutilezas, nossa posição em relação ao positivismo parece


ser tão paradoxal: precisamos urgentemente construir a
modernidade social e jurídica no Brasil recolhendo os
frutos de sua teoria da validade ao mesmo tempo que
ultrapassamos os obstáculos semeados por reducionismos
e exageros ao longo de sua trajetória: as concepções de
ciência e neutralidade traduzidas numa indiferença em
relação à eficácia do mínimo social sobre o qual a própria
validade poderia operar de modo mais estável e menos
segregante.
O positivismo apresentou-se como um
programa para a modernidade liberal no campo jurídico.
Mas nossa modernidade brasileira exige ainda intervenções
específicas desse campo jurídico no âmbito social. Por
essas razões, a modernidade do positivismo europeu de
outrora não pode ser exatamente a nossa. Visto como
modernidade social, o positivismo muito pouco cria no
campo dos compromissos com a implementação de
programas de realização efetiva das igualdades formal e
material. Devemos, portanto, tentar ir além do
positivismo, sem desconhecer que, muitas vezes, nem
mesmo chegamos a assimilar dados essenciais de seu
programa autonomizador. Todavia, muito dessa
assincronia resulta das limitações do próprio projeto
positivista quando transferido de seu originário contexto
intelectual europeu. Os positivistas não conseguem, nem
pretendem, apresentar teorias para reduzir o
recrudescimento da seletividade penal incidente sobre
aqueles setores já excluídos da sociedade, por exemplo.
Nossos problemas são antes de tudo fruto da incapacidade
de produzirmos nossas soluções. E essa incapacidade não
pode ser imputada levianamente a intelectuais ou a
doutrinas. Nossos problemas são também fruto de nossa
própria incapacidade de percebê-los como autênticos

90
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

problemas nossos. Qualquer teoria acaba agregando


inúmeras defasagens com o passar do tempo. Deslocadas
para outros contextos históricos e sociais, essas defasagens
tornam-se ainda mais intensas. Surgem, no horizonte de
respostas dessas teorias, problemas que sequer poderiam
ser vislumbrados. Aparecem problemas que não eram seus
problemas. Epistemologicamente, essa rotina é algo
absolutamente normal na história do conhecimento
humano, social e natural. Anormal mesmo são aqueles que
vivem iludidos na busca insana de teorias definitivas sem
mediar a dimensão das peculiaridades de seu próprio
mundo. São esses os fundamentalistas do conhecimento.
Pretendemos refletir sem incorrer nesse vício. Nosso
compromisso radical com o direito positivo nasce de um
vínculo ao projeto iluminista, embora nossa apropriação
do positivismo seja deveras tática: precisamos ser,
simultaneamente, positivistas e pós-positivistas na
conjuntura brasileira social de pré e pós-modernidade.
Com efeito, o próprio positivismo jurídico não
conseguiria, por vícios inerentes ao seu projeto
epistemológico, dar conta da fundamentação de um núcleo
essencial de moralidade subjacente à experiência jurídica,
compreendida esta no contexto mais amplo do
comportamento social regulado por normas. O
positivismo não poderia ter como um problema
tipicamente seu algo que hoje tanto nos aflige: o da ordem
jurídica dar conta das condições minimamente equânimes
de convívio para que todos, ao se sentirem parte de uma
comunidade, interajam de um modo minimamente
comprometido com essa coletividade. Ainda mais: o
positivismo, se não pôde entrever isso, tampouco poderia
alcançar a percepção de que essas questões não são
solucionáveis pelo puro ímpeto sancionatório-punitivo do
direito, mas que, de algum modo, acabam dependendo da

91
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

própria ética como normatividade espontânea e autônoma


de uma ordem social.
Sem dúvida, as razões da obra de Kelsen eram
bastante diversas. Aliás, ele necessitava prudentemente
afastar as axiologias (vertidas em conceitos de justiça) das
preocupações da ciência do direito, para assim melhor
definir seu objeto e sua especificidade diante das ideologias
e das outras ciências sociais que transformavam o direito
numa grande miscelânea inespecífica. Por isso mesmo,
quanto ao tema da moral, Kelsen só pôde antever aí um
certo relativismo axiológico. A lógica do relativismo
axiológico de Kelsen é bem simples e até verdadeira para
os problemas aos quais ele tentava oferecer respostas: não
havendo a Justiça, mas, ao contrário, proliferando-se as
justiças, não se dispunha por aí de nenhum critério
minimamente seguro para a determinação da validade das
normas positivas. Kelsen não percebera a inexistência da
justiça, mas sim haver tantas justiças que nelas não se
poderia buscar um critério seguro para a determinação da
juridicidade. Logo, para Kelsen, as justiças só desenhavam
um quadro de relativismo axiológico. Mas infelizmente não
faltaram intelectuais, inclusive da órbita positivista, que
extraíssem do diagnóstico dessa pluralidade axiológica uma
irracionalidade absoluta do âmbito moral. Nas sociedades
modernas, marcadas pelo politeísmo de valores, não vige
mais a Moral, mas as morais. Em razão desse fato, não se
dispõe mais como possibilidade honesta (leia-se:
antimetafísica) de uma única teoria da Justiça, verdadeira,
correta e superior. Tampouco nas sociedades modernas
subsistem adequadamente os esquemas de fundamentação
clássicos da ética: nem para as éticas religiosas (válidas
apenas perante seus seguidores); nem para uma ética de
virtudes, como a de Aristóteles (válida apenas para
sociedades estamentais unidas por uma mesma tradição);

92
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

nem para a ética de deveres deduzidos racionalmente,


como a de Kant (válida somente para quem aceita um
dado conceito de Razão, às expensas de maiores
pretensões empíricas); ou tampouco uma ética da
minimização do desprazer para o maior número, como a
do utilitarismo anglo-saxão (válida apenas mediante a
postulação de certas concepções de prazer/desprazer
segundo determinados grupos).
Ao relativismo axiológico agregaram-se ainda
essas dificuldades de fundamentação filosófica, que não
podem ser aqui minudenciadas. Entretanto, não estamos
absolutamente afirmando que pensadores clássicos como
Aristóteles, Kant ou mesmo os utilitaristas estão superados
nas suas formulações sobre a moral. Absolutamente não.
Apenas nos interessa assinalar que as configurações e as
concepções de sociedades subjacentes a essas teorias
morais não correspondem integralmente à configuração
moderna contemporânea.
A fundamentação de uma ética envolve hoje
aquele conjunto de justificações que a tornam exigível
perante todos. Nesse sentido, a fundamentação é
justificação da universalidade de uma moral que responde
à seguinte questão: como e por que ela deve valer igualmente
perante todos os membros de uma comunidade? Pois
bem, a tentativa de resposta a essa pergunta pode adotar
duas estratégias. A primeira delas tenta encontrar uma
fundamentação absoluta para a moral, como a Razão ou
Deus. A segunda estratégia, que pretendemos seja a nossa,
tenta investigar empiricamente quais estruturas
psicossociais tornam possível o convívio regulado pela
moral. Com Ernst Tugendhat, chamaremos essa estratégia
que abandona a busca por uma fundamentação absoluta de
fundamentação fraca ou plausibilização da ética.

93
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Com essa plausibilização da ética tenta-se


apontar aquele campo de uma ética mínima que possibilite
material e espiritualmente a própria experiência societal e
comunitária. Chamamos a essa condição da existência
humana em sociedade de um mínimo ético. O mínimo ético
tenta traduzir as estruturas de possibilitação da moralidade,
sem com isso postular a adesão a alguma constelação de
valores própria de qualquer axiologia. Por isso mesmo, a
reflexão sobre o mínimo ético não tem o propósito
idêntico à doutrina do bem comum. A idéia de
comunalidade presente na doutrina do bem comum é
analiticamente insuficiente para explicitar a fundo tanto o
caráter cooperativo como o envolvimento dos sentimentos
morais de indignação e censura. A doutrina social do bem
comum organiza-se pela suposição de um mesmo
substrato imanente à bondade dos homens conviventes em
sociedade. E essa suposição, apesar de ostentar um caráter
exterior universalista, assenta-se, em último caso, sobre um
fundamento inegavelmente tradicionalista: os postulados
compartilhados por quem aceita submeter-se à moral
cristã. Mas tampouco o mínimo ético nega a existência dos
valores: justamente por se situar abaixo dos relativismos,
torna-se sua própria condição de possibilidade.
Seguramente, esse mínimo ético também diz respeito, em
alguma medida, ao caráter intrinsecamente universal dos
interesses sociais constituintes do próprio Estado. Essa
elaboração pode ser buscada em diversos pensadores que
vislumbraram no Estado um espaço de síntese e superação
dos interesses particularistas em sua pretensão de
universalidade.
Autores contemporâneos trataram
tangencialmente desse mínimo ético, tentando empreender
leituras críticas e atualizadoras de algumas teorias clássicas
de fundamentação da moral (Rawls, Habermas, MacIntyre,

94
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Piaget, Apel). Dentre os pensadores contemporâneos


interessa-nos especialmente o pensamento de Ernst
Tugendhat, que propõe um resgate do conteúdo do
projeto kantiano moderno e iluminista, sem, no entanto,
aderir integralmente à sua fundamentação filosófica de
caráter transcendental-racionalista. A tese de Tugendhat da
plausibilização ética comporta também a idéia de que a
moral não é mais uma necessidade absoluta ou algo
ontologicamente justificável pela condição humana.
Compreendida desse modo, a moral torna-se apenas
precariamente possível, e não mais necessária. Da
fundamentação da precariedade dessa possibilidade é que
dispõe a plausibilização da ética, por nós de certo modo
apropriada pela expressão mínimo ético. O mínimo ético diz
respeito às possibilidades de um indivíduo partilhar da
mutualidade das expectações sociais, erigindo-se em sujeito
capaz de agir num contexto cooperativo. Todavia, para
que isso ocorra, é necessário que se garantam a esse
indivíduo certas condições de ingresso no pacto social no
qual se desenrola o convívio moral e juridicamente
regulado. Essas condições de ingresso são aquelas que o
situam num terreno demarcado pela linha da dignidade.
Não há moralidade possível na exclusão social, na fome,
na miséria, no desemprego dito estrutural, ou nas situações-
limite de desespero humano. Aí não há nem mesmo
sociedade. Entretanto, pior ainda é o que sistematicamente
vem ocorrendo entre nós: quanto mais alijados da
sociedade são deixados milhões de indivíduos, quanto
menos chance de moralização lhes é oferecida, mais
hipocritamente se lhes exige uma conduta não só moral
mas também juridicamente correta. Historicamente
reservou-se a essas hordas de indivíduos excluídos a
hedionda permissão de passagem das senzalas para os
presídios, instâncias sociais simbólicas dos domínios da

95
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

não-sociedade. Repudiamos com todas nossas energias


essa perversão que põe o sistema jurídico a serviço da
retroalimentação da exclusão social.
Moralidade nessa acepção significa, antes de
tudo, o cuidado das condições materiais pelas quais alguém
pode se tornar um sujeito moral: um sujeito efetivamente
capaz de colaborar com sua comunidade, percebendo os
frutos dessa colaboração e sendo até legitimamente punido
em casos de transgressão. A instância por excelência
incumbida de cuidar do implemento dessas condições
materiais possibilitadoras da moralidade é, sem dúvida, o
Estado, cuja ação social se dá pelo direito. No Estado
moderno contemporâneo, a forma legítima de intervenção
na sociedade exige o revestimento jurídico. E dentre esses
entes públicos que intervêm juridicamente destaca-se,
como de nosso interesse, o Poder Judiciário. O
compromisso do Poder Judiciário com a implementação e
o asseguramento desse mínimo ético não implica sua
adesão a alguma ordem de valores específica, prejudicial à
sua imparcialidade. O compromisso do Poder Judiciário com esse
mínimo ético não é nada mais senão o próprio compromisso do
Estado com a sociedade. Com isso estamos indicando que o
mínimo ético está longe de ser uma hipótese contratualista
mítica, ventilada somente no instante originário de
fundação das sociedades. O mínimo ético é percebido
como um conjunto de estruturas básicas de
relacionamento e interação que tornam possível uma
sociedade plural. Como dissemos, esse mínimo ético é um
conjunto de estruturas que devem existir para que haja
sociedade. Sua existência, contudo, não pode ser deduzida
de nenhuma filosofia idealista, ideologia ou princípio
metafísico. O mínimo ético representa os cuidados
práticos que a sociedade efetivamente toma ou deixa de
tomar consigo mesma. Portanto, se esse mínimo ético não

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

for algo natural ou necessário, se, assim, singelamente


apenas puder acontecer dadas certas condições, poderá
também desaparecer ou jamais chegar a ocorrer na
ausência dessas mesmas condições.
Para o funcionamento inclusivo do pacto
social de uma dada comunidade, as regulações jurídicas
devem revisitar o substrato da estrutura ética dessa
sociedade, ao passo que, por outro lado, a própria moral
deve buscar, pela força do direito, o implemento das
condições materiais de sua possibilitação. O sentido dessas
colocações apresenta o direito enraizando-se num solo
moral cuja fertilidade os próprios operadores jurídicos
devem estar aptos a examinar e a prover de fertilizantes.
Com isso não estamos a sugerir o mínimo ético como mais
uma entre as tantas doutrinas formadas pela reunião de
valores abstratos unidos por um princípio axiodeontico
geral. No mercado das axiologias, a oferta de pacotes de
valores já supera a demanda. Antes de pretender colocar
mais um pacote nessa prateleira das axiologias nos
interessa com o mínimo ético trazer clareza sobre como
ocorre o fenômeno ético-normativo para que os juristas
possam meditar de modo mais diligente sobre a
envergadura de suas intervenções e a conseqüência de suas
decisões. Isso tudo implica o rechaço às fundamentações
que apelam a éticas puramente pregativas ou ideológicas. É
comum determinadas ideologias pretenderem se apresentar
também como certas éticas. Isso não lhes pode ser
proibido, e até certo ponto chega a ser salutar. As éticas
axiológicas são justamente aquelas muitas que constituem a
própria diversidade do politeísmo de valores. O mínimo
ético, por sua vez, não pretende estar entre elas, tampouco
acima delas. O mínimo ético está, antes, abaixo desse
politeísmo, sustentando-o e tornando-o possível. Por isso
mesmo, o mínimo ético exige algo além de posturas

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

ideológicas. Pronunciamentos apostolares, embora


importantes como confirmações da comunhão de uma
salutar utopia, tornam-se dispensáveis em grupos tão
homogêneos e ideologicamente tão identificados como o
dos juristas críticos. Mais uma vez dilacerada entre a
paixão e a teoria, a esquerda nefelibata preferiu ficar com a
primeira, alimentando a certeza ingênua da superioridade
moral e elevada nobreza de seus pendores humanitários.
Weber, aliás, já alertava sobre os efeitos contraproducentes
e quiméricos de toda ação inspirada nas melhores causas.
O compromisso com o mínimo ético não
surge de um consenso meramente ideológico entre
camaradas de bandeira, mas de um minucioso diagnóstico
sociológico. Esse mínimo ético necessita, assim, ser
traduzido em noções materiais de justiça e em versões
teóricas consistentes, além de jurisdicionalmente
invocáveis. A fundamentação do direito, como fenômeno
social, é assim posta sob o enfoque das teorias de
fundamentação. Abandonamos desse modo a prática de
uma certa evangelização ideológica, que, de mais a mais,
não é ruim simplesmente por ser ideológica, mas por não
oferecer respostas cuja consistência teórica e prática faça
frente às teses reacionárias ou irresponsáveis vigentes
sobre o modo de intervenção do direito no universo social.
Felizmente parece haver terreno fértil para essa
fundamentação na instância jurídica. Milhares de
operadores do direito, não necessariamente alternativos
nem conservadores, encontram-se perplexos diante dos
efeitos da barbárie neoliberal. Mas, sem alternativas
consistentes, a esses operadores só tem restado a crença
numa certa neutralidade, ou mesmo a indiferença, a
respeito das possibilidades de suas intervenções.
Permanecem assim na inércia reiterativa de um
conservadorismo muitas vezes involuntário. As teses do

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

mínimo ético convocam esses operadores jurídicos a


assumir posições teóricas e práticas comprometidas com a
eliminação do apartheid social e com a realização de um
programa de modernidade jurídica. O ambiente acadêmico
parece ser o solo mais fértil para o desencadeamento desse
debate. Não estamos com isso, porém, depreciando os
espaços institucionais de produção jurídica. A crescente
demanda de advogados, magistrados, promotores,
delegados de polícia e outros profissionais do direito por
mestrados e doutorados é o indicativo desse processo de
busca de alternativas consistentes para o direito. E
alternativas consistentes aqui significam construções
teóricas fundamentadas que superem o voluntarismo e o
heroísmo messiânicos com suas conseqüentes práticas
inorgânicas.
Recapitulando: se, de um lado, o relativismo
axiológico pareceu ser paralisante em virtude da mútua
anulação entre as diversas éticas possíveis; de outro, a
obstinação ideológica por ideais de justiça específicos
significou a ameaça de aventuras totalitárias (a justiça do
proletariado, a justiça do Führer, a justiça divina). Como
veremos adiante, o mínimo ético afigura-se-nos como uma
alternativa à dissociação entre ética e direito ensejada pela
paralisia relativista, como também ao risco totalitário das
ideologias inimigas da pluralidade. Quando pela idéia de
um mínimo ético é propiciada a identificação de um
núcleo estrutural necessário à formação das relações
morais na sociedade, não aspiramos tão-somente estar
ofertando um instrumento de diagnose aos juristas.
Pretendemos também sejam aliciadas responsabilidades
por sua efetivação. Porém, a distância entre o que se percebe
como sendo necessário à estruturação da ética e o que se
faz para que isso de fato ocorra não pode ser percorrida
por teoria alguma. Pertence à esfera prática de atuação dos

99
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

juristas o tornar efetiva a parcela que lhes cabe de


possibilitação desse mínimo ético.
Além disso, os juristas parecem pouco se
esforçar por corrigir a miopia de quem só enxerga o
ordenamento jurídico pelo ângulo jurisdicional. A
sofisticação do instrumental cognitivo dos juristas deve
propiciar uma apreensão global do fenômeno da regulação
social. Considerado o direito à vista de seu enraizamento
ético, tornam-se mais nítidos aqueles casos nos quais se
deve apostar no estímulo à autonomia moral dos
indivíduos, e não no puro recrudescimento da coatividade
heterônoma pela qual se mantêm os cidadãos sob a
custódia do olhar eternamente vigilante de um big brother
orwelliano. Nas sociedades bem reguladas, o melhor
direito é aquele no qual o sistema judicial funciona pouco,
justamente porque a espontaneidade moral funciona o
suficiente, pois assim pode operar. Fundamentar esse
direito é buscar um sistema jurídico-político que
intervenha excepcionalmente para punir e, especialmente,
para possibilitar a integração social e as chances de
autocompreensão moral dos indivíduos. Naturalmente, um
tal direito exige também uma nova ciência jurídica, agora
compreendida como uma ciência social, normativa e
comportamental, uma ciência jurídica cuja teoria da validade
seja complementada por uma teoria da eficácia, segundo a
qual os conteúdos normativos a serem aplicados pela
jurisdição ou observados pelos destinatários mantêm um
compromisso mínimo com os interesses integrativos e
incorporativos da sociedade. Nesse arranjo, o
ordenamento jurídico ganha em legitimidade e
credibilidade, revertendo-as em uma regulação social
optimal, equilibrada na tensão entre os extremos do par
autonomia–heteronomia. Por isso mesmo, a relação entre
o direito e a ética, tal como a estamos propondo pelo

100
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

mínimo ético, pretende ser elaborada como uma


problemática de caráter eficacial.

2.3. Liberdade e igualdade nas capacidades e oportunidades

Queremos agora seguir problematizando o


mínimo ético em uma perspectiva mais sociológica, a partir
do fenômeno do desemprego. Durante essa análise,
lançaremos mão do instrumental de categorias oferecido
pela teoria das capacidades. Comecemos então tratando o
tema do desemprego desde algumas considerações a
respeito do clássico problema da liberdade.
Engana-se quem pensa ser a liberdade uma
singela ausência de coerção. Essa é apenas a liberdade dos
direitos fundamentais da primeira geração. É também a
liberdade do não-escravo ou do empregado que, para os
arautos neoliberais, tem sempre a opção de não aceitar uma
determinada forma de relação de emprego.13
Historicamente consideradas, as proteções à liberdade
foram instrumentadas a serviço do exercício irrestrito do
direito de propriedade. Todavia, agora socialmente
considerada, a falta de liberdade pode atingir os indivíduos
tanto em suas capacidades como nas oportunidades que lhes
são apresentadas. Capacidades são aquelas qualificações
necessárias à decisão de se tentar implementar uma
determinada ação uma vez apresentada uma oportunidade.
Oportunidades, por sua vez, são os contextos factuais nos
quais determinadas capacidades podem ser exercidas.
Logo, as capacidades tratam do estar preparado para
realizar algo ou para desempenhar uma função, enquanto

101
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

as oportunidades ensejam as circunstâncias dessa mesma


possibilidade de realização.
Qualquer desempregado, no sentido acima
referido, é livre para disputar uma vaga de emprego, para a
qual serão avaliadas suas capacidades. Mas pode ser que
isso jamais chegue a acontecer por uma simples ausência
de oportunidade: não se apresentaram as tais vagas a serem
disputadas. A falta de liberdade que cancela as
oportunidades pode tornar sem sentido muitas
capacidades. O cancelamento das oportunidades pode
transformar a vida social numa falta de alternativas, em um
beco sem saída. Nesse caso, de pouco adiantaria a defesa
daquela liberdade definida como ausência de coerção, a
liberdade de não ser forçado a fazer algo. Em uma situação
de falta de alternativas, não se pode identificar um sujeito
coator, mas apenas uma situação onde uma escolha torna-
se praticamente compulsória. Tugendhat revelou
claramente algumas diferenças ocultas envolvidas no
emprego indistinto da expressão ser forçado a. Nessa
expressão podem estar contidas duas formas bem distintas
de emprego: ser forçado por alguém (no sentido de ser
coagido) e também a idéia de não se ter outra alternativa.
Modificando um pouco um exemplo do próprio
Tugendhat,14 haveria uma diferença quando não somos
livres porque alguém nos impõe usarmos roupas pretas,
sob ameaça de nos matar; e quando não somos livres para
ficarmos em nossa casa de veraneio porque um terrível
maremoto se aproxima. No primeiro caso, trata-se de uma
clássica coerção e, no segundo, de uma real falta de
alternativas, de uma supressão de oportunidades pela
circunstância de nenhum indivíduo estar constrangendo
outro a algum comportamento.

102
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

A assimetria das relações de trabalho nas


sociedades capitalistas, cosmeticamente encoberta pelo
verniz da igualdade jurídico-formal, gera uma supressão
real de liberdade do segundo tipo: produz uma restrição de
liberdade pela falta de alternativas para os que não possuem
nada além de sua força de trabalho a oferecer. Mas esse
beco sem saída, essa supressão de alternativas, não é tão
natural como no exemplo do impedimento de
permanecermos em nossa casa de veraneio. A assimetria
que produz essa supressão de liberdade é o próprio capital
ou, caso se queira, o anonimato difuso do mercado. Essa
falta de alternativas conduz ao desemprego, ao
subemprego, à neoescravidão e, mais recentemente, à
flexibilização das relações de trabalho pela qual indivíduos
já são coagidos a renunciar a direitos. Quaisquer dessas
modalidades de restrição à liberdade atinge profundamente
a formação e o desenvolvimento das capacidades, e
desencadeia um ciclo de restrições de acesso às
oportunidades. Todo esse quadro problemático tem sua
origem na desigualdade das chamadas condições iniciais –
uma desigualdade atinente ao acesso áquelas primeiras
oportunidades de formação das capacidades, as
oportunidades capacitantes. Chamaremos essa igualdade
relativa às oportunidades capacitantes de igualdade
primária. Sua primariedade reside naquela diferença entre
os indivíduos que pode ser tolerada e suportada ainda em
um regime de propriedade privada de tendências
concentrantes e, por essência, desigualitarizante. Essa
igualdade primária será então sempre precária. E essa
precariedade decorrerá da necessidade de permanente
manutenção compensatória dos efeitos desigualitarizantes
ocasionados pela acumulação concentradora. As formas de
compensação dessa concentração assumem, por sua
natureza, um caráter distributivo e eqüitativo: distributivo

103
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

porque desfazem uma parte da concentração que poderia


conduzir a níveis críticos de desigualdade primária; e
eqüitativa porque tomam em consideração as diferentes
fragilidades dos próprios destinatários merecedores dessas
medidas compensatórias.
Qualquer descuido da simetria real mínima nas
relações entre os membros de uma comunidade prejudica a
própria igualdade jurídica, podendo convertê-la em uma
instância ideológica de perpetuação dessas desigualdades.
Muito pior, contudo, é quando essa falta de simetria não é
mais entre os membros de uma comunidade, mas já se
elabora como uma distância longínqua entre os membros
incluídos e os não-membros, os excluídos. A reflexão do
mínimo ético chama a atenção para a urgência na
equalização dessas desigualdades primárias, sob pena de a
representação do edifício jurídico e social converter-se, para
amplos segmentos sociais, em uma miragem: algo sempre
visto de longe e, em realidade, inatingível. A doutrina
moderna da igualdade jurídica construiu-se sob os
auspícios da idéia de dignidade da pessoa humana, sobre a
qual os direitos humanos foram fundamentados
filosoficamente. Contudo, afastando-se os resíduos
jusnaturalistas, é preciso dizer que essa nunca foi uma
noção muito clara. Dignidade envolve a noção de
merecimento: ser digno de algo, merecer algo. Esse
merecimento é relativo ao respeito e à consideração. Com
essa idéia de dignidade Kant pretendeu expressar o dever
de respeito e igual consideração entre os indivíduos
simplesmente pela condição universal de ente racional por
eles compartilhada. O respeito devido ao outro e merecido
por qualquer um é concedido, e pode também ser exigido,
em virtude da autonomia do homem abstrato, de sua
irredutibilidade à condição de coisa ou mero meio. Para
Kant, a dignidade derivava da comunhão na condição

104
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

humana racional e impunha sempre uma mutualidade –


uma mutualidade simétrica modulada pela idéia de
igualdade entre titulares de direitos. Como é sabido,
historicamente essa igualdade foi mantida no plano
meramente formal como igualdade dos sujeitos de direitos
abstratos na sua racionalidade e em seus direitos
subjetivos. A crítica do mínimo ético a essa igualdade
formal é só uma: de nada adianta os sujeitos jurídicos
serem formalmente iguais em direitos se as criaturas
concretas, de que são expressão abstrata, vivem e sofrem
com desigualdades extraordinárias. Especialmente porque
essas desigualdades concretas cancelam ou restringem
intensamente o exercício e, antes mesmo, o acesso a esses
direitos. O discurso iluminista da dignidade da pessoa
humana necessita sofrer uma apropriação
destranscendentalizante, algo como um choque de
realidade. A idéia de dignidade humana precisa abandonar
buscas por definições essencialistas da condição humana e
adotar noções socialmente mais concretas, como as de vida
digna, sobrevivência digna, existência digna, emprego ou ocupação
dignos, alimentação digna, educação digna, saúde digna, moradia
digna. Essa dignidade concreta dirá respeito às condições
necessárias ao desenvolvimento das capacidades conviviais
elementares para a socialização. A dignidade assim
elaborada abandona a idéia de decorrência de uma
condição intrínseca ao indivíduo para se tornar uma
derivação da necessidade social de intersubjetividade.
Podemos até dizer: uma condição para a ocorrência dessa
intersubjetividade. Pela promoção e garantia de acesso
igual a essas capacidades conviviais elementares tanto
alguém pode aderir ao convívio social regulado por
normas, como o próprio Estado pode mais legitimamente
exigir o cumprimento dessas mesmas normas. Socialmente
reorientado para o plano das necessidades, o discurso da

105
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

dignidade terá de enfrentar o debate sobre o modo mais


eficaz de acesso urgente e igual às capacidades conviviais
elementares e suas respectivas oportunidades capacitantes.
Esse é o sentido de dignidade postulado pela hermenêutica
eficacial subjacente ao mínimo ético.
São hoje sobretudo os direitos sociais que
cuidam da equalização dessas desigualdades.
Especialmente porque essas desigualdades, que afetam a
liberdade no implemento dos projetos de vida, são
desigualdades sociais. Circulam no âmbito jurídico, porém,
construções teóricas e/ou ideológicas pretendendo negar o
caráter de direitos aos direitos sociais e econômicos sob o
argumento de que a eles não corresponderiam os famosos
direitos subjetivos. Direito subjetivo, como se sabe, é o
direito que tem um sujeito de exigir judicialmente alguma
prestação. Ora, mas não são os direitos sociais os que
cuidam de poder haver esses mesmos sujeitos que em
outra esfera são sujeitos de direitos? A enorme massa de
criaturas às quais essas prestações sociais se dirigem talvez
não possa, tecnicamente, nos termos gerais da dogmática
disponível, ser considerada enquanto um sujeito de
direitos, como uma pessoa natural ou uma empresa. O
caráter disperso, anônimo e massivo dessas pessoas
dificulta a reclamação dessas prestações no âmbito de
poderes judiciários historicamente direcionados para o
atendimento de conflitos interindividuais. Entretanto, isso
não representa nenhum empecilho natural ou
absolutamente insuperável. Direitos humanos, civis ou
econômicos, não podem ser examinados exclusivamente
com as lentes jurisdicionais do direito. Uma abordagem
ético-eficacial universalizante também precisa ser adotada.
E o foco moral ensina para a observação jurídica o
cuidado com seus preciosismos exagerados. Um conceito
restritivo de direitos subjetivos não pode sufocar a

106
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

totalidade real das pessoas efetivamente incluídas em uma


universalidade. O poder judiciário deve recusar a
encenação desse papel de um porteiro mau-humorado que
restringe o acesso ao clube da sociedade. Uma sociedade é
uma festa ao ar livre, jamais um coquetel em um iate de
luxo, em alto-mar, só para convidados. Não é por essa
massa de pessoas não ser considerada pela técnica jurídica
atual, enquanto coletividade, como um sujeito de direitos que
elas não têm tais direitos. O simples fato de essas pessoas
aspirarem a tais prestações qualifica a candidatura de um
agregado humano a ser promovido à condição de
sociedade. Tais aspirações denotam uma vontade de
coesão, um sentido de comunhão pela inclusão,
direcionado por uma força centrípeta. Quando os poderes
públicos, inclusive o Judiciário, sonegam essas prestações, [G1] Comentário: Antes era Judiciário,
quando era Poder.
agem como forças centrífugas, como dispersores de uma
preciosa vontade de sociedade. As inovações da teoria do
direito e a criatividade intelectual de todos os juristas
empenhados na edificação da justiça social estão aí para
oferecer respostas práticas ao esgotamento do modelo
liberal-individualista. O sucesso alcançado na construção
de algumas alternativas aponta para ótimas perspectivas.
Instrumentos como a ação civil pública, os direitos
difusos, o direito do consumidor, a proteção ambiental e
todo o regime moderno de ações coletivas dão razão a esse
otimismo.
A percepção da urgência na necessidade de
implementação dos direitos sociais e econômicos não
surge de análises exclusivamente jurídicas. Só pode sentir
essa premência quem compreende o direito e a experiência
político-social desde sua estruturação ética. E não vale aí
qualquer estruturação ética: as visões metafísicas ou
meramente axiológicas tornaram-se débeis para
demonstrar o progresso das forças centrífugas do apartheid

107
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

social. A concepção de ética que permite tal percepção


deve apresentar preocupações empíricas e eficaciais, deve
oferecer uma descrição razoável sobre como se dá a
subjetivação e a estruturação do comportamento entre
seres sociais concretos mediando-se pela moralidade e
reforçando-se pelo direito.
Na produção social da desigualdade social
aguda, grande parte das diferenças relacionadas aos pontos
de partida (desigualdade primária) decorre das diferenças
geradas pela proteção excessiva ao direito de propriedade
exercido como direito de livre concentração. Concentrações
absurdas de riquezas, oportunidades, capacidades e direitos
em muito pouco tempo produzem gerações inteiras de
herdeiros que simplesmente não precisariam trabalhar. A
prosseguir essa produção social da desigualdade, castas de
crianças bem-nascidas terão sempre muito mais
oportunidades porque antes disso tiveram acesso a um
quadro muito mais completo de capacidades.
O liberalismo não insulta sua vocação
empreendedorista ao incorporar idéias como a tributação
progressiva com fins distributivos, a restrição às atividades
especulativas, o acesso universal à saúde, à educação e à
previdência, o direito de greve, a reforma agrária, a
tributação das grandes fortunas e, mais atualmente, a taxa
Tobin incidente nas transações financeiras internacionais.
A adoção prática dessas idéias contribui para a eliminação
de heranças de privilégios e exclusões contra as quais o
próprio liberalismo outrora se insurgiu com sua proposta
universalista. No caso brasileiro, medidas como a reforma
agrária, a tributação progressiva de terras e propriedades
urbanas, a distribuição de renda, a garantia de acesso à
educação, à saúde e ao pleno emprego significam a
aceleração histórica necessária à saída de situações pré-

108
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

modernas ainda vivenciadas por largos segmentos sociais.


Representam, em grande medida, a retomada do programa
modernizante iniciado com a Revolução de 1930.
Na Europa, o Estado de Bem-Estar Social
indicou o caminho da restrição ao exercício do direito de
propriedade em proveito da elevação global da qualidade
de vida de toda uma comunidade. Nossa reivindicação não
chega a tanto, até porque não só os lugares mas também
os tempos são outros. Na maioria dos países de
modernidade periférica não podemos ainda sequer falar
em elevação da qualidade de vida quando a emergência da
situação impõe a manutenção humanitária da
sobrevivência de milhões de pessoas. O exercício irrestrito
do direito de propriedade como direito de livre
acumulação assumiu entre nós a forma de um direito à
expropriação da dignidade dos desprotegidos. A restrição
desse direito de livre acumulação tornou-se uma questão
de sobrevivência para milhões de pessoas. Garantida a
sobrevivência, a qualidade de vida passa a ser o próximo
problema. A injustiça social causada pela excessiva
desigualdade de acesso a bens, capacidades, oportunidades
e direitos converteu-se em uma humilhação sistemática e
anônima dos desfavorecidos e miserabilizados. A
perversidade de um sistema sem rosto nem centro não
permite a identificação de responsáveis. A pior
conseqüência dessa humilhação anônima é a de degradar o
significado dos direitos e das escassas conquistas legais,
que passam a ser ofertados como dádivas e benevolências.
Benevolências trocadas pelo reforço à representação pública
da benemerência das almas caridosas dos membros da elite
que prestam o favor de se dedicar à causa pública. O risco
de comprometimento da auto-representação social dos
beneficiários desse sistema distributivo clienterista e pré-
moderno é altíssimo. A própria campanha contra a fome, a

109
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

campanha do Betinho, exigiu grande atenção para não decair


nesse tipo de assistencialismo, um assistencialismo
praticado em meio a tanta miséria que, à falta de sentido
jurídico dos direitos humanos econômicos, produz
resignação com as ajudas humanitárias. Mas direitos
humanos sociais e econômicos não podem ser
considerados como ajudas humanitárias! Não são frutos do
altruísmo dadivoso e, às vezes, falsamente desinteressado.
Direitos humanos são direitos, são medidas assecuratórias
do mínimo ético, sem o qual não há aquilo que se pode
chamar sociedade. Apesar disso, a acumulação de tendências
concentrantes, indiferente aos sofrimentos sociais,
continua sendo lograda pelo abuso do direito de
propriedade fetichizado pelo neoliberalismo usurpador da
matriz jusnaturalista: o Estado somente estaria
assegurando um direito natural de propriedade. Essa
naturalização do direito de propriedade precisa de vez ser
denunciada como metafísica e ideológica. No quadro das
economias modernas o abuso do direito de propriedade e
de acumulação privada aniquila o direito ao trabalho de
milhões de pessoas. Aniquila, portanto, seus direitos a uma
identidade, a uma constituição de subjetividade no mundo
dos papéis sociais das profissões. A sacralização do direito
de propriedade sonega respeito-próprio a milhões de
pessoas que não conseguem prover a subsistência de si e
de suas famílias sem dependências exageradas ou
desproporcionais.
A legitimidade do Estado em exigir dos
cidadãos condutas conforme o direito depende
diretamente de ele também fazer sua parte na
possibilitação das condições de vida dignas. Construída no
espaço democrático, a legitimidade estatal proporciona
esse feedback das mutualidades. Indivíduos mais fragilizados
são auxiliados também para que não corram o risco de ter

110
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

de faltar com seus deveres elementares em relação a toda a


comunidade para garantir sua subsistência. A metáfora do
contrato aplicada à explicação fundacional e/ou funcional
de uma sociedade possui inúmeras versões no cardápio da
filosofia política e moral. Em todo caso, acima das infinitas
particularidades pelas quais poderíamos pensá-lo, o
contrato encerra sempre a idéia de relação bilateral, de
mutualidade. A mutualidade horizontal estatui certas
normas válidas para uma nova qualidade de mutualidade: a
vertical, aquela dos deveres e obrigações entre cidadãos ou
súditos e o Estado, representante da pactuação pela qual se
constitui uma sociedade. Modernamente, em qualquer uma
dessas mutualidades, vertical ou horizontal, o contrato
instrumenta o asseguramento de certas expectativas,
historicamente formuladas como reclamações por
segurança jurídica e hoje apresentadas segundo a idéia de
risco. Quando o Estado não cumpre sua parte na
promoção das condições de sobrevivência digna em
relação aos mais fragilizados, essa mutualidade fica
seriamente comprometida. O dever de contraprestação
dessas pessoas passa a representar uma séria dúvida. Por
isso mesmo, a promoção dos direitos humanos torna-se
uma questão de legitimidade do Estado e de segurança
jurídica enquanto controle do risco de desestabilização
social.
Pensadores tão distantes como Aristóteles e
Marx observaram que a idéia de justiça sedimentou-se
ancestralmente pela noção de troca. No ínterim dessa
troca, pode haver desigualdades, injustiças. Mas, mesmo
assim, não são raras as vezes em que as pessoas continuam
trocando. Ou o que parece ser mais correto: mesmo
percebendo a desigualdade, as pessoas necessitam continuar
trocando para continuar vivendo. Ruim a troca desigual,
pior ainda troca alguma. Mas as coisas vão muito mal para

111
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

uma economia social quando desaparecem as


possibilidades de negociação em uma troca, quando a
justiça de um preço se torna algo indiscutível pela falta de
alternativas. O mercado social que sofre essa cartelização
apresenta distorções graves na sua noção de valor. A troca
perde seu sentido como possibilidade, isto é, como
exercício de uma liberdade. Passa a ser uma necessidade. O
que antes era uma escolha apresenta-se agora como uma
falta de alternativas. Mas a negociação das condições de
troca será sempre a alma da justiça social, assim como a
discussão do preço é a alma da atividade econômica
praticada nos mercados. Somente por essa negociação
pode-se corrigir o grau de dependências exageradas ou
desproporcionais entre os membros de uma comunidade.
A liberdade resta sempre tolhida quando se suprime a
negociação sobre as formas de oferecimento e acesso às
oportunidades em vista das capacidades que lhes são caras.
Essa ausência de negociação é uma supressão flagrante da
liberdade fundada na assunção de uma desigualdade
primária impossível de ser fundamentada. Essa é a fórmula
pela qual se tenta hoje constranger os trabalhadores a
aderirem à flexibilização das relações de trabalho. A oferta
capitalista nem exige a contrapartida de uma deliberação
autônoma, pois é antes uma forma de coerção. Não é dito:
vamos discutir isso. Desde sempre já é imposto: ou isso, bem
assim, ou nada. E ainda se acrescenta: contudo, você ainda
continua livre para escolher! Apresenta-se uma disjuntiva entre
escolher as condições do contrato, tal como são
oferecidas, sem negociação, ou escolher o
comprometimento da própria subsistência – uma escolha
certamente salomônica.
Com efeito, uma análise detida das relações
sociais desiguais também revela sua origem variada e seus
efeitos difusos. Além das desigualdades diretamente

112
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

econômicas, determinantes na implementação dos projetos


de vida, também podem ser notadas desigualdades em
relação à cultura, aos gêneros, às etnias, às capacidades
especiais e aos talentos. Uma distribuição igualitária e
capacitante deve procurar atingir as combinações entre
essas diferentes formas de desigualdades primárias. A
dificuldade prática aí emerge dos inúmeros arranjos que se
podem estabelecer entre elas. A metáfora da rede é
recorrente. Assim como as desigualdades
instituídas/instituintes tramam uma rede, a distributividade
capacitante e oportunizante deve tramar um contratecido a
fim de substituí-la. Nesse contexto, a perplexidade é
agravada quando a distribuição não se apresenta mais
como um exclusivo problema de repartição igual, passando
a exigir um debate fundamentativo sobre os critérios pelos
quais uma distribuição desigual é às vezes considerada a
mais justa. A distributividade envolve agora não apenas o
quanto repartir, mas também o como se deve repartir.
Diante dessas questões, somente a proliferação de
múltiplas combinações entre as ações emancipatórias pode
restabelecer uma nova correlação entre distribuição e
capacitação. Boaventura de Sousa Santos denominou esse
processo de globalização contra-hegemômica.
Fora dessa ação articulada entre as diversas
ações emancipatórias, qualquer reivindicação isolada por
igualdade corre o risco do arrivismo, isto é, de se realizar
ao custo de novas desigualdades corporativas. Ou ainda,
sofre a ameaça de ser bloqueada por novas incapacitações,
sendo impedida pela sonegação distributiva em níveis
superiores de acesso a oportunidades-meio. Retornemos
então ao ponto de vista econômico, agora com a
consciência clara de que ele, embora crucial, não constitui
um eixo analítico exclusivo.

113
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Qualquer repartição primariamente desigual


reflete imediatamente não apenas na capacitação dos
indivíduos mas também no acesso àqueles bens simbólicos
essenciais à subjetivação. Ademais, a viabilização dessa
subjetivação (e da própria intersubjetividade) não deve ser
resumida àqueles âmbitos designados por Boaventura em
sua Crítica da Razão Indolente como espaço da produção
(fábrica, empresa) e espaço da cidadania (Estado). A forma
predominante de se compreender a organização social
pelos filtros da política e da produção resultou do volume
concentrado de saberes que a abordagem eurocêntrica
produziu a respeito dessas instâncias. Sem descurá-las,
Boaventura sugere que a atenção seja voltada também para
outros setores, como o espaço doméstico (casamento,
família, parentesco), o espaço do mercado (lugares e
modos de troca); o espaço da comunidade (vizinhanças,
ambientes de convívio, organizações populares, igrejas); e
o espaço mundial (associações interestatais, organismos e
associações internacionais). Uma rede alternativa de
igualdades primárias pode ser mais bem imaginada pela
inclusão desses espaços na trama da malha social pela qual
o poder também circula. Eventos como o Fórum Social
Mundial, realizado em 2001/2002 na cidade de Porto
Alegre/RS, apontam para a trama desse contratecido de
práticas emancipatórias no contexto de uma globalização
contra-hegemônica.
Outro modo de se tentar compensar os efeitos
distorcivos das desigualdades primárias é por meio das
discriminações secundárias, também conhecidas como
discriminações inversas, políticas de quotas, discriminações
positivas ou compensatórias. As experiências de
compensação das desigualdades pela estratégia das
discriminações secundárias envolvem inúmeras
dificuldades, práticas e teóricas, produzindo muitos acertos

114
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

e outros tantos desacertos. Uma dessas dificuldades é a


existência de desigualdades que não podem ser creditadas a
uma única fonte de discriminação. As coisas se tornam
ainda mais difíceis quando soluções são mecanicamente
transplantadas para culturas jurídicas e tradições históricas
dissonantes daquelas nas quais foram gestadas. A
experiência norte-americana de reserva de vagas para os
negros nas universidades tem atrás de si lutas
empedernidas e particularidades históricas de uma
escravidão absolutamente contrária à miscigenação. No
Brasil, embora a discriminação contra os negros seja
indiscutivelmente elevada, a forma como ela se apresentou
obedece a outras peculiaridades. Os adversários da adoção
das políticas de reserva de vagas pelas universidades
brasileiras elencam aí alguns argumentos: como, no Brasil,
se poderia definir de modo categórico quem pertence ou
não a esse grupo quando o conceito biológico de raça foi
aposentado, quando a miscigenação diluiu boa parte das
características somáticas mais pronunciadas e quando as
culturas afro-ascendentes originárias foram assimiladas em
sincretismos inusitados? Além do mais, argumenta-se,
como é possível selecionar, dentre os diversos grupos
representantes de diferenças, aqueles que realmente sofrem
com situações antiigualitárias? Por que os negros e não os
índios, ou ainda por que não ambos? Por que os índios e
os negros, e não os caboclos? E logo surgiria a questão:
por que os caboclos e não os amarelos? Mas, afinal, quem
são esse amarelos? Serão justamente aqueles descendentes
de japoneses que ocupam grande parcela das vagas nas
universidades paulistas de rigorosa seleção? Esses são
problemas difíceis de ser encarados em perspectiva prática.
Muitas vezes parece mais prudente, e também eficaz,
perseguir o asseguramento efetivo da igualdade genérica e
universal desde as condições primárias de disputa.

115
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Tentativas de se compensar seletivamente algumas


desigualdades sempre fazem surgir dúvidas a respeito do
critério adotado nessa seletividade. Um oceano de
questões derivadas verte dessa estratégia. Mas nenhuma
dessas conjecturas suscitadas pelos adversários da política
de quotas pode elidir alguns fatos inquestionáveis: aqueles
que geralmente identificamos como não-brancos
efetivamente têm um baixíssimo acesso ao ensino superior
ou à renda, assim como a ocupação de cargos públicos ou
de chefia por mulheres tem sido muito menos freqüente
do que por homens, embora a proporção na composição
da sociedade brasileira seja praticamente a mesma no caso
de mulheres em relação a homens e majoritária no caso de
não-brancos em relação a brancos. É também no terreno
cultural e das vivências quotidianas que devemos combater
essas discriminações, fontes de desigualdades injustas
porque infundamentáveis no contexto de uma ética pós-
tradicional. As novas gerações devem ser educadas para o
sentido profundo dessa igualdade. A adoção de políticas de
discriminação inversa constitui uma tentativa de acelerar
esse processo, embora se corra o risco, de acordo com os
matizes práticos adotados, de se criar uma outra forma de
discriminação: aquela contra as pessoas que tiveram acesso
às oportunidades por critérios diversos do merecimento
por capacidade. Nesse plano exclusivamente abstrato não
seria prudente assumirmos aqui um posicionamento
categórico. Todavia, embora alguns argumentos da
filosofia possam falar contra as quotas, o peso da realidade
histórica das desigualdades acumuladas e em permanente
reprodução é insuportável. Diante disso, a atitude de
simplesmente aguardar que as coisas naturalmente se
modifiquem pode significar uma inércia complacente.
Tudo depende do grau de consciência que uma sociedade
atinge a respeito do sacrifício momentâneo de igualdade

116
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

que está disposta a fazer para produzir menos


desigualdade. Apesar da divergência quanto aos meios, a
grande meta final continua sendo uma só: a produção da
igualdade primária relativa ao acesso indiscriminado e
efetivo às oportunidades capacitantes.
Mas a igualdade primária não se faz somente
com a garantia de acesso igual às capacidades. As
distribuições de bens, direitos, oportunidades e poder
também são necessárias. Nesse caso, a distribuição mais
justa, também dita a mais eqüitativa, geralmente é
identificada como aquela de índole igualitária. A
distribuição igualitária deve lutar contra todas as
discriminações e prerrogativas consideradas infundadas em
contextos pós-tradicionais: a posição privilegiada do
gênero masculino, dos fenótipos brancos, das culturas
classificadas como eruditas, das opções heterossexuais, dos
credos oficiais, das ascendências ditas nobres. A invocação
dessas ex-prerrogativas é hoje vedada. Nenhuma delas vale
mais como fundamentação, embora suas marcas profundas
ainda produzam efeitos no estado desigual de diversas
sociedades contemporâneas. Logo, persistem certas
possibilidades de que uma distribuição desigual, em
determinadas situações, seja mesmo assim a mais justa.
Essa arte da justiça com desigualdade é a própria
modulação buscada pela eqüidade. Dois princípios de
justiça propostos por Rawls em sua já clássica Uma Teoria
da Justiça sintetizam de modo lapidar essa relação entre a
justiça e a desigualdade. O primeiro desses princípios
afirma que cada indivíduo deve ter um igual direito ao mais extenso
sistema de liberdades básicas que seja compatível com o mesmo
sistema para os outros. Já o segundo princípio afirma que
determinadas desigualdades econômicas e sociais só são aceitáveis se, e
somente se, proporcionarem vantagens para todos, e decorrerem de
funções as quais todos têm acesso. Rawls, contudo, não cuida de

117
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

oferecer uma teoria da democracia para meditarmos o como


desses seus princípios, que, em estado abstrato de crisálida
filosófica, de tão límpidos parecem poder ser aceitos sem
maiores polêmicas tanto por liberais como por socialistas.
Ademais, quem se dedica seriamente ao problema da
igualdade deve demonstrar uma grande preocupação com
os direitos sociais e econômicos. Especialmente porque é
por esses direitos que a igualdade pode realmente ser
edificada em sociedades de modernidade periférica. Na
sociedade norte-americana seguramente grande parte
dessas questões já está razoavelmente encaminhada. E,
lamentavelmente, sem uma discussão sobre os direitos
econômicos e a democracia, o tema da justiça social corre
o risco de se transfigurar em uma discussão de diretrizes
ideais para instituições que em geral seguem funcionando
com ou sem elas.
Não raramente exercícios filosóficos sobre a
sociedade, quando desprovidos dos imprescindíveis
contrapontos sociológicos e históricos, tornam-se um luxo.
Ou, quem sabe, uma justificação do que deve ser, extraída
do que há muito já é. Teorias que discutam as
desigualdades entre quem tem 95 e quem tem 100 não
satisfazem nossas urgências e emergências (são
desigualdades entre os que já estão dentro da sociedade),
ainda mais quando tais teorias são importadas por
realidades em que o abismo é muito maior: entre quem
tem 1.000.000 e quem não dispõe sequer de alimento para
sobreviver mais um dia (são desigualdades entre os que
estão dentro e os que estão fora da sociedade). A efetivação
da justiça social nos países de modernidade periférica
envolve problemas muito mais severos do que a
configuração de um arranjo institucional ótimo para o
Estado. Envolve a viabilização de políticas inclusivas de
eliminação do apartheid social. No Brasil, mais de 22

118
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

milhões de pessoas sobrevivem com menos de 20 dólares


por mês. Essa situação de indigência envolve a idéia de um
mínimo irrealizado. Um mínimo que expõe nossa
sociedade à lastimosa constatação de um nem isso! Um nem
isso talvez relativo à própria designação sociedade. O
discurso teórico da justiça e do modelo norte-americano
de organização institucional desempenha ainda uma
função de controle importante sobre o terceiro mundo: o
de fazer as intelectualidades locais acreditarem que seus
países são injustos em vez de subdesenvolvidos.15 Esse discurso
da injustiça desloca boa parte da responsabilidade pelo
drama social para uma inépcia jurídico-institucional de
uma justiça compreendida segundo os cânones
individualistas. A injustiça dos direitos individuais e o
fantasma da desorganização institucional assimilam a
injustiça da sonegação dos direitos sociais e econômicos de
larga escala. E tudo é assim vertido numa exigência de
maior cultura jurídica, de maior atenção à arquitetura das
instituições, de maior disciplina, de mais austeridade, de
maior aplicação na execução do receituário elaborado pela
inteligentsia estrangeira. A miséria e a desgraça são
creditadas a uma certa imaturidade, a ser superada com
muito esforço e bons aconselhamentos como os do FMI.
O discurso hipócrita da justiça que não aborda os direitos
sociais esvazia o conteúdo econômico e geopolítico do
subdesenvolvimento. Além disso, reforça nas elites a
sensação de terem falhado na implementação dos modelos
importados. Cada vez mais, a exigência por justiça social,
isto é, por igualdade primária significa a adoção de
medidas de envergadura econômica, que não são, nem
podem ser, puramente técnicas, mas sim o reflexo dos
diferentes projetos de desenvolvimento e de soberania
disponíveis. Alguns desses projetos de desenvolvimento
estão bastante interessados em iludir sua imoralidade

119
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

intrínseca, seu caráter antiigualitário, pelo desvio das


atenções para os quebra-cabeças dos diferentes arranjos
institucionais.
No entanto, a autêntica justiça social, aquela
que não se perde em questões paralelas, cuida de adotar
estratégias de financiamento da autonomia dos indivíduos
como membros de uma comunidade. Cuida de que os
membros dessa comunidade possam chegar a conviver
como uma sociedade. Nesse caso, um dos problemas mais
críticos dessa autonomia, tão importante para a realização
da dignidade, é o do combate ao desemprego. A exclusão
em massa provocada pelo desemprego e outras tantas
sonegações de oportunidades provoca um déficit naquelas
capacidades conviviais elementares de milhões de
indivíduos. A auto-representação de um indivíduo como
membro de uma sociedade, ao experimentar sucessivos
abalos irrecuperados, sofre um processo de erosão,
vertendo-se em um intenso descrédito nas razões da
cooperação e muitas vezes culminando em violentas
revoltas ou em profundas depressões. Contudo, certos
abalos à auto-representação de alguém enquanto membro
de uma comunidade ocorrem regularmente como algo até
bastante compreensível. A grande maioria dos indivíduos
está sujeita àqueles eventos mais ou menos contingenciais,
praticamente aleatórios, como, por exemplo, sofrer uma
demissão. Mas o potencial de assimilação desses abalos
está diretamente ligado à oferta real de oportunidades para
sua reparação ou compensação. Um abalo não é uma
destruição se puder ser consertado. Todavia, quando esses
abalos se sucedem, ou, ainda pior, quando acionam um
processo de exclusões em cadeia, os indivíduos podem
chegar a alimentar um descrédito motivado em relação às
vantagens efetivas vislumbradas na cooperação social. A
sonegação reiterada de oportunidades tira o fôlego dos

120
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

indivíduos, justamente quando poderiam recobrar energias


para o incremento da credibilidade social. Esse descrédito,
porém, não se apresenta como a primeira reação. Ele
resulta de um processo gradual de erosão da credibilidade
nas vantagens do convívio cooperativo, com todas as
renúncias e obediências a restrições que essa maneira de
agir exige de modo normativo e intensamente coativo.
Finalmente, a culminância dessa erosão expõe à vista o
osso de um niilismo cooperativo pelo qual são postas sob
sérias dúvidas as próprias vantagens advindas de uma
integração social tornada improvável e conseqüentemente
cada vez mais representada como indesejável.

2.4 Direito e ética: impunidade e estratégias de


resistência à exclusão social

Naquelas comunidades em que graus razoáveis de


inclusão foram alcançados, a regulação normativa do
convívio social sucede-se por uma retroalimentação
equilibrada do ciclo estabelecido entre a autonomia moral
e a heteronomia jurídica. Em tais comunidades, o reforço à
moralidade pelo caráter ameaçador do direito é
indispensável ao acionamento de sofisticadas estruturas
sociopsíquicas pelas quais circulam aqueles sentimentos
morais necessários ao convívio pacífico e cooperativo.
Sociedades complexas como as contemporâneas jamais
poderiam subsistir sem essa coalizão formada entre a
moralidade e o direito. Na ausência do temor, infundido
pela ameaça coativa da observação jurídica, certos
dispositivos operacionais da ética nem mesmo seriam
postos em movimento na orientação das afecções morais
dos indivíduos. Assim, em sociedades complexas, a
regulação espontânea de grandes contingentes de

121
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

destinatários jamais subsistiria sem o socorro coativo da


heteronomia jurídica, muito embora isso não signifique
nenhuma insistência sociologicamente leviana na
prerrogativa motivacional do medo da sanção.

Afastado o exagero da paranóia panoptista, de


ascendência utilitarista, o caráter observador do direito
torna-se imprescindível ao desencadeamento da motivação
dissuasiva daquelas transgressões atentatórias contra a
comunalidade cooperativa. Mais adiante, quando tratarmos
de sentimento de justiça e concretização do mínimo ético (item 3.4),
veremos como uma certa zona de intersecção
conteudística, compartilhada pela moralidade e o direito,
produz, na estrutura motivacional que abrange grande
parte do senso comum, o resultado de uma juridicidade
putativa, cuja eficácia vinculante dos destinatários acaba por
ampliar o espectro positivo do controle heterônomo
realizado sobre sujeitos que supõe praticar ações produtoras
de conseqüências jurídicas.

A retroalimentação desse ciclo estabelecido entre


autonomia e heteronomia descreve uma verdadeira
economia normativa do comportamento social. A
regulação dessa economia envolve sempre o ajuste fino e
preventivo de numerosas variáveis motivacionais. E apesar
de não podermos minudenciar uma a uma essas
microvariáveis motivacionais -- no atual estágio das
ciências sociais talvez isso nem mesmo seja possível -- uma
coisa é certa: sem a ameaça heterônoma da coatividade
institucional do direito, ou, por outro lado, sem que o
direito e a política preocupem-se com a viabilização social
dessa mesma moralidade, a retroalimentação equilibrada
desse ciclo pode experimentar graves abalos. A necessária
complementaridade entre moral e direito é então um

122
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

problema crucial na regulação normativa do


comportamento social. Muitos reflexos da perda de
equilíbrio nessa complementaridade entre autonomia e
heteronomia na microrregulação do comportamento social
podem dar causa a diversas conseqüências negativas inter-
relacionáveis, vejamos algumas: (1) sem a capacidade moral
de representação psíquica da coatividade jurídica, o temor
ao castigo seria ilíquido; (2) sem o temor a esse castigo, o
sentimento de culpa poderia torna-se inócuo no refreamento
transgressivo por uma ausência efetiva da possibilidade de
sobrevinda de algum grave desprazer na forma de uma
sanção externa punitiva; (3) sem esse sentimento de culpa,
a sanção interna, experimentada como um sofrimento
psíquico pelo transgressor, seria menos intensa, pois o
castigo no qual culmina a reprovação jurídica sem dúvida
representa a certeza objetiva da gravidade de uma prévia
reprovação moral; (4) assim, na ausência dessa sanção
interna, a vergonha moral perderia sua gravidade ou nem
mesmo chegaria a se manifestar, pois qualquer violação
rapidamente seria convertida em um lastimável mal-
entendido, e, ainda nesse caso, (5) provavelmente as
tortuosas auto-justificações complacentes entrariam em ação para
absolver transgressores perante o tribunal de suas próprias
consciências; e, por fim, (6) sem essa vergonha moral, a
indignação e a censura dos espectadores não teriam
ressonâncias exteriores além do puro aborrecimento ou da
ira vã de uma comunidade de conviventes já prejudicados.
Ademais, (7) diante da inutilidade prática da indignação e
da censura, seguramente teria início uma sucessão de
eventos dilapidadores do bem comum impulsionada pela
inoperância da vergonha moral e pela expectativa de
ausência de punição. A longo ou até a médio prazo, o
resultado da reiteração disso tudo pode ser sintetizado em
uma expressão: colapso do sentido social.

123
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Com efeito, em meio a esse estado de coisas acima


cogitado pode ainda ter origem uma das conseqüências
mais nocivas do desarranjo entre moralidade e direito: o
fenômeno da impunidade. A propagação social de uma
excessiva dúvida em relação à expectativa de punição faz
desaparecer aquela eficácia normativa fundada na
exemplaridade inibidora da motivação transgressiva;
produzida por uma oferta de prazer proibido a ser
compensada pela contrapartida de uma ameaça de
sofrimento. O olhar social que flagra o desatendimento do
direito ao teatro dos sentimentos morais enseja uma
desmoralização do sistema jurídico perante a comunidade
dos destinatários. Com a crescente tecnificação do direito,
a decepção desse olhar social pode ser justa, como nos
casos de impunidade, ou simplesmente opaca, como no
caso de uma absolvição juridicamente possível interpretada
como impunidade. Desde um ponto de vista social e
puramente moral, a injustiça do que é comumente
designado como impunidade apresenta grandes
dificuldades em distinguir a ausência de processamento ou
selecionamento daquela ausência processada de punição.
Talvez essa indistinção entre impunidade e ausência de
punição processada possa ainda ser creditada, ainda desse
ângulo social, ao fato de que o direito historicamente
sempre apresentou-se muito mais como uma instância
punitiva do que como uma instância asseguradora de
condições de vida dignas. Assim, a sede vingativa dos
indignados com a impunidade só consegue clamar por ser
honrada com a única espada por eles conhecida: a punição
-- justamente aquela punição em vista da qual estes
mesmos indignados sempre se mantiveram fiéis à
obediência normativa. A impunidade exibe então esses
dois aspectos essenciais: a indignação social daqueles que

124
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

censuram uma falha persecutória como injustiça e, por


outro lado, a indignação social daqueles que interpretam
uma não-aplicação de sanção judicial como injustiça. Os
detalhes dessas distinções não serão aqui pormenorizados.
Interessa-nos singelamente sublinhar que o caráter
dissuasivo do temor à ameaça jurídica só é mesmo eficaz
quando algumas dessas ameaças se concretizam, ao ponto
de termos razões suficientes para supormos que, em nosso
caso, elas também poderiam se concretizar. Além disso,
fica também o diagnóstico preliminar de que a
interpretação pela moralidade social daquela impunidade
equívoca (a absolvição tomada como impunidade) decorre
da própria incapacidade de o direito alimentar, no
imaginário social, uma noção de si mesmo se não
alternativa, ao menos complementar em relação à pura
coatividade punitiva.

Existe, entretanto, uma outra hipótese, de


conseqüências ainda mais nefastas, para essa crise na
retroalimentação entre moralidade autônoma e
heteronomia jurídica. Segundo tal hipótese, tudo
provavelmente se passe de modo ainda pior, pois esse ciclo
retroalimentado, ao invés de paralisar, degenera em situações
de reação em cadeia de exclusão social. Trata-se de uma erosão
da representação da inclusividade social. Muito mais grave
do que toda essa parafernália normativa do ciclo
auto/heteronomia simplesmente cessar suas atividades é
que suas engrenagens comecem a moer carne humana.
Falamos há instantes do fenômeno desagregador da
impunidade. Nas situações de reação em cadeia de exclusão
social, essa impunidade passa a ser interpretada como uma
injustiça seletiva quando o recrutamento para aquelas
poucas punições a serem concretizadas pelo sistema
jurídico adota critérios que privilegiam a escolha de

125
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

indivíduos já excluídos socialmente das possibilidades de


uma vida digna e, por conseqüência, excluídos da própria
possibilidade de inserção correspondente em uma
mutualidade cooperativa.

Naquelas sociedades de baixa justiça social, quando


a impunidade soma-se a ou converte-se na propensão
seletiva dos já excluídos o ciclo regulador do
comportamento social perde seu frágil equilíbrio, cedendo
lugar à reação em cadeia de exclusão social. A devastação
estabelecida pela exclusão social, aliada à sonegação de
capacitação para o atendimento às expectativas morais,
tende a produzir cada vez mais suscetibilização seletiva
perante o sistema jurídico, sobretudo penal. E esta
suscetibilização, por sua vez, tende a gerar ainda mais
exclusão social. A projeção dessa tendência é bastante
simples de ser elaborada. Ao recrutar clientes
seletivamente com suas políticas de ilegalidades
privilegiadas o sistema jurídico-penal agrava ainda mais a
exclusão social, não só pela prisionização e supressão
física do convívio, mas também pela rotulação
estigmatizante dos condenados e dos ex-presidiários que
atinge simbólica e materialmente, além deles mesmos, seus
círculos familiares e de amizade. Caso não seja refreada, a
propensão contagiante dessa reação em cadeia da exclusão
social tende a atingir quantidades cada vez maiores de
indivíduos. Certas analogias fornecem noções sobre o
caráter expansivo dessa reação em cadeia da exclusão
social: o alastramento da contaminação desencadeada em
um cogumelo nuclear, a aceleração e o crescimento
montanha a baixo de uma bola de neve e a ramificação de
uma árvore genealógica. Torna-se assim bastante fácil de
ser percebido como esse caráter geometricamente
expansivo e acelerado da reação em cadeia da exclusão

126
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

social é bastante distinto da constância cíclica mantida sob


regularidade na retroalimentação estável produzida entre
autonomia moral e heteronomia jurídica, cuja base de
viabilização é a promoção e a proteção da justiça social.

O desvendamento dos caminhos das agressões ao


compromisso cooperativo enfrenta inúmeros obstáculos
comunicativos e simbólicos na representação social. A
impunidade e a seletividade são apenas alguns desses
obstáculos. Muitos dos lesados dessas agressões à
comunalidade cooperativa nem chegam bem a
compreenderem-se enquanto vítimas, sofrendo
conseqüências que, ao cabo, são creditadas à inoperância
anônima de um sistema abstratamente nefasto. O
descontentamento desses lesados ou dessas vítimas que
não conseguem identificar seus algozes acaba vertendo-se
em uma revolta social, freqüentemente violenta, e em uma
insatisfação generalizada contra as instituições sociais e os
poderes genericamente reprovados como corruptos ou
ineficazes. A exclusão social passa a ser em muitos casos
experimentada pelos excluídos como uma injustiça a ser
vingada. E ainda naquelas ocasiões em que a interpretação
social da impunidade consegue elaborar uma crítica ao
critério subterrâneo da seletividade, a indagação fatídica do
selecionado “por que, afinal, logo eu estou sendo punido?”
desmarcara a proposital ausência de isonomia persecutória
que está na base (des)funcional dos sistemas penais das
sociedades sem justiça social. Quando a clareza sinistra
desse “logo eu” demonstra que o sistema não é para qualquer
um, mas sim somente para alguns, não apenas o indivíduo
concreto que encarna esse gênero revolta-se, mas também
o próprio gênero daquelas pessoas tornadas mais
suscetíveis a esse selecionamento. Teremos nós, os
integrados, o direito de considerar esta uma revolta injusta?

127
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Durante essa erosão da representação da


inclusividade social, pode ainda ser observada a adesão de
indivíduos a verdadeiros kits de medidas sociopsicológicas
pelas quais grupos inteiros esquivam-se de chegar à
experiência disso que chamamos niilismo cooperativo: o
reforço à solidariedade das comunidades dos bairros de
periferia, os grupos de música e atividades culturais e
outras tantas formas de construção de uma
intersubjetivação alternativa e/ou supletiva àquela que é
sonegada pela representação da sociedade abundante dos
incluídos. Entretanto, para alguns desses grupos o modo
mais acessível de assimilação dessas sucessivas surpresas
infelizes da vida consiste em reputá-las à vontade
probatória de algum deus.
O severo decréscimo de auto-estima
experimentado por quem sofre o desemprego, inclusive no
sentido psíquico, paralisa, entre diversas outras
capacidades, o senso empreendedor e muitas vezes até o
próprio gosto pela vida. Desemprego e depressões
profundas desenham um quadro lastimoso no qual
infortúnios materiais se unem a um intenso sofrimento
psicológico. Famílias são desagregadas pela discórdia
nascida da miséria. Crianças tornam-se dependentes do
crack ao terem a construção de suas personalidades
espelhada no abandono e nos maus-tratos, na exploração
sexual ou em pais flagelados pela perda da dignidade. A
humilhação resultante dessa situação é muitas vezes tão
intensa que chega a produzir uma simploriedade nas
personalidades. Esse estado simplório da personalidade,
combinado à humilhação, degrada o respeito próprio pelo
recebimento de migalhas por vezes atiradas a essas pessoas
para que não sucumbam completamente à indigência.
Parentes, instituições de caridade e até governos tratam de

128
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

implementar esse altruísmo simultaneamente necessário para


a sobrevivência e devastador para o significado da própria
dignidade. A simploriedade desses humilhados manifesta
sua contrapartida na forma de uma gratidão exagerada a
essas prestações consideradas dadivosas. Pelo seu estado
prolongado, essa simploriedade seguramente só surge após
o cancelamento de sentimentos ativos e reativos como a
raiva e a irresignação. Origina-se, portanto, do
reconhecimento de uma impotência. A simploriedade
nutre-se do entendimento inconsciente desses indivíduos
de que deveriam encenar um certo coitadismo para se
tornarem merecedores das ajudas que recebem. Os
caminhos da auto-representação psicossocial desses
indivíduos como membros de uma comunidade experimentam
níveis tão tortuosos que lhes parece não ser suficiente a
desgraça vivida. Muito logo essa simploriedade e esse
coitadismo fundem-se na assimilação profunda de um
amargo sentimento de derrota. Finalmente, essas pessoas
cedem ao desempenho do papel de fracassados ou
imprestáveis. O conformismo desses fracassados na guerra
pela sobrevivência alicia hordas de indivíduos dóceis,
apolíticos, resignados e gratos pelos donativos e esmolas
com os quais conseguem seguir sobrevivendo. Essas
hordas de indivíduos auto-representados como
malogrados expressam o grau mais aviltante de desprezo a
si mesmo a que pode ser levado um ser humano a atingir: a
renúncia aos projetos de vida, o conformismo quase ou já
místico com a graça da desgraça de uma subsistência
restrita à manutenção de funções fisiológicas. Isso que
estamos caracterizando como simploriedade interioriza ainda
uma infantilização regressiva no estado de cuidado
merecido por essas pessoas novamente expostas a uma
fragilidade excessiva. Ingenuidade, lampejos de catatonia,
pasmaceira, alcoolismo e apatia transformam homens em

129
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

farrapos aniquilados em suas capacidades de reação diante


das dificuldades da vida. Um sentimento profundo de
desistência invade esses indivíduos, que ao cabo perdem
completamente o direito a suas identidades na circulação
intersubjetiva processada no exercício e reconhecimento
dos papéis sociais.
Mas no quadro da exclusão social
contemporânea, nem todos os alijados da produção e da
circulação econômica engrossam as fileiras dos simplórios
de hoje e de um lumpesinato de outrora, resignado e
errante, ou, quando muito, voltado à prática de ilícitos de
baixa lesividade social, como a punga e a exploração da
prostituição. Muitos excluídos de hoje adotam estratégias
de sobrevivência mais agressivas e amiúde ostensivamente
contrárias aos interesses mais nítidos do bem-estar
coletivo. Os excluídos de agora são recrutados pela
economia paralela do crime organizado. A despeito de
ignorar completamente obrigações como direitos
trabalhistas ou tributação, essa economia movimenta uma
cifra negra de volumes astronômicos e demanda
funcionários bem treinados para o desempenho de
atividades intrépidas e de altíssima corrosão social. A
malandragem romântica da década de 50, exaltada em
sambas inclusive fora dos morros, é substituída pelos
soldados do tráfico de drogas. Em lugar das navalhas e do
chapéu panamá com roupa branca, estão agora o rifle
AR15 e os capuzes que amiúde escondem rostos de
crianças.
Os excluídos pelo desemprego e pela
sonegação de dignidade material mínima são agora incluídos
no crime organizado. Mas esses indivíduos não são apenas
incluídos na rotina dessas práticas ilegais. Muito mais grave
que o simples recrutamento dos soldados do tráfico é a

130
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

formação de todo um campo social simbólico onde


intersubjetividades se reconhecem pela codificação da
hierarquia paralela do crime organizado: uma associação
cooperativa funcionando com suas regras de fidelidade,
obediência e silêncio com vistas ao patrocínio de fins
ilícitos. Esse crime organizado produz sua própria elite:
seus ricos, famosos e poderosos, seus lugares de destaque,
seu plano de carreira com postos aos quais se pode aspirar
e ascender desde uma condição de subordinado raso. O
caráter funesto do desvalor moral dessa ilicitude se
desvanece quando seu sentido mais imediato é o de prover
subsistências materiais melhores. O potencial dissuasivo
do desvalor axiológico mal/mau sobre o qual se constrói a
ilicitude é rapidamente vencido pela eficácia persuasiva dos
bens e facilidades adquiridos com remunerações certas.
Gradualmente, afigura-se como injusta e despropositada a
imposição de uma sociedade que exige não fazer o mal a
ninguém sem fornecer alternativas para que ao menos se
faça o bem mais elementar a si mesmo. Os valores
volatilizam-se ante as conquistas materiais, que assumem
uma significação muito maior em situações de pobreza
extrema ou miséria. O valor moral cede ao apelo e à
urgência do valor econômico. Isso tudo inaugura o drama
de um relativismo axiológico de outro nível. Não mais o
relativismo tergiversante entre os valores cristãos dos
católicos e dos protestantes, que convivem em suas
diferenças cada qual com sua sobrevivência previamente
garantida. Essa qualidade de relativismo axiológico torna-
se até um luxo, um requinte de quem pode ter valores
como bens espirituais. O outro relativismo axiológico de
que falamos é aquele que põe em cheque o consenso mais
elementar sobre o bem e o mal com argumentos muito
fortes, como o da sobrevivência. Se o aborto deve ou não
ser criminalizado é algo bastante discutível por inúmeras

131
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

razões e, portanto, algo relativo; porém que o homicídio, o


tráfico de drogas, o estupro e o roubo estejam fora desse
domínio das coisas discutíveis é absolutamente certo. Esse
outro relativismo, ao colocar em cheque esses consensos
essenciais para o funcionamento da sociedade, demonstra
a situação crítica de uma poderosa disfuncionalidade
instaurada. De um lado, temos a proposição que renega o
tráfico de drogas por toda sabida degeneração social daí
originada; de outro, temos a proposição de quem se vê
abandonado à sorte do desemprego, encontrando somente
nas atividades ilícitas uma alternativa de sobrevivência que
paulatinamente vai perdendo seu caráter imoral, fazendo
parecer a ilicitude dessa criminalização uma simples
injustiça ou mesmo uma perseguição aleatória. Esse
relativismo que impossibilita um mesmo fundamento para
a cooperação social oferece um risco concreto à
subsistência da sociedade. Muitos dos seus excluídos
recusam-se a se tornar crentes ou simplesmente sucumbir
à depressão. Muitos desses excluídos aspiram à chance do
desempenho de um determinado papel social. Ninguém
em sã consciência pode pretender negar a essas criaturas a
justeza de tais aspirações. O drama mesmo é outro: as
aspirações desses indivíduos só têm podido maciçamente
pretender desempenhar papéis sociais de um gênero muito
específico: o papel social anti-social. Mas isso pouco importa
em situações de desespero, evidentemente do ponto de
vista do desesperado. O que importa a esses indivíduos é
não ser mais um número desempregado, outro anônimo
nas eternas filas pela disputa por uma vaga ilusória no
mercado de trabalho. Esses ninguéns encontram a chance de
finalmente ser, para si e para outros, alguém: traficantes,
aviões, cabeças de área, seguranças, patrões, gerentes de
bocas de fumo, cocaína e crack. Recebem a identidade do
posto que ocupam numa hierarquia tida como perversa

132
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

por quem não está à beira da fome. Desfrutam assim de


todos os signos de temor, reverência e até benevolência
dessa subjetivação às avessas. E enquanto não forem
tomadas atitudes de reversão das causas geradores desse
quadro de falta de alternativas, a sociedade continuará
pagando o preço de sua inércia na moeda de sofrimentos e
escandalizações, embora muitas, aliás, sejam deveras
hipócritas.
Uma subjetivação cooperativa, fundada na
comunhão de uma mesma idéia de sociedade, é sonegada
pela configuração socioeconômica de caráter
antiigualitário. Isso impossibilita a participação honesta e
digna em uma comunidade, inviabilizando até mesmo a
auto-representação de um indivíduo como membro dessa
sociedade, ou daquilo que ao menos se poderia designar
relativamente como uma mesma sociedade. Nesse quadro
complexo, o mínimo ético apresenta o entrelaçamento das
temáticas da eficácia normativa e da justiça social nos
seguintes termos: o asseguramento e a concretização dos
direitos sociais e econômicos tornam-se condições
necessárias para se viabilizar à subjetividade dos indivíduos
sua auto-representação como membros de uma mesma
comunidade. E, além de uma mera constatação sociológica
e filosófica, isso implica a implementação de medidas
urgentes de concretização envolvidas com a seguinte
problemática: como pode o direito estimular a auto-
rerpresentação desse sentido da inclusividade nos
indivíduos como reforço à cooperação e à observância
voluntária, diminuindo, assim, a necessidade de sua própria
intervenção coativa? Mas, intervindo ou não o direito
estatal, os indivíduos sempre acabam buscando suas
próprias soluções, percorrendo os caminhos que ainda
estão ao seu alcance. Que esses indivíduos possam agir
diferente é o fundamento da imputação e do livre-arbítrio

133
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

na doutrina individualista. Que a sociedade ofereça


alternativas para se poder escolher agir diferente é a proposta
de apresentação da justiça como um problema eficacial em
nosso mínimo ético. Decisões tomadas em situações de
falta de alternativas não podem ser consideradas como
livres simplesmente porque se tornam praticamente
necessárias: tornaram-se as únicas ou mesmo as últimas
alternativas. Seria escandaloso então se alguém
considerasse como inimputáveis as ações praticadas sob
um tal regime de falta de alternativas?
Sem auxílio econômico, sem oportunidades
sociais e sem tratamento psíquico adequado, milhões de
pessoas excluídas são jogados à própria sorte. No Brasil,
muitas vítimas desse quadro de simploriedade ou de
inserção no tráfico de drogas só conseguem manifestar
alguma reação contrária aderindo a cultos
neopentecostais16 de massa. Esses cultos oferecem pacotes
de recuperação da auto-estima, trocados pela renúncia à
autonomia, que, nessas situações, já parece não significar
mais muita coisa. A adesão à disciplina dos dogmas e à
contribuição financeira sistemática apresenta-se como um
ótimo negócio. Tais cultos abandonam o caminho
simbolicamente complexo das liturgias, pois o consumo
dessas práticas e significados demandaria capacidades
culturais seguramente ausentes. Tais cultos oferecem
diretamente programas de comportamento cuja eficácia é
atestada pelos vários testemunhos alardeados com o atento
acompanhamento de um pastor. Miseráveis, deprimidos,
fracassados, bêbados, toxicômanos, desempregados,
assassinos, maridos violentos, prostitutas, enfermos,
azarados, ladrões, ex-presidiários, traficantes, desgraçados
e obsediados de todos gêneros são apresentados nos
templos em trajes limpos e minimamente alinhados, sendo
nessas ocasiões também convidados a narrar suas

134
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

trajetórias reais de superação. O testemunho desses


triunfos sobre a degradação da exclusão produz um efeito
terapêutico efetivo sobre a recuperação da auto-estima de
muitas dessas criaturas expropriadas de sua subjetividade.
Um espiritismo terapêutico e de massas exorciza demônios
responsabilizados pela ruína individual. Uma pessoa jogada
à simploriedade semi-indigente, um ninguém, torna-se
rapidamente alguém. Uma identidade e o desempenho de
um papel lhe são oferecidos. De agora em diante esse
indivíduo pode representar-se e ainda apresentar-se, talvez
orgulhosamente, como um filho de deus, uma ovelha de um
rebanho, alguém com razões para viver: a difusão da palavra
sagrada, a ajuda à sua igreja e aos outros que, como ele,
caíram nas trevas e ainda podem ser salvos. O custo de
todo esse tratamento é uma escravidão da autonomia, um
sacrifício do senso crítico sobre as causas materiais,
políticas e sociais da degradação social e da sonegação das
oportunidades. Um preço que parece ser justo aos olhos
de quem está interessado em um salvamento mínimo,
ainda nessa vida terrena. Milhões de indivíduos passam a
viver novamente em um mundo povoado de sombras e
demônios. Fiéis e cultores comungam autopunições
retrospectivas pelos eventos pecamininosos que, num
recente passado pagão, causaram fracassos ultrajantes,
agora interpretados como obsessões ou provações divinas.
O tormento psíquico dessa última modalidade de reação à
exclusão social é igualmente muito intenso, sobretudo
porque aí todas as energias de resistência às injustiças
sociais, ao invés de se manifestarem como repúdio ou
crítica, são reenviadas à esfera de responsabilidade do
próprio sujeito. A revolta sufocada por isso que pode ser
definido como um misticismo terapêutico é reinvestida como
um reforço brutal do sentimento de culpa.

135
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Longe do misticismo há também aqueles


indivíduos que levam mais adiante o processo traumático
de desconstrução da credibilidade social. A erosão da
cooperatividade tem sua continuação com uma sensação
de abandono ou esquecimento pelas tutelas reparadoras e
assecuratórias do Estado. Os direitos tornam-se um sonho
distante. São uma realidade só para o povo do asfalto. E
muito cedo isso que era assimilado como abandono ou um
esquecimento passa a ser percebido como uma indiferença,
como uma insensibilidade ao sofrimento, como uma
espécie de crueldade sádica dos incluídos que precisa ser
punida na forma de uma vingança. Eis o quadro da revolta
social que, aos olhos míopes de muitos, pode parecer uma
revolta gratuita pela sua aparente imotivação imediata. O
desdém causado pelo consumo ostentatório das classes
altas agrava esse quadro de revolta. O esbanjamento e as
extravagâncias do luxo dão um caráter supostamente
ridículo e humilhante ao pouco que faz tanta falta a
muitos. Esse caráter supostamente ridículo estende o véu da
insignificância, com seus efeitos deformantes, sobre as coisas
que podem ser sacrificadas para a realização desse pouco.
Vidas e bens, alheios e comuns, são lesados ou
prejudicados na procura de atendimento disso que muitas
vezes nem é tão ínfimo assim. Jovens confinados em seus
guetos saem em busca da realização daqueles desejos que
às vezes nem são bem seus, mas em todo caso são aqueles
pelos quais a representação da inclusão na sociedade lhes é
infundida: automóveis, mulheres bonitas, marcas de roupas,
objetos e alimentos, espaços de freqüentação recreativa. A
proibição integral ou o acesso muito seletivo a esses
atalhos à integração social, ou melhor, à representação dessa
integração, provocam violentas reações de proibição. O
sentimento de exclusão é experimentado como uma
vexação pública, algo similar a quando alguém é barrado

136
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

porque não é sócio de um clube seleto. Quando esse clube


seleto é a própria representação da inclusão na sociedade,
seguramente algo vai muito mal. A negativa econômica do
consumo e a interiorização da idéia de baixo prestígio
relativa às coisas e aos lugares desfrutados pelos excluídos
recrudescem a vergonha dessa vedação de acesso. E
certamente também intensificam a violência dessa revolta,
que tampouco dispõe de capacidades culturais para se
transformar em participação política.
O sentimento de exclusão deve ser reparado
por medidas inclusivas orientadas pela efetivação dos
direitos sociais e econômicos. Mas a produção de um
sentimento de inclusão não se realiza tão-somente pela via
econômica. Os espaços da comunidade e da cidadania
também somam forças na ressignificação dessa
inclusividade. É verdade que o engajamento político, além
do asseguramento das capacidades primárias, demanda
uma certa disponibilidade de tempo, indispensável ao
desenvolvimento e ao exercício das capacidades participativas.
Essas capacidades participativas também devem ser
visadas na reconstrução de uma inclusividade social. Pelo
aprimoramento dessas capacidades, os destinatários das
medidas e prestações podem chegar a decidir acerca delas
mesmas. O resultado político desse processo ocorrido no
seio de uma comunidade chama-se autonomia: a capacidade
de dar normas a si mesma. Entre os gregos, essas
capacidades participativas, sempre restritas, eram possíveis
graças ao ócio financiado pela escravidão. Entre nós,
muitos acreditam que a tecnologia poderia financiá-lo. E
essa esperança na tecnologia tem alimentado em alguns
novamente o idílio da democracia direta. É conveniente
dizermos então algumas palavras sobre a democracia.
Entendemos a democracia como um valor universal: algo
que é, simultaneamente, um procedimento (método de

137
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

decisão) e um mínimo de valores metaprocedimentais


(pluralidade, tolerância, participativismo, simetria precária,
contraditoriedade). A democracia é integrada por um dado
hegemônico, o princípio da maioria, e por outro
harmônico, o princípio da tolerância à pluralidade de
posições. Tem também um componente retórico, a busca
da adesão no seio de uma comunidade, e outro imperativo,
a necessidade de acatação geral das decisões pelos
destinatários. Na democracia, o poder de decidir tem a
possibilidade de ser tanto delegado como concentrado em
diversos níveis, com vistas ao exercício de múltiplas
competências; embora nem a delegação implique
irresponsabilização dos que delegam tal poder, nem a
concentração implique irresponsabilização dos que o
concentram. Em síntese: compreendemos a democracia
como uma forma-valor. Ela é o destino final do exercício
das capacidaes participativas e simultaneamente um meio
para possibilitá-las, sobretudo porque à democracia
também é subjacente uma idéia necessária de igualdade
mínima de bens, direitos, capacidades, oportunidades e
poder.
Como nenhum outro, o espaço democrático
administra o desenvolvimento das capacidades conviviais
ao educar os indivíduos na e para a participação. Mas esse
espaço democrático tem alguns inimigos. O fascismo e o
neoliberalismo são alguns deles. Deixemos por ora o
fascismo de lado. Falemos do neoliberalismo, pois é ele
que mais impede o desenvolvimento das capacidades
participativas na atualidade. Muitas críticas podem ser
feitas ao neoliberalismo. Mas ao se proceder dessa
maneira, está-se concedendo dignidade teórica a uma
mentira perversa que vingou ao ser eficaz em seus
propósitos ludibriadores. O neoliberalismo, antes de
merecer qualquer crítica, precisa ser desmascarado como

138
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

uma fraude intelectual: jamais poderá atingir os fins a que


se propõe com os meios de que dispõe. Sua adoção da
teoria econômica do equilíbrio geral é uma abstração
fantasmagórica, lograda graças à eliminação de certas
variáveis secundárias, como as vidas humanas.

2.4. Direitos humanos, igualdade e desenvolvimento

O problema da relação entre direito e justiça


modifica-se quando deixamos de apresentá-lo apenas pelo
ângulo interno do direito e passamos a concebê-lo também
através de um mínimo ético de fundamentos cooperativos
e de uma teoria da eficácia de compromissos
concretizantes. Apontamos como esse mínimo ético não
representa nenhuma concepção específica de justiça, mas
antes aquela estrutura que permite incrementar a própria
eficácia normativa do direito e da moral.
Na perspectiva de uma teoria positivista, a
justiça operaria como um péssimo critério, perigoso pela
sua incerteza e relatividade, para a determinação da
validade estritamente jurídica. Porém, agora do ponto de
vista de uma teoria da eficácia, o mínimo ético não é mais
refém do relativismo das várias justiças que refletem, com
fidelidade, a fragmentação axiológica surgida em meio ao
politeísmo de valores do mundo pós-tradicional. Da
perspectiva de uma teoria da eficácia, o tema da justiça
assume um viés minimalista, orientado para a
(re)construção e manutenção das bases morais e materiais
de possibilitação do florescimento de indivíduos
tipicamente modernos e de seus ingressos na comunidade
cooperativa da sociedade. Somente a partir de uma eficácia

139
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

fundamental e mínima dessas bases morais e materiais de


um pacto social ergue-se um edifício jurídico em cujo
interior circulam normas de validade determinável por
critérios internamente já jurídicos. Por isso mesmo, a
justiça apresentada como um tópico da teoria da eficácia
assume as cores de um mínimo ético, e não mais de uma
justificação do puro respeito à pluralidade de valores.
Respeitar valores variados é algo diferente do
compromisso eficacial com o mínimo ético ora proposto.
O respeito e a tolerância à pluralidade axiológica
distinguem-se, na sua passividade, da postura ativa
reclamada como necessária à construção e ao
asseguramento urgentes do mínimo ético. Somente graças
à garantia desse mínimo ético é que podem existir
comunidades nas quais valham vários valores morais. Na
ausência desse mínimo ético não há sequer socialização
possível, mas apenas barbárie. Assim, no caso das teorias
da justiça, havemos de trocar nossas reservas e cautelas
pela compreensão da premente necessidade de socialização
dos excluídos que habitam a marginalidade dos países em
busca de alternativas para o desenvolvimento social. Não
devemos mais temer o risco de o direito ceder à tentação
de buscar um critério de validade no extenso – e às vezes
obscuro – catálogo de concepções de justiça disponíveis. A
premência agora é outra: a de a ética buscar no direito as
condições materiais de promoção da socialização e
autonomia dos indivíduos segregados por ordens sociais e
jurídicas excludentes. Trata-se de o direito inspecionar nas
galerias do subterrâneo ético a situação dos fundamentos
eficaciais que mantêm sua construção firme e a salvo de
desmoronamentos. Não é mais o direito que busca na
justiça um mero critério de validade. É agora a ética que
busca na força do direito as condições de sua
implementação para recompor, junto como esse mesmo

140
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

direito, as condições de convívio pacífico e digno


ameaçadas por diversos apartheids e pela surdez de guerras
civis brancas. De mais a mais, a reintegração dos excluídos
ao pacto social, ou mesmo a recelebração desse contrato, é
uma medida concreta voltada à minimização das
necessidades de intervenção de um direito punitivo e
sancionatório. Evitar metodicamente o apelo ao tema da
justiça foi a tarefa assumida pelo positivismo, no ápice do
paradigma liberal, para criar um conceito jurídico de
validade. Evitar a desagregação social e a crise civilizatória
recoberta pelo cinismo formalista de um direito reservado
à administração de conflitos das elites é a tarefa por nós
avocada neste momento de esfacelamento do paradigma
nacional-liberal, especialmente nos países do Terceiro
Mundo. A desagregação social em curso pode ser contida
fornecendo-se, pela intervenção jurídica, substância
concretizadora e materialidade eficacial ao gérmen de um
direito muitas vezes integrativo e eqüitativo na sua
dimensão potencial de pura validade. E tal direito é assim
considerado como integrativo e eqüitativo não por suas
qualidades intrínsecas, mas pelas próprias conquistas
inscritas em seu corpo ao longo das lutas históricas
vencidas, para aquém das quais muitos pretendem
retroceder.
Um dos espaços por excelência de inscrição
dessas vitórias no corpus jurídico é o discurso dos direitos
humanos e fundamentais. No entanto, a origem e a
fundamentação jusnaturalista desses direitos humanos
dificultam sua percepção como estruturas eficaciais
possibilitadoras da experiência convivial. A abordagem
excessivamente axiológica e individualista dos direitos
humanos, além das dificuldades inerentes à abstração dos
valores, traz consigo ainda um reforço às pregações e um
descuido das necessárias técnicas de implementação. Esse

141
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

tratamento axiológico é também próprio de um ambiente


acadêmico bacharelista, ostentador de ilustração superficial
e indiferente a seus compromissos com as práticas sociais
efetivantes.
O discurso hegemônico dos direitos humanos
representa hoje o que de mais próximo temos de um
consenso conteudístico vigorante em meio ao politeísmo
de valores das sociedades mundiais, mesmo com todas as
armadilhas do multiculturalismo que possam daí surgir.
Entretanto, esse discurso e, por via reflexa, as práticas dele
decorrentes têm permanecido adstritos à forma de
compreensão de dois temas que vêm dificultando a sua
radicalização. Um deles herdado do individualismo é o
culto à igualdade meramente formal: a igualdade no
desfrute supostamente compartilhado da condição abstrata
de sujeitos de direitos, embora saibamos que, na prática, o
acesso efetivo à jurisdição ainda constitui privilégio de uma
parcela ínfima da população de vários países. Outro desses
temas despotecializadores da radicalização dos direitos
humanos é o culto à liberdade como mera liberdade
negativa: proteções e garantias contra intervenções,
especialmente estatais, nas esferas de prerrogativas dos
indivíduos que se tornaram, originalmente, no curso da
conquista desses direitos, os segmentos privilegiados da
sociedade (a classe burguesa). Esse bloqueio do discurso
dos direitos humanos, em geral obstado por uma ênfase
mistificadora e exclusivista dos direitos fundamentais de
primeira geração, tem mantido grande parcela do potencial
realizador de sua proposta no campo meramente retórico;
isso quando já não se tenha se prestado a propósitos
cooptadores de regimes políticos desacreditados e
interessados em alardear reformas meramente cosméticas,
sem o risco de maiores comprometimentos estruturais.

142
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Apenas o fornecimento de um substrato


material aos direitos humanos pode reorientar o seu
discurso para uma perspectiva eficacial mais contundente.
Essa perspectiva envolve a responsabilização de todas as
funções do poder estatal pela adoção de medidas concretas
voltadas à implementação de um programa global de
ressocialização dos excluídos ao pacto social. Os direitos
humanos tornam-se assim o fio com o qual se pode
costurar os rombos na malha social lacerada pela
espoliação internacional e pela ação predatória das elites
locais. Logo, esse substrato material, se orientado por um
conjunto de medidas necessárias à integração dos
excluídos ao pacto social, produz vias reais para a
moralização dos indivíduos, para a construção e reparação
de sua dignidade, e, por via de conseqüência, cria uma
chance preciosa também para o próprio incremento de
legitimidade das ordens jurídica e social. No caso mais
específico dos operadores jurídicos, essa orientação
eficacial e responsabilizante importa ainda um dado
complementar a ser apreendido das investigações
sociológicas de Boaventura de Sousa Santos: a
responsabilização pelas conseqüências sociais das decisões
adotadas na jurisdição, especialmente aquelas que puderem
deliberar sobre a concretização de direitos humanos
fundamentais abrangentes de amplos segmentos sociais.
Em momentos de tamanha desagregação
social, o discurso dos direitos humanos não pode mais
permanecer somente atrelado a concepções formalistas,
individualistas e idílicas de liberdade. Tampouco pode essa
liberdade ser compreendida de modo aistórico, como se
em questão ainda estivesse a repercussão daquela mesma
liberdade de uma burguesia em via de afirmação. Urge
agora significar essa liberdade pela igualdade substantiva,
material. Um conceito de liberdade orientado pelos atuais

143
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

imperativos da igualdade material não pode mais ser


mantido cativo do domínio formal de certos direitos não
assegurados e de certas garantias de não-intervenção.
Historicizada, essa liberdade necessita agora ser submetida
a um novo programa de universalização, consentâneo à
totalidade social contemporânea. Ao direito abre-se a
possibilidade de conduzir esse movimento de
reuniversalização atualizante da liberdade. Assim, essa
liberdade significada pela igualdade remete: (1) à
disponibilização material das possibilidades aspiradas pelos
agentes sociais como suas autênticas necessidades e/ou
planificações de vida; concomitantemente ao (2)
financiamento das capacidades culturais de compreensão,
por esses mesmos sujeitos, dessas possibilidades enquanto
tais, isto é, enquanto possibilidades valiosas e
concretizáveis, e enquanto possibilidades autenticamente
importantes no contexto e na escala de relevância de um
determinado plano de vida. Tudo isso, entretanto, assume
ares ainda mais perturbadores quando passamos a
considerar a formação midiática das sociedades de massa
contemporâneas, nas quais campeia a ampla manipulação
do desejo aliada à produção disseminada de necessidades
inautênticas. Não é conveniente agora uma análise mais
pormenorizada desse fenômeno da massificação, em
muitos aspectos mais funesto que a própria alienação dos
idos da modernidade eminentemente industrial e
ideológica. Também podemos apontar a irracionalidade
ambiental, que atinge direitos humanos da última geração,
envolvida na produção caótica de bens não genuinamente
demandados por indivíduos aos quais praticamente não
foram dadas chances culturais mínimas de deliberação
autônoma sobre seus próprios gastos e preferências. Não
há a mínima chance de as economias mundiais levarem a
sério parâmetros ecológicos, ambientais e humanos,

144
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

enquanto reinar uma completa anarquia entre as esferas da


produção e do consumo, azeitada pelo óleo luxurioso do
estímulo midiático à demanda ostentadora de certos bens,
simultaneamente à carência brutal dos segmentos
sequiosos pela saída da condição de miserabilidade
aviltante. Em A Crítica da Razão Indolente Boaventura de
Sousa Santos fala-nos, em relação ao espaço do mercado,
sobre a “substituição de uma tópica do consumo fetichista por uma
tópica das necessidades fundamentais e satisfações”.17 A discussão
sobre o conjunto de capacidades e oportunidades
envolvidas nas necessidades fundamentais é essencial à
nossa compreensão igualitarista e substantiva do mínimo
ético. Diz respeito às medidas necessárias à erradicação da
miséria e à promoção da autonomia deliberativa dos
sujeitos sociais sobre seus próprios projetos de vida. Mas a
idéia de necessidades fundamentais também demanda
ações contundentes orientadas para o refreamento da
exacerbada fetichização dos objetos e das pessoas levada a
cabo pela lógica consumista dos mercados, especialmente
porque essa fetichização tem se repercutido em desastrosas
deturpações nos esquemas motivacionais e auto-
representativos inerentes ao convívio dos sujeitos sociais.
O fetichismo das mercadorias, fenômeno antevisto
de modo decisivo por Marx, experimentou uma dupla
investidura na modernidade: a coisificação das pessoas (sua
mercantilização, suas apresentações em versões
consumíveis) e a personalização das coisas (a constituição
de subjetividades pela ostentação de certos objetos e
marcas). A fetichização das mercadorias tem ainda atingido
a erotização comercial do corpo feminino, diretamente
oferecido ao consumo, ou utilizado como seu propulsor
publicitário, pelo recurso às várias formas de pornografia e
sensualidade banalizada que acionam estruturas simbólico-
psíquicas historicamente sedimentadas pelo machismo

145
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

patriarcal. A exacerbação desse fetichismo opera


manipulações de ordem simbólica que descem às
profundas instâncias psíquicas formadoras do desejo.
Situa-se, portanto, abaixo da vontade publicamente
exteriorizável e de sua deliberação racional. A recordação
abstrata de alguns casos dramáticos ocorridos no Brasil
talvez ilustre alguns efeitos perversos dessa fetichização
das mercadorias num contexto de acesso desigual ao
consumo e às capacidades culturais de deliberação acerca
dele.
É sempre intensa a reprovação social, convertida
em indignação, quando se tem notícia de que um menino
favelado matou outro, de idade próxima e originário da
classe média, para lhe roubar um simples par de tênis. A
indignação intensifica-se enormemente na proporção da
suposta banalidade material do objeto roubado.
Normalmente, aqueles que nesses episódios manifestam
assim sua reprovação então pensam: como pode a vida
humana ser posta em risco por um objeto tão
insignificante como um par de tênis? A censura veemente
e a indignação intensa obscurecem as meditações mais
profundas sobre tais eventos. Mas a impulsividade dos
sentimentos morais envolvidos nessa reprovação não deve
nos desviar de um diagnóstico mais elaborado sobre os
efeitos anti-sociais da exacerbação desse fetichismo das
mercadorias e de suas manipulações de ordem simbólica.
Um menino pobre dificilmente mataria um da classe
abastada para lhe roubar apenas um bem cujo valor de uso
ou de troca é o de uma proteção para os pés, o que, ainda
por cima, muito provavelmente ele já tenha. Não é pela
banalidade do valor de uso do bem tênis que se pode
aquilatar sua significatividade para a instância desejante de
um menino favelado. Quando esse menino mata um outro,
da classe média, para lhe roubar seu tênis da marca Nike,

146
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

não é um simples calçado que está sendo roubado. É um


tênis da marca Nike! Nem é mais um tênis. É um Nike,
uma nova entidade substancializada pelo efeito distorcivo
do fetiche da marca. E por esse ato insidioso o menino
carente está tomando posse de todo aquele enfeixamento
simbólico, manipulador de valores que sempre lhe foram
introjetados e exigidos como caríssimos, agora
concentrado na marca de um objeto trivial tornado
essencial pela via artificiosa da publicidade. Assim, não se
trata apenas do roubo de um simples tênis, mas
especialmente da busca desesperada de compensação de
muitas sonegações. Trata-se do apossamento do sucesso,
da macheza, da virilidade, da integração, da aceitação
social, do aumento do potencial de sedução, da auto-
estima e, quiçá, até do branqueamento da pele, agora
tomados de assalto em um gesto bárbaro, cuja brutalidade
momenteamente perde sua relevância diante da satisfação
atingida. O ato de consumo, pelo qual se paga o preço da
coisa a ser consumida no uso, é apenas um dos meios de
acesso a essa carga simbólica, que, paradoxalmente, acaba
se tornando realmente valiosa. Quem não pode comprar
trata de garantir seu acesso por outras vias. E no quadro
trágico dessa situação, o menino favelado, nosso assaltante
mirim, acaba encarnando ainda uma monstruosidade
moral: a bestialidade da inocência infantil perdida. Mas,
diante desse mesmo quadro trágico, ninguém protesta
contra a irresponsabilidade dos publicitários muito
elegantes e badalados ou dos mercados fomentadores de
necessidades pela manipulação irresponsável de cargas
simbólicas caríssimas, ao mesmo tempo que são fechadas
as portas do consumo para segmentos enormes das
populações. Os segmentos excluídos do consumo em
regra são conduzidos a desejar bens tornados tão ou ainda
mais valiosos do que para quem pode efetivamente

147
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

adquiri-los por meios lícitos. Não poderia resultar em uma


configuração mais catastrófica essa economia insana,
estabelecida entre os desejos dos segmentos sociais
excluídos e suas remotas chances reais de satisfação por
meios lícitos.
O sucesso da hiperfetichização das
mercadorias torna-se possível graças à sonegação das
capacidades culturais de avaliação das próprias
necessidades e dos limites da investidura simbólica. Nesse
mundo de abundância estética, proliferam consciências
despreparadas para a compreensão das fronteiras entre a
fantasia e a realidade. Quando esse despreparo combina-se
com a exacerbação dos desejos e com o simultâneo
bloqueio de seus atendimentos, a tensão daí resultante
tende a produzir atrocidades sociais. O equilíbrio pleno
entre o princípio da realidade e o princípio do prazer não é
um dado natural perfeitamente inerente à estrutura
psíquica dos seres humanos. Freud demostrou em
reiteradas ocasições o quanto esse equilíbrio é frágil e pode
ser comprometido por estruturas psicossociais ausentes ou
distorcidas. E o resultado anti-social desse desequilíbrio
pode desencadear um ciclo massivo de condutas
inviabilizadoras da convivência integrada em níveis
toleráveis de agressividade.
Mas a fetichização das mercadorias não
somente chega a sonegar meios pacíficos de atendimento
àquelas necessidades artificiosamente criadas. A vedação
do consumo pela via tradicional da compra é apenas um de
seus fenômenos correlativos. Outro desses fenômenos é a
anarquia produtiva envolvida na fabricação de bens
supérfluos gerados em escalas gigantescas e ao custo de
danos ambientais irreversíveis. Essa fetichização das
mercadorias também provoca graves danos ecológicos –
inclusive ao que se pode hoje designar como ecologia

148
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

humana. Considerada enquanto direito humano de última


geração, essa ecologia elabora-se hoje também como uma
ecologia política, assumida a premissa de que uma nova
relação do homem com a natureza só é possível a partir de
uma nova relação entre os próprios homens. Uma ecologia
humana é também o repúdio à degradação provocada pela
miséria do meio onde se dá o convívio social coexistindo
com as ostentações indiferentes ao sofrimento.
Gerações futuras hão de ser educadas para
considerar o ato de consumo em alguma medida como
uma prática ética. O consumo deve passar a representar
um ato cuja prática esteja imbuída de algum
comprometimento social. Não é mais suportável a busca
obsessiva do prazer ao preço do sofrimento alheio. O
consumo, orientado pela desregulação entre necessidades e
desejos, não pode mais perseguir a satisfação a qualquer
custo. Volumes extraordinários do consumo mundial têm
financiado graus cruéis e elevados de exploração, privação
da liberdade, degradação ambiental e espoliação. Não
falamos exclusivamente do consumo de bens e serviços
luxuosos e exóticos. Muito do nosso consumo ordinário
também financia o agravamento dessas espoliações,
embora nos seja muito difícil ter notícia dessas situações
originárias numa economia regida pela impessoalidade e
pelo anonimato da mercadoria. Uma porção significativa
das informações sobre essas empresas provém de suas
propagandas e de seu bom mocismo, muitas vezes cínico e
meramente publicitário. Não faltam nem mesmo
estratágias de marketing recomendando que se apresente a
ética como um plus na promoção dos interesses
mercadológicos.
Mas dessas questões, apesar de cruciais, não
podemos nos ocupar em demasia, ao menos por agora.

149
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Precisamos retornar ao nosso exame dos direitos


humanos. São necessárias, nesta altura, algumas
observações sobre o problema material da igualdade à vista
da autonomia para a formação de um plano de vida
próprio. Nesse terreno dos planos de vida parecem
convergir dados de uma das combinações mais delicadas
entre igualdade e liberdade. Queremos (livremente?) o que
podemos querer, e podemos querer aquilo que, de algum
modo, já está dentro de certas possibilidades de realização
que nos são dadas como limites dessas nossas expectativas
e vontades. Estudada seriamente, essa relação entre
liberdade de escolha e igualdade material, desde a qual
exercemos nossas opções, exigiria uma instância de
reflexão teórica onde interagissem o direito, a ética, a
psicologia social e seguramente aportes de uma filosofia
existencial. Neste breve espaço, estamos satisfeitos em
simplesmente apresentar essas questões, cujo tratamento
exigiria um esforço analítico muito mais intenso e extenso.
Porém, sobre isso ainda uma pequena indagação, extraída
da vida prática, provavelmente seja esclarecedora. A
dificuldade inerente a esse formidável emaranhado de
questões práticas, envolvendo direitos humanos, liberdade,
igualdade, planos de vida, necessidades e desejos,
capacidades e aspirações, pode ser ilustrada pelo seguinte
exemplo: como se deveria tratar o problema do acesso à
educação (direito social) de um jovem agricultor de uma
pequena cidade interiorana que, sem formação primária, de
uma hora para outra, resolve abandonar sua vivência rural,
com a qual acumulou valiosos conhecimentos práticos, por
considerá-la humilhante e atrasada, passando a alimentar o
sonho de se transferir para o meio urbano de uma grande
capital a fim de se tornar um médico, como aquele visto e
tão admirado num determinado seriado de televisão? Não
temos pretensão de responder a uma indagação como essa.

150
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Formulá-la como um caso hipotético que tantas vezes se


concretizou no fenômeno do êxodo rural já produz
vertigem diante da complexidade dos elementos aí
entrecruzados. Casos como esse sublinham a relevância do
dado ético envolvido na definição dos planos de vida, das
políticas públicas e das medidas distributivas. O
oferecimento de oportunidades e o acesso às capacidades
devem guardar uma distância prudente em relação à
autonomia na escolha e implementação desses projetos de
vida. A intervenção excessiva nos modos de exercício da
liberdade alheia geralmente desencaminha-se para as
variadas formas de totalitarismo, embora, no tema da
liberdade, tudo indique haver uma sutil distinção entre a
liberdade de escolha e a liberdade de decisão. Escolher é
optar dentre possibilidades predefinidas, que, em geral, já
nos são apresentadas por outrem ou pelas condições
culturais e materiais mais ou menos iguais de nossa vida.
Decidir, por outro lado, já envolve a elaboração
deliberativa da gama dessas mesmas possibilidades dentre
as quais escolhemos mais ou menos livremente. Direitos
humanos, assim considerados, envolvem o próprio direito
à autonomia e à autodeterminação, que são aspectos não
só imediatamente materiais e econômicos, mas também
culturais da liberdade de se concretizar um determinado
plano de vida escolhido em vista de uma deliberação
acerca da própria felicidade. Portanto, sem cairmos num
relativismo extremado, nosso conceito de liberdade
orientado pelos imperativos da igualdade incorpora todas
as formas de respeito à diferença administradas pelo
discurso da tolerância e concretizadas pelas práticas
oportunizantes, sejam essas diferenças de gênero, de
convicções religiosas, de preferências político-ideológicas,
de etnias, de habilidades ou de necessidades especiais.

151
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

O atendimento às demandas por direitos


humanos não pode mais continuar a ser pensado tão-
somente a granel, pelo varejo minguado da jurisdição de
matriz liberal-individualista. Nessa matriz, só existe a
liberdade de indivíduos isolados, com suas preferências ou
inclinações apreendidas de modo não-social. Há quem
pense e sustente estarem os direitos humanos
fundamentais necessariamente organizados ou submetidos
a uma certa ordem cronológica, correspondente aos
momentos históricos que lhes deram gênese, crendo assim
que tais direitos deveriam ser implementados
sucessivamente. Há ainda quem também creia não serem
os direitos sociais propriamente classificáveis como
direitos fundamentais. E isso por diversos motivos: desde
as peculiaridades topológicas das enunciações desses
direitos sociais nos textos constitucionais até a
impossibilidade de suas concretizações eficazes pela via
jurisdicional, relegando-se muitas vezes tais normas a um
degradado plano político-programático, de índole
meramente ideológica, beirando o caráter metajurídico.
Nós, contudo, não compartilhamos dessas posições: nem
da que sustenta o caráter consecutivo e independente das
gerações ou dimensões de direitos, tampouco daquela que
mantém o caráter de não serem fundamentais os direitos
sociais.
A desconstitucionalização dos direitos sociais,
diligenciada pela ideologia neoliberal como um imperativo
da flexibilização econômica, subverte a própria ratio essendi
das constituições modernas como documentos de garantia
e compromisso. Essa temática torna-se especialmente
polêmica nas sociedades tautócronas ou simultaneístas da
modernidade periférica, como a brasileira. Em razão da
existência de alguns pólos de intenso desenvolvimento
espalhados por enormes zonas de grande atraso, nessas

152
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

sociedades são demandados, simultaneamente, direitos de


praticamente todas as gerações. Ocorre, nessas situações,
uma interpenetração entre tais gerações, provocando-se
uma salutar ressemantização e uma constante atualização
desses direitos humanos, reclamados em contextos
diversos daqueles seus historicamente genéticos. O espaço
privilegiado desse entrecruzamento, dessa ressemantização
e dessa atualização das gerações de direitos (agora
chamadas de dimensões) tem sido o Poder Judiciário. Por
isso mesmo, tais gerações de direitos não podem chegar a
ser exatamente como eram antigamente. Como
poderíamos, nos dias atuais, dizer livre (direito de primeira
geração) quem não tem acesso a um emprego (direito de
segunda geração)? Como poderíamos afirmar a igualdade
(direito de primeira geração) de quem não tem acesso à
educação informatizada (direito de segunda ou talvez até
de terceira geração)? De que modo afirmaríamos o direito
ao sufrágio universal (direito de primeira geração) a quem,
assolado pela fome, troca seu voto por alimento ou
mesmo a quem não foram dadas condições culturais
mínimas (direito de segunda geração) de discernimento
para deliberar sobre a escolha de um candidato? Como
ainda compreenderíamos o significado do direito à vida, o
mais elementar de todos, conferido a quem não tem acesso
ao serviço de saúde (direito social de segunda geração),
cuja missão é tutelar a própria subsistência orgânica em sua
mais elementar possibilidade de continuidade? Como
podemos, ainda, pretender que compreenda o valor do
meio ambiente (direito de terceira geração) quem,
desempregado, sobrevive da coleta de lixo?
Deveras restringentes são as categorias e
demais interdições de nível epistemológico propiciadas por
uma dogmática conservadora que imobiliza o aparato
institucional forjado na tradição liberal-individualista.

153
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Segundo tais concepções, só mereceriam ser propriamente


qualificados como direitos aqueles direitos fundamentais aos
quais correspondessem respectivos direitos subjetivos. A
polêmica sobre a eficácia dos direitos fundamentais sociais
na Constituição de 1988 revelou o caráter intensamente
político dessa questão. Ficou patente que, se nem todos
esses direitos são auto-aplicáveis e exigíveis por apelos à
jurisdição, alguns podem ser. Essa possibilidade da auto-
aplicação e da exigibilidade pela via judicial reconheceu a
correspondência entre alguns direitos fundamentais sociais
e seus respectivos direitos subjetivos. A escolha de quais
direitos fundamentais sociais poderiam gozar dessas
formas privilegiadas de vigência e efetividade apontou para
uma política de eficácia seletiva definida pelo poder
judiciário. Isso demonstrou como a auto-aplicação e a
exigibilidade estavam sujeitas mais às decisões e às
vontades políticas que as animaram do que às limitações
teóricas da doutrina de matriz individualista dos direitos
subjetivos. Quando se fizeram necessários os intrumentos
processuais para a defesa desses direitos, eles foram
criados. O limite dessa criatividade está então na vontade
que a anima, nunca na obediência aos cânones de alguma
teoria. Aliás, essa vontade política sempre foi mais
poderosa ante os preciosismos e rigores das formulações
teóricas, via de regra invocadas como suas justificações ex
post facto.
A juridicidade dos direitos humanos não
depende apenas de sua jurisdicionabilidade, embora essa
seja inegavelmente preciosa. A jurisdicionabilidade, aliás,
não é algo imutável em um ordenamento, pois, como
qualquer outro setor do direito positivo, pode ser ensejada
pela disponibilização de instrumentos adequados. Quem
propõe a não-juridicidade dos direitos humanos sob
argumento de sua não-jurisdicionabilidade parte de uma

154
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

premissa equivocada: a de que o arsenal processual


positivo é estático e não pode ser modificado. Ora, o
direito moderno é direito essencialmente mutável
enquanto condensação variável de relações de força
política. Mutável em seus conteúdos e mutável também em
seus procedimentos e técnicas de efetivação. Ademais,
quem professa tal compreensão sobre a não-juridicidade
dos direitos humanos restringe o sistema jurídico ao
aparato do poder judiciário. A juridicidade dos direitos
humanos sociais transcende essas desavenças conceituais,
pois, mesmo quando eles ainda não são positivados,
permanecem sujeitos a uma perspectiva eficacial de
asseguramento da própria existência de uma sociedade. Os
direitos humanos são assim direitos especialmente porque
sua efetiva vinculação com o mínimo ético exprime a
necessidade de que o Poder Judiciário, como poder
político de Estado que também é, cuide das condições de
continuidade de uma sociedade.
Quando a dogmática jurídica tradicional diz
não haver, ao menos imediatamente, tais direitos
subjetivos, na forma de ações judiciais disponíveis
correspondentes a tais direitos sociais, essa construção
passa a ser comodamente assumida por muitos como uma
verdade inequívoca, científica. Isso até poderia ser esperado
de um Poder Judiciário tradicionalmente tímido ante as
novas missões que a história lhe impõe. Lamentável
mesmo é que isso dissemine um misto de fatalismo
irresponsabilizante e conformismo complacente com as
tarefas de rotina contenciosa, desempenhadas no vácuo de
uma matriz individualista, pressuposta e reproduzida em
uma formação social de tradição autoritária. Nesta, o
judiciário aparece ainda como um grande pacificador,
pairando neutro e sereno sobre a miséria quotidiana de
pequenos conflitos interpessoais vistos em total

155
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

desarticulação de suas causas estruturais. Esse é o


judiciário do varejo.
Diante de uma dogmática jurídica que muitas
vezes diz nem serem propriamente direitos os chamados
direitos sociais, não é de se estranhar que parcelas do
poder judiciário retraiam-se e apresentem enormes
dificuldades em assumir suas responsabilidades nessa
esfera de concretização do mínimo ético. Até porque a
aceitação dessa responsabilidade, por parte do poder
judiciário na implementação dos direitos sociais, tem como
metapressuposto a própria assunção de seu caráter de
poder político. Evidentemente, isso traria ao descortino,
além da subjetividade do intérprete fazendo oscilar sua
discricionariedade, toda a nudez da atecnia e da
pseudocientifização sobre a qual assentam as deliberações
jurisdicionais habituadas a não assumirem claramente o
ônus justificativo de suas posições. Como veremos em
nossa abordagem da problemática hermenêutica, boa parte
desse judiciário, e especialmente sua cúpula, tem preferido
manter ocultas sua pusilanimidade e suas pré-
compreensões ideológicas, dissimulando-as na forma
asséptica e neutral dos métodos de interpretação colhidos
da hermenêutica do século XIX.
A negativa de se conferir o caráter de direitos
aos direitos sociais tende ainda a se agravar na proporção
de duas incompreensões altamente interpenetradas. A
primeira, de certa forma tratada acima, pode ser
apresentada do seguinte modo: o Poder Judiciário não
dispõe atualmente de uma teoria, ou mesmo de uma
dogmática alternativa, disposta a articular a possibilidade
de assumir sua responsabilidade na implementação dos
direitos sociais. A julgar pela atitude da maioria
esmagadora de seus membros, talvez o judiciário nem

156
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

mesmo queira algo semelhante a isso. E, no âmbito dessa


falta, os limites teóricos desse pensamento ausente ou não
formulado (quem sabe também inoportuno para alguns
interesses) assinalam impossibilidades de ordens política e
epistemológica de o discurso jurídico hegemônico dar
vazão à questão dos direitos sociais pela via jurisdicional. É
necessário também frisar que essa limitação tende a
retroalimentar a produção da pré-compreensão jurídica
dos futuros juristas quando divulgada, nas academias,
como a atitude metodológica e profissional mais aceitável.
A segunda incompreensão, por sua vez, pode ter a seguinte
expressão: não se desenvolve entre os atores sociais
organizados (movimentos sociais) a clareza de que as
pressões pela implementação dos direitos sociais não se
devem exercer exclusivamente na direção do Poder
Judiciário, mas muito especialmente também na direção
dos legisladores (ponentes das normas-meio necessárias ao
seu implemento) e dos administradores (portadores da
vontade política que anima, na prática social, as diversas
prestações materiais que os concretizam). Essa segunda
incompreensão pode ainda ser traduzida na idéia de que o
implemento dos direitos sociais é de responsabilidade
conjunta de todos os entes do Estado, sem exceções. Se o
judiciário, de algum modo, sente-se limitado ou
constrangido por sua fidelidade à doutrina individualista
dos direitos subjetivos, que então se a mude ou a
desenvolva num sentido imune à confortável renúncia de
responsabilidade social e até institucional! Isso, portanto,
significa afirmarmos claramente duas proposições. Uma,
enunciada do ponto de vista do Estado, sintetiza-se no
seguinte: nem apenas o Executivo e os Legisladores devem
implementar os direitos sociais, mas também o Poder
Judiciário, que, de resto, jamais deixou de ser um poder
político. Outra, enunciada do ponto de vista dos

157
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

segmentos demandantes por direitos sociais, sintetiza-se


no seguinte: as reclamações e exigências por prestações
não podem ser dirigidas apenas como ações endereçadas
ao Poder Judiciário, mas também devem ser direcionadas
como intervenções políticas hábeis a movimentar a
sociedade civil e os demais poderes do Estado, cujas
manifestações são ensejadas por mecanismos distintos da
provocação jurisdicional.
Questionados desde a perspectiva eficacial do
mínimo ético, os direitos humanos não podem continuar
sendo apenas um discurso melancólico. Realmente
assumida a ênfase concretizante, há de se perguntar sobre
a quem incumbe realizá-los, sem deixar-se de lado a
pergunta sobre de onde saem os recursos para tanto.
Contemporaneamente, os direitos humanos, especialmente
os de ordem social, tornaram-se uma questão premente de
políticas públicas e da própria teoria do desenvolvimento.
São as concepções de desenvolvimento social e econômico
que, em última instância, cuidam dos recursos materiais
disponíveis para a implementação desses direitos humanos
de ordem social. Além da iniciativa privada, os
responsáveis por essas concepções de desenvolvimento
também são os poderes do Estado, inclusive o Poder
Judiciário. Em um contexto de globalização da economia,
a vigência de uma cultura de repúdio à corrupção e de
valorização da segurança jurídica nas relações privadas tem
sido determinante na atração de investimentos estrangeiros
substanciais. Contudo, esses interesses do capital
transnacional também vêm pressionando governos para o
rumo da desregulamentação de todos os setores da
economia e do próprio trabalho, logrando isso à custa do
esbulho de diversas garantias sociais cujas
constitucionalizações foram a duras penas conquistadas.

158
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

A idéia do desenvolvimento reveste-se de uma


dupla importância para nossa tese do mínimo ético: em
primeiro lugar, demonstra como a viabilização das
capacidades conviviais dos indivíduos pode ser traduzida
em indicadores sociais bastante específicos; e, em segundo
lugar, aponta como os poderes e as políticas públicas são
os responsáveis diretos pela implementação dessas
capacidades, especialmente quando interpretam e
concretizam a Constituição de 1988, que trata repetidas
vezes do tema desenvolvimento.
Celso Furtado assevera que a noção de
desenvolvimento “[...] surgiu com a idéia de progresso, ou seja, de
enriquecimento da nação, conforme o título do livro de Adam Smith,
fundador da Ciência Econômica. O pensamento clássico, tanto na
linha liberal como na marxista, via no aumento da produção a chave
para a melhoria do bem-estar social, e a tendência foi de assimilar o
progresso ao produtivismo. Hoje, já ninguém confunde aumento da
produção com melhoria do bem-estar social”18. Essa distinção tão
bem assinalada por Furtado pode ainda ser traduzida na
própria diferença entre crescimento econômico e
desenvolvimento. O crescimento econômico é constatável
por um aumento da produção de mercadorias e serviços
de um país ou mesmo de uma região, sendo aferido
especialmente pela inversão no setor produtivo e pelo
aumento médio da renda per capita. Já a idéia de
desenvolvimento requer a introdução de diversos
indicadores sociais na sua elaboração: além do crescimento
econômico, torna-se necessário incorporar variáveis
relacionadas à saúde, à educação, ao trabalho e à
previdência, às liberdades civis, à distribuição de renda, à
maior expectativa de vida, à estabilidade institucional, à
alimentação, à diminuição da mortalidade infantil, à
alfabetização, à habitação e ao saneamento, ao meio
ambiente equilibrado, à igualdade entre os gêneros, ao

159
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

racismo; entre outras ainda possíveis. Conforme a


quantidade e a ênfase qualitativa na seleção desses
indicadores, poderemos então chegar a várias concepções
de desenvolvimento: desenvolvimento social,
desenvolvimento econômico, desenvolvimento humano,
desenvolvimento socioeconômico. Assim, muito embora não
haja consenso entre os economistas sobre qual é o melhor
conjunto de variáveis para a análise do desenvolvimento,
essa idéia cuida mesmo da generalização do acesso dos
indivíduos ao bem-estar traduzido naqueles índices que
demonstram a melhoria ou a piora das condições globais
da existência humana digna em uma determinada
sociedade. São, portanto, as concepções de
desenvolvimento que cuidam de administrar os recursos
materiais necessários à promoção do mínimo ético.
O direito ao desenvolvimento atualmente faz parte
da terceira geração de direitos humanos, sendo abrangido
pela declaração adotada pela Assembléia Geral das Nações
Unidas de 1986. Todavia, essa inclusão do
desenvolvimento como um direito humano ainda não se
procedeu de modo completamente pacífico. Muitos países
se abstiveram enquanto outros, como os Estados Unidos,
votaram contra essa inclusão. Evidentemente, a rejeição
dos Estados Unidos ao reconhecimento do
desenvolvimento como um direito humano é sintomática
de um temor às objeções éticas que poderiam ser
suscitadas à sua política econômica externa pela
comunidade internacional. E isso se torna ainda mais
óbvio quando notamos que a Declaração da Conferência
Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em
1993, ao ratificar o direito ao desenvolvimento, salienta
que seu implemento “requer um efetivo desenvolvimento de
políticas no nível nacional, bem como relações econômicas justas e um
favorável ambiente econômico no nível internacional” 19. Ora, não se

160
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

necessita ser um expert em assuntos de geopolítica para


perceber que promoção das economias nacionais, relações
econômicas justas e ambiente econômico favorável no nível
internacional constituem uma espécie de descrição técnica de
tudo aquilo que os Estados Unidos não pretendem
praticar.

Os enlaces entre o direito e a teoria do


desenvolvimento trazem à luz as novas formas de
articulação entre a política e a economia. E, como é
presumível, o assunto polêmico do desenvolvimento
social, ao transitar pelo campo minado da economia
política, sai intensamente marcado por programas
partidários, concepções ideológicas, interesses nacionais,
transnacionais, regionais, corporativos e pelos próprios
projetos de sociedade disponíveis nas demarcações dos
mapas da geopolítica internacional. Nesse terreno tão
perigoso e instável não há espaços para a candura das
neutralidades ingênuas. Ainda mais quando sabemos que o
problema do desenvolvimento não abrange apenas ajustes
microeconômicos internos, mas também medidas de alta
envergadura macroeconômica, com as quais poderosos
interesses de blocos internacionais e do capital financeiro
são molestados. Nesse curso, um programa de
concretização dos direitos humanos também requer uma
forte compreensão sobre as estratégias do
desenvolvimento econômico e social. Especialmente nos
países de modernidade periférica, nos quais a cobrança
cínica e ilegal de uma dívida externa20 e as ingerências de
planos econômicos impostos por instituições como o FMI
e o Banco Mundial afetam a própria soberania nacional,
fazendo escoar para o exterior recursos que poderiam ser
investidos em programas de saúde, educação, geração de
empregos, distribuição de terras, saneamento da fome e da

161
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

subnutrição, e atendimento previdenciário. No caso


específico do Brasil, Emir Sader afirmou que o
endividamento internacional adotado pelos governos
militares funcionou como uma bomba-relógio: disparou
no momento exato da redemocratização, gerando um
descontentamento paradoxal com as potencialidades de
realização da política cidadã.21 Por outro lado, ainda no
caso brasileiro, somam-se ao descrédito da atuação política
a deserção e a cooptação da intelectualidade local, inclusive
jurídica, seduzida pelos imperativos do cientificismo e da
ideologia tecnocrata de uma burocracia de resquícios
oligárquicos que conduziram à impossibilidade de qualquer
projeto nacional autêntico. Não se dispõe mais de um
programa de edificação da sociedade brasileira, mas tão-
somente de uma preocupação com o saneamento de
índices financeiros exigidos pela redução do déficit fiscal.
As políticas públicas de destinação dessa arrecadação
tributária não vêm à pauta. Importa apenas a sobra de
valores que permitam pagar ao menos os juros da dívida
externa. A possibilidade de uma política econômica de
desenvolvimento social decaiu na singela regulagem de
taxas de juros, cuja precisão é ainda aferida por
organizações internacionais representantes de interesses
privados associados. Nos países periféricos, um programa
nacional de efetivação igualitarizante dos direitos humanos
assume a tônica de uma discussão sobre o direito à
autodeterminação para um modelo próprio de
desenvolvimento. E esse debate, por sua vez, pode ser
traduzido num tópico sobre as relações entre os direitos
humanos e a soberania nacional num contexto de
globalização da democracia formal e material.
Além disso, a globalização econômica, guiada
pelos imperativos de consumo dos mercados, tornou-se
um movimento de aplainamento das diversidades. Ao

162
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

diluir as especificidades locais num caldo morno de clichês,


oprime ou simplesmente suprime as sutilezas, quando já
não distorce as manifestações culturais ao grau de só se
tornarem reconhecíveis como exotismos, às vezes bastante
ridículos, ajustados aos propósitos da mercancia dos
estereótipos. Línguas, lendas, ritmos, materiais, hábitos,
objetos, estilos, tradições, enfim, formas de vida inteiras
desaparecerão por completo ou, o que talvez seja ainda
mais degradante, experimentarão uma espécie de
empalhamento para a exposição nas galerias do consumo.
A preocupação com o que se poderia designar como direito
identitário oferece alternativas para a preservação dessas
manifestações culturais do abrupto desaparecimento ou da
taxidermia. Ao desaparecerem culturas, multidões
experimentam a amarga angústia de serem subitamente
privadas dos espelhos pelos quais suas identidades se vêem
refletidas. O tema da identidade cultural dos povos não se
apresenta mais como uma simples questão de ufanismo
regional ou de purismo intolerante e estúpido. Esse viés
pertence aos ultranacionalismos insulares amplamente
rechaçados como xenófobos e produtores de atraso e
isolamento. O tema da identidade nacional passa agora
pela própria redefinição do conceito de nação. Envolve
assim a arrecadação daquele capital cultural com o qual são
adquiridas as fichas para apostas na roleta do cassino das
relações intercomunitárias. Sem essas fichas, culturas se
tornam espectadoras passivas, ou, mais secamente, meras
apostadoras das máquinas caça-níqueis das produções
estrangeiras. É o que se passa com a hegemonia comercial
do cinema americano. No caso especificamente latino-
americano, o problema dessa identidade cultural ainda
requer reflexões adicionais a respeito de como se podem
assentar Estados sobre bases comunitárias auto-
representadas em unidades estranhas a determinações

163
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

territoriais e oficiais, como é nitidamente o caso das várias


nações indígenas instaladas em zonas de trespasse de
fronteiras.
Direitos humanos são também direitos morais,
justificáveis enquanto tais a partir de sua universalidade.
Mas essa universalidade do direito moderno, forjada no
calor da fornalha iluminista, elabora-se hoje,
sociologicamente, como uma exigência por inclusividade
social. Trata-se então de postularmos agora uma
universalidade concreta, e não mais apenas formal. Essa
universalidade, portanto, não pode mais ser ancorada em
coisas abstratas como uma etérea condição humana.
Universalidade deve agora envolver a possibilidade de
inclusão de todos no universo social no interior do qual se
dá um convívio decente, regulado pela mútua
consideração, pela cooperação e pelo respeito àquelas
idiossincrasias culturais não originadas de desigualdades
sociais.
Nesse contexto, a diáspora entre liberdade e
igualdade deixa de ter relevância, pois, na medida em que a
liberdade diz respeito aos fins últimos do Estado e dos
planos de vida na sociedade, a igualdade opera os seus
primeiros fundamentos possibilitadores. Tendo a liberdade
como fim e a igualdade por fundamento, o Estado e a
sociedade devem viabilizar a explicitação do ser humano
em suas máximas possibilidades. Fora disso, até mesmo a
dimensão simbólica dessa universalidade resta erodida
pelas práticas corporativas e elitistas de sonegação de
direitos, muitos dos quais já instituídos.22
Mas direitos humanos tornam-se também
direitos fundamentais, justificáveis de modo objetivo a
partir de suas positivações em Constituições, que são
textos essencialmente nacionais pelos quais se resguarda a

164
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

soberania dessas comunidades constituídas por esse


mesmo documento. Contudo, nem a universalidade de sua
dimensão moral e nem a pura positividade de sua
qualificação jurídica são suficientes para tornar os direitos
humanos efetivamente garantidos e implementados. Tais
direitos só podem transitar da potência ao ato, tornando-se
realidades sociais, por força da vontade política e jurídica
que orienta a eficaciação concretizante dessas normas. E
essa vontade não só tem de querer isso, como também há
de compreender a urgência e relevância dessa demanda por
concretização a fim de que a própria unidade do
ordenamento jurídico não seja esfacelada pelos efeitos
pulverizadores do descrédito social na regulação pelo
direito, causada pelo crime continuado da exclusão social.
Essa concretização dos direitos humanos articula-se
simultaneamente por práticas efetivantes desenvolvidas
nos âmbitos dos cidadãos-juristas e dos juristas-cidadãos,
ambos responsáveis pela afirmação e ampliação de novos
consensos com vistas à implementação de um novo
projeto hegemônico.
A administração jurídica e política de uma
concepção de liberdade significada pela igualdade
representa o compromisso com a socialização do acesso
autêntico dos indivíduos a um maior número de
possibilidades. Porém, trata-se aqui de possibilidades cuja
realização não importe o bloqueio ou a restrição às
possibilidades de outros indivíduos. Até porque, como
destaca Amartya Sen, a capacidade de os indivíduos
levarem a vida que pretendem pode ser aumentada por
determinadas políticas públicas, e estas, por sua vez,
podem ser definidas ou influenciadas pela própria
capacidade participativa dos segmentos organizados da
sociedade civil.23 Mas como pode dispor de tempo para
participar politicamente quem não tem sequer como dar

165
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

conta de sua própria subsistência? Não estamos falando


apenas de renda mínima. Falamos de emprego. O
desemprego não atinge só o dado imediatamente
determinável da renda, senão também a própria auto-
representação de um indivíduo no âmbito de seu respeito
próprio (sua auto-estima), perante seus parceiros de
convivência. Atinge, portanto, o núcleo essencial de
formação das capacidades conviviais desde as quais
desempenhamos e somos reconhecidos por uma
ocupação. Dispor de um emprego não significa somente
poder ter acesso a uma fonte de renda. O acesso a uma
renda mínima pode até ser garantido por programas de
assistência urgente ou mesmo por benefícios
previdenciários. Nem por isso essa renda realiza
subjetivamente tanto quanto a renda percebida como fruto
de um trabalho. Segundo a representação social, o
trabalho, além de acesso a bens materiais, propicia a
fruição de valores imateriais como a honra. Esse é um traço
marcante da cultura das sociedades modernas. O trabalho,
além de significar uma fonte de renda considerada digna,
contribui para a possibilitação da própria subjetivação: ter
direito a uma identidade formada a partir do universo das
atividades, profissões, ocupações; e ser poupado de
alimentar, na sua própria auto-representação e aos olhos
de seus conviventes, a idéia supostamente vergonhosa de
ser um fracassado, um inepto ou um vagabundo. Assim
considerado, o desemprego não envolve singelamente
apenas uma ameaça à garantia de renda, senão também a
possibilidade de acionamento de um ciclo de exclusões em
cadeia cujos efeitos devastadores atingem as capacidades
de convívio e cooperação dos indivíduos ameaçados por
uma corrosão do caráter, como diria Richar Sennet. Um
desempregado não é só alguém que passa por dificuldades
econômicas para prover a si e a sua família. É alguém que

166
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

também enfrenta socialmente o duro questionamento


relativo à possibilidade real do atendimento a certas
expectativas e ao desempenho de seus papéis como pai ou
mãe capaz de manter seus filhos, como vizinho confiável,
como consumidor de certos produtos e serviços, como
amigo feliz, como cliente de instituições financeiras, como
morador de determinadas localidades, como cidadão não
necessitado de auxílios previdenciários, filantrópicos ou
humanitários, como valorizador de determinadas
manifestações culturais, como cidadão interessado pela
política e até mesmo como devedor de certos encargos
tributários.24
Em termos de sofrimento psíquico, o pesadelo
social do desemprego torna-se especialmente grave quando
a sensação de fracasso ou exclusão – que deveria ser
maciçamente creditada à iniqüidade dos sistemas
distributivo e econômico – é dirigida exemplarmente à
inaptidão singular desse ou daquele indivíduo específico,
na verdade considerado descartável quase aleatoriamente.
São essas as novas técnicas psicológicas de garantia da
qualidade da produção ao custo de um servilismo aviltante
dos empregados. A criatividade dos administradores e
economistas produz engenharias que atormentam
empregados pela paranóia da preservação da vaga em
nome de uma excelência que faz crer ser possível evitar o
inevitável. A responsabilidade social pelo desemprego é
depositada sobre os ombros dos que se tornam suscetíveis
a ser selecionados como desempregáveis. Mas necessita ficar
claro que o problema social continua sendo o do
desemprego e não o da empregabilidade, como querem
fazer crer certos programas de qualidade total e outras tantas
reengenharias de recursos humanos voltadas à exploração
da boa-fé dos humildes e à manipulação sádica dos
temores e sentimentos de culpa dos mais ingênuos.

167
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Intelectuais e políticos conservadores


apregoam a necessidade de desconstitucionalização dos
direitos sociais para que assim o mercado possa, por sua
mão invisível, equalizar espontaneamente aquelas situações
mais iníquas, produzidas pela intervenção estatal excessiva
e distorciva. Constitui uma grande ilusão, ou um cinismo
deslavado, recorrer-se ao poder mágico dos princípios
reguladores do mercado justamente quando este mesmo
mercado representa o reflexo distorcido de esquemas de
necessidade violentamente desvirtuados. Ademais, a mão
invisível do mercado globalizado tem acenado com gestos
obscenos para os países em desenvolvimento.
A pujança de um sistema econômico, que é
sempre parte de um sistema social, não pode ser
mensurada apenas por índices financeiros manipuláveis ou
pela eficiência mercadológica. Uma análise dessas requer a
introdução de algum critério ético minimamente
justificável. A dignidade e a cidadania estão mais além da
possibilidade de consumo de alguns produtos. E isso
porque a pujança dos sistemas econômicos pode também
passar a depender dos esquemas de necessidades e das suas
respectivas liberdades, como sustenta Amartya Sen com
seu conceito de conjunto capacitário: um sistema econômico
socialmente orientado deve promover um conjunto de
liberdades substantivas que podem ser realizadas conforme
escolhas relativamente livres de alternativas.25
Cada vez mais, o problema dos direitos
humanos assume o viés dos direitos sociais nos países de
economia periférica à centralidade financeira. E cada vez
mais fica evidente que esses direitos só podem ser
garantidos a amplos segmentos sociais pela combinação
entre prestações estatais, de um lado, e a adoção de
políticas e estratégias econômicas de desenvolvimento

168
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

comprometidas com a distribuição das riquezas e das


oportunidades concentradas, de outro. As promoções
desses direitos sociais garantem a integração à sociedade
dos indivíduos deixados de fora do pacto social, sobre os
quais ainda recai o selecionamento punitivo-
exemplificativo do sistema penal, cujo efeito
retroalimentador da criminalidade é o de produzir o
reforço do sentimento de injustiça pela perseguição policial
e estatal associada à idéia de impunidade reinante para as
camadas abastadas. Privações de educação, saúde, emprego
e alimentação afetam diretamente não só a dignidade
desses indivíduos excluídos, mas também os seus
sentimentos morais e sua própria capacidade prática de
poder atender às expectações sociais, morais e jurídicas,
comumente exigidas entre os setores minimante integrados
da sociedade. Nas sociedades onde a informação passa a
circular não só como mera comunicação, mas também
como mercadoria valiosa, esse fosso tende ainda a ser cada
vez mais alargado: quem não tem acesso à educação
tecnológica, e primariamente a toda a preparação alimentar
e cultural que a torna possível, está propício a ter cada vez
menos oportunidades em comparação com os outros
indivíduos que tiveram um acesso facilitado a esses
benefícios sociais.
Os segmentos sociais que sofrem grandes
dificuldades para assegurar sua subsistência, e tampouco
têm acesso à educação, dificilmente ainda disporão de
tempo para exercer suas liberdades políticas discutindo
assuntos públicos, informando-se, constituindo grupos de
pressão, integrando associações ou mesmo fiscalizando
seus representantes parlamentares. Nos países de excessiva
concentração da riqueza econômica e cultural, o ideal de
Rousseau de uma promoção da liberdade e da legitimidade
atingidas pela participação dos próprios destinatários em

169
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

uma autolegislação requer alguns preparos. A ênfase por


vezes ingênua e mistificadora do participativismo pode
conduzir da democracia à demagogia se antes não forem
implementados programas de socialização das calorias e do
acesso às competências comunicativas.
A garantia do engajamento na autolegislação
há de ser precedida por programas de financiamento do
discernimento, que é base dessa participatividade, de vez
que esta não envolve somente o puro interesse, mas
também capacidades culturais para compreender certos
temas e para situar seu próprio ponto de vista em assuntos
submetidos à deliberação coletiva. Segundo algumas
interpretações filosóficas, tanto a hipótese contratualista
como a hipótese discursiva fazem a legitimidade do direito
depender muito de um momento fictício ou utópico
veementemente desmentido pela história: nunca o
contrato social foi efetivamente celebrado, nem o discurso
simetricamente ideal pôde de fato algum dia ocorrer. Mais
valeria então, dizem alguns, compreender-se o contrato
social como um contrato de adesão, cujas condições materiais
de adimplemento não estão sendo fornecidas ao candidato.
Mais valeria também compreender-se a legitimação
oriunda da discursividade como um processo precedido
por uma pedagogia da participação. Tanto num como
noutro caso os indivíduos são jogados à sorte de situações
desde sempre dadas: a falta de alternativas, o baixo poder
de negociação dos termos unilateralmente estipulados em
um contrato de adesão (a sociedade não pergunta a um
indivíduo como ele quer que ela seja) e o lento
aprendizado do uso eficaz da comunicação a partir do qual
alguém pode lograr expressar-se e defender seus próprios
interesses e impressões (ninguém nasce naturalmente apto
a expressar com clareza e a defender com proveito seus
interesses). Independentemente de concordarmos ou não

170
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

com a justeza dessas observações suscitadas ao modelo da


legitimidade pela autolegislação, cremos que essas questões
apontam para um fato insofismável: a legitimidade do
direito e do sistema político não nasce apenas de uma
explicação filosófica relativa à aptidão para a
universalidade das normas de um ordenamento. Nasce,
isto sim, da capacidade prática de um sistema determinado
realizar as promessas e as expectativas de integração e
satisfação alimentadas pelos seus destinatários, tornando-
os cada vez mais aptos a participar maximamente da
deliberação sobre seus destinos como indivíduos e como
nações.
A legitimidade do judiciário não deflui,
entretanto, dos mesmos mecanismos delegatórios da
democracia representativa. Seu cultivo deve estar atento à
responsabilidade conseqüencial na eficácia que suas
decisões produzem no acautelamento das possibilidades de
funcionamento da sociedade. Não quer isso sugerir
nenhum populismo nas decisões do judiciário. Trata-se
apenas de um compromisso com sua razão última: a
continuidade da própria sociedade, a superação da
dicotomia entre incluídos e excluídos, entre sociedade e
não-sociedade. A alta procedimentalização do direito
moderno produz expectativas generalizadas de
reconhecimento das decisões como base de sua
legitimidade. Porém, essa legitimidade fundada em uma
expectatividade genérica e procedimental não pode
renunciar ao cuidado de um mínimo eficacial suportante
da realizabilidade dessa mesma expectatividade. Enunciado
em linguagem sistêmica: desse mínimo eficacial depende
inclusive a possibilidade de funcionamento autopoiético de
todos os subsistemas sociais enquanto sociais. Volta à
discussão um conceito de sociedade que não mais se
satisfaça com o fato de um agregado demográfico

171
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

coexistente. Uma definição de sociedade precisa agora


envolver a possibilitação de qualidades de convívios pacíficos
e mutuamente expectáveis.
A legitimidade elementar de um dado sistema
jurídico, determinada pelo índice de concretização do
mínimo ético, apresenta-se assim como uma questão de
compromisso eficacial num quadro de sujeição geral à
validade. Isso pode ser especialmente apreciado do ponto
de vista dos cidadãos. E esse ponto de vista, ao qual a
jurisdição nunca deve deixar de estar atenta, em regra não
enxerga os direitos humanos num gradiente de gerações
sucessivas. O ponto de vista indiferenciado dos cidadãos,
ao perceber o Estado, não distingue nele poderes e
funções nitidamente separados. Vê somente o lugar
comum de onde deveriam proceder políticas públicas e
estratégias de desenvolvimento que assegurem os recursos
materiais para a realização dos direitos sociais, que, pela via
judicial, ainda só se consegue garantir numa reduzida
escala. Todavia, não é por ser reduzida essa escala que ela
deva ser desprezada. Dentro de sua esfera de atuação, o
jurista-cidadão deve também fazer o possível para
concretizar esses direitos humanos sociais, assumindo com
clareza o seu quinhão de responsabilidade na sua
edificação. Por outro lado, o cidadão-jurista deve
permanecer atento à esfera pública, desde a qual a
discussão e o acesso maciço aos resultados dessas políticas
de desenvolvimento se tornam possíveis. Isso sem jamais
esquecermos que a perspectiva dos destinatários sobre o
direito só consegue enxergar as cores da justiça social
efetivamente realizada, e nunca os tons daquela que se
poderia realizar na potência de um direito apenas
formalmente válido. No terreno desse mínimo ético
material, que garante o desempenho legítimo da ordem
jurídica, a justiça social é a justiça que efetivamente se faz,

172
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

e não a justiça que se poderia fazer; porque, se podemos


fazê-la e não a fazemos, o que resta feito aos olhos da
sociedade nada mais é que a pura injustiça de uma
omissão.
Jamais tratar o próximo como meio, mas
sempre como um fim em si mesmo é uma das exigências
mais conhecidas do imperativo categórico de Kant. Mas
como realizar essa aspiração iluminista se, na prática, a lei
do valor instrumentaliza muitos em prol da felicidade de
poucos? Revelar a imoralidade da desigualdade gerada e
agravada pelo capitalismo nos países de baixo
desenvolvimento significa colocar o problema da
exploração na crueza de sua dimensão ética, especialmente
porque é dessa ética que depende, em grande parte, a
eficácia do direito. A eficácia normativa ainda há de
continuar sendo um problema do Estado, ou daquilo que
o suceder na tarefa de aplicação do direito, mesmo se a
juridicização atalhar o longo caminho da política e da
legislação parlamentar para se instalar, diretamente, no
terreno jurisdicional. No plano mundial, vivemos
momentos de revalorização do direito judicial e,
simultaneamente, de grande desprestígio da política. Não
estamos sugerindo relações mecânicas entre esses
fenômenos, muito embora seguramente existam grandes
imbricações. Uma rápida sondagem dos ordenamentos
jurídicos nacionais em funcionamento pelo mundo indica-
nos um direito estatal que, além de não ter cumprido
satisfatoriamente as promessas da modernidade, vem
sucumbindo ao pluralismo de ordens normativas marcadas
por interesses econômicos corporativos e/ou à derrubada
das fronteiras pela globalização. A própria expressão
globalização tornou-se, em muitos casos, um eufemismo
para a pax americana. Sob os auspícios dessa globalização,
começa a ser composto o quadro de um direito

173
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

principiológico, jurisprudencial e flexibilizado. Um direito


no qual também a soberania nacional e centralidade
institucional do Estado, como signos da universalidade da
experiência social na modernidade, têm alterados seu lugar
e suas forças real e simbólica.
A empolgação exagerada de muitos juristas
com os princípios indica a crença ingênua em uma suposta
racionalidade material e substantiva inerente aos sistemas
jurídicos. É bem verdade, contudo, que esses princípios,
vistos de perto, não constituem nenhum oásis de
tranqüilidade e consenso racional entre os personagens
concretos responsáveis pela consecução quotidiana da
ordem jurídica. Quando esses princípios descem do éden
etéreo das formulações abstratas para a lama mundana das
argumentações guiadas por interesses, eles podem se
prestar a patrocinar causas espantosamente díspares. Mas
isso tampouco deve nos causar assombro. Essa
racionalidade substantiva dos princípios jamais foi aquela
apreensível por conceitos genéricos, como quiseram alguns
jusnaturalistas obcecados por encerrar a justiça em
definições. A dita racionalidade substantiva subjacente aos
princípios, antes de prospectar como deve ser o melhor
direito, sempre resultou da expressão hegemônica de uma
dada moralidade ético-política vigente e submetida a
práticas hermenêuticas e concretizadoras. Até porque, se
não fosse assim, poderíamos lembrar que todos os
princípios seriam sempre submetidos a um princípio
diretriz e mais originário: o princípio da criatividade, sempre
funcionando à luz dos interesses e das oportunidades.
O caráter maleável e retórico dos princípios
também abre um generoso espaço à chamada flexibilização
das relações jurídicas. A flexibilização é um nome
agradável, talvez sofisticado, para uma velha prática: a

174
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

eliminação das garantias asseguradas na legislação, a


diminuição da impositividade do direito e sua substituição
por um quadro de negociações mantidas por um regime de
evidente desproporção de forças. A flexibilização
representa a genuflexão humilhante dos segmentos sociais
hipotônicos diante de uma situação de agravamento do
desemprego estrutural. Desemprego estrutural é aquele em
que as vagas de trabalho são eliminadas em face da
substituição do trabalho humano por processos
automatizados ou por obra de programas de reengenharia
de pessoal. A causa do desemprego estrutural tem sido as
medidas de contenção de gastos do capital irresponsável
que não contabiliza em suas despesas o custo social dessa
redução do número de vagas. A otimização contábil das
empresas é conquistada ao preço de um altíssimo
sofrimento humano e do agravamento da baixa qualidade
de vida das populações. Fusões e incorporações são
estratégias de enriquecimento do capital que fazem
desaparecer, em passe de mágica, centenas e às vezes
milhares de vagas de trabalho. O tema da flexibilização nas
relações de trabalho tem merecido especial cuidado dos
juristas críticos mais atentos às modificações no panorama
nacional e internacional. (1) O esvaziamento da tutela da
jurisdição trabalhista pela desregulamentação, (2) a opção
dos setores empresariais pela ágil jurisdição privatizada das
câmaras de arbitragem e (3) a adoção, por diversos ramos
jurídicos, do modelo evolucionário próprio ao direito
comercial são apenas alguns indícios desse direito
flexibilizado.
Uma outra característica desse direito é a trans
ou supranacionalidade de ordenamentos comunitários
regionais. Em tais ordenamentos, a condução dos
processos de integração e harmonização jurídica e
econômica é capitaneada, de um lado, pelos chefes de

175
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Estado e, de outro, pelas empresas; daí os núcleos de


positividade desse direito serem essencialmente
tratadísticos e contratuais. A tendência desses
ordenamentos comunitários advém de uma forte demanda
pela transnacionalização das economias. Esse processo,
hoje aclamado sob a alcunha de globalização, não é
absolutamente novo. Trata-se de algo iniciado com as
grandes navegações e que, mais recentemente, já podia ser
notado na retórica econômica sob a designação de divisão
internacional do trabalho – DIT. Obviamente, as
tendências à organização regionalizada dos blocos
supranacionais e à planetarização da economia são
processos co-implicados. A formação de ordenamentos
comunitários regionais e a internacionalização da
economia capitalista são realidades mutuamente exigidas
como condição uma da outra. Capturamos uma das
expressões mais notórias dessa articulação no
redimensionamento do ius tributandi, um direito
emblemático dos clamores por segurança jurídica e
distribuição de renda nos Estados Liberal e Social. O
direito tributário contemporâneo deixa de ser apenas uma
atividade de angariamento de recursos para o Estado. A
tributação incidente sobre atividades internacionais serve
agora à regulação de interesses dos blocos comunitários,
uma maneira hábil de promoção de suas políticas
econômicas pela imposição ou eventual remoção de
barreiras alfandegárias. Esse novo direito tributário opera
maneiras sutis de se promover ou obstaculizar o controle
do fluxo de produtos, capitais, serviços e até de pessoas
em mercados indiferentes ao pontilhado dos territórios
nacionais, conforme decisões e interesses estratégicos das
direções desses mesmos blocos. Não é de se estranhar
então que esse tipo de tributação espelhe diretivas
determinadas por interesses dos setores privados. Aqueles

176
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

mesmos setores privados cujos funcionários, por aqui, ao


se furtarem de sua responsabilidade social pela sonegação
sistemática e pela acumulação de riquezas em paraísos
fiscais, trafegam pelas ruas em seus carros de luxo, muito
dos quais blindados. A proliferação desses carros
blindados é, aliás, um dos sintomas mais explícitos de que
a sociedade brasileira sofre com uma situação de
verdadeira guerra civil entre excluídos e incluídos.
O direito exigido pela globalização tem uma
nomogênese de caráter essencialmente tratadístico e
contratual, envolvendo a composição entre interesses
corporativos e regionais, versando sobre questões de
elevada complexidade como o equilíbrio entre mercados.
Essas normas, muito embora suas conseqüências atinjam
milhões de pessoas, são discutidas apenas entre empresas
ou por seletos grupos dos Poderes Executivos,
envolvendo, naturalmente, uma ínfima participação
democrática nos seus processos de elaboração. Ademais,
ordenamentos comunitários também se assentam sobre
tácitos acordos de cavalheiros entre as diversas cortes
constitucionais nacionais. Perplexos, esses guardiões dos
ordenamentos domésticos, forjados sob a doutrina da
soberania nacional, observam apreensivos as manobras
dos outros poderes do Estado. Naturalmente, se
estivessem habituados a exercer sua discricionariedade
política de modo menos velado, essas cortes
constitucionais poderiam em várias ocasiões fazer valer a
superioridade doméstica em relação às ordens
comunitárias.
Durante o período da Guerra Fria o direito
tratadístico sofreu uma retração acionada pela
preeminência dos interesses geopolíticos e militares.
Qualquer tratado ou acordo internacional era sempre

177
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

meticulosamente pesado pelo fiel do grupo dos alinhados


ou dos não-alinhados. Mas uma vez superado o
acirramento da bipolarização entre norte-americanos e
soviéticos, rapidamente a circulação dos capitais para além
das fronteiras e das ideologias soube desfrutar das energias
desse impulso contido. Esse direito tratadístico,
orquestrado pelos chefes de Estado, desenhou os novos
blocos de integração regional. Dentro desses blocos, além
de suas próprias legislações internas, os instrumentos
contratuais amoldaram-se perfeitamente aos interesses da
circulação dos capitais, pessoas, bens e serviços.
Mais do que os Estados, a empresa torna-se a
personalidade jurídica por excelência desses blocos
regionais. Fusões, incorporações, formação de trustes e a
prática sistemática de cartéis nos mais diversos mercados
aniquilam produções locais e suas possibilidades razoáveis
de concorrência. Pasmados, assistimos ao avassalamento
dos governos à suserania do capital. Sem nenhum projeto
de desenvolvimento nacional, esses governos hesitam
entre o apregoamento do dogma do livre mercado, com
eliminação das subvenções aos produtores e aos mercados
locais, e a chantagem das grandes empresas pela instalação
de suas plantas à custa de variados privilégios, garantidos
às expensas do pouco de coisa pública restante. O grau de
servilismo desses governos pode oscilar em pequena
escala, mas invariavelmente denota a falência do
financiamento público pelos instrumentos arrecadatórios
do direito tributário tradicional. O custo da coisa pública
não pode mais ser mantido por modelos de financiamento
cúmplices da acumulação ilimitada. Mas os candidatos à
ocupação desses espaços públicos dificilmente têm
coragem de anunciar esse fato com clareza, transformando
assim a política numa prática espetacularizante de
encenações no palco legislativo, geralmente inócuas pelo

178
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

descomprometimento com intervenções equilibrantes nos


sistemas econômico e tributário. A aliança espúria entre o
arrivismo, a vaidade, a mediocridade e o corporativismo
dos políticos tradicionais com os interesses intocáveis do
capital produz a falência múltipla dos diversos órgãos do
sistema democrático. O espaço público da política acaba
submetendo-se ao da razão econômica. Mas essa falência
não chega a significar a morte ou a supressão pura e
simples da democracia. Significa, antes, sua substituição
por um arremedo, uma farsa, um espetáculo de encenações
e fingimentos. Nessa versão espetacularizada e midiática, a
democracia sofre um coma profundo. Vegeta na deserção
e na indiferença dos setores capazes de participar e na
incapacidade participativa daqueles segmentos
subintegrados sempre preocupados com a radical
imediatez da subsistência quotidiana.
No plano internacional dessa democracia
vegetativa, um simples crachá de funcionário de uma
grande corporação privada vale mais que o passaporte de
um país. Na mesma medida, agora no plano nacional, um
cartão de crédito também dirá mais sobre um cidadão do
que sua própria cédula de identidade. Entre o
hiperindividualismo narcísico dos superintegrados e a
miséria aviltante dos subintegrados cava-se um abismo no
qual sucumbe o desempenho do papel social do cidadão
na cena pública onde se desenrolam as tragédias e
comédias da política. A própria noção do que é público é
tragada por esse abismo.
Fusões de empresas e demissões sempre
andaram juntas. Muito pior ainda quando o modelo do
enxugamento de pessoal das corporações privadas é
postulado como ideal de um Estado mínimo. Nos dias
atuais, esse Estado mínimo é cada vez mais um mínimo de

179
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

sociedade. A sociedade enxuga-se no seleto clube dos


integrados. O mundo outrora se cindia entre os explorados
e os exploradores, entre capitalistas e proletariado. Mas
mesmo esses proletários ainda podiam ser considerados
integrados, embora em condições desigualitárias. A
situação é hoje muito pior: a cisão se instaura entre os
exploráveis e os nem mesmo exploráveis, os dispensáveis,
os sobrantes, os resíduos do sistema, os inaproveitáveis, os
descartados.
No contexto da globalização, uma
interpenetração cultural de mútuo enriquecimento entre os
sistemas do common law e do civil law tornou-se
praticamente inevitável. Tal ocorrência não se verifica por
qualquer um desses sistemas preponderar como melhor,
superior ou mais justo. Desde nossa tradição romano-
germânica, podemos destacar a influência do common law
nos ordenamentos comunitários contemporâneos em
razão dos seguintes motivos: (1) porque nas complexas
sociedades atuais, ávidas por regulações, reduziu-se
significativamente o tempo disponível para a mediação da
decisão política; (2) porque a arquitetura institucional
comunitária não aponta para a criação de órgãos
legislativos hierárquicos legitimados por um substrato
político-representativo, semelhantes àqueles dos Estados
nacionais; e (3) porque a própria linguagem dos juristas
acaba compondo uma espécie privilegiada de dialeto
comum orientado a decisões, haja vista que, fora do
direito, as demandas seriam paralisadas e tornar-se-iam
incompreensíveis se vertidas nas várias línguas de uma
política regida pelas múltiplas gramáticas dos interesses.
Contudo, gravíssimo é o risco do corporativismo dos
doutos e de sua negligência em relação à proteção dos
interesses daqueles que não tomam parte alguma nessa

180
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

comunidade global, integrada especialmente por pessoas


jurídicas, como conglomerados empresariais e financeiros.
A assimilação da influência do common law,
agora ampliada para escalas comunitárias e até global,
carrega consigo um drama muito peculiar. Ante a
infreqüência, nesse sistema, de se transformar a
legitimidade político-legislativa em legalidade, verte-se
mesmo uma dada moralidade em legalidade. Pois bem, em
um panorama nacional-estatal, essa moralidade vertida em
legalidade não passava da própria ideologia social
hegemônica, encarnada pelos intérpretes judiciais e
elaborada na forma de princípios decisões, razões, standards ou
argumentos jurídicos geralmente reconhecidos como tais pela
própria comunidade. Porém, essa dinâmica muda
drasticamente de figura se já estivermos numa escala
macrojurídica, global ou de blocos econômicos, pois aí
desaparece aquele substrato moral-comunitário de uma
sociedade organizada sob a forma de um Estado nacional.
Ao desaparecer esse substrato moral-comunitário, é bem
provável que essa ideologia social vertida em legalidade
não vá além dos interesses econômicos e corporativos em
jogo ou da própria racionalidade técnica intrínseca ao
direito judicial procedimentalizado. Em um Estado
nacional, seja ele da matriz do common law ou do civil law, os
conteúdos normativos reforçados pelo direito atingem
uma razoável eficácia social desde seus estágios morais.
Em tais contextos, ao direito era dado cuidar,
retroativamente, dos excessos e das transgressões, pondo
em jogo a heteronomia aplicativa ante o fracasso da auto-
regulação moral. Sociologicamente, os conteúdos da
moralidade e da juridicidade convergiam de modo intenso
nas questões básicas, no âmbito de um Estado nacional.
Assim, no interior de uma determinada comunidade
nacional, questões ligadas à eficácia enquanto observância

181
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

já poderiam ser visualisadas de modo suficientemente


nítido desde o terreno da moralidade, apesar de a
epistemologia da validade não ter dispensado maior
atenção teórica a esse fato. Contudo, num mundo agora
em via de integração planetária, é impossível ser postulado
o substrato moral de uma comunidade cuja composição é
de pessoas jurídicas, especialmente empresas e instituições.
Uma empresa não pode apresentar uma moral pelo
simples fato de não possuir uma consciência, mas apenas
uma economia de interesses, não raras vezes cruéis e
predadores. Diante disso, sem incorrer em nenhuma
espécie de sociomancia, podemos alertar contra as (1)
tendências ao predomínio de uma racionalidade técnico-
procedimental e (2) sua conseqüente amoralidade como
sintomas desse direito articulado pela complexa dialética
do par local–global e seus receptivos pluralismos
normativos.
Atravessamos perplexos um momento de
declínio generalizado do prestígio do Poder Legislativo.
Por isso mesmo, a chamada judicialização da política não
ocorre gratuitamente, nem deve ser interpretada
açodadamente como algo de todo ruim. A intensa
incerteza sobre o modo de encaminhamento das
negociações políticas, o impudor de seu freqüente jogo de
interesses e encenações, bem como a possibilidade
iminente de desestabilização provocada pela corrupção,
empurram a política para terrenos institucionais mais
confiáveis e procedimentalizados, como parece ser o caso
do Poder Judiciário. De alguma maneira, parcelas desse
Poder Judiciário conseguiram escapar à hegemonia da
política neoliberal, adquirindo uma legitimidade elaborada
como foco de resistência do Estado Moderno ao ataques
diluentes do pensamento único. Mas terá esse judiciário
um lastro de legitimidade e consciência sobre suas novas

182
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

responsabilidades sociais para suportar os conflitos


advindos da política e dos interesses econômicos
globalizados? Estará esse poder judiciário apto a decidir
essas questões de fundo político e econômico pela
aplicação dos velhos métodos de interpretação?

2.5. Direito e desenvolvimento na América Latina

A crise social nos países latino-americanos é


uma resultante da inépcia do sistema político em produzir
atendimentos efetivos às demandas por igualdade no
quadro de democracias de baixa participação e economias
de recente matriz não-intervencionista. Com o advento do
neoliberalismo, essa crise social revestiu-se de uma grave
crise política quando o Estado, e não mais governos
específicos, passou a ser identificado como o responsável
por essa inépcia. Agravada pela corrupção e pelo
corporativismo, essa crise política comuta-se em uma crise
da política em geral.
Questionou-se a aptidão da esfera pública para
manter coeso o tecido social desses países. Porém, uma
vez saídos de regimes militares marcados pelo
intervencionismo intensivo, os países latino-americanos
rumaram para o extremo oposto, o da desregulamentação
das economias. Resultados desastrosos se sucederam
naquela que ficou conhecida como a década perdida pela
alternância entre inflação e recessão. Sucessivos planos
econômicos naufragaram sem resultados substanciais.
Circularam os rumores da ingovernabilidade e alguns até
anunciaram saudades das ditaduras. O socorro financeiro
internacional veio acompanhado e condicionado pelos

183
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

planejamentos realizados desde o exterior pelas missões do


FMI. A perda da capacidade de inversão dos Estados
latino-americanos deveria conduzir às medidas de
privatização, segundo o receituário das agências de socorro
e endividamento internacional. As economias nacionais
perderam suas prerrogativas de planejamento doméstico.
As equipes econômicas foram catequizadas pela cartilha
monoteísta do mercado globalizado. Os chamados
interesses nacionais perderam seu apelo retórico no
discurso econômico oficial. As economias dos países em
desenvolvimento continuaram a ocupar funções móbeis
designadas pelos interesses transnacionais difusos e
anônimos, segundo muitos entendimentos. Essa crise da
política e das economias atingiu diretamente aquelas
condições morais e materiais de cooperação e unidade
social desses países. A escalada da crise social não dava
sinal de perder seu fôlego. Um apartheid entre os muito
bem incluídos e os sobrantes acirrava-se com a crescente
concentração de riquezas. De parte das classes favorecidas,
proliferaram práticas como o uso de serviços de empresas
de vigilância privada, o confinamento em condomínios
fechados e o consumo ostentatório. De parte dos setores
excluídos, além da saturação das vagas do mercado de
subempregos, a inserção nas atividades do crime
organizado e os seqüestros tornaram-se alternativas de
sobrevivência cada vez mais corriqueiras.
Sem pátria nem fronteiras, e sem estar
amarrado a suportes materiais, como parques industriais, o
capital financeiro assume a fluidez plena de sua
volatilidade. O direito tem azeitado o fluxo desses capitais
por entre essas economias transnacionalizadas. A
remuneração oferecida pelas altas taxas de juros é atrativa a
esses capitais, que chegam sob efusivos cortejos e vão
embora sem avisar. Fica então somente o vácuo de sua

184
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

ausência no lastro evaporado repentinamente das


economias. Mesmo gestada nos variados ventres
legislativos dos Estados nacionais, a forma jurídica tem se
saído muito bem no fornecimento de luxuosos passaportes
à circulação desse capital. Ao mesmo tempo, essa forma
jurídica tem dado de ombros para a depauperação das
economias internas que outrora patrocinaram experiências
exitosas como o Estado de Bem-Estar Social. Distanciado
de sua missão ético-social, o direito tem se prestado a
formalizar e proteger os interesses de uns ralos ricos sem
nenhum escrúpulo e projeto para os países nos quais
habitam ou parasitam. O drama contemporâneo do
desenvolvimento nos países latino-americanos encerra
então essa imensa dificuldade: a de implementar e
assegurar garantias igualitarizantes semelhantes às do
Estado de Bem-Estar Social em contextos de
obsolescência do equipamento estatal e enfraquecimento
das economias domésticas. A panacéia da globalização tem
ainda oferecido uma outra dificuldade adicional. Sob os
auspícios desse argumento é estimulada uma indolência
pela qual parece ser mais prudente poupar esforços
políticos na edificação de projetos nacionais. De nada
adiantariam projetos nacionais nessa época globalizada, eis
um pensamento fácil e confortável, elaborado com a
indulgência de poder ser verdadeiro. Mas, para os que
ainda não sucumbiram a esse fatalismo preguiçoso,
existem coisas a serem feitas. Muitas coisas. Certas
medidas podem facilitar o bom logro na tarefa de
reconstrução das sociedades dos países latino-americanos.
Arriscamos cogitar que uma dessas medidas pode ser a
requalificação do pessoal integrante dos setores
estratégicos responsáveis pelo planejamento das políticas
públicas. A excelência do planejamento estratágico estatal
evita o pragmatismo perverso de quem só vive à volta com

185
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

problemas originados do passado ou do exterior. Mas a


excelência desse tipo de planejamento estratégico envolve
algo muito mais complexo que as exigências rotineiras por
eficiência dos funcionários de baixa e média colocação na
hierarquia administrativa. A excelência no planejamento
estratégico envolve a arregimentação dos melhores
quadros intelectuais a serviço do futuro da causa pública. E
a atratividade da ocupação estatal não passa somente pela
atratividade do aspecto salarial, mas também pelo
compromisso ético e programático dos partidos políticos e
de seus intelectuais orgânicos de caráter não-fisiológico ou
meramente tecnocrático.
Os países latino-americanos necessitam com
urgência de uma intelectualidade autenticamente
comprometida com os interesses de seus povos e países.
Uma safra de pensadores imunizada contra a sedução
pelos imperativos de neutralidade e tecnicismo de uma
economia globalizada que jamais poderá ostentar uma
mesma direção harmônica de interesses. A formação
desses intelectuais em escolas de pensamento alternativas à
globalização hegemônica é de alta relevância. O estilo
pragmático da produção de conhecimento social e
econômico difundida pela academia norte-americana exige
de qualquer análise o oferecimento de dados:
quantificações, pesquisas, demonstrações, gráficos,
percentuais, tabelas e, mais recentemente, espetáculos
digitais de animações eletrônicas. São maneiras talvez de se
capturar em números uma realidade fugidia na sua
complexidade ou horrenda em sua verdade. Números
atribuem uma concretude provisória e artificial às coisas
evanescentes. Mas números também mascaram coisas que
não devem ser percebidas. Dados apresentam essa
similitude com o inconsciente humano: revelam enquanto
ocultam. Números são gerados conforme interesses

186
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

bastante concretos naquilo que deve ser enumerado,


apresentado, quantificado. O problema então não é o
argumento pseudocientífico dos dados e de sua certeza,
mas sim o interesse que direciona atenções para esses e
não para outros dentre tantos possíveis. Sempre antes do
dado está a escolha prévia e cautelosa de sua valiosidade: o
interesse humano é a invariante dessas variáveis. O Brasil
esclarecido sabe muito bem o que podem representar esses
inocentes números neutros no destino de um povo.
Dispensadas digressões metodológicas, sabemos que
resultados de pesquisas de opinião encomendadas podem
ser preestabelecidos mediante uma escolha cuidadosa da
pergunta a ser dirigida aos entrevistados. Em uma pesquisa
com resposta induzida mediante a apresentação de uma
cartela de opções pode-se indagar: desses candidatos, quem vai
ganhar a eleição? Ou então: desses candidatos em quem você vai
votar? Ou ainda: desses candidatos em quem você não votaria de
maneira alguma? Mesmo sendo mantida a mesma cartela de
candidatos, os resultados podem variar vertiginosamente
conforme a pergunta selecionada. A primeira pergunta
induz a manter na frente um favorito; a segunda pode
impulsionar a subida de um candidato aclamado pela
mídia, e a terceira provoca uma redução de índices de
quem não deveria ter subido tanto.
O Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH), estabelecido pela ONU, não consegue ir muito
longe desse estado de coisas bastante relativo. Pelo IDH, o
Brasil estaria em 69.° lugar no rol das nações em
desenvolvimento. Mesmo situando o Brasil no segundo
grupo dos países em desenvolvimento, o grupo dos países
com desenvolvimento humano médio, o ranking dos desflagelandos
estipulado por esse índice não tem grande aptidão para
capturar desigualdades regionais como as que assolam
países continentais como o Brasil. Qualquer índice

187
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

expresso em médias gerais inevitavelmente provocará


efeitos distorcivos na análise das situações
socioeconômicas dos Brasis. Qualquer média entre os
cidadãos da cidade de São Paulo/SP e os moradores das
comunidades do Polígono da Seca, no Nordeste, resultará
em dados de uma sociedade bastante desenvolvida, porém
fictícia. Eis o quadro de uma inverdade absoluta! A lógica
de se compensar matematicamente a miséria de muitos
pela excessiva riqueza de uns poucos seria absurda se não
fosse antes útil às elites estabelecidas. A distribuição fictícia
forjada pela mediania dos índices é justamente aquela que
não se concretiza na realidade social, muitas vezes em
nome desses mesmos índices! Aí sempre se diz: Viram?
Estamos no caminho certo! Estamos melhorando, mas temos que ter
paciência, pois o caminho é longo! Vigora a velha política de dar
os anéis como medida de preservação dos dedos.
Enquanto isso, as mesmas elites seguem a engambelar a
fome dos excluídos com farelos, agora recobertos com o
chantilly da boa consciência de se estar fazendo o máximo
possível. A abundância de nossa minúscula elite é tão
extraordinária que mesmo ao ser diluída, por uma média
aritmética, no contingente de milhões de brasileiros, ainda
oferece um saldo positivo. Um saldo positivo apenas em
dados, evidentemente. A elite brasileira, aliás, é em muitos
casos mais privilegiada que a dos países desenvolvidos:
acumula muito mais dinheiro com a sonegação de tributos,
frui e repetidamente abusa de belezas naturais e tem a seu
dispor um exército de servos para pajeá-la em seus luxos e
confortos em troca de alguns tostões.
A categoria da pobreza, ao traduzir aspectos
econômicos como o acesso à renda e o consumo de
alimentos, torna-se insuficiente para a apreensão do
fenômeno muito mais complexo que é a exclusão social. A
pobreza não é o sinônimo de exclusão, mas apenas um de

188
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

seus muitos sintomas. Da mesma maneira, crescimento e


desenvolvimento econômicos também não são sinônimos.
Pode inclusive haver exclusão sem pobreza, dependendo
do sentido técnico especificamente atribuído à
configuração de suas variáveis econômicas. O objetivo de
nossa reflexão sobre o mínimo ético não é pregar contra a
pobreza, mas sim alertar contra a redução da autonomia
dos indivíduos provocada pela exclusão, de vez que, sem
essa autonomia efetiva, a Modernidade tem seu projeto de
implantação frustrado. Porém, as crises sociais e
econômicas não são as únicas responsáveis pela perda de
coesão das sociedades latino-americanas. O fenômeno da
corrupção também contribui enormemente para o
descrédito na possibilidade de constituição de uma
sociedade.

2.6. Hegemonia e corrupção: repolitização da legitimidade e


remoralização da política

Dizer que um sistema jurídico é eficaz é dizer


que suas instituições e os indivíduos a ele submetidos
realmente se conduzem de acordo com suas
determinações. A eficácia global de um ordenamento, tão
celebrada pelo positivismo como condição genética de sua
validade, pode em vários aspectos ser traduzida no
conceito de hegemonia, muito bem construído por
Gramsci. Com essa referência a Gramsci indicamos que a
disposição dos indivíduos e instituições para suas
vinculações pelo direito depende em grande medida da arte
política. Esposamos então aqui a tese de que pode haver
diferentes qualidades nessa eficácia que produz a validade

189
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

do direito. Dessa diferença depende a própria forma de


construção da legitimidade de um ordenamento jurídico. A
legitimidade, por sua vez, é compreendida como um tipo
de relação entre o direito e seus destinatários regulada pelo
compromisso com o mínimo ético. Ou dito de outra
maneira: a legitimidade indica a predisposição dos
indivíduos a aceitar as determinações do direito porque a
priori nele reconhecem emanações destinadas a cuidar da
cooperação e do convívio social nos quais se presumem
incluídos.
A conquista pelos segmentos dirigentes de
uma dada hegemonia no seio político de uma sociedade
predispõe esta para a aceitação da legitimidade de uma
ordem instituída. A anuência a essa legitimidade reforça o
sentido da obrigatoriedade de suas normas jurídicas,
tornando-as ainda mais eficazes. Mas isso pode ocorrer de
duas maneiras: ou porque certas sanções podem sobrevir
(eficácia heterônoma enquanto aplicação sancionatória
potencial); ou porque o conteúdo ético-político dessa
ordem social é subjetivamente assentido pelos indivíduos,
instituições e organismos da sociedade civil (eficácia
enquanto observância autônoma e voluntária), que de resto
acaba sendo a eficácia jurídica mais duradoura e profícua.
Assim, o sentido dessa hegemonia, a partir da qual é
erguida a eficácia e a legitimidade do direito, torna-se um
fenômeno simultaneamente ético e político. Apesar da
variedade de concepções específicas possíveis em cada
uma dessas dimensões (ética, política, ideológica ou
mesmo jurídica), qualquer uma delas, ao pretender tratar
da eficácia legítima de uma ordem normativa, não pode
deixar de convergir no seguinte: não pode haver
hegemonia que se pretenda construída à custa dos valores
comunitários da dignidade do convívio pacífico, da
cooperação e do respeito à pluralidade. Por isso mesmo,

190
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

tornam-se ilegítimas, e, portanto, fadadas à ruína as ordens


jurídicas cuja validade formal é lograda pelo terror, pela
pura força sancionatória ou pela exclusão sistemática das
benesses e garantias elementares propiciadas pelo convívio
comunitário socializado. Assinalar esse núcleo comum,
primário, fundamental e substancial também conduz à
idéia de nosso mínimo ético. Podemos agora ilustrá-lo
tratando da corrupção.
A corrupção é um fenômeno milenar e,
portanto, sua recorrência ao longo dos séculos atravessou
ordens jurídicas erguidas sobre os mais diversos
fundamentos. Entretanto, durante os milênios da prática
funesta da corrupção algo sempre permaneceu constante:
o veemente repúdio a ela expresso como a reprovação
contra quem dilapida o que é de todos. Hoje muito
freqüentemente a selva escura da corrupção se abre em
clareiras de escândalo que conduzem a luz e os olhares da
coisa pública ao diagnóstico trágico de sua própria
devastação. É justamente o cuidado desses bens
eticamente sentidos como pertencentes a todos que o
mínimo ético pretende administrar e promover.
Genericamente, a corrupção, especialmente aquela
praticada na esfera pública, resulta da combinação entre
cinco fatores determinantes: (1) a excessiva
discricionariedade no exercício de certas funções públicas
não devidamente compartilhadas (o poder absoluto
corrompe absolutamente, já se disse muito bem); (2) a
possibilidade de certas ações de repercussão pública serem
praticadas longe dos olhos atentos da expectação
fiscalizadora (Platão já nos alertara, na República, pela
fábula de Giges, sobre o alto preço dessa invisibilidade
paga com a moeda da desonestidade ocultável); (3) uma
baixa internalização, na consciência dos agentes públicos,
do sentido das virtudes, dos valores e dos deveres

191
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

atinentes aos interesses comuns e cooperativos (a


incompreensão e/ou a falta de sentimento de
magnanimidade envolvido na possibilidade concreta de
fazer o bem para seus semelhantes); (4) a formação de
personalidades excessivamente egoístas ou movidas por
sentimentos de auto-interesse muito intensos (os
indivíduos obcecados pela obtenção do bem próprio
inclinam-se a instrumentalizar a coisa pública para a
consecução desse fim); e (5) as remunerações aviltantes
dos ocupantes de funções públicas de hierarquia mais
baixa, sobretudo quando tais atividades deixaram de ser
consideradas mero ius honorum para se tornarem profissões
tão comuns como qualquer outra (a falta de dignidade
salarial dos funcionários públicos os expõe a pequenas
tentações contra as quais certamente resistiriam caso fossem
melhor remunerados; em alguns casos, como o de certas
corporações policiais brasileiras, pode até ser constatado o
quadro de uma lamentável corrupção de subsistência, fundada
na necessidade de complementação salarial).
A classe média também vem sendo
paulatinamente tragada por esse buraco negro da
corrupção. A queda da classe média, pelo fato de sua
posição social ser ligeiramente mais elevada, causa maior
impacto a alguns. A resistência a essa queda, então, tenta
ser lograda por medidas mais desesperadas e agressivas.
Geralmente, a classe média não recorre tanto às estratégias
místicas de processamento e assimilação das frustrações e
negativas de oportunidades, muito embora esse quadro
pareça hoje estar se alterando. Em todo caso, suas
estratégias de combate ao descenso social são elaboradas
desde uma percepção menos encantada da realidade.
Entretanto, isso não significa necessariamente algum
alinhamento crítico da classe média, comprometido com
mudanças sociais profundas. A unidade de resistência da

192
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

classe média ao descenso social não é a classe, mas o clã, a


família e seus agregados. Marx sabiamente já advertira
sobre a depravação que a classe média pode chegar a
atingir no afã de evitar sua proletarização. Ainda hoje,
talvez até mais que ao tempo de Marx, esse fenômeno é
verificável. Insuflados pelo consumismo e pela fantasia da
ostentação noveau rich, o exército de funcionários públicos
integrantes da classe média é muitas vezes levado à prática
de uma corrupção intermediária. O acesso administrativo a
fundos públicos como o do INSS e a proximidade de
incontáveis burocracias, inclusive privadas, facilita diversos
esquemas de fraude. Inicialmente, não se tratava daquela
corrupção da casa dos milhões e bilhões, que manipula
cifras astronômicas, dignas de volumes orçamentários. A
corrupção da classe média não concentrava suas atividades
na política, exceto naquele caso dos assessores
parlamentares que transformam os legislativos em balcões
para o tráfico de favores e influências. Tratava-se de uma
corrupção mais modesta, eventualmente apenas para a
manutenção de um padrão de vida ou de ostentação. Uma
corrupção que apodrecia aquela camada imediatamente
abaixo da cúpula política há muito já deteriorada. Essa
corrupção da classe média imitava os procedimentos das
elites na implementação de um parasitismo institucional
guiado pela máxima mais célebre do desespero: salve-se
quem puder! Mas não tardou que o volume de fraudadores
se transformasse numa verdadeira concorrência entre
quadrilhas que tiveram de demarcar zonas de atuação. Essa
proliferação acabou pavimentando diversas vias expressas
para a ascensão social. Pela corrupção e pela fraude
membros da classe média não apenas evitavam o
achatamento salarial que conduzia ao rumo da
proletarização, senão agora também podiam comprar seus
ingressos para o seleto éden das elites. Nesse instante,

193
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

promovidos à condição de elite, setores dessa ex-classe


média passaram também a influir mais ostensivamente na
dilapidação dos recursos e das capacidades cooperativas de
toda a sociedade.
Para permanecer no éden dos muito bem
incluídos, as elites corruptas adotam estratégias de lavagem
das acumulações ilícitas transformadas em lícitas por um
passe de mágica cujos segredos estão disponíveis nas
entrelinhas dos livros da lei. Geralmente, os advogados são
os bruxos de aluguel com o poder de ler essas linhas não
escritas. O anonimato e a discrição do sistema financeiro,
fetichizados na forma do sigilo bancário, acobertam o
ritual bizarro dessa magia negra realizada com sangue
humano de milhões de prejudicados direta ou
indiretamente. Além do mais, o anonimato desse mesmo
sistema financeiro, nacional e internacional, dá guarida a
uma outra fonte poderosa de desagregação social e
financiamento da corrupção policial: o dinheiro do
narcotráfico. Transações internacionais e lavagem de
narcodólares atingem cifras que empalidecem orçamentos
de nações inteiras. Como se isso não bastasse, a
sofisticação dessas ações lesivas torna insignificante a
capacidade de controle e punição dos sistemas penais e de
seus agentes treinados para perseguir crimes clássicos
como furtos e homicídios. Sistemas penais operantes no
varejo do paradigma liberal-individualista muito pouco
podem contra os genocídios praticados no atacado pela
ação combinada entre corrupção e sistema financeiro. Essa
violação ética de extraordinária lesividade anticooperativa
ainda está por ser tipificada e, talvez um dia, incluída nas
políticas seletivas das agências penais.
O programa de construção de qualquer
hegemonia que pretenda relegitimar uma ordem jurídica

194
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

carcomida pelo descrédito oriundo de suas ineficácia e


inefetividade tem de assumir essa tarefa urgente e
preliminar: restaurar a concretude do mínimo moral a
partir do qual uma ideologia política pode ingressar
dignamente na constelação do politeísmo de valores
atinente à coisa pública. Enquanto essa preparação não for
cumprida, a política continuará a ser vista pelos
destinatários de suas emanações na forma de direito como
uma arena repugnante na qual se digladiam interesses
egoísticos indiferentes à coletividade. O asco à política,
fruto da repulsa à corrupção endêmica, também repercute
no arrefecimento da legitimidade e da própria eficácia do
direito. Quando apregoamos a restauração da concretude do
mínimo moral da política, assinalamos não ser esse um
debate meramente teórico ou acadêmico. Há de se
apontar, pela prova histórica e irrefragável dos exemplos,
quais ideologias específicas e quais correntes políticas são
o veículo pérfido do cinismo e da hipocrisia de quem se
apresenta como sendo ético e, em realidade, não passa de
abominável parasita da coisa pública. Nesse contexto,
muitas ordens jurídicas ainda vivem um estado de pré-
modernidade, necessitando ser purificadas, como quis
Kelsen, ou autonomizadas, como propõem mais
recentemente Luhmann e Di Giorgi.
No caso brasileiro, essas palavras assumem
significados estratégicos. A ordem jurídica nacional
necessita urgentemente ser purificada dos parcialismos
políticos hediondos, sem nenhum suporte normativo-
constitucional, das ingerências corporativas e da histórica
usurpação da coisa pública pelos interesses oligárquicos
hospedados no aparato institucional do Estado brasileiro.
Essa mesma ordem jurídica nacional precisa ainda ser
autonomizada da política e da economia da qual ainda se
torna, muitas vezes, mero palco de sórdidas chicanas,

195
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

praticadas às expensas do interesse público. Paulo


Bonavides tem insistido na idéia crucial de uma necessária
repolitização da legitimidade. Aderindo a essa idéia, somos
levados a falar ainda de uma remoralização da política como
seu pressuposto. Só pode haver repolitização da legitimidade
sob a condição de uma urgente remoralização da política. E o
compromisso com o mínimo ético é novamente o fio mais
resistente disponível para essa costura.

2.7. Educação para a ética, direitos humanos e ensino jurídico

O fosso entre validade e eficácia, cavado no


solo irregular do direito moderno, somente pode ser
transposto mediante a extensão de diversas pontes. Não se
trata de apenas uma, mas de várias pontes. O saneamento
das dificuldades de tráfego, experimentadas pela crise no
desempenho das funções conviviais elementares do direito
e da política, requer a adoção combinada de inúmeras
medidas. Não há solução única ou sequer definitiva. Mas,
provavelmente, uma dessas pontes poderia ser estendida
pelo trabalho incessante de ensino dos direitos humanos
nas academias. Se uma parte considerável da chamada
eficácia jurídica pode ser apreendida como a vontade
política dos operadores que animam as normas válidas
num determinado sentido, concretizando-as, é
fundamental creditarmos ao ensino dos direitos humanos
um papel crucial no despertar e na significação dessa
mesma vontade. Não se pode, todavia, nas faculdades
ensinar direitos humanos como quem ensina uma
disciplina de títulos de crédito. A pedagogia dos direitos
humanos desde sempre deve tratar de pôr em questão a

196
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

própria autoconstituição do indivíduo como um sujeito


moral responsável pelos destinos da sociedade em que está
inserido, como um professor, um aluno de graduação ou já
um profissional em fase de pós-graduação.
Nas instituições de nível superior, o ensino
deveria ser a principal fonte de difusão da consciência
teórica sobre como o direito se relaciona com a ética nos
planos comportamental e institucional. Mas essa aptidão
teórica está longe de ser cultivada. As faculdades de direito
oferecem antes tecnologias de saberes teóricos e práticos
dirigidos ao funcionamento de uma ordem jurídica
reduzida à situação de um mero mercado de trabalho. A
mercantilização do ensino do direito, aliada à preocupação
pragmática com a exclusiva obtenção de uma boa
formação técnica, tem deixado de lado os compromissos
éticos com as finalidades conviviais e cooperativas
afiançadas por qualquer experiência jurídica. O substrato
moral e civilizacional do direito é assim diluído no
esquadrinhamento curricular das diversas disciplinas
específicas profissionalizantes e em uma miscelânea
cosmética e generalista de matérias propedêuticas de
extração enciclopédica. Mas o ensino jurídico
inevitavelmente também sempre difunde uma concepção
geral, ética e epistemológica, determinante do modo de ser
(considerado) normal do ordenamento jurídico.
Procedendo desse modo, o ensino jurídico dita
anonimamente os cânones do conformismo e de seu
reflexo, o conservadorismo. Estilhaçado em currículos
cada vez mais segmentados, não tem ficado
especificamente a cargo de nenhuma disciplina a tarefa de
exercer o cultivo daquela sensibilidade moral situada na
base psicológica das vontades políticas e ideológicas
articuladoras da eficaciação das normas válidas,
especialmente aquelas de ordem constitucional. Sobre isso,

197
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

mais à frente abordaremos o problema do sentimento de


justiça e sua influência na conformação da pré-
compreensão subjetiva dos operadores jurídicos.
A vontade dos juristas, esse princípio
alquímico que transmuta a validade em eficácia, que opera
a passagem da potência ao ato, foi deixada órfã na
estrutura formal do ensino jurídico contemporâneo. Nesse
contexto, não é de se estranhar a proliferação de
campanhas nacionais pela moralidade em meio a diversas
investidas de corrupção patrocinadas por indivíduos
muitas vezes credenciados pelo saber jurídico. Restou
então à filosofia servir de orfanato na tutoria dessa
sensibilidade moral tão importante à dinamização da
eficácia num sentido ético-cooperativo, embora
intrinsecamente lhe falte a vocação para o apostolado ou
para os cuidados mais práticos. Numa medida
considerável, o fosso entre validade e eficácia,
especialmente estabelecido nas sociedades de modernidade
periférica, pode ser compreendido como o resultado de
uma profunda insensibilidade moral dos operadores
jurídicos para com o sofrimento alheio. Uma
insensibilidade cuja crueldade resulta de uma compreensão
ingênua, ou mesmo de má-fé, sobre a irresponsabilidade
desses mesmos operadores em relação aos destinos da
sociedade que integram, como juristas-cidadãos e como
cidadãos-juristas. Nota-se isso nos formalismos
exacerbados do judiciário, na burocratização dos
serventuários da justiça, nas razões incontestáveis da
tecnocracia ou na complacência de muitos operadores
jurídicos com suas pequenas trapaças processuais,
consideradas virtuosismo advocatício, pelas quais se frustra
legalmente a realização do interesse comunitário protegido
pelo direito. Nesse contexto do atual ensino jurídico
poderíamos então dizer com um tom de idealismo: trata-se

198
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

do desperdício da oportunidade de se atingir a medida


dessa universalidade justamente nas universidades e demais
instituições de formação jurídica.
O bom ensino do direito não é mera instrução
técnica, além disso deve envolver a educação para a
moralidade e capacitação teórica para sua compreensão ao
nível dos diversos saberes sociais. Esse sentido ético está
presente nas discussões sobre os caminhos possíveis da
cultura jurídica brasileira. O advento da Portaria nº
1.886/94, do MEC, com suas diretrizes para a reforma do
ensino jurídico nacional, pretendeu contemplar alguns
aspectos relativos à formação ética dos futuros juristas.
Apesar das manobras governistas para esvaziar essa
Portaria de seu potencial crítico, algumas experiências
inovadoras no ensino universitário, público e privado, têm
conseguido apontar para um novo senso comum entre os
juristas como base para novos consensos costurados pelo
tema do mínimo ético já anunciado e explicitado nas
páginas acima.
Em termos de projetos didático-pedagógicos
emergentes em novos cursos jurídicos, a carga ética dos
direitos humanos não pode ser esgotada nem mesmo por
um programa especial, elaborado para uma disciplina
autônoma. É imprescindível que também seus
fundamentos éticos perpassem muitas outras matérias,
fazendo-se presentes, de modo transdisciplinar, na própria
percepção pré-compreensiva de qualquer área jurídica, até
mesmo daquelas mais pronunciadamente dogmáticas. A
diretriz do mínimo ético deve presidir reflexões como
aquelas sobre o impacto da tecnologia na operacionalidade
da técnica (bioética, biodireito, contratos virtuais) e sobre
os efeitos dos processos de globalização econômica e
cultural na desconstitucionalização (simbólica e concreta)

199
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

do direito, anteabrindo a possibilidade para um


posicionamento ativo dos operadores do direito em defesa
da modernidade jurídica apreendida como uma extensão
universalizante dos direitos humanos.
No ensino jurídico, o sentido da palavra ensino
deve ainda procurar resgatar um elemento presente em
Aristóteles: no ensino, não se trata apenas da transmissão
do como se realizar coisas com perfeição técnica, mas
também de se educar, isto é, trata-se de se discutirem e
apresentarem quais condutas e valores são positivos
(virtuosos) e devem ser patrocinados em prol do
desenvolvimento da comunidade. Eis a urgente missão do
ensino jurídico: além de ensinar a técnica do direito, educar
os operadores para a percepção de seus compromissos
com o mínimo ético.
Juristas somente poderão ansiar ser
reconhecidos como profissionais que não são meros
técnicos quando os professores não forem mais simples
instrutores. Estes hão de ser pedagogos empenhados em
uma discussão responsável com os acadêmicos sobre suas
responsabilidades nos destinos material e moral da
sociedade. Como pontifica Aristóteles na sua célebre Ética
a Nicômaco, as virtudes intelectuais são aprendidas pelo
ensino, enquanto as virtudes morais são aprendidas na
prática, pelo hábito. Talvez a pretensão da Portaria
1.886/94 tenha sido um pouco esta: a de estimular a
constante problematização ética no trato de problemas
jurídicos traduzidos em diversas disciplinas. O ambiente
acadêmico, ao suscitar a problemática da função social da
universidade, poderia inclusive tentar uma recuperação da
phronésis aristotélica no ensino do direito: uma ética prática
e prudencial relativa àquelas ações sobre as quais
quotidianamente somos chamados a decidir. Trata-se de

200
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

um saber prático orientado para o direcionamento, na


comunidade real, de ações antecedidas por reflexões
prudenciais com vistas à equalização da justiça. Essa
phronésis às vezes também é traduzida, da República (433 b-
c) de Platão, por prudência, significando aí o mesmo que
sophia (sabedoria), quando referida às qualidades de um
indivíduo na cidade-Estado.
O ensino jurídico, meditado sob tais aspectos,
recolocaria na pauta da formação dos juristas uma de suas
maiores carências: a discussão de mérito sobre a
fundamentação das condutas consideradas boas e devidas
no âmbito profissional em relação com sua
responsabilidade e repercussão social. Tudo isso traria
ainda dois importantes aspectos pertinentes às relações
entre o direito e seu substrato ético abordado desde uma
perspectiva eficacial. Uma discussão sobre o conteúdo
axiológico das diversas éticas dadas à juridicização
arrastaria consigo debates sobre suas justificações e
fundamentações; e isso poderia produzir alternativas à
cômoda superficialidade do relativismo discricionário
presente na cena jurisdicional. O outro aspecto é que tais
medidas colocariam os operadores jurídicos na ofensiva da
regulação social, pois voltariam a ter de também indicar o
caminho do louvável, abandonando a timidez
sancionatória de apenas ressalvar proibições
normativamente estatuídas.
Essa perspectiva sugerida abrandaria a tônica
heteronomista e sancionatória da cultura jurídica há muito
retransmitida sem maiores reflexões de fundo. O ensino
jurídico que pela phronésis recuperar a inquietação sobre o
compromisso ético-eficacial de seus operadores conduzi-
los-á a que também possam retomar os rumos da
possibilitação concretizante das condições morais da

201
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

sociedade. Isso também se consegue por meio de uma


complementação das éticas deontológicas por éticas de
virtudes pedagogicamente orientadas para a
cooperatividade social e para a responsabilidade. O lugar
dessa complementação, antes de ser a sociedade, deve ser a
própria escola jurídica. Nessas instituições, há de se chegar
a uma metodologia que proporcione clareza à discussão
ética dos valores envolvidos pelas molduras normativas do
direito positivo. É somente através da recuperação da
perspectiva das vivências, efetivas ou reconstruídas, que a
phronésis poderá fornecer um substrato concreto à
discussão daqueles sentimentos morais tão decisivos para a
organização de uma convivência comunitária ética e
juridicamente regulada. Contudo, essa proposta do retorno
à phronésis só ganhará espaço quando certas concepções
epistemológicas de índole formalista sobre os limites da
juridicidade forem sendo superadas. A idéia de phronésis
requer a aceitação do direito como um saber também
conjectural e argumentativo. Daí quem sabe poder-se-á
inclusive sugerir a compreensão de que o ensino jurídico
passe a constar no próprio rol das chamadas fontes do
direito. Mais que uma simples fonte de informação e instrução
sobre as técnicas do direito positivo, o ensino jurídico
poderá então ser redimensionado como uma fonte
substancial de educação da moralidade prática daqueles
operadores que fazem o ordenamento ao definirem seus
conteúdos normativos por uma atividade hermenêutica
libertada de suas ingenuidades e conveniências
metodológicas.
Essas são reflexões preliminares sobre o
ensino jurídico necessário à disseminação de uma nova
cultura crítica no direito. Uma cultura crítica que,
entretanto, não pode seguir se esgotando no repúdio e nas
pregações ideológicas, veiculadas com aparência de teorias

202
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

e viciadas por cacoetes academicistas de toda a sorte. Uma


característica dessa nova cultura crítica deverá ser sua
capacidade efetiva para produzir modificações
fundamentadas na realidade social e jurídica através do
direito. Desempenhará aí um papel decisivo um ensino
jurídico voltado ao desenvolvimento da percepção teórica
e prática das implicações e condicionamentos entre os
fenômenos jurídico e ético. Dessa maneira, a problemática
da justiça social, matizada pelo compromisso eficacial com
o mínimo ético, poderá reingressar no direito sem com
isso ameaçar a dissolução de sua especificidade. Quem
sabe assim os juristas possam perceber que, apesar de o
direito moderno não operar vinculado a concepções
específicas de justiça, os cidadãos comumente estruturam
suas ações em razão do que lhes sugere essa palavra.

203
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

3. Observações sobre o Sentimento de Justiça


3.1. O sentimento de justiça na filosofia do direito orientada pela
sociologia e antropologia jurídicas

Durante um longo período filósofos do direito


ocuparam-se em tentar alcançar um conceito analítico
suficientemente preciso para capturar o significado da
palavra justiça. Muitos pensadores vinculados às matrizes
crítica e analítica também saíram em busca desse santo graal.
Diversos estudos formalistas de fundamentação da ética
também contribuíram bastante para que esse conceito de
justiça fosse obsessivamente buscado bem longe do espaço
mundano no qual as criaturas concretas mais o utilizam no
dia-a-dia de seus comportamentos. Sucessivos fracassos
nessas tentativas conceituais foram registrados em razão
dos mais diversos reducionismos e parcialismos.
Definições supostamente definitivas tentavam espremer
num enunciado algo cuja complexidade envolvia diversas
estruturas sociais. Uma rotina como essa imperou até que o
positivismo resolvesse compreender esses parcialismos
como o signo de um relativismo axiológico impossível de
ser deslindado, impondo em lugar da justiça a validade
como critério de discernimento da juridicidade. Porém,
isso tampouco seria suficiente para suprimir ou resolver de
vez o problema da justiça, especialmente para os sujeitos
sociais que por ela orientam suas condutas. Se a ciência do
direito no século XX logra êxito em reduzir seus dramas
metodológicos com um acordo razoável em torno da
questão da validade, isso não significa o mesmo para um
campo social onde as condutas acontecem guiadas por
ordens motivacionais refratárias a temas epistemológicos.
O problema da justiça para a ciência jurídica não é o
mesmo problema da justiça para a sociedade.

204
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

O positivismo jurídico talvez nos tenha livrado


da insegurança que a adoção desses variados critérios de
justiça representavam ao circularem, sem maior controle,
no ponto de vista interno de um sistema jurídico a todo o
momento provocado a dizer qual o direito válido apto a
ser aplicado. No entanto, dessa perspectiva interna ao
sistema jurídico, torna-se notória a falta de um
instrumental analítico pelo qual possamos perceber como e
por quais razões os indivíduos e os grupos interagem
socialmente, mesmo sem a mediação do sistema jurídico,
sempre supondo, agindo e reagindo segundo seus próprios
critérios de justiça. A ação e a reação desses indivíduos
conforme seus sentimentos de justiça fornecem o cimento
do conteúdo eficacial ao esqueleto formal do complexo
sistema do comportamento, reduzido à dimensão da
validade/obrigatoriedade pelo direito. Mas se o direito
insiste em se apresentar como uma ciência jurídica e social,
essa redução necessita ser repensada com certa urgência.
O ponto de vista de alguém que declara, por
exemplo, ainda acreditar na justiça é sintomático de um
estado motivacional do sentimento de justiça. Quando,
perante um julgamento de repercussão pública, algum
popular anônimo declara a um repórter ainda acreditar na
justiça, isso expressa uma correspondência entre a pena
cominada e a compreensão de merecimento esperada por
esse mesmo declarante. Elaborada desde uma percepção
ética da intensidade dos sentimentos de indignação e
censura, a declarada crença na justiça é certamente um dos
componentes mais importantes na eficácia voluntária do
direito. Seu caráter motivacional significa uma afinação real
entre a carga reprovativa difusa na esfera ética e a carga
punitiva efetivada na esfera jurídica.

205
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

O sentido de justiça adotado pelos


participantes da mutualidade de uma ordem social forma
um dado valioso a ser computado na observação
sociológico-jurídica do comportamento convivialmente
estruturado. E não se pense que esses critérios quotidianos
de justiça são assim tão variados, como tentou nos fazer
crer o relativismo exacerbado do positivismo. Os critérios
de justiça compartilhados são espontaneamente vigentes e
aceitos pela moralidade social, expressando certas regras
amplamente anuídas de equalização da reciprocidade das
obrigações, tratando, portanto, da consecução da
mutualidade efetiva no uso prático de uma moral
submetida às exigências de igualdade e universalidade.
Justo é aquilo que é por igual para todos, devendo as
exceções a essa igualdade ser justificadas perante essa
mesma totalidade. Evidentemente, o sentimento de justiça
presente na espontaneidade da ação do homem comum
não elabora essa problemática ao nível do conceito. E
assim ingressamos em um terreno cuja exploração
interessa tanto à psicologia do comportamento social
como à ética analítica, embora nossa focalização esteja por
agora especialmente interessada numa análise motivacional
aproveitada nos horizontes de uma sociologia da eficácia
jurídica enquanto observância.
A idéia de justiça quotidiana do senso comum
opera num espaço mundano bem diverso daquele da
formalidade e da institucionalidade do sistema jurídico. Ela
não pode ser racionalmente alcançada mediante um
conceito abstrato, ao menos diretamente. Mesmo assim, a
observação atenta dessa espontaneidade é tarefa essencial
aos juristas e demais cientistas sociais, sensíveis à forma de
estruturação efetiva do comportamento social. Definir ou
conceituar com pretensões de clareza nunca esteve na
ordem do dia do senso comum pelo qual se orienta o

206
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

comportamento da maior parte dos indivíduos de uma


sociedade. Desses encargos analíticos e definidores sempre
cuidaram melhor pastores e filósofos. Mas não é da
filosofia ou sequer da teologia que nos interessa tratar.
Interessa-nos a angulação sobre a justiça adotada por
quem, como sujeito social, se satisfaz em agir e reagir
segundo uma certa intuição acerca dela.
A abordagem do sentimento de justiça requer
ainda uma apreensão especificamente normativa da
representação do campo jurídico imerso em outros
segmentos de estruturação do sentido social. A
especificidade precária dessa representação pode ser
qualificada como jurídica por envolver um certo dado
normativo na proporção em que agentes sociais orientam
suas condutas a partir do que pensam ser direitos e
deveres, prestações estatais, poder, coação, garantias,
conseqüências sancionáveis, expectação social, etc. O
caráter social desse pensar ser jurídico vem carregado de
imprecisão. Deixando-se momentaneamente de lado a
figuração nítida de um ordenamento hierarquicamente
escalonado pelo direito positivo e adotando-se o ponto de
vista de uma representação social não imediatamente
institucional, jurídico passa a ser o que a sociedade
representa para si mesma como tal. Apesar das aparências,
definitivamente essa não é uma elaboração tautológica. A
formação social dessa representação jurídica subordina-se
a dados específicos de cada comunidade. E o mais
importante disso tudo é que as condições eficaciais do
direito, muito mais que sua validade técnica, integram-se
diretamente às formas dessa representação social da esfera
jurídica, embora não a esgotem. A representação social do
campo jurídico opera-se pela percepção do direito eficaz
combinada com o substrato ético do sentimento de justiça
de uma comunidade. Além disso, essa incerteza difusa a

207
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

respeito do caráter jurídico da orientação comportamental


social acaba por se tornar mais um componente integrante
do próprio sentimento de justiça.
O sentimento de justiça não se refere, ao
menos diretamente, à validade, percebida esta como uma
qualidade técnica do direito positivo vigente em um
ordenamento mantido coeso por uma mesma norma
originadora. O sentimento de justiça articula a propensão
de uma comunidade a agir conforme sua própria
representação do campo jurídico. E esse fenômeno não é
totalmente idêntico ao que se pode designar simplesmente
como eficácia jurídica, traduzida em termos de observância
e aplicação normativas. A despeito dessa imprecisão
própria à representação do campo jurídico, o sentimento
de justiça também não pode ser tomado como um dado
motivacional exterior à investigação jurídica, assimilável à
provocação das condutas conforme o direito por temor à
sobrevinda de uma sanção. A apreensão do sentimento de
justiça de uma comunidade não se dá exclusivamente por
um retrato eficacial exterior e contíguo ao direito positivo,
observável pelas frinchas abertas à sociologia jurídica. O
sentimento de justiça de uma comunidade demanda
estudos antropológicos nos quais a moral, o direito, a
religião, a arte, a sexualidade, a política e tantas outras
representações sociais, comumente indistinguidas,
compareçam à complexidade da orientação normativa das
ações e expectativas. Esse sentimento de justiça não é,
portanto, uma categoria do direito positivo, pois não
poderia ser reivindicado desde a ciência do direito
tradicional, especialmente à vista da baixa atenção desta
aos aspectos eficaciais e, no interior de tal problemática, de
sua displicência generalista em relação aos itens culturais
da consuetudinariedade. Porém, se a ciência do direito não

208
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

é a mais indicada para esse estudo, a sociologia jurídica


também não consegue dele dar conta sozinha.
Num degrau abaixo da sociologia jurídica,
desde um fundo antropológico, o universo prático da
experiência social faz categorias como ser e dever ser
perderem o sentido e a possibilidade de um maior rigor
lógico ou metodológico. Uma lógica informal e social
instaura uma maneira específica de representação da
juridicidade respeitante à ação prática impossível de ser
mediada por categorias especializadas e, em grande parte
das vezes, somente elaboradas ao preço de um
artificialismo monumental. A atenção teórica ao
sentimento de justiça de uma comunidade requer cautela
para que não se lhe injete um rigor naturalmente
impossível. Requer um controle daquela ansiedade teórica
manifestada quando o que é visto não pode ser
rapidamente prefigurado em um sistema formal ou
apreendido por uma rede conceitual preestabelecida. A
apreensão antropológica do sentimento de justiça de uma
comunidade exige a abertura de uma certa sensibilidade
hermenêutica deixada à mercê de suas formas espontâneas
e muitas vezes caóticas de estruturação. Requer assim a
contenção de um impulso muito comum entre os cientistas
sociais: a vontade de sistema. Mas muitos outros
obstáculos bloqueiam essa apreensão. A noção jurídico-
positiva de costume, freqüentemente assimilada ao hábito
e sua disposição reiterativa, é responsável por um peculiar
obscurecimento dessa problemática reunida sob a
designação de sentimento de justiça. Para a teoria do
direito clássica, tudo que não fosse diretamente reportado
ao direito positivo era considerado moral, principiológico
ou consuetudinário. Não podemos agora perscrutar o
manancial de peculiaridades reunidas de modo promíscuo
sob uma rubrica tão genérica como a do costume. Apenas

209
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

a título de anotação, vale um registro: além dos muitos


modos práticos de circulação mutual da indignação e da
censura, nessa consuetudinariedade genérica (con)fundem-
se coisas tão diversas como os procedimentos ritualizados
e o pudor. Também por essa razão a pesquisa do
sentimento de justiça não pode nutrir grandes esperanças
em recorrer aos rudimentares instrumentos conceituais da
teoria jurídica. O estudo da estrutura normativo-
motivacional dos costumes conformadores do sentimento
de justiça de um grupo jamais poderia vingar sobre bases
tão generalistas. Inclusive o direito comparado enseja
grandes limitações a essa perspectiva de análise. Na
maioria dos casos, a comparação entre ordens jurídicas
cinge-se ao cotejamento entre corpus legislativos estatais e
as estruturas de administração e funcionamento da
jurisdição. A noção bastante clara de ordenamento jurídico
permite contrastações quando muito de aparatos
institucionais, mas não chega a propiciar a determinação de
situações de pluralismo normativo real. Não permite, nem
pretende, constatar uma diversidade de ordens normativas
construídas por sobre sentimentos de justiça operantes à
base de fundamentos variados e até incompatíveis, apesar
de suas cascas institucionais eventualmente poderem
apresentar inúmeras similitudes.
O estudo da diferença de qualidades,
intensidades e origens entre os costumes exige pesquisas
de campo e de casos. Tais estudos são de intensa
configuração interdisciplinar. A abordagem do sentimento
de justiça envolve a captura de uma visão de mundo
lançada desde a perspectiva panorâmica de quem convive
imerso no quotidiano do mundo social. Não é suficiente
para tanto se aproximar do sistema jurídico como um
espectador científico da ciência do direito ou como um de
seus operadores técnicos. Essas perspectivas exteriores e

210
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

indiferentes às formas sociais e espontâneas de


estruturação do sentimento de justiça são praticamente
inerentes ao propósito generalista da ciência do direito,
preocupada em demarcar um fora e um dentro para sua
angulação jurídico-institucional. Essa foi mais uma herança
da ciência jurídica de matriz positivista. A saída honrosa
encontrada por Kelsen para a aporia de seu sistema foi
sustentar que sua norma fundamental (Grundnorm) não
era criada, mas apenas postulada como um instrumento
teorético-cognitivo. Desse modo, a intervenção de fora da
norma fundamental significaria, ao menos
preliminarmente, a perspectiva cognitiva da ciência
jurídica, e não as forças do sistema político. O de fora do
positivismo ostenta assim um caráter transcendental e
especular. É um de fora que pretende manter intacta a
pureza de um certo dentro. É um de fora que vê o reenvio da
validade para o próprio interior do sistema jurídico,
possibilitando assim a autofundamentação do direito.
Entretanto, as coisas não são tão simples assim. Não é
suficiente a postulação de um instrumento cognitivo para
se aceitar pacificamente o sistema jurídico como estando
perfeitamente fechado. Se a ciência do direito, como o
positivismo a concebeu na esteira do neokantismo e da
fenomenologia, é instrumento privilegiado pelo qual se
interpreta uma determinada ordem normativa como
jurídica, o que ela permite enxergar não são somente
aquelas normas mais corriqueiras desse ordenamento: seus
decretos, suas leis ordinárias, suas sentenças. Essa ciência
jurídica também permite ver (ou, mais especificamente,
constituir enquanto tal, fundamentar) o momento de
nascimento de um ordenamento jurídico, facultando que
se interprete determinado tipo de eficácia constitucional
como sendo produtora de uma cadeia de autorizações
constituinte da validade jurídica. Dessa maneira, o lugar de

211
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

fora desde o qual se vê acaba sendo fatalmente invadido


por aquilo que é visto. Ao observar o cataclismo de uma
ordem jurídica instituída, a ciência do direito é tragada pelo
caráter político dos abalos que observa. Nas situações de
derrocada das ordens instituídas, a neutralidade asséptica
do ponto de vista cognitivo da ciência do direito sofre o
contágio inevitável pela cena política da qual nascem, inter
faeces et sanguen, ordenamentos que se pretendem jurídicos.
Mas isso não constitui um defeito da ciência jurídica,
tampouco o rumor de uma suspeita. As coisas se passam
fatalmente assim porque observar a sociedade não é o
mesmo que observar a natureza, embora alguns juristas
tenham infelizmente preferido não aprofundar esse debate
sobre os alcances e descasos específicos à atividade
cognitiva de sua ciência.
Dessa maneira podemos perceber como a
ciência do direito não dispõe de refinamento categorial
suficiente para abordar o sentimento de justiça. Sua
sensibilidade à eficácia, além de eminentemente residual, é
de vocação muito mais político-institucional. Nas
observações promovidas pela ciência do direito, está em
causa não só uma observação exterior, mas também, de
vários modos, a própria responsabilidade em se participar
naquilo que dessa operação pode resultar: a fundação de
uma nova ordem jurídica válida. E esse campo é mais
afeito àquela zona de intersecção onde a teoria do direito e
a ciência política abordam um mesmo fenômeno. De
resto, a observação jurídica não é a inocente vidraça de
uma sala esterilizada pela qual o cientista do direito
observa curiosamente o parto natural de uma ordem
jurídica. É antes um fórcipe a ser manobrado por quem
aceita suportar a imensa responsabilidade por fazer essa
nova ordem jurídica nascer, viva ou morta. Quem
interpreta como direito válido uma ordem normativa em

212
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

vias de nascimento não é prioritariamente o cientista


jurídico desinteressado, mas antes o operador jurídico
oficial, o funcionário do Estado que sempre desempenha
algum papel no aparato institucional aplicador do direito.
Fica assim esclarecido que a perspectiva do sentimento de
justiça não pretende abranger diretamente o modo como é
solapado o fundamento político de um ordenamento
jurídico, pois não tem diretamente as mesmas pretensões
analíticas, como as da ciência política, em relação ao
fenômeno da legitimidade. A temática do sentimento de
justiça trata antes de como indivíduos interagem em
ordenamentos concretos mantidos sob uma relativa
regularidade institucional.
A investigação dos sentimentos de justiça das
comunidades sempre dirá muito a respeito de sua
identidade. Dirá também sobre os modos sociais de sua
especificação como sociedade, ou parcela desta, que
comunga uma determinada forma de mutualidade
vinculativa de seus sentimentos morais. Nesse sentido, a
investigação do sentimento de justiça de uma comunidade
será tão mais clara sobre essa especificidade, quanto mais
dispostos a comparações seus investigadores estiverem.
Mas o objetivo dessas comparações, como registra Clifford
Geertz a propósito do que denomina sensibilidade jurídica,
não pode ser o de transformar diferenças concretas em
semelhanças abstratas, nem apenas o de fixar fenômenos
idênticos tratados sob nomes diferentes.26 A constatação
dessa diferença deve ambicionar seu cuidado e seu
respeito, jamais sua eliminação. No caso específico da
sociedade brasileira, a apologia perfunctória da
miscigenação como condição de uma suposta identidade
nacional precisa ceder à meditação profunda sobre os
entrecruzamentos culturais que sedimentaram a variada
substância dos sentimentos de justiça das comunidades

213
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

brasileiras. Seguramente, a herança de uma comunidade


cuja justiça realiza-se sob os auspícios de Xangô não é a
mesma de outra cuja idéia de dever provém da noção cristã
de pecado. Ambas podem ser consideradas brasileiras em
um mesmo sentido, mas os sentimentos de justiça que lhes
subjazem variam imensamente e, por via reflexa, também
as representações do campo jurídico que ensejam.
Especificidades locais não devem ser fundidas numa
unidade que só é possível na mesma proporção de sua
artificialidade. A unidade que constitui um todo
homogeneamente artificial envolve uma espécie de
preguiça em relação às especificidades. É sempre bem mais
fácil fundir tudo quanto constitua uma diversidade em um
conceito quase místico de destino ou condição especial.
Fórmulas conceituais fáceis são o resultado de um certo
desleixo antropológico. Foi assim com a mitologia otimista
do brasileiro como povo-síntese. Essa síntese, que talvez
nunca tenha chegado a existir, necessita ser submetida a
uma dissecção e a um tratamento analítico apto a revelar
inclusive as muitas maneiras de dominação ocultadas sob o
manto dessa suposta unidade.
O pensamento jurídico só tem a lucrar em
profundidade e clareza explorando o campo problemático
sugerido pela idéia do sentimento de justiça. A exigência
de afinação entre os programas de eficaciação do direito
positivo articulado pelo mínimo ético e o sentimento de
justiça não provém de nenhum clamor jusnaturalista, mas
sim de uma constatação que pode ser designada como
funcional: sem o aceno da realização das expectativas de
justiça social, o direito perde sua operatividade na forma
de credibilidade e vinculatividade efetivas. E isso importa
em um reenvio desse descrédito à baixa consideração do
aparato jurídico-institucional na formação do sentimento
de justiça de uma comunidade. Ou seja: quanto menos o

214
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

direito válido se concretiza, menos também passa a ser


incorporado na elaboração do sentimento de justiça da
comunidade que pretende regular. Essa reação em cadeia
descreve parte do ciclo de erosão da eficácia do direito.
O ponto de vista de quem recusa os
pormenores dos escrutínios conceituais sobre a justiça
costuma sustentar uma máxima portadora de substancial
correção: a de que se pode até não saber definir
adequadamente justiça, mas uma injustiça é bastante fácil de
ser percebida ou sentida. Dizer que uma injustiça pode ser
percebida mais facilmente do que se procurássemos definir
rigorosamente um conceito de justiça significa então que
deve haver estabelecido em nossa estrutura psíquica um
sentimento de justiça de ordem bastante profunda,
primitivamente anterior à própria atividade racionalizante
mobilizada na conceituação abstrata.

3.2. Eficácia normativa e substrato ético da experiência jurídica

A ética que se elabora como substrato


normativo espontâneo do direito depende, em grande
medida, das especificidades desse sentimento de justiça
vigente em uma sociedade. A efetividade vinculativa desse
ethos vigorante enquanto sentimento de justiça depende
substancialmente do modo como em determinada
sociedade seus valores, virtudes, bens e deveres são
conduzidos pelos (1) sentimentos morais e inclinações de
seus membros e (2) pelo próprio desempenho de suas
instituições. A existência de um sentimento de justiça é,
com certeza, um componente essencial desse ethos, em
grande parte movimentado pela cultura que firma seus

215
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

conteúdos específicos ao predispor a afecção moral dos


indivíduos para certas ações e reações tidas como devidas
ou vedadas.
As formas concretas do ethos de uma sociedade
determinam a intensidade e os modos de exteriorização da
reprovação enquanto indignação e censura na co-
expectação dos comportamentos havidos entre parceiros
solidários de convívio. Mas nem só da atenção contra as
transgressões é constituído esse complexo universo de
sentimentos morais. Os sentimentos de compaixão e
solidariedade também são fragmentos a integrar com vivas
cores o mosaico desse sentimento de justiça. Um pensador
reconhecido pela sua filiação ao liberalismo pode nos
auxiliar a compreender melhor esse sentimento. Adam
Smith, em sua Teoria dos Sentimentos Morais, tratou
detidamente da simpatia (do grego sympátheia: syn = reunião;
pathéia = sensação) como a capacidade que os homens têm
de representar, para si mesmos, o sofrimento
experimentado por outrem ao ser submetido a uma
situação de infortúnio ou sofrimento. Acompanhando
Smith, podemos denominar a capacidade traduzida por
esse sentimento como simpatia, ou poderíamos ainda
designá-la como compaixão, misericórdia, piedade ou
solidariedade. Independentemente do nomen iuris escolhido,
crucial mesmo acaba sendo que o apelo a essa compaixão
provavelmente só se torne possível graças a uma
concordância mínima sobre o que são coisas ruins e sobre a
própria capacidade comum dos homens de experimentá-
las como estados de intenso sofrimento ou mal-estar.
Smith nem mesmo deixa de advertir sobre não ser
qualquer sofrimento alheio que instiga nossa comiseração
nisso que estamos tratando como sentimento de justiça.

216
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

A sensibilização solidária para com a má sorte


alheia conduz imediatamente a uma indagação sobre as
causas e as razões desse destino malogrado. Queremos
logo saber se a infelicidade experimentada por nosso
semelhante é de fato injusta e imerecida, se pode ser
creditada a uma fatalidade do puro acaso (má sorte) ou,
ainda, se podemos responsabilizar alguma instância social
por sua superveniência. Nas situações de infelicidade ou
sofrimento coletivo, esse sentimento de justiça assume um
sentido crítico altamente cooperativo, especialmente
quando estão envolvidas medidas públicas e
governamentais destinadas a promover o bem-estar
comum e a evitar ou minimizar o sofrimento e a
infelicidade previsíveis. A indignação mobilizadora de
nosso sentimento de justiça é especialmente intensa
quando o núcleo de bens atingidos envolve o campo
determinado pelo mínimo ético. A energia de nossa
solidariedade para com as vítimas de um desastre natural
leva-nos rapidamente à resignação por sua inevitabilidade,
e, assim, procuramos adotar medidas mais ou menos
urgentes de auxílio e socorro. Por outro lado, nossa
solidariedade simpática vem acompanhada de intensa
indignação e censura contra os agentes públicos
responsáveis quando percebemos determinados
sofrimentos, plenamente evitáveis, ocasionados por
situações sociais anticooperativas, sejam elas comissivas
(como a corrupção no desvio de verbas de programas
sociais) ou omissivas (como a inação no implemento de
determinada medida ou política pública urgente). Num e
noutro caso, trate-se de uma fatalidade natural ou de uma
ação/omissão pública reprovável, nosso sentimento de
solidariedade é convocado a reparar aquilo que
percebemos como uma injustiça no sofrimento a que
nossos semelhantes foram submetidos. De algum modo

217
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

também sofremos ao perceber o sofrimento alheio, seja


esse sofrimento fruto da incapacidade para a produção do
bom convívio, seja ele causado pelas vicissitudes
contingenciais do destino às quais, de resto, todos estamos
submetidos.
O sentimento de justiça exige de nossa
consciência a adoção de medidas práticas para sanar ou
aliviar esse mal-estar indiretamente também por nós
vivenciado. Essas medidas podem ser um simples donativo
de vestuário para abrigar do frio um flagelado, ou mesmo
já a exigência de moralidade que protesta contra a
malversação dos recursos públicos destinados a realizar o
bem-estar coletivo. Recentemente, os brasileiros puderam
participar de uma campanha mobilizadora desse
sentimento de solidariedade com vistas a assegurar um
aspecto essencial do mínimo ético: a garantia de
subsistência pelo fornecimento de alimento. Falamos da
Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria, a chamada
campanha contra a fome, ou simplesmente a campanha do
Betinho. Bem sabemos que essa campanha contra a fome
e a subnutrição não teve sua necessidade originada em
nenhum cataclismo natural, mas sim em desastrosas
políticas públicas implementadas pelo governo brasileiro
em total desatenção ao mínimo ético. Com base no
recurso à compaixão ou solidariedade de todos os
brasileiros, a arrecadação e a distribuição de donativos
alimentícios organizada pelo sociólogo Herbert de Souza
foi levada a cabo com enorme sucesso. A ternura e a
fragilidade de um homem fustigado pelo vírus HIV
reforçaram o despertar e a corporificação da piedade em
uma figura cuja autoridade moral perante todos segmentos
da sociedade brasileira construiu uma unanimidade sobre
sua bondade, algo que talvez só pudesse encontrar algum
paralelo não laico em Madre Teresa de Calcutá. Foram as

218
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

condições morais dos sentimentos simbolicamente


encarnados como virtudes e materialmente movimentados
pela figura fantástica de Betinho que permitiram deflagrar
uma campanha cujo mote punha em jogo a própria
capacidade de os cidadãos brasileiros, que desfrutavam de
uma certa dignidade, representarem para si mesmos a
terrível privação da fome experimentada por seus
semelhantes. Esse tipo de sentimento de solidariedade
constitui um dos dados fundamentais do que estamos
denominando, num nível mais complexo, de sentimento
de justiça. Como foi dito, o sentimento de solidariedade
(simpatia para Adam Smith) envolve a capacidade de cada
indivíduo representar, para si mesmo, o sofrimento de seu
semelhante. Contudo, nem só dessa solidariedade é
formado o sentimento de justiça, senão vejamos.

3.3. O sentimento de justiça e a formação do sentido de igualdade

Não poderíamos seguir tratando do


sentimento de justiça sem referirmos as pesquisas
precursoras desenvolvidas nessa área por Jean Piaget a
partir de suas investigações da psicologia infantil.27 Piaget
investigou como a socialização infantil e a submissão da
criança à autoridade paterna conformam seus sentidos de
justiça. A tese central de Piaget sustenta que o sentimento
de justiça entre crianças e adolescentes tem sua formação
estruturada a partir das próprias experiências concretas de
respeito mútuo e de solidariedade estabelecidas em
espaços de convivência e socialização como escolas,
clubes, círculos religiosos e desportivos, e grupos de
brincadeiras. Segundo a ótica piagetiana, as experiências do
respeito mútuo e da solidariedade entre crianças e
adolescentes são bastante independentes dos preceitos

219
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

abstratos e dos exemplos práticos fornecidos como


modelos pelas condutas dos adultos. Para Piaget, isso
significaria que o sentimento de justiça que compreende a
submissão à autoridade forma-se, na estrutura da
personalidade humana, de modo relativamente
independente daquele que compreende a igualdade.
Teríamos assim, em realidade, duas bases psíquicas
movimentando esse sentimento de justiça: a primeira delas,
de operação vertical, seria originária do complexo de
Édipo e da relação de autoridade com os pais, sendo
responsável pela formação do sentido da obediência, da
submissão, da hierarquia e do dever. A segunda dessas
bases psíquicas, de operação horizontal, seria originária do
convívio entre crianças que interagem relativamente
distantes da intervenção do poder paterno, sendo
responsável pela formação dos sentidos de igualdade,
respeito, solidariedade e diferença.
Podemos assim perceber o cuidado merecido
pela infância por suas conseqüências para a formação de
indivíduos socialmente adaptados e eticamente igualitários.
A experiência vivenciada da solidariedade na infância
torna-se a grande responsável pela formação do sentido
igualitário em cuja base assenta o sentimento social de
justiça e seguramente também o de eqüidade. Podemos
por aí também compreender como na infância esse
sentimento de justiça sugere-nos um igualitarismo
espontâneo bastante diferente da obediência devida a uma
autoridade que imponha de maneira heterônoma essa
igualdade. Essa descoberta de Piaget constitui um dos
grandes patrimônios a serem assimilados pelos estudos da
filosofia ética que aceitam o diálogo profícuo com a
psicologia moderna. Quando Piaget assinala que o
igualitarismo provém dos hábitos de reciprocidade
peculiares ao respeito mútuo havido num contexto de

220
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

socialização solidária, ele demonstra sua distinção


estrutural-qualitativa em relação aos mecanismos do dever
e da submissão à autoridade fundados num compromisso
de respeito muitas vezes unilateral, como é aquele
estabelecido entre pais e filhos, entre Estado e cidadãos,
entre súditos e soberanos. O sentimento de justiça
enquanto percepção da igualdade diferencia-se assim do
sentimento de justiça enquanto dever de submissão à
autoridade, especialmente quando o filho deve obediência
incondicional ao pai e a este ainda é reservada a faculdade
de quebrar certas promessas sem que isso represente
nenhuma possibilidade de cancelamento do dever do filho.
O sentimento de justiça enquanto igualdade nasceria de uma
experiência prática e vivencial de respeito mútuo
estabelecido entre parceiros merecedores de idêntica
consideração (crianças ou adolescentes). Por outro lado, o
sentimento de justiça enquanto dever de obediência nasceria da
própria formação do superego pela introjeção do pai como
ideal do ego do filho, capaz ainda de garantir a efetividade
dessa sujeição mediante sanções concretas (castigos e
punições) ou mesmo pela ameaça de interrupção da
proteção amorosa, como diria Freud.
A observação de Piaget do sentido da
igualdade surgida entre crianças que interagem em espaços
especificamente infantis de socialização e convivência
(parques, escolas, clubes) pode ser qualitativamente
contrastada com aquele outro tipo de igualdade surgida
entre irmãos de uma mesma família que, via de regra,
permanece tutelada pela autoridade paterna. A
desigualdade de oportunidades entre colegas ou parceiros
num jogo ou brincadeira é assunto geralmente resolvido
entre as próprias crianças, enquanto a desigualdade entre
irmãos é freqüentemente resolvida mediante o apelo à
intervenção dos pais.

221
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Piaget sustenta ainda que o sentimento de


justiça enquanto igualdade somente faz sentido se puder
ser utilizado como metacritério ético, posto acima da pura
obediência exigida ou imposta coativamente por uma
autoridade.28 A ética da igualdade espontânea torna-se,
assim, distinta daquela do dever que se resolve, em último
caso, numa imposição pela força. A partir de Piaget
acreditamos poder discernir entre um sentimento de justiça
prioritariamente significado pela noção prática e mutual de
igualdade e a pura obediência fundada na força ou em sua
constante ameaça de uso. Ora, se a noção de igualdade,
que está na base do sentimento de justiça, é importante
para a psicologia social, quem dirá para o direito.

3.4. Sentimento de justiça e concretização do mínimo ético

Uma sociologia da eficácia do direito deve ser


consciente de estar tratando da complexa relação entre
heteronomia e autonomia. Deve procurar investigar a
diferença entre o direito a que se deve obediência por
temor coativo e a justiça em que cremos ou que praticamos
porque sentimos ser aquela mais legítima e adequada
igualitariamente. O índice dessa eficácia pode assim ser
apurado na verificação da sintonia entre os conteúdos do
direito estatal vigente e o sentimento de justiça sobre o
qual repousa a ação e a motivação de seus destinatários.
Da sintonia entre esses conteúdos e o sentimento de
justiça depende a otimização da eficácia jurídica global de
um ordenamento, especialmente quando os conteúdos
desse direito implementam medidas promotoras da
igualdade social orientadas à incorporação dos excluídos

222
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

ao pacto social (mínimo ético). Foi Max Weber quem


estabeleceu a tarefa primordial da sociologia jurídica: a
análise daquilo que de fato ocorre em uma comunidade
quando é dada a probabilidade de que determinados
membros seus considerem-se vinculados a uma ordem
normativa tida subjetivamente como válida, passando
assim a orientarem suas ações práticas em conformidade
com o que consideram como direito.29 Diante dessa
definição, a socióloga do direito Katie Argüelo explica que
o mundo jurídico na perspectiva weberiana “não significa um
cosmos lógico de normas corretamente inferidas [como em Kelsen],
mas um complexo de motivações efetivas do atuar humano. Sob este
prisma, o direito é uma „ordem‟, com certas garantias específicas,
relacionadas à probabilidade de validez empírica.” 30 Cremos seja
perfeitamente possível traduzir como significando eficácia a
expressão validez empírica adotada pela autora, o que
equivaleria então a dizermos que a sociologia do direito
trata de analisar seu objeto – o sistema jurídico em
perspectiva social – preocupando-se com os dados
eficaciais decorrentes da consideração subjetiva do sentido
tido como jurídico pelos integrantes dessa ordem, com
vistas à definição motivacional de suas ações mais
prováveis. De modo mais simples, a perspectiva da
sociologia do direito não se preocupará com a qualidade
intra-sistêmica da validade das normas jurídicas, mas antes
com o que de fato acontece ou pode acontecer com quem
pensa estar agindo e vinculando-se por normas de direito.
Ora, se os destinatários, na definição do que
subjetivamente consideram direito, não têm aptidão para
mensurar adequadamente sua validade técnica, é muito
provável que então orientem suas ações (1) segundo seus
sentimentos de justiça, que crêem serem próximos aos
sentidos jurídicos, e (2) segundo aquelas ações que sabem
não produzirem conseqüências sancionáveis. Podemos

223
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

assim perceber como a ação social é eticamente orientada


segundo a suposição de uma juridicidade elaborada como
sentimento de justiça.
Composto esse quadro multidisciplinar, o
estudo desse sentimento de justiça constitui um item
inestimável para o desenvolvimento de uma teoria da
eficácia jurídica levada às suas últimas conseqüências
práticas e analíticas. Dificilmente alguém conseguiria
pronunciar corretamente o diagnóstico eficacial sobre a
situação do direito vigente em uma determinada
comunidade sem conhecer a fundo os meandros do
funcionamento do(s) seu(s) sentimento(s) de justiça(s).
Mas, infelizmente, nesse terreno as investigações da
sociologia jurídica ainda permanecem tímidas, exceto por
algumas pesquisas pioneiras, dentre as quais devemos
recordar a realizada pelos sociólogos do direito
pernambucanos Cláudio Souto e Solange Souto, na
Alemanha, durante a segunda metade da década de 1960.31
Porém, uma análise puramente sociológica já
se nos afiguraria insuficiente para delinear a complexidade
multifenomênica envolvida na formação desse sentimento
de justiça. O resultado de comportamentos tidos
espontaneamente conforme as normas vigentes depende
do modo como as relações entre a eficácia (ou validez
empírica) e a estrutura teleológico-motivacional das ações
sociais são mediadas pela incorporação do sentimento de
justiça de uma comunidade às pautas de conteúdo do seu
direito positivo e às linhas da jurisdição que o materializam
em decisões. Logo, a tarefa de se levar uma teoria da
eficácia às suas últimas conseqüências exigiria o passo
adiante de um esforço interdisciplinar. Isso para não
mencionarmos as peculiaridades culturais do ethos de cada
comunidade na qual se pesquisa esse sentimento de justiça,

224
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

pois conduzir uma teoria da eficácia aos seus limites


analíticos também exigiria um mergulho nesse oceano
moral e motivacional, saindo-se do solo seguro das puras
abstrações e ingressando nas profundezas antropológicas
das especificidades locais.
A investigação desse sentimento de justiça
deveria então constituir um campo de pesquisa atrativo a
todos os cientistas sociais, especialmente juristas
interessados em compreender a fundo o complexo
universo comportamental de uma comunidade regulada
por normas. Além do mais, os homens concretos que
fazem o sistema jurídico, embora habituados a manipular a
jurisdição na forma fria do conceito, não estão, de modo
algum, desprovidos desses sentimentos de justiça. O
sentimento de justiça integra a própria pré-compreensão
dos intérpretes-aplicadores pela qual (1) os membros dos
órgãos jurisdicionais interpretam certas normas e fatos
sociais como jurídicos (pré-compreensão jurídica) e pela
qual (2) adotam, com sua discricionariedade, certas
possibilidades interpretativas contidas nas molduras do
direito válido a aplicar (pré-compreensão subjetiva). As
relações entre essas pré-compreensões jurídica e subjetiva
do intérprete-aplicador serão apreciadas quando
desenvolvermos nossa análise hermenêutica. Tais questões,
sendo atinentes à formação das pré-compreensões dos
intérpretes-aplicadores, dizem respeito a um ponto de
vista interno ao direito, aquele no qual operam os juristas-
cidadãos. Com efeito, propusemos acima uma investigação
sociológico-jurídica do sentimento de justiça em sua
operatividade vinculativa dos cidadãos-destinatários
considerados numa perspectiva externa ao sistema jurídico.
Ocorre, entretanto, que também os juristas-cidadãos agem
na exterioridade social e política do sistema jurídico, sendo

225
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

por nós aí considerados como cidadãos-juristas. Dessa


distinção, trataremos a seguir.

3.5. A dialética do jurista-cidadão e do cidadão-jurista: dois focos


na apreensão do fenômeno jurídico

O compromisso concretizante estabelecido


com o mínimo ético pode ser firmado no ponto de vista
interno do ordenamento jurídico e de seus operadores.
Chamaremos esse ponto de vista interno de aquele do
jurista-cidadão. No entanto, essa instância interna não
aspira à exclusividade, de vez que o compromisso com o
mínimo ético também exige agenciamentos exteriores ao
sistema jurídico. Chamaremos esse ponto de vista exterior,
pelo qual também é mantido o compromisso com o
mínimo ético, de aquele do cidadão-jurista.
A apreensão do fenômeno jurídico requer uma
certa bifocalidade dos sujeitos interessados em capturá-lo.
Pelo foco mais próximo pode-se enxergar o direito do
caso, das partes processuais, do poder judiciário, enfim,
tudo aquilo que de alguma maneira é relacionado à justiça
comutativa e seus conflitos. Já no foco mais longo pode-se
ter em mira o fenômeno jurídico apreendido não apenas
na particularidade do caso judicial, mas no horizonte de
todos os outros sistemas com os quais o sistema jurídico-
judicial se relaciona, formando um conjunto de instituições
e práticas que transcende e define os limites mais gerais da
própria capacidade de intervenção social da jurisdição.
Naturalmente, o predomínio do foco próximo pode
degenerar na miopia do casuísmo e das razões técnicas,
buscando-se no varejo da solução das controvérsias

226
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

respostas de justiça material que muitas vezes não podem


ser encontradas devido a poderosas limitações estruturais
do sistema, cuja percepção só é lograda pelo emprego do
foco mais longo, o dos horizontes político-institucionais.
Mas se o predomínio do foco próximo pode criar
dificuldades na percepção do fenômeno jurídico, o
contrário também deve ser verdadeiro. A predominância
do foco longo pode ocasionar um embaçamento do
fenômeno jurídico pela superestimação das outras variáveis
(de ordem política, econômica, moral, ideológica, cultural)
que com ele compartilham o panorama socioinstitucional.
Sob a aparente universalidade do direito
hospeda-se ainda uma série de agenciamentos culturais
cuja subjacência permite ao cabo representar a realidade
social como jurídica. Nesse sentido, a representação
jurídica não é diferente de outras representações sociais,
como a arte, o trabalho, a religião, o poder, a ciência. A
antropologia contemporânea tem demonstrado que a
estrutura imputativa do se/então, essencial ao direito
ocidental, não é universalmente válida para todas as
culturas. A possibilidade de compreensão dessa estrutura
só é dada mediante uma série de aquisições, como, por
exemplo, a distinção entre o princípio da causalidade
natural e uma idéia de responsabilidade pessoal. Sem essa
distinção entre causa natural e responsabilidade humana, a
idéia de imputação praticamente torna-se inviável. Os
gregos antigos e muitos povos indígenas jamais chegaram a
elaborá-la, talvez por não terem desenvolvido uma ciência
de caráter empírico. A bifocalidade na apreensão do
fenômeno jurídico submete-se então a mais estes dois
aspectos freqüentemente olvidados: os condicionamentos
históricos e culturais.

227
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

São esses alguns riscos das compreensões


amplas e estritas do fenômeno jurídico. E o ajuste ótimo
dessa bifocalidade não obedece a receita alguma, até
porque cada olhar é sempre sutilmente graduado pela
peculiaridade dos seus interesses e pelas variações de
tonalidade que cada retina percebe de modo
incomunicável na sua perfeição. Torna-se assim impossível
uma receita para a visão perfeita do direito, simplesmente
porque não pode existir uma visada única sobre esse
fenômeno. O direito não é então fruto de uma visão
puramente perfeita que se tenha dele. A visão do direito
perfeito é sempre uma miragem histórica ou teórica. O
direito é, portanto, fruto do diálogo entre as impressões
resultantes do conjunto de visões que podem sobre ele
incidir, em suas similitudes e dessemelhanças. Dito isso de
modo hermenêutico, não existe total homogeneidade na
determinação da pré-compreensão jurídica, uma vez que
essa é resultante de um práxis institucional a todo
momento reinventada. À vista disso, torna-se mesmo
importante ressaltar a diferença entre o varejo dos direitos
que se obtém pela jurisdição do foco próximo e o atacado
dos direitos sociais garantidos pelas políticas públicas e
demais medidas de justiça distributiva, logradas pelo foco
longo. Num caso, temos o direito ilustrado de modo
emblemático pelos recursos a um poder judiciário
autônomo. Noutro, temos o direito encarnado pela
sociedade e pelo Estado em instituições e concepções
político-ideológicas, com suas respectivas compreensões a
respeito da justiça social. A experiência jurídica revela-se,
dessa maneira, como sendo concomitantemente uma
forma de resolver conflitos entre indivíduos e um modo de
se promover a sociabilidade no seio de uma comunidade.
A combinação entre esses dois focos constitui a dialética

228
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

da experiência jurídica, vivenciada e vista sempre como


algo far away, so close [tão longe, tão perto].
Conforme o foco adotado, o mínimo ético pode
ser traduzido numa singela ação judicial ou já numa
decisão política de ampla abrangência. De parte do foco
próximo, aquele do jurista-cidadão, a implementação
prática das concepções do mínimo ético exigiria ainda a
formação de gerações inteiras de operadores de direito
aptos a perceberem suas decisões intervindo em um
ambiente de responsabilidade conseqüencial e de
complementaridade entre autonomia e heteronomia. Em
um tal ambiente, a interpretação normativa necessitaria
receber um tratamento imunizador contra os ataques
tecnificantes pelos quais se dissemina a ilusão das decisões
passíveis de neutralidade e objetividade. A formação dessas
gerações de juristas necessitaria ser qualitativamente
distinta daquela hoje oferecida pelas concepções
epistemológicas maciçamente difundidas nas escolas de
direito. Novamente reclamamos aqui a compreensão da
complexidade do fenômeno jurídico em articulação estreita
com seu substrato ético-comportamental. Quanto mais o
arsenal teórico disponível facultar aos juristas a percepção
da repercussão social de suas atuações, mais tenderá a
tornar-se sua própria responsabilidade aplicativa. Mas isso
só pode ser imaginado sob os auspícios de uma outra
mentalidade cognitiva para o direito. Essa outra
mentalidade deverá abandonar as concepções sobre o
saber jurídico como sendo formado por atos cognitivos
neutros, passando a assumir, com transparência, o fato de
que a interpretação do direito encerra atos de vontade e,
portanto, decisões. Uma parcela importante dessa nova
mentalidade cognitiva para o direito talvez possa ser
buscada no paradigma da hermenêutica filosófica.

229
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

4. Hermenêutica
4.1. Da pura discricionariedade à fundamentação da pré-
compreensão

Pretendemos agora discutir alguns aportes de


um novo paradigma hermenêutico para o conhecimento e
a prática do direito. Não convém, entretanto, num ensaio
de modestas proporções coligirmos todos os postulados
teóricos desse novo paradigma. Importa apenas
registrarmos que a chamada hermenêutica filosófica,
vinculada ao pensamento fenomenológico, aspira aos
propósitos de oferecer um fundo comum às chamadas
ciências do espírito ou da cultura, operantes sobre uma
base compreensiva. A atividade compreensiva consiste no
acionamento de determinados esquemas de
reconhecimento de sentido. Compreendemos coisas que
têm sentido a partir de uma significatividade compartida na
intersubjetividade. Compreensão e significação tornam-se,
portanto, conceitos mutuamente referidos em um
horizonte comunicativo e lingüisticizado peculiar ao
homem socialmente considerado. A apropriação de tudo
que integra esse nosso mundo constituído é dada por essa via
interpretativa. Porém, a totalidade das coisas dotadas de
sentido e expostas à interpretação é muito variada.
Podemos compreender um texto alcançando o significado
de suas palavras articuladas por uma determinada maneira
de conexão. Podemos compreender uma língua diferente
da nossa. Mas podemos também compreender um
acontecimento histórico ou mesmo a ação de uma pessoa
representando, por nossa própria maneira de agir, seus
indícios exteriores mais ou menos intencionados e mesmo
sua motivação. Textos, fatos, ações, línguas, pessoas:
apesar de lidar com fenômenos tão diversificados, a

230
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

hermenêutica pretende encontrar nessas manifestações a


constância de algo possibilitando suas ocorrências: (a
problemática do sentido). O universo hermenêutico
conforma-se assim pela própria totalidade da vida humana,
na qual nos movemos por constantes interpretações.
Considerada como a reflexão por excelência
desse campo compreensivo, a hermenêutica filosófica tem
muito pouco a ver com aquela velha hermenêutica jurídica,
de índole técnica e exegética. É proveitoso então
introduzirmos uma distinção entre esses diversos tipos de
hermenêutica. O filósofo gaúcho Ernildo Stein,32 um dos
precursores do pensamento fenomenológico no Brasil,
articula uma classificação das investigações hermenêuticas
em três campos: a hermenêutica técnica, a filosofia
hermenêutica e a hermenêutica filosófica. As
hermenêuticas técnicas são aqueles instrumentais teóricos
imediatamente destinados à investigação de textos. Seu
caráter é sempre mais ou menos exegético. Assim, tais
hermenêuticas técnicas visam clarear e/ou fixar um
sentido de palavra, expressão, termo, sentença ou mesmo
de todo um texto sobre o qual não haja entendimento
pacífico. Trata-se, portanto, de atividade onde prepondera
o exercício da especulação semântico-sintática. Entre tais
hermenêuticas técnicas contam-se as hermenêuticas
gramaticais, filológicas, bíblicas e jurídicas. Em geral, essas
hermenêuticas técnicas apresentam-nos um conjunto de
passos a serem seguidos para o estabelecimento de uma
significação. Entre nós, familiarizados com o direito,
destaca-se como a máxima expressão dessa hermenêutica
aquela elaborada por von Savigny no século XIX. Já a
filosofia hermenêutica, por seu turno, é mesmo uma
filosofia no sentido integral da palavra. É uma tentativa de
apresentar concepções de mundo e de existência do ente
humano fundadas na situação originária do compreender

231
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

que desde sempre todos somos (o Dasein, o ser-aí). Trata-se


de uma filosofia bastante radical e recente, elaborada no
século XX, tendo em Heidegger seu maior expoente. Não
voltaremos a essa filosofia hermenêutica com mais
detalhes. A essa altura, importa apenas deixar assinalado
que a filosofia hermenêutica, principalmente no modo
como foi elaborada por Heidegger, não chega a apresentar
preocupações metodológicas ligadas às atividades práticas
ou a qualquer tipo de aplicação concreta pelas ciências
sociais. Por fim, a hermenêutica filosófica apresenta-se
como uma tentativa de reunir os problemas gerais da
compreensão e da interpretação, presentes em várias
disciplinas, sob um novo tratamento paradigmático,
justamente aquele elaborado pela filosofia hermenêutica de
Heidegger. Assim, essa hermenêutica filosófica, como
disciplina geral, passa a exibir pretensões metodológicas
mais nítidas, tendo em Friedrich Schleiermacher seu
precursor e em Hans-Georg Gadamer seu maior expoente
e sistematizador, especialmente com a obra Verdade e
Método.
No ambiente jurídico, a hermenêutica técnica mais tem
servido de abrigo metodológico para os que crêem (ou
para os que preferem fazer crer que crêem) ser a
interpretação uma atividade neutra e científica, na qual
outros universos de sentido, como o dos valores, dos
interesses e da subjetividade, não exercem ingerência
alguma. Discutir a hermenêutica filosófica como um novo
paradigma cognitivo para o saber e a prática jurídicos
envolve a reformulação preliminar daquele território
metodológico no qual são radicalmente delimitadas as
possibilidades de percepção e funcionamento do direito. A
concepção hermenêutica sugere formas alternativas,
menos cientificistas e mais historicizadas, para as gerações
vindouras apreenderem o direito como um entre diversos

232
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

outros componentes do fenômeno normativo-


comportamental mais geral. Esse fenômeno normativo-
comportamental, essencialmente complexo pelos vários
sentidos nele concorrentes, há de ter seu desenvolvimento
específico atinente ao direito pesquisado desde suas
relações com a ética. Sugerimos com isso um arsenal
hermenêutico capaz de vencer aquela miopia
heteronomista e causalista tão corrente nas abordagens da
regulação social. Embora o pensamento jurídico do século
XX tenha reivindicado o princípio da imputação como
especificante humano para a ciência do direito concebida
enquanto uma autêntica ciência do espírito, restaram-lhe
ainda alguns mitos causalistas, especialmente o de que nos
destinatários o medo da sanção coativa é causa eficiente e
suficiente da conduta conforme o direito.
Metodologicamente afastada do âmbito da significação do
direito, uma série de outros sentidos concorrentes no
universo social (político, psíquico, histórico, moral, etc.)
foi isolada taticamente a fim de se impulsionar a
proclamação de independência epistemológica da
província jurídica. Face às diversas angulações possíveis
para a abordagem do fenômeno jurídico, a epistemologia
kelseniana tentava formular e responder claramente à
seguinte questão: o que precisamente pode especificar um
ponto de vista jurídico sobre o direito? O programa de
construção de uma ciência jurídica autofundada sob a
noção jurídica de validade do direito positivo exigiu então
rigorosas precauções contra o risco de diluição em outros
saberes. Mas, uma vez logrado o sucesso na conquista
dessa autonomia, é tempo de se repensar esses
relacionamentos. Especialmente porque a reaproximação
desses outros sentidos do agir social fornecem uma
compreensão mais sofisticada sobre como o direito pode
tornar-se realmente eficaz, sem que isso agora represente

233
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

maiores riscos de aniquilação da especificidade da ciência


jurídica. Em grau de igualdade e mútuo reconhecimento
de estatutos epistemológicos específicos, essa
reaproximação entre os diferentes saberes humanos propicia
a compreensão do sentido das ações e relações sociais
como algo complexo, multiangular, impossível de ser
reduzido a unicausalismos simplistas ou naturalizantes.
Dentre todos os âmbitos sociais, e seus respectivos
saberes, com os quais o direito há de buscar essa
recomposição diplomática, o sentido ético parece ser o
mais importante. Dessa forma, tanto mais refinada será
essa compreensão hermenêutica do direito, quanto mais
próxima ela estiver de certos conteúdos eficaciais mínimos,
cuja clareza pôde ser alcançada na reflexão ético-
fundamentativa desenvolvida há pouco. A seguir veremos
como a idéia do mínimo ético, elaborada enquanto um
compromisso eficacial, pode ser hermeneuticamente
instalada nas pré-compreensões dos atores do
ordenamento jurídico.
Desnecessário recordarmos ter sido no terreno
metodológico e epistemológico (e não no político ou
axiológico) que o positivismo operou a ultrapassagem do
jusnaturalismo. O jusnaturalismo jamais dispôs de
elaborações à altura da teoria dinâmica da validade para
rivalizações de envergadura estrutural, muito embora
algumas formulações suas tenham atingido grande
sofisticação. A bem da verdade, a maior ameaça ao Estado
de Direito Democrático foi mesmo essa incerteza sobre as
regras do jogo jurídico, produzida por jusnaturalismos de
toda sorte, contando-se aí desde variados princípios
totalitários até os marxismos mais escatológicos. Tirando
proveito desse consenso intelectual de repulsa à incerteza
jusnaturalista, não faltaram nem mesmo autores dispostos
a difamar o direito alternativo como um perigoso

234
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

jusnaturalismo, isto é, como uma doutrina que punha em


risco a segurança sobre os critérios de validade adotados
para a produção de normas particulares, especialmente
decisões judiciais. Sem dúvida, essas tentativas de se
associar o direito alternativo ao jusnaturalismo também
foram um corolário de sua fragilidade teórica e de seu
compromisso predominante com a perspectiva do
cidadão-jurista, em detrimento daquela outra, a do jurista-
cidadão. Mas, mesmo assim, o direito alternativo, como
forma de mobilização política, ou como atitude de certos
operadores jurídicos, jamais poderia ser assimilado a um
mero jusnaturalismo. Essa desqualificação jusnaturalista do
direito alternativo precisa então ser definitivamente
desmascarada.
O direito alternativo não é nem foi um
jusnaturalismo, simplesmente porque todo direito sob este
signo produzido é direito inquestionavelmente válido, até
que um órgão competente decida o contrário. Ou, dito
ainda de maneira mais contundente, a idéia de um direito
alternativo não corresponde à proposta de uma fonte
puramente ideológica ou extrajurídica para a validade do
direito, tampouco corresponde ao idílio de um
ordenamento normativo paralelo ao do Estado, isso
porque não pode haver direito algum, alternativo ou não,
contrário à Constituição. O direito alternativo jamais se
insurgiu contra as formas jurídicas de controle da validade
legal ou constitucional das decisões. Jamais propôs uma
doutrina da insubmissão ou da desobediência civil por uma
juridicidade paralela, até porque sempre manteve em alta
conta o papel estratégico do Estado e do direito positivo
na edificação da modernidade da sociedade brasileira.
Logo, o que é propriamente alternativo, no direito alternativo, são os
juízos de preferência sobre quais interpretações válidas do direito
positivo, dentre as muitas disponíveis, são aquelas especificamente

235
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

mais apropriadas e eficazes na edificação de uma sociedade


integradora e menos excludente. Assim, o que é propriamente
alternativo no direito alternativo são certas qualidades
preferidas entre as diversas possibilidades jurídicas de
interpretações válidas contidas numa mesma moldura
normativa, assim considerado o quadro de possibilidades
do direito positivo a aplicar. Ademais, essas possibilidades
jurídicas só merecem ser qualificadas como alternativas na
medida em que não têm sido, por uma série aqui
indiscutível de razões, aquelas possibilidades efetivamente
mais adotadas na jurisdição majoritária. Dizer direito
alternativo é então dizer direito potencialmente válido, cuja
aplicação não tem sido implementada. E o fato de essas
possibilidades interpretativas não estarem sendo adotadas,
não significa, de modo algum, que não possam ou mesmo
não devam ser adotadas.
Ocorre, entretanto, que os métodos de
interpretação da hermenêutica tradicional tornaram
deveras obscuro todo esse processo de decisão no qual
influem intensamente características inconstantes dos
intérpretes. São precisamente essas características dos
intérpretes as determinantes dos juízos de preferência
sobre quais interpretações do direito positivo realizam uma
dada concepção de sociedade ou mesmo sua própria
viabilidade, como é o caso do mínimo ético. Uma parcela
substancial dos rumores e rancores contra o direito
alternativo ressoa como um eco dessa obsoleta
hermenêutica jurídica do século XIX, cuja conseqüência
maior era a de eclipsar o lugar do intérprete. Trata-se de
críticas improcedentes de uma hermenêutica arcaica e de
uma ideologia conservadora e votadas à prestidigitação do
intérprete. Porém, enquanto essa hermenêutica obsoleta
tentava a todo custo fazer desaparecer o intérprete no
anonimato dos métodos e na indiferença aos resultados

236
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

das decisões, o direito alternativo sempre postulou o


contrário disso: a vinda à luz do intérprete como sujeito
social dotado de subjetividade e responsável por suas
decisões. Nesse contexto, os chamados magistrados
alternativos, mesmo sem maiores reflexões teóricas
sistematizadas, provocaram, na prática jurisdicional
brasileira, uma verdadeira reviravolta na concepção de
hermenêutica aliada a uma compreensão de sociedade.
O senso comum hermenêutico permaneceu
durante séculos obcecado por infundir coerência
sistemática e harmonia racional a um sistema jurídico
caótico e verticalmente atravessado por diversas
contradições repercutidas do terreno social. A arquitetura
exterior desses edifícios jurídicos de papelão deveria
transmitir serenidade e opulência, embora as sociedades
assim encobertas muitas vezes estivessem já em ruínas.
Muito desse efeito cênico e cínico desempenhado pelos
sistemas jurídicos pode ser creditado a concepções
hermenêuticas. A perseguição da objetividade no terreno
interpretativo submeteu a razão prática inerente à decisão
jurídica e seus mecanismos de razoabilidade a imperativos
excessivamente rigorosos. Pretendia-se lançar o intérprete
na penumbra, exaltando a resplandecência científica de
métodos que, uma vez aplicados corretamente,
conduziriam a resultados sobre o verdadeiro sentido de uma
norma. Uma decisão interpretativa seria assim o resultado
mais ou menos previsível pela aplicação de um
determinado método. Considerada desse modo, a
interpretação não seria nada além de um simples ato de
conhecimento. E toda a estrutura da argumentação judicial
organizou-se para exibir silogisticamente como, depois de
empregados certos métodos,e subsumidos certos fatos, era
dada ao conhecimento uma determinada conclusão. No
entanto, qualquer apreciação empírica, mesmo rápida, da

237
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

psicologia da decisão jurídica revela-nos a artificialidade


fantasiosa desse processo. Nenhum julgador aproxima-se
tão perplexo de uma norma, nada sabendo sobre seu
significado, para, logo após a aplicação de um método,
deparar-se com a revelação de seu sentido. Não é assim
que as coisas efetivamente se passam. Qualquer intérprete
já se aproxima de uma norma a partir da pré-compreensão
de seu contexto problemático, tratando sempre de
sucessivamente reformular essa sua apreensão preliminar a
fim de se decidir por um dado sentido. Esse processo de
sucessivas reformulações da pré-compreensão envolve a
comensuração entre caso e norma, desde a qual fica
inviabilizada a hipótese de qualquer efeito de tabula rasa
sobre o intérprete.
Muitos aspectos confluíram historicamente
para que a hermenêutica tradicional pretendesse estender à
ciência jurídica certos predicados de objetividade das
ciências naturais. Tais aspectos vão desde os intentos de
contenção do poder criativo do judiciário (o juiz como
mera boca que pronuncia a lei) até o entusiasmo cientificista
professado pelo positivismo sociológico de Comte.
Difundiu-se uma crença otimista nas potencialidades da
razão sistemática plasmada nas grandes codificações.
Durante essa época, a interpretação significava riscos de
corrupção e agressões à inteligência racional do legislador.
Mais tarde, porém, lentamente foi sendo reabilitada a
atividade interpretativa por vários métodos. A concepção
de tais métodos era então trazida de um terreno estranho
ao direito: o das ciências naturais. Para as ciências naturais,
um método consiste naquele conjunto de procedimentos
sucessivamente aplicados que conduzem a um resultado,
independentemente de quem o empregue. Essa
independência da condição de quem emprega os métodos,
associada à previsibilidade do resultado, denota ainda uma

238
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

outra característica cuja repercussão muito se percebeu nos


domínios jurídicos: a impessoalidade. A impessoalidade do
cientista tornara-se o ideal para a impessoalidade do
jurista-intérprete, embora facilmente possamos constatar o
fracasso dessa concepção quando estendida ao direito. Isso
pode ser empiricamente verificado por uma singela
experiência: ofereça-se o mesmo caso, absolutamente
idêntico, a dois juristas e se lhes ordene a aplicação de um
mesmo método, como, por exemplo, o método lógico-
sistemático. Não precisamos grandes desenvolvimentos
para concluir pela possível diferença entre as decisões daí
resultantes. As razões dessas diferenças nas decisões
revelam assim um dado essencial relativo aos métodos de
interpretação da hermenêutica tradicional. Esses chamados
métodos não gozam de dois predicados essenciais à sua
definição: impessoalidade e previsibilidade repetível do
resultado. Nesse diagnóstico até Kelsen estaria de pleno
acordo conosco. Nas suas próprias palavras, “não há
qualquer critério [método] com base no qual uma das possibilidades
inscritas na moldura do direito a aplicar possa ser preferida à outra.
Não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado
como de Direito positivo – segundo o qual das várias significações
verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como
„correta‟ [...]”33 Essa posição surpreendentemente realista de
Kelsen ainda revela-nos outros dois dados cruciais sobre a
decisão interpretativa: sua discricionariedade e sua
ametodicidade. Porém, quase toda comunidade jurídica
preferiu fazer ouvidos moucos à contundência das palavras
de Kelsen divulgadas talvez muito discretamente só no
último capítulo de sua Teoria Pura do Direito. Kelsen ficou
solitário na sua denúncia contra o cientificismo dos
métodos de interpretação da hermenêutica jurídica
savignyana. Até mesmo seus confrades positivistas o
deixaram a sós nessa sua proclamação da interpretação

239
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

como um ato simultaneamente cognitivo e de vontade.


Desfazer a ingenuidade ou o oportunismo dessas crenças
hermenêuticas constitui agora uma das tarefas teóricas
mais urgentes, a ser desempenhada em nome da
transparência operativa da ciência jurídica moderna.
Compreendidas as normas jurídicas gerais
como um quadro de diversas possibilidades aplicativas, a
validade de uma sentença ou de um acórdão não decorre
de um estar em algum lugar específico dentro dessas molduras.
Ao invés disso, o ser válido dessas normas jurídicas
particulares é um estar em qualquer lugar dentro dessas
molduras. Ser válido é, portanto, realizar qualquer
possibilidade interpretativa passível de estar contida na
fórmula verbal de uma norma. Por isso mesmo, o direito
alternativo apresenta-se-nos agora como sinônimo de
possibilidade interpretativa, embora não seja mais
admissível a total indiferença na adoção de qualquer
possibilidade. A plena indiferença a qualquer possibilidade
aplicativa, assim considerada desde que a decisão estivesse
contida na moldura, recebeu o nome de discricionariedade.
O reconhecimento da discricionariedade foi um passo
importante na reabilitação do papel do intérprete. Um
passo importante, porém agora já insuficiente. Esse
qualquer lugar dentro da moldura geral, ou essa qualquer
possibilidade interpretativa de aplicação jurisdicional, não pode
mais ser só compreendido enquanto pura
discricionariedade, tal como fez Kelsen. Atualmente, faz-se
necessária uma reflexão teórica que não mais se conforme
com a pura discricionariedade das decisões. Uma teoria
cujo refinamento seja capaz de apontar, na própria base do
fenômeno hermenêutico, justamente o que está a
possibilitar essa multiplicidade de escolhas aplicativas
sujeitas à discricionariedade.

240
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

A abordagem oferecida por Kelsen à


discricionariedade de um intérprete decidindo no interior
de uma moldura normativa de possibilidades aplicativas
permaneceu presa a uma constatação de ordem semântica:
era a generalidade das normas superiores e a polissemia de
seus vocábulos que possibilitava a diversidade de
interpretações e aplicações. Com o atual desenvolvimento
das pesquisas hermenêuticas, podemos agora agregar a essa
constatação semiológica um outro dado: o que faz oscilar a
discricionariedade aplicativa não é apenas a imprecisão da fórmula
verbal da norma, mas também a própria diversidade de pré-
compreensões dos intérpretes. Uma reelaboração razoável dessa
problemática da discricionariedade iniciaria por mostrar
que só existe uma tal multiplicidade de escolhas aplicativas
porque qualquer norma já é interpretada e percebida a
partir de diferentes pré-compreensões do mundo, dos
valores, da vida, das ideologias, do direito, dos interesses e
até de si mesmo. Essas diversas pré-compreensões
possíveis – os pré-juízos, os pré-conceitos, o
conservadorismo gratuito, a inércia reiterativa da tradição,
as concepções gerais sobre o direito – informam as
variadas interpretações exteriorizadas como decisões. A
polissemia intrínseca aos documentos normativos
positivados – leis, Constituição, acórdãos – não pode mais
ser vista como uma simples imperfeição da técnica
legislativa e jurisdicional ou, ainda, como o resultado da
precariedade de nossa linguagem. Essa polissemia
inexoravelmente presente nos textos normativos é antes o
resultado da íntima combinação entre dois fenômenos: a
pluralidade ideológica da cena legislativa compositora de
arranjos textuais cuja unidade é sempre precária; e a
diversidade dos interesses e das vivências pré-
compreensivas pelas quais, em um mesmo texto, sempre é

241
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

possível ser antevisto um verdadeiro estilhaçamento


semântico.
Recordando novamente Norbert Elias, o
problema metodológico dos cientistas sociais não pode ser
mais o do distanciamento, mas o da máxima honestidade
no seu engajamento.34 São, portanto, essas mesmas pré-
compreensões dos intérpretes que devem ser elevadas à
condição de verdadeiras posições, das quais possamos exigir
algum tipo de fundamentação. Mas necessita também ficar
claro que não estamos nos referindo aqui às tradicionais
fundamentações das sentenças e dos acórdãos, muitas
ainda habituadas a argumentar com os velhos métodos de
interpretação com o fito de demonstrar como se pôde
chegar a determinado resultado interpretativo. Nesses
moldes, a fundamentação ou argumentação com os
métodos hermenêuticos tradicionais geralmente tende a
subverter a ordem psicológica do processo decisório:
mostra-se ao final, como resultado, o que sempre esteve
antes, embora precariamente, ou seja, a própria decisão.
Ora, dessas práticas resulta uma turvação sistemática do
modo real de desempenho das decisões dos intérpretes-
aplicadores. Contra esse estado de coisas, afirmamos a
necessidade de uma fundamentação daquilo que tem
ficado oculto e que assim necessitaria antes ser revelado na
forma de posições: as pré-compreensões dos intérpretes,
fonte de oscilação da discricionariedade a partir da qual
decidem. Desde nossa perspectiva hermenêutica, a
discricionariedade projeta-se não apenas enquanto aquele
conjunto de possibilidades de aplicação contidas em uma
norma. Essa discricionariedade encerra também a variação
da própria parcela de realidade social, em quantidade e
qualidade, ingressante na consideração jurídica sob
variados aspectos e razões de ordem subjetiva e pré-
compreensiva. Portanto, essa discricionariedade incumbida

242
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

ao intérprete define a própria porosidade do filtro pelo


qual são separados os mundos social e jurídico,
determinando, em último caso, a largura do espectro de
incidência do direito.
Com efeito, no campo do direito,
discricionariedade não é o mesmo que arbitrariedade.
Arbitrariedade é a qualidade da ação praticada por quem
age caprichosamente ao arrepio das normas pertinentes
instituídas. A arbitrariedade constitui, nesse sentido, a
prática instituinte de uma nova normatividade, vinculada
ao seu potencial eficacial e às flutuações da vontade
despótica de alguém. Já a discricionariedade é a margem de
atuação livre a ser praticada dentro dos limites de uma
norma. Discricionária é a ação peculiar em cujos detalhes a
norma pertinente se resguarda de não adentrar, conferindo
o poder de quando e como minudenciá-los a alguém tido
como competente também em razão de uma norma.
Assim, enquanto a arbitrariedade compõe uma ilegalidade,
a discricionariedade só é possível graças a uma atribuição
conferida pela própria legalidade. A amplitude dessa
margem de discricionariedade para a atuação dentro da
norma é uma questão também das mais sensíveis.
Geralmente, esse já estar dentro da norma é um dado
sinalizado de uma maneira pré-compreensiva.
Chamaremos de pré-compreensão jurídica aquela responsável
por definir o âmbito geral desse já estar dentro da lei. A
materialização dessa pré-compreensão jurídica decorre da
expectação entre os membros de uma comunidade
jurídica, organizada por competências escalonadas, ao
tolerarem uma determinada ação como discricionária ou ao
impugná-la como arbitrária. Porém, o simples
procedimento de se fixar a distância entre o discricionário
aceitável e o arbitrário repudiável não resolve um outro
problema, para nós essencial: o que propriamente

243
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

determina a diversificação (das possibilidades realizáveis) e a


variação (das decisões, ou das possibilidades efetivamente
realizadas) no interior dessa discricionariedade já delimitada
pelas práticas da comunidade jurídica? Dito de outro
modo: nos limites de uma pré-compreensão jurídica, isto é,
agindo-se no âmbito do que já é tolerado como
discricionário, o que determina a oscilação dessa
discricionariedade? A inclinação para o selecionamento de
uma dentre várias outras possibilidades realizáveis de uma
norma depende de toda aquela complexidade indistinguida
que habita a formação pré-compreensiva da subjetividade
de um jurista. Concorrem nessa complexidade concepções
de teoria do direito, formação ética, conhecimentos
sociológicos e filosóficos, crenças e convicções de variadas
índoles, interesses imediatos, alinhamentos ideológicos,
adesões a sistemas principiológicos e até aquelas razões
mais idiossincráticas da história pessoal de cada um.
O subterrâneo dessa complexa formação pré-
compreensiva deve deixar de ser considerado um
calabouço de supostas vergonhas, recoberto pela
cenografia artificiosa dos métodos de interpretação
assépticos. A nova hermenêutica filosófica convoca os
intérpretes a assumir uma postura ativa, criativa e
responsável, na esfera de um mundo jurídico e social no
qual a todo momento são chamados a dizer como ele
mesmo deve ser. No interior da discricionariedade, as
escolhas sobre o ser/fazer de um modo, e não de outro,
constituem a própria responsabilidade depositada sobre os
ombros dos intérpretes como exigência de fundamentação
de suas pré-compreensões, desde as quais as normas são
aplicadas. A discricionariedade exercida à luz da
fundamentação converte crenças tácitas e preconceitos
obscuros em posições discutíveis, calibrando assim a
opacidade do mundo jurídico perante as investidas do

244
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

olhar social. Todavia, muitos intérpretes ainda preferem


descarregar essa responsabilidade fundamentativa sobre o
pilar fictício dos métodos de interpretação, pretensamente
científicos, da hermenêutica heurística tradicional. Outros
tantos ainda preferem aniquilar completamente seu
potencial criativo, suprimindo sua discricionariedade e sua
subjetividade, e submetendo-se completamente às decisões
dos escalões superiores. Poderíamos caracterizar essa
postura como um efeito vinculante informal. Entretanto,
esses intérpretes não agem assim em razão de nenhuma
vocação maléfica ou dissimuladora. Eles são antes,
evidentemente, produto de um projeto cultural esgotado
para as funções de um saber jurídico submisso ao
conservadorismo elitista cuja corrosão atinge os pilares do
mínimo ético. São resíduos daquela educação jurídica do
anticidadão, responsável pelo ciclo bacharelista da então
jovem oligarquia dos filhos de senhores de engenho. No
entanto, nem mesmo esses intérpretes que preferem a
ocultação da própria responsabilidade sob o ângulo morto
de concepções cientificistas e excessivamente
hierarquizantes dificilmente conseguiriam oferecer uma
resposta plausível a esta questão: dada a diversidade de
métodos disponíveis para o solucionamento de um
problema jurídico, como se procede à escolha de um
deles? Discricionariamente? Arbitrariamente? Ou haveria
algum metamétodo disponível, isto é, um método para a
escolha do método mais adequado? Tais interrogações
relegam ao acervo das ilusões a crença na possibilidade de
interpretações objetivamente científicas no campo do
direito.
A passagem das pré-compreensões
(previgentes em qualquer interpretação) à condição de
verdadeiras posições (das quais possamos exigir
fundamentações) tem sido tratada, juntamente com outros

245
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

aspectos, sob o título genérico de hermenêutica genealógica.35 A


interrogação feita por essa hermenêutica tenta situar a
figura de quem interpreta normas válidas a fim de que esse
mesmo quem assuma a responsabilidade jurídico-política
pela fundamentação das preferências a partir das quais dá
vigência e concreção a alguma possibilidade interpretativa.
Nessa passagem está envolvida a responsabilidade jurídica
e política pelas possibilidades escolhidas e fundamentadas
por um órgão jurisdicional atuando dentro da moldura
normativa do direito positivo dado a aplicar. Por essa
maneira, a hermenêutica genealógica pretende aprimorar e
corrigir o modelo da moldura de Kelsen a partir da idéia
fenomenológica do círculo hermenêutico, segundo a qual
as pré-compreensões vão sucessivamente corrigindo-se
rumo à sedimentação de uma interpretação. Havemos
assim de inscrever a moldura das normas no círculo
hermenêutico da filosofia hermenêutico-fenomenológica.
Com isso surgirão condições de se anteverem as pré-
compreensões operando por trás do que outrora só podia
ser percebido, talvez de modo excessivamente fatalista,
como uma pura discricionariedade. Essa tarefa complexa
pode então ser assim sintetizada: revelar as pré-
compreensões por trás da discricionariedade,
transformando-as em posições das quais se possa exigir
fundamentações. Eis uma nova maneira de se perceber
inclusive a própria segurança jurídica: o direito a ter clareza
a respeito das pré-compreensões desde as quais somos
julgados.
Para uma concepção de direito comprometida
com o mínimo ético e agora empenhada na busca de uma
nova perspectiva hermenêutica, isso tudo significa: (1)
perceber o tipo mais comum de pré-compreensões que
está na base das suas interpretações/aplicações; (2) tratar
de resolver o problema relativo à fundamentação ética

246
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

dessas pré-compreensões, agora transformadas em


verdadeiras posições; e (3) disponibilizar tais
fundamentações em concepções filosóficas, teóricas,
sociológicas e, especialmente, dogmáticas e
jurisprudenciais para aqueles que desejarem adotá-las, isto
é, para aqueles que optarem por inserir essas posições nas
suas próprias pré-compreensões, desde as quais
interpretam e aplicam o direito positivo num dado sentido,
anteriormente chamado de alternativo. Recapitulando,
avistamos nisso três movimentos consecutivos: (1) a
identificação das pré-compreensões comuns às decisões
alternativas; (2) a elevação dessas pré-compreensões ao
estatuto de posições fundamentadas, especialmente através
do desenvolvimento de seus compromissos com o mínimo
ético; e (3) a efetiva adoção dessas posições em decisões
jurisdicionais e demais aplicações concretizantes.
Delineia-se assim à luz dessas considerações a
emergência de um novo paradigma hermenêutico, hábil a
recompor os compromissos entre uma teoria da
interpretação com vistas à aplicação de escolhas
normativas fundamentadas e uma teoria da validade
enriquecida por uma teoria da eficácia orientada pela
responsabilização conseqüencial respeitante a essas
mesmas escolhas. Tudo isso considerado no horizonte
prático da criação do direito, onde quotidianamente se
operam as negociações das variadas pré-compreensões no
grande mercado da argumentação.

4.2. A pré-compreensão jurídica e a pré-compreensão da


subjetividade do intérprete: limites e relações

247
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Em termos hermenêuticos, a pré-compreensão


é aquele lugar inicial de onde arranca uma interpretação,
um ponto de origem. Apreciar a pré-compreensão na
atividade hermenêutica relacionada a textos jurídicos é algo
complexo, pois parecem aí existir ao menos dois níveis
distintos, embora altamente implicados: chamaremos esses
níveis de pré-compreensão jurídica e de pré-compreensão
da subjetividade do intérprete.
O primeiro desses níveis é denominado de pré-
compreensão jurídica por definir uma interpretação como
especificamente jurídica, em vez de literária, histórica,
sociológica, política. Essa pré-compreensão jurídica
determina, como apontamos acima, não somente a largura
do âmbito da discricionariedade adjudicada aos intérpretes-
aplicadores, mas muitas vezes também sugere algo bem
específico acerca de quais possibilidades interpretativas
hão de ser adotadas. Podemos dessa maneira incluir a
própria jurisprudência como fazendo parte fundamental da
conformação dessa pré-compreensão jurídica. Em muitas
ocasiões, a força vinculativa dessa pré-compreensão
jurídica chega a eximir um intérprete-aplicador de colocar
em funcionamento sua discricionariedade, economizando a
atividade reflexiva presente na autoria de seus próprios
juízos. Contudo, nem sempre isso acontece. E quando essa
economia de discricionariedade não se faz presente, o
intérprete-aplicador passa a interpretar conforme a
oscilação de sua discricionariedade.
O segundo nível foi mencionado como o da
pré-compreensão da subjetividade do intérprete. Essa pré-
compreensão subjetiva é responsável por fazer a
discricionariedade de um aplicador, operando dentro de
um quadro de possibilidades antecipadas na pré-
compreensão jurídica, inclinar-se para certos sentidos

248
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

específicos, e não para outros tantos. Como esse


fenômeno só pode ser capturado por seus resultados, isto
é, pelas próprias interpretações, sua investigação procede
num recuo às fundamentações trazidas ou não às claras
pelo intérprete-aplicador. Também por isso mesmo, o
fenômeno argumentativo, inerente à racionalidade prática
do direito, adquire intensa relevância no âmbito da
pesquisa dessa pré-compreensão subjetiva, seja quando
sobre ela procurar influir, seja quando dela exigir
posicionamentos mais precisamente fundamentados.
Designamos essa pré-compreensão como sendo aquela da
subjetividade do intérprete porque os recuos para aquém dos
resultados interpretativos conduzem inevitavelmente à
figura do intérprete e de sua discricionariedade
movimentada no quadro da moldura normativa.
As pré-compreensões presentes no fenômeno
jurídico-normativo podem ser representadas pela figura a
seguir.

Diagrama das pré-compreensões


e da moldura normativa.

249
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Nessa figura, o círculo exterior representa a


pré-compreensão jurídica, dentro do qual se definem as
dimensões do âmbito discricionário adjudicado às escolhas
interpretativas, ora representado pela figura de um
quadrado (quadro ou moldura das possibilidades
interpretativas). Inscrito no interior desse quadrado, temos
um outro círculo menor, o da pré-compreensão da
subjetividade do intérprete, responsável pelos
deslocamentos e eleições de sua discricionariedade já
dentro dos limites de suas possibilidades de escolha.
O ângulo morto da pré-compreensão da
subjetividade do intérprete manteve sua morbidez
dissimulada pela crença confortável de toda a comunidade
jurídica na cientificidade dos chamados métodos de
interpretação. Na adoção desses métodos, a neutralidade
do órgão aplicador coadunava-se ao desiderato de uma
correlata impessoalidade do intérprete. Ao aplicar um
método, a decisão a qual se chegava tornava-se como que
necessária. E diante do fatalismo das coisas necessárias,
perde totalmente o sentido indagar-se pelas
responsabilidades de fundamentação das opções feitas. As
próprias opções desaparecem enquanto tais. No apogeu do
êxtase cientificista, o clamor por métodos rigorosos,
inspirados nas ciências naturais, transpareceu como um
imperativo da assepsia ideológica guiada pela idéia de
neutralidade. No interior da pré-compreensão da
subjetividade do intérprete deveria reinar um pleno vácuo
axiológico. Caso fossem realizadas investigações
psicanalíticas sobre a perseverança desses métodos nos
dias atuais, provavelmente chegaríamos a sinuosos
esquemas de auto-engano, pelos quais certos julgadores
encontram maneiras de suportarem, perante o tribunal de
suas consciências, o remorso pelas atrocidades resultantes
da combinação entre seus conformismos, comodismos,

250
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

covardias e irresponsabilidades sociais. Absolvidos perante


seus remorsos e tormentos, tais intérpretes desfrutam do
conforto propiciado pelo seguinte credo: não decidem
nada, apenas são levados a decidir. Vigorou assim uma
espécie de cumplicidade entre o discurso jurídico dos
métodos hermenêuticos e seus intérpretes-consumidores.
Embora sejam por diversas ocasiões comunicados sobre as
reais cores do mundo exterior, de muitas maneiras esses
juristas ainda têm preferido permanecer na segurança de
sua caverna platônica. No conforto da sombra dessa
caverna podem seguir professando seu anonimato
irresponsabilizante, talvez com a consciência um pouco
mais tranqüila.
Sucessivas gerações de juristas foram nutridas
por uma cultura narcotizante em relação à atitude dos
intérpretes-aplicadores. Não há nisso, porém, nenhuma
reprovação dirigida exclusivamente aos membros do
judiciário. Falamos de uma cultura partilhada por toda a
comunidade jurídica e talvez até por uma parcela
substancial da representação simbólica da Justiça pela
sociedade. Educaram-se safras inteiras de intérpretes-
aplicadores na ilusão de que pudessem falar apenas de
coisas, sem falarem também de si próprios. Da psicologia à
antropologia, o acúmulo conquistado pelas diversas
ciências humanas permite desde algum tempo denunciar o
caráter ilusório das pretensões de neutralidade axiológica
em qualquer atividade hermenêutica. Todavia, bem
sabemos como o conhecimento jurídico na sua arrogância
tem sido estupidamente refratário à assimilação das
conquistas das outras ciências sociais. Ao invés de ser
trazida às claras, a pré-compreensão da subjetividade dos
intérpretes é varrida para debaixo do tapete. Mesmo assim,
se os juristas permanecem apáticos aos demais saberes
humanísticos, talvez não sejam tão insensíveis à verdade

251
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

dita num poema. Recordemos as Dúvidas Apócrifas de


Marianne Moore, de João Cabral de Melo Neto,36 que tanto
nos dizem a propósito dessa ilusão sobre o ângulo morto
da impessoalidade de um autêntico autor.

Sempre evitei falar de mim,


Falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
Não haverá um falar de mim?

Não haverá nesse pudor


De falar-me uma confissão,
Uma indireta confissão,
Pelo avesso, e sempre impudor?

A coisa de que se falar


Até onde está pura ou impura?
Ou sempre se impõe,
mesmo impuramente,
A quem dela quer falar?

Como saber, se há tanta coisa


De que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
É forma de falar da coisa?

As palavras precisas e preciosas de João Cabral


poderiam muito bem estar tratando de vicissitudes
hermenêuticas: sobre como coisas sociais são ou não
interpretadas como coisas jurídicas na medida em que
alguém fala ou cala sobre elas enquanto tais. Poetas em
muitos sentidos são mais sabidos em matéria de linguagem
que seus primos, os filósofos. Manoel de Barros, outro

252
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

grande poeta da língua portuguesa brasileira, disse certa


vez que as palavras se sujam de nós na viagem.37 Mas, afinal,
quem é esse intérprete cujo falar ou calar tanto importa?
Quem é esse que suja as palavras na viagem do dizer?
Qualquer interpretação é sempre ação de um
sujeito. Podemos chamar esse sujeito de um quem.
Hermeneuticamente investigado, esse quem então significa:
quem interpreta? Todavia, a pergunta por quem é esse
intérprete constitui algo mais que a simples averiguação da
identidade de alguém. É já um indagar pela constituição
das forças históricas e culturais atuando sobre uma
subjetividade exteriorizada em interpretações. Com a
pergunta pelo quem observamos as sutis sinalizações
deixadas como rastros pelas pré-compreensões mais
subjetivas nos seus juízos interpretativos resultantes.
Desde essas sinalizações, retrocedemos à constituição da
pessoalidade específica de um intérprete. Mas essa
pessoalidade não é apenas expressão de uma singularidade.
Naquilo que dela se exterioriza como influência dessas
determinações, essa pessoalidade pode representar um
agenciamento da continuidade dessas mesmas
determinações. Por isso mesmo, a pergunta pelo quem
procura simultaneamente saber algo sobre um intérprete
como resultado e como agente de forças sociais e culturais
aptas a fazer valer certos valores. Isso porque muito dessas
sinalizações deixadas pelas pré-compreensões subjetivas
cristaliza-se de modo vinculante na forma de pré-
compreensões jurídicas.
A pergunta por esse quem deve então
transcender a investigação de uma pura subjetividade. O
acesso direto à formação de uma subjetividade é sempre
algo irrealizável. Qualquer subjetividade tem seus traços
sedimentados desde a combinação contingente de

253
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

complexos dados sociais, psíquicos e históricos.


Evidentemente, jamais se terá um aceso pleno a tais dados,
e talvez nem mesmo possam ser exaustivamente
inventariados. Em razão disso, só teremos um acesso
precário a essa pré-compreensão subjetiva quando
manifestada exteriormente na forma de interpretações. Os
efeitos perceptíveis desses fatores constituintes de
subjetividades, que operam discricionariamente, só podem
ser detectados nos seus produtos: as interpretações. A
busca de algo anterior às interpretações conduz ao
intérprete. E a procura do que lhe conforma conduz a um
universo de forças sociais a serviço do qual ele está ora
como sujeito de sua continuidade, ora como agente de sua
superação. Acompanhando Nietzsche, poderíamos então
dizer tratar-se essa pergunta pelo quem de uma indagação
genealógica: uma consideração sobre o desempenho de um
intérprete operando como garantia de manutenção do
vigor da vigência de uma interpretação. Com essa pergunta
pretendemos saber algo sobre a ordem de valores em que
está mergulhado tal intérprete. A pergunta pelo quem é,
portanto, uma averiguação da formação da pré-
compreensão subjetiva desde a qual se constituem as
continuidades ou as inovações interpretativas toleradas
num domínio discricionário. Nisso tudo, a força histórica
dos valores, das instituições e dos interesses é por diversas
vezes sobredeterminante das histórias de vida dos sujeitos
individualmente considerados. Assim, muitas vezes a pré-
compreensão subjetiva permanece deveras cativa das
determinações oferecidas pela pré-compreensão jurídica,
embora possamos notar, em outras circunstâncias, uma
pré-compreensão subjetiva de índole alternativa,
pretendendo assegurar-se na forma mais intensamente
vinculante da pré-compreensão jurídica. Não pretendemos
solucionar esse estado de coisas. Ambicionamos nesse

254
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

instante tão-somente um diagnóstico razoável sobre como


se elabora essa interessante circularidade.
A apreciação da pré-compreensão subjetiva do
intérprete envolve a sondagem de seus centros pré-
compreensivos. Expliquemos melhor o significado disso.
O centro compreensivo é como um ponto de origem
desde o qual se projeta um raio interpretativo, que define o
largura de espectro do horizonte de possibilidades de
decisões de um intérprete. Em termos gadamerianos, esse
horizonte interpretativo é também atingido, senão mais já
propriamente formado, pela consciência da história dos
efeitos interpretativos pregressos, isto é, dos resultados
interpretativos provenientes de outros que se dedicaram
àquelas questões em momentos anteriores. Mas a
fidelidade a essa história das interpretações pregressas traz
consigo o ônus de um certo continuísmo das tradições.
Importa então explorarmos novas possibilidades
hermenêuticas preocupadas em assumir a tarefa de,
justificadamente, criticar e propor o abandono de certas
tradições rumo à inauguração de outras tantas. Novas
interpretações são sempre fruto de um novo centro
compreensivo conquistado pela reelaboração de uma pré-
compreensão. Deslocar esse centro compreensivo é,
portanto, obter um outro raio projetivo, direcionado a
novos horizontes interpretativos sempre sucessivamente
precários e provisórios. Mas trata-se de uma precariedade e
de uma provisoriedade que não constituem algo negativo.
Qualquer atividade hermenêutica é sempre praticada num
horizonte historicizado. Os elementos materiais de
qualquer norma são historicizados quando à interpretação
aplicadora coloca-se a possibilidade de animar uma norma
em sentidos que abandonem a tradição do modo de sua
vigência para se inaugurarem outras formas de aplicação.
Assim se pode compreender que a história dos efeitos

255
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

interpretativos não opera apenas uma seqüência de


continuidades de sentido unidas pela permanência de uma
tradição, mas também a descontinuidade formada pela
introdução de rupturas e inauguração de novas tradições.
O deslocamento do centro compreensivo é então a
alteração do ponto desde o qual logramos novos
horizontes, propiciando-se com isso a própria
recomposição das possibilidades criativas do intérprete,
traduzidas em novas viabilidades interpretativas e/ou
aplicativas. Novas pré-compreensões subjetivas podem
assim conduzir a novas interpretações, isto é, à
cristalização de novas pré-compreensões jurídicas. E o
impulso desse deslocamento pode ser buscado no
exercício da crítica às fundamentações e na proposição de
novas soluções a velhas questões.
Ao abandonar a concepção silogística de
aplicação normativa, a teoria jurídica contemporânea tem
aceitado a idéia de que interpretar uma norma significa
concretizá-la. Concretizar é produzir uma norma particular
conforme as demandas específicas trazidas à apreciação de
um intérprete competente no contexto de um caso
concreto. Concretizar é então transpor o fosso da
abstração rumo ao solo efetivo das normas mais
particulares operantes no mundo social. É justamente o
que faz o legislador dentro do âmbito discricionário
deixado pela moldura constitucional ou ainda o que faz a
jurisdição dentro do âmbito discricionário da legislação e
também da própria Constituição. Qualquer intérprete,
todavia, só enxerga as demandas trazidas ao seu
conhecimento conforme as lentes pré-compreensivas,
jurídicas e subjetivas, de sua experiência ordinária. Desse
modo, norma e caso comensuram-se e mutuamente
concretizam-se através da experiência hermenêutica
mediada por um intérprete. Esse intérprete constitui-se,

256
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

portanto, na instância sintética onde é operada essa


mediação.
Observando-se a prática decisória corrente,
durante a mediação interpretativa, diversos setores da
subjetividade do intérprete permanecem ocultos sob o
manto de sua discricionariedade. Daí muito do que é
apresentado como resultado interpretativo evitar, ou
simplesmente não permitir, a transparência de sua origem
pré-compreensiva. Procedendo dessa maneira
sistematicamente ocultadora, é natural restarem eludidos
os compromissos justificativos que seriam possivelmente
decorrentes. Nossa posição sobre essa prática é categórica:
tanto a transparência como a legitimidade do sistema
jurídico dependem diretamente da capacidade de os
juristas trazerem à luz do dia essas suas pré-compreensões
na forma de posições discutíveis e fundamentáveis. Apenas
em nome da pura discricionariedade dos intérpretes não
podemos tolerar qualquer subjetividade pré-compreensiva
não desvelada, especialmente porque essa subjetividade
pré-compreensiva não desvelada tem, via de regra,
abrigado preconceitos injustificados e uma sistemática
submissão às sobredeterminações da pré-compreensão
jurídica justamente onde é mantido disponível um grande
terreno à criatividade. Logo, as pré-compreensões
subjetivas devem poder ser manifestadas como verdadeiras
posições. Devem não só poder vir a público, mas também
tornar-se discutíveis pelo público ao qual se destinam. O
território jurídico poderá assim gradualmente abandonar
sua aura kafkiana de austeras incertezas e opacidades
lingüísticas. A exigência social pela transparência das pré-
compreensões integra um programa de desencriptação do
âmbito jurídico, pelo qual ele é reabilitado como mais um
espaço da esfera pública. Desejamos propor isso como
uma medida de legitimação da própria atividade jurídica

257
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

perante toda a sociedade. Nesse ambiente, a sociedade


deve poder se interessar pelas posições daqueles que a
julgam, deve poder ter acesso e algum controle sobre os
modos pelos quais o âmbito jurídico opera sua
reprodução. Isso assim se dá especialmente quando
reinam concepções sobre a aleatoriedade de decisões
mantidas num quadro formal da validade que, na prática,
têm significado a opção eficacial por possibilidades
indiferentes ao reingresso dos excluídos no pacto social.
Encapsulada na preocupação exclusiva com a temática da
validade, a pura reprodução do sistema jurídico torna-se
cega à produção de cada vez mais segregação social.
As posições dos juristas-intérpretes devem ser
desenrustidas no campo jurídico. Com a conquista dessa
transparência agrega-se mais expectatividade e fiabilidade a
qualquer ordem normativa dependente de aspectos
aplicativos-hermenêuticos. Uma posição se expressa
naquilo que é fundamentadamente revelado por alguém e,
sobretudo, naquilo por que alguém pretende e aceita se ver
publicamente reconhecido e responsabilizado. Mas ter uma
posição não é apenas ostentar um ponto de vista, é
também sustentá-lo. Adotar uma posição envolve a
assunção de um encargo argumentativo de fundamentação
e justificação. Essa justificação e essa fundamentação não
podem então ser satisfeitas pela simples adesão a uma
ordem preconceituosa. Logo, diferentes das posições são
os preconceitos. Um preconceito, agora considerado no
sentido negativo das pré-compreensões subjetivas ocultas,
é exatamente o contrário de uma posição: trata-se daquilo
que, justamente por não se revelar ou não se assumir
enquanto posição, só pode ser presumido e conjecturado
segundo os rumores ou efeitos que produz ou deixa como
resultado. Um preconceito estabelece distinções
interpretativas, porém sem arcar com o custo de suas

258
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

justificações. A nossa concepção de hermenêutica reclama


a minuciosa detecção desses preconceitos e sua conversão
em posições das quais possamos exigir justificações. A
transparência e a previsibilidade das razões do espaço
público, especialmente aquele da atividade jurisdicional,
dependem em grande parte dessa progressiva
transformação em posições desses preconceitos calados ou
silenciados no conforto da discricionariedade. Todavia,
não nos contentamos com justificações precárias, como
aquelas apelantes ao sempre-tem-sido-assim. Isso porque é a
eliminação gradual desses preconceitos que assegura a real
redução da insegurança jurídica e o efetivo controle das
expectativas sobre as decisões.
Fazem-se necessários ainda alguns
aclaramentos sobre a diferença entre o preconceito (como
subjetividade ocultada) e o pré-conceito (como pré-
compreensão justificada numa interpretação fundamentada
como assunção de posições). O pré-conceito tem sido
erroneamente confundido com o preconceito discriminatório,
agente do pérfido ocultamento de superstições, suspeitas e
intolerâncias infundadas ou, pior ainda, obscurecedoras de
interesses escusos e de crenças ortodoxas. Naturalmente,
não é nesse sentido, do preconceito discriminatório, que
empregamos a palavra pré-compreensão. A pré-
compreensão não estimula o preconceito, mas seu contrário:
postula sua consumação na forma de posições diáfanas e
racionalmente discutíveis, argumentáveis e, em muitos
casos, até componíveis. Refletir sobre a fundamentação da
ordem pré-compreensiva das interpretações e das próprias
posições torna-se uma tarefa das mais urgentes para o
pensamento jurídico contemporâneo. É uma tarefa tão
delicada que seria absurdo pretender analisá-la
integralmente neste curto espaço.

259
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Fica agora mais fácil compreendermos a razão


desse uso temerário dos preconceitos. Redimensionado à
luz da estereotipação, podemos ver o preconceito
produzindo resultados de homogeneização e de rápida
assimilação da realidade, saciando a ânsia por redução da
diversidade, enquadrando sem paciência as singularidades
em algum esquema rudimentar disponível. O preconceito
dicriminatório assim utilizado opera uma forma prática de
redução do desconhecido ao conhecido. E isso pode
conduzir a graves erros, cometidos tantos na atividade
interpretativa do direito como no dia-a-dia das relações
travadas em nosso convívio. O preconceito pode aplacar a
perplexidade de indivíduos atônitos diante de um mundo
hipercomplexo. Porém, quando renuncia à tarefa de se
fundamentar universalmente, traz consigo o risco do
desprezo às peculiaridades e às diferenças que fazem de
uma coisa ela mesma e não outra. Sugerimos uma reflexão
esclarecedora sobre a distinção entre (1) a fundamentação
da ordem pré-compreensiva traduzida em resultados
interpretativos discutíveis enquanto posições e (2) a
ausência de fundamentação da ordem preconceitual
silenciada no domínio da discricionariedade. A
discricionariedade do intérprete não suporta sem mais a
assimilação da pré-compreensão ao puro preconceito. Tal
assimilação só pode ser consumada mediante a renúncia
aos compromissos fundamentativos, sistematicamente
praticada pela adesão aos métodos de interpretação
supostamente científicos.
As relações entre os temas da pré-
compreensão e do preconceito inauguram novas
perspectivas investigativas tanto para a ética como para a
própria hermenêutica. Se, como afirma Tugendhat, uma
ética é precariamente fundamentada quando puder ser
justificada por igual perante todos, a adoção de qualquer

260
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

preconceito é indício da tomada de uma postura contrária


a essa universalidade. Pois o preconceito é a adoção
sumária de uma discriminação, diferenciação ou até de
uma desigualdade sem a devida justificação dessa exceção
perante os membros de uma comunidade. É em virtude
desse quadro que a tarefa hermenêutica dos intérpretes
jurídicos acaba se tornando tão delicada: seu desempenho
não encerra somente decisões estritamente jurídicas, mas
também tomadas de posições que devem ser essencialmente
éticas, isto é, universalmente justificáveis perante toda a
comunidade de afetados. Eis uma oportunidade para
testarmos os limites da autonomia desses intérpretes diante
da liberdade alheia. Uma circunstância também ideal para
pormos em cheque a vocação para a tolerância de uma
certa ética formalmente proclamada pluralista.
Vistos dessa maneira, os temas do preconceito
e da pré-compreensão deixarão de ser separadamente
concernentes à ética e à hermenêutica, tomadas como
disciplinas distantes. Compreendido como estamos
sugerindo, o tema do pré-conceito deve ser incluído na
ordem do dia das discussões éticas, revelando ser o
convívio social sempre estruturado segundo uma certa
interpretação de si mesmo, como diria Paul Ricoeur, uma
hermenêutica da autocompreensão desde a qual os
intérpretes são erigidos no próprio critério óptimo de
mensuração de seus semelhantes. Mas aí já se estaria dando
um passo à frente: o fenômeno dos intérpretes cuja
própria existência no mundo dialogue com outras. Nesse
campo ainda há de se enfrentar, de forma implacavelmente
radical, o debate sobre o papel das instâncias produtoras
da simbolização cultural, especialmente a família, a mídia e
a educação, responsáveis por definirem os limites mais
amplos de toda nossa auto-pré-compreensão de mundo, desde
a qual o lugar dos outros pode variar imensamente. Uma

261
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

sociologia da eficácia do direito também deve estar muito


atenta a tais questões: o papel simbólico dos operadores
jurídicos vistos desde a perspectiva dos destinatários.
Estariam aí sendo apreciados dois temas cruciais: a
expectativa da sociedade dirigida ao ordenamento jurídico
influindo na formação da auto-pré-compreensão dos
juristas; e a universalidade da ética assumida como
imperativo igualitário na fundamentação das posições
interpretativas adotadas pelos operadores jurídicos.
Retornemos agora ao significado daquela pré-
compreensão especificamente jurídica. Indicamos que
qualquer pré-compreensão na atividade interpretativa do
direito especifica-se objetivamente como jurídica pela sua
circunstância normativa e pelos indivíduos ligados ao
âmbito institucional que tratam de se aproximar de um
preceito normativo à vista da sua história jurisprudencial,
das suas peculiaridades dogmáticas e demais aspectos
originários do mundo do direito. Nesse sentido bastante
amplo, qualificamos como jurídica a pré-compreensão
daquelas pessoas e órgãos que quotidianamente lidam com
o direito e o compreendem institucionalmente como um
processo de criação normativa praticada num quadro de
compromisso com a validade.
Também integra essa pré-compreensão jurídica o
capital formado pelo recolhimento dos vestígios
interpretativos e aplicativos deixados por questões
idênticas ou semelhantes analisadas por quem outrora
também fez parte desse sistema jurídico. Referimos
inclusive constar a jurisprudência no âmbito dessa pré-
compreensão jurídica. Qualquer sistema jurídico é assim
ele mesmo e também a história de suas pré-compreensões
que a todo o momento definem, de fora, o espectro da
discricionariedade no interior da qual pode operar a

262
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

criatividade dos intérpretes. Esse espectro de


discricionariedade é composto pelo espaço deixado àquilo
que não foi completamente definido, de modo taxativo ou
vinculante, pela pré-compreensão jurídica. Dessa maneira,
a variação da discricionariedade do intérprete, conforme
suas pré-compreensões subjetivas, em grande parte é
delimitada, desde o exterior, pela pré-compreensão
jurídica, cuja oclusão opera de fora para dentro como um
obturador fotográfico e pode ser representada pelo
seguinte diagrama:

A constatação desse fenômeno, porém, não


resolveu o problema da chamada oscilação da discricionariedade
dos membros dos órgãos criadores e aplicadores do
direito. Dizer jurídica sua pré-compreensão nesse caso não
foi além de constatar em linguagem hermenêutica uma
espécie de tautologia: que os membros do sistema jurídico
analisam certas questões como membros do sistema
jurídico. Estivemos então empenhados em saber, já no
interior dessa pré-compreensão qualificada como jurídica,

263
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

o que propriamente a faz ser traduzida em resultados


interpretativos tão variáveis. Quisemos considerar o que de
não jurídico determina a sinuosidade das variações no
interior de uma porção da realidade social interpretada
como jurídica, que, ademais, sempre pode efetivamente
existir de modos tão diversos. Tais questões foram
apreciadas por nossa investigação hermenêutica de fundo
genealógico. Suscitamos as vicissitudes dos elementos não
imediatamente jurídicos presentes no interior daquela pré-
compreensão genericamente vigente como jurídica. No
entanto, só nos foi possível chegar a tais elementos pela
via oblíqua dos seus resultados. Ao perseguirmos esses
resultados, isto é, as interpretações, recolhemos os rastros
e vestígios pelos quais sondamos alguma coisa que se
ocultava à medida que a própria interpretação se mostrava.
Chamamos isso que se oculta enquanto se mostra na
interpretação de a pré-compreensão da subjetividade do
intérprete. Dado seu caráter evasivo e dissimulado,
solicitamos que essa pré-compreensão subjetiva se
apresentasse, na medida do possível, como posição
efetivamente assumida. A afinação entre a pré-
compreensão jurídica e a pré-compreensão da
subjetividade do intérprete cumpre ainda a tarefa de
estabelecer vias de comunicação e ressonância entre o
sentimento de justiça do senso comum leigo e aquele dos
operadores do sistema jurídico que, como tal, jamais
deixam ser simultaneamente membros de uma sociedade
regulada por variadas intensidades de sentimentos morais.
Essa afinação entre a pré-compreensão jurídica e a pré-
compreensão da subjetividade do intérprete regula então a
predisposição de um sistema jurídico a produzir decisões
reconhecidas pela generalidade social segundo uma noção
compartilhada de merecimento. A publicidade social dos
diálogos jurídicos, ao debater posições que possam ser

264
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

minimamente compreendidas pela sociedade, assegura


maior transparência àquilo que tanto insiste em se ocultar:
o próprio intérprete. Porém, isso não significa nenhuma
ilusão ética: posições publicamente assumidas não são de
nenhuma maneira completamente imunes contra os efeitos
da mentira e da hipocrisia.

4.3. A hermenêutica da juridicização e a linguagem jurídica

Muitas reflexões sobre a linguagem do direito têm


revelado peculiaridades antes insuspeitas sobre o
fenômeno jurídico. Inúmeras abordagens e variadas
correntes teóricas pretenderam tematizar o direito a partir
de sua dimensão lingüística. Queremos agora sugerir a
percepção da própria juridicização como um evento de
fundo lingüístico, porém não de um ponto de vista
exclusivamente semiológico, mas também hermenêutico.
Na sua metódica estruturante, Friedrich Müller
introduz uma distinção entre texto da norma (seu
componente literal) e norma de decisão (o critério construído
e efetivamente aplicado a um caso).38 Ainda segundo
Müller, a interpretação jurídico-aplicadora inclui na
produção dessa norma de decisão uma determinada
porção da realidade social, o chamado âmbito da norma. Um
dos problemas críticos da interpretação passa a ser o dessa
determinada porção de realidade social a ser ponderada
pelo intérprete na produção de sua norma de decisão. O
âmbito da norma deve assim ser especificado na e pela
norma de decisão. Esse problema adquire cores ainda mais
polêmicas porque a existência prévia do âmbito da norma
em algum texto normativo só pode se dar na forma

265
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

incompleta de uma menção ou de uma referência por


palavras. Logo, o selecionamento de um âmbito social
específico, referido por uma norma, depende mais do
intérprete do que propriamente do texto normativo.
A determinação das dimensões dessa porção de
realidade social, bem como a qualidade de sua composição,
não estão apenas a cargo dos critérios daquela pré-
compreensão estritamente jurídica, mas também da
própria subjetividade do intérprete como um homem
marcado por diversas experiências. Se a atividade
interpretativa é dada na relação entre o texto normativo, a
norma de decisão e o âmbito normativo, a instância dessa
síntese continua sendo o próprio intérprete. Como jurista,
este intérprete jamais deixa de permanecer também sujeito
a experiências não-jurídicas. O desprezo a essas
experiências coadunou-se aos métodos cientificistas para
ocultar a pré-compreensão da subjetividade do intérprete e
para impedi-la de vir a público na forma de posições
transparentes. Daí a mediação entre mundo jurídico e não
jurídico ter se tornado tão nebulosa.
Mas progressivamente o credo nesses métodos vai
sendo abrandado. Mesmo o método gramatical ou
filológico, tão desprezado por sua singeleza, encerra hoje
uma complexidade enorme, praticamente impensável no
momento de sua proposição. O advento da semiologia e
das análises lingüísticas apontou a linguagem configurada
como um complexo sistema de signos. Alguns juristas
mais atentos a essas novas aquisições perceberam o quanto
a elasticidade das dimensões dessa moldura de
possibilidades aplicativas dependia do aspecto gramatical,
isto é, do simples texto da norma. Mas isso outrora visto
como um simples texto foi questionado desde as
perspectivas sintáticas, semânticas e pragmáticas. O texto

266
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

passou a ser explorado em seu contexto, nas suas


referibilidades e nos próprios usos e usuários que dele se
serviam. Recentemente, com o advento de diversas teorias
lingüísticas sobre o direito, a administração do consumo
interno da linguagem jurídica, e sua tradutibilidade para
palavras aproximadas empregadas pelo senso comum
leigo, tornou o aspecto gramatical da interpretação
infinitamente mais delicado. Impôs-se, de modo
relativamente pacífico, a compreensão generalizada do
direito como uma linguagem especial, aquela falada no
mundo jurídico. A gramática desse mundo lingüisticizado
de uma maneira tão específica não poderia continuar a ser
a mesma do mundo das coisas não jurídicas, sob pena de
se comprometer essa própria distinção útil à não-
dissolução do sistema jurídico. Descobriu-se aí, dito no
jargão sistêmico, que a própria autonomia do direito, em
grande medida, dependia do cuidado de seu código
comunicativo. Uma detalhada especialização técnica
estabeleceu-se pela capilarização da dogmática jurídica em
verdadeiros alvéolos. E assim o dado gramatical sofreu
outro revigoramento. Tornaram-se decisivas as diferenças
dialetais surgidas em ilhas de peculiaridades em meio às
aspirações de uniformidade canônica de um discurso
jurídico outrora mantido coeso por uma dogmática geral.
Assim a linguagem do direito passa a incorporar as
diferenças dialetais na vastidão de um mundo jurídico cada
vez mais lingüisticizado por regiões. Porém, quanto mais
cresce e se especifica a linguagem jurídica, mais opaca se
torna a pré-compreensão jurídica para quem dela não
consegue partilhar. Incrementa-se a incomunicabilidade
entre os iniciados e os profanos. Mais largo torna-se o
fosso do castelo kafkiano. Todavia, simultaneamente a
isso, mais sofisticadas se tornam as decisões jurisdicionais

267
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

e mais exatos os empregos terminológicos administrados


pelas dogmáticas especializadas.
Por essa situação paradoxal, a busca de uma
nova comunicabilidade para o sentido jurídico é um
imperativo da transparência do espaço público no qual o
direito acontece. Esse imperativo, entretanto, esbarra
frontalmente nos inegáveis benefícios de economia
argumentativa e precisão descritiva proporcionados por
essa linguagem na rotina decisória do direito. Constituiria
uma leviandade supormos que apenas a linguagem jurídica
teria coisas a aprender com o sentido socialmente
ordinário, empregado em contextos inespecíficos, desde
pré-compreensões não-jurídicas. A maior
comunicabilidade do sentido jurídico dificilmente poderá
encontrar alternativas plausíveis no caminho da
simplificação da linguagem jurídica. Trata-se, por outro
lado, de se promover o acesso de segmentos não iniciados
a alguns de seus cânones. A formação da cidadania impõe
medidas de alfabetização jurídica com vistas ao incremento
de sua participatividade para que esta não se torne refém
da obscuridade do discurso jurídico. De várias maneiras
isso já vem acontecendo. A linguagem especializada do
direito muitas vezes impõe ao senso comum leigo uma
espécie de pidgin precário, de base jurídica, pelo qual certas
questões técnicas podem ser sempre mais bem
comunicadas. Para os lingüistas, um pidgin constitui-se por
um código artificial, sem falantes nativos, utilizado como
segunda língua, com a finalidade de facilitar a comunicação
e o contato entre grupos falantes de línguas diferentes. É
como quando um indivíduo consulta um advogado a fim
de saber se pode fazer “usucampeão” do terreno onde
mora. O senso comum torna-se permeável ao sentido
jurídico que invade o quotidiano dos não-membros do
sistema legal. Mas esse contato da pré-compreensão

268
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

jurídica com o meio do senso comum leigo pode ocorrer


de duas maneiras bem distintas: ou para impor-lhe o
poder de um saber sobre uma suposta ignorância, ou para
torná-lo mais consciente de seus direitos.
Essas observações preliminares sobre a
linguagem e o direito indicam como a distinção
operacional entre o mundo jurídico e o mundo social não
pode ser estabelecida sem alguns acautelamentos. Tal
distinção, procedida do ponto de vista interior à pré-
compreensão jurídica, reclama a concessão a alguns
postulados. O primeiro deles é o de que nem tudo que é
social torna-se imediatamente relevante para o ponto de
vista jurídico. Deve existir então uma espécie de
membrana porosa selecionando o conjunto de coisas
ingressáveis na cognição especificamente jurídica. O filtro
dessa membrana é tradicionalmente apresentado como
sendo a própria incidência normativa, tal como essa idéia é
elaborada por teorias como a do fato jurídico. Essa
incidência provocaria uma ressignificação de determinados
eventos sociais como eventos a serem considerados como
juridicamente relevantes.
A ressignificação jurídica, produzida pelo
fenômeno da incidência normativa, propõe uma
fenomenologia dos fatos sociais consideráveis enquanto
fatos jurídicos ou enquanto fatos de algum modo
juridicamente relevantes para uma cognição interessada em
adotar a pré-compreensão do ponto de vista interno do
direito; e não apenas a de uma angulação política, histórica
ou sociológica. Em geral, é isso que se aceita quando se
fala, na Teoria Geral do Direito, de incidência normativa.
No caso da incidência constitucional, as coisas não se
passariam de modo muito diferente. Entretanto, a teoria da
incidência, pela qual parece se definir o espectro social

269
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

passível de ser abrangido pelo domínio normativo, não


chega (e nem seria razoável exigir-lhe que pretendesse
chegar) a oferecer resposta a algumas perguntas essenciais
numa análise agora mais rigorosa: como é que essa
incidência afinal incide? Como efetivamente ela se dá?
Meditar sobre essa questão de fundo é proveitoso para
avaliarmos o real alcance da hermenêutica para a apreensão
do fenômeno jurídico.
Aceitando a teoria da incidência como
resposta satisfatória à fenomenologia da juridicização,
poucos autores chegam a se dar conta de que aí se parte
mesmo de uma metáfora, mais precisamente de uma
metáfora colhida da física óptica. Na sua origem latina, o
verbo incidir forma-se pelas partículas in (em) e cadere (cair).
A incidência jurídica é assim uma distinção do mundo do
direito que cai em um mundo social. Cair em supõe sempre
antes estar sobre, acima de. A partir dessa metáfora, o
direito estaria situado acima do mundo social, sobre o qual
caem suas distinções: as incidências normativas. Desde lá
de cima, partem as incidências de seus feixes luminosos
colorindo a realidade social com as nuances do mundo
jurídico. Por trás dessa metáfora óptica da incidência, a
juridicização disponibiliza-nos uma ressignificação do
mundo social, isto é, uma reconstrução particular do
sentido de certas ações ou eventos segundo uma ordem
especial de significatividade, percebida por uma dada pré-
compreensão, a dos juristas. A metáfora óptica da
incidência encerra, portanto, uma operação de fundo
lingüístico, uma ressignificação. A diferença entre o
mundo social e o mundo jurídico residiria na atribuição e
na percepção de uma significatividade normativa
específica. Entretanto, a decisão exata sobre quais sejam
essas certas ações sobre as quais se poderá dizer serem
justamente aquelas juridicamente relevantes é algo que não

270
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

ocorre mecanicamente por uma pura e simples iluminação


advinda dos píncaros do mundo jurídico, exceto se já
estivermos satisfeitos com o simplismo figurativo da
metáfora da incidência aí invocada. Portanto, se a
incidência normativa não incide rigorosamente como um
feixe luminoso, a atividade de tratamento ressignificante
do sentido social dessas ações, abstratamente mencionadas
no texto das normas, deve ficar a cargo de algumas pessoas
ou, mais precisamente, de alguns órgãos especiais capazes
de apreciar e reelaborar significados. Esses órgãos especiais
são formados por integrantes competentes do sistema
jurídico, cuja atividade consiste em selecionar, segundo
autorizações normativas, certos fatos sociais a serem
clivados como juridicamente relevantes.
Concebida hermeneuticamente, a relação
circular de juridicização estabelecida entre texto normativo
e contexto social não é procedida de qualquer texto para
qualquer contexto. Nem por qualquer intérprete. Um texto
normativo só admite ser posto em comunicação com uma
certa gama de possibilidades referenciais. Em geral, essas
possibilidades referenciais são razoavelmente pré-
delimitadas pelo elenco de pessoas ou órgãos autorizados a
delas tratar (delimitação pela distribuição de tarefas fixadas
pela jurisdição ou pela competência) ou pelos próprios
conteúdos definidos na história aplicativa de uma norma
que, na ausência de univocidade, sempre restringem um
conjunto de realizações potenciais. Novamente fica
bastante nítida a percepção de que o real cotejamento
entre texto e contexto normativos jamais poderia renunciar
à instância mediadora do intérprete e de suas pré-
compreensões jurídica e subjetiva. No curso dessa
mediação acontece o processo de concretização das
normas. Nesse processo, a partir do prévio texto
normativo dado pelo legislador ou mesmo pela jurisdição

271
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

pregressa, o jurista-intérprete elege certas diretrizes e


produz uma norma jurídica particular reportada a
determinado contexto social por ele mesmo especificado.
Contudo, nem a eleição dessas diretrizes, cujo
norte redunda no sentido material da norma, nem o
contexto social, apto a ser incluído na determinação do
domínio normativo, já se encontram integralmente
supostos nos textos ofertados pelos legisladores ou
tribunais. A norma opera como suporte de autorização
para o recorte na realidade social considerada relevante e
para o exercício controlável de uma certa
discricionariedade das preferências. Nesse sentido, os
desdobramentos propostos desde a fenomenologia
hermenêutica fazem aparecer, de modo bem mais nítido, o
dado da participação e da responsabilidade do intérprete-
aplicador na juridicização. A juridicização não é aí mais
vista como resultado de uma incidência conformada com
seu simplismo metafórico. Essa juridicização já se elabora
como um evento normatizador da realidade social, no qual
influi a subjetividade do intérprete estendendo-se em
preferências de diretrizes axiodeônticas e na seleção dos
fatos sociais a serem incluídos no domínio de referência
normativa.
Aquilo que simplificadamente era chamado de
incidência revela-se-nos agora como um processo muito
mais complexo, de raiz hermenêutica. Pela teoria da
incidência, o mundo jurídico é submetido a uma semântica
mecanicista, sendo absorvido em uma ordem fisicalista de
fenômenos onde não resta espaço algum ao homem, senão
o de receber passivamente o banho da luz que o atinge
desde as alturas do direito. Apresentando-se agora a
juridicização como um fenômeno lingüístico-
hermenêutico, o mundo jurídico passa a ser percebido

272
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

como um universo de sentido específico, vale dizer, como


mais um problema da condição humana. Nesse universo
humano figura a atividade de escolha pelo legislador de
certas palavras com o intuito de que produzam na
realidade social certos efeitos. Porém, a escolha pelo
legislador dessas certas palavras e mesmo desses certos efeitos
não é em muitos casos diretamente operativa na realidade
social. A relação entre as palavras e os efeitos produzidos
na realidade social depende da mediação interpretativo-
concretizante feita pelo sistema jurídico-aplicativo ao
especificar o universo de referibilidade dessas palavras
atinentes a certas coisas. Mantém-se assim em permanente
negociação o compromisso precário estabelecido entre as
palavras escolhidas pelo legislador e as coisas às quais
efetivamente elas se referem, determinadas na e pela
atividade de interpretação aplicadora. A mediação desse
compromisso entre as palavras e as coisas modula o tom
da orquestração do sentido normativo.
A teoria penal dos tipos trata da descrição
abstrata de eventos delituosos considerados como tais
mediante um juízo legislativo de desvalor sobre o
desempenho de determinadas condutas. O que é tido
como não devendo ser fica plasmado na descrição do que
é, para, quando seja, poder ser conectado a uma sanção.
Porém, nesse processo nada ocorre de modo automático.
Os operadores do sistema penal podem testemunhar a
respeito dessa hermenêutica da juridicização. A seleção dos
objetos de referência dos elementos constitutivos dos tipos
penais (especialmente os elementos normativos e
subjetivos) determina, às vezes de modo bastante
idiossincrático, as formas efetivas de ingresso ou não na
juridicização. A conclusão de que uma conduta realiza um
tipo abstrato, ou cai sob sua zona de incidência, não
constitui uma atividade técnica, isenta de interpretação.

273
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Qualquer juridicização criminalizante obedece a uma


ordem hermenêutica de fatores. Na interpretação pelo
jurista-aplicador da ação que realiza ou consuma aquela
descrição normativa de condutas tipificadas, estão
presentes (1) juízos pré-compreensivos sobre sua
faticidade (sobre como se dá ou não uma ocorrência com
correspondência típico-jurídica) mas também (2) juízos
pré-compreensivos relacionados à intensidade do desvalor
pelo qual se considera como delituosa aquela ação. O juízo
pré-compreensivo relacionado ao desvalor da conduta
investiga as razões pelas quais ela é considerada réproba,
como não devendo ser. Geralmente, tais razões
perscrutam uma fundamentação ética ou quiçá política
sobre o desvalor de certas ações. E seguramente uma
discrepância entre o ponto de vista fundamentativo
adotado pelo jurista-aplicador e a clivagem desvalorizante
determinada pelo legislador pode influir diretamente no
modo como se elaboram aqueles outros juízos pré-
compreensivos sobre a faticidade da ocorrência da
conduta. A sobrevaloração pelo jurista-aplicador do
desvalor investido pelo legislador em uma conduta
delituosa pode repercutir na freqüência de aplicação de
uma norma a um espectro elástico de possibilidades sociais
tipificáveis. Daí a variabilidade hermenêutica presente na
interpretação da descrição dos eventos delituosos e seu
reflexo perceptível como flutuação seletiva nas
concretizações criminalizantes. Seria razoável suscitar
nesse instante o argumento de que aos juízes não é
permitido o juízo de valor sobre as coisas criminalizáveis,
pois isso configuraria uma exorbitância de suas funções e
mesmo uma concorrência imprópria com a atividade
legislativa. Mas também seria igualmente razoável
lembrarmos que esse juízo de valor, emitido pelo jurista-
aplicador, sobre os desvalores eleitos para figurar nas

274
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

normas proibitivas pelo legislador não se apresenta com a


contundência de uma declaração frontal de discordância.
As coisas aí se passam de modo bem mais sutil. E é no
terreno dessa sutileza que a pré-compreensão da
subjetividade dos intérpretes produz uma grande diferença
na alteração cumulativa dos detalhes ao cabo
determinantes permitidos pela discricionariedade e pela
abstração da norma geral. A relação entre descrição
normativa abstrata e discrição concretizante abre um
generoso espaço para as investigações hermenêuticas.
Mesmo no interior de sua discricionariedade, sem atingir as
raias do explícito descumprimento da lei, pode o jurista-
aplicador frustrar, aumentar ou reduzir imensamente a
pretensão criminalizante do legislador ao divergir deste
quanto aos fundamentos (motivos ou razões), os
conteúdos (o quê propriamente), ou as intensidades (a
gravidade) de um juízo de desvalor respeitante a uma
conduta. De mais a mais, no atual quadro de
intransparência a atuação discordante dos juristas-
aplicadores não precisa chegar a assumir abertamente o
tom de uma contestação ao legislador ou de um dissenso
filosófico. Tem bastado ao jurista-aplicador aderir ao
conforto do revestimento de suas decisões pelos métodos
de interpretação, sendo também suficiente sua submissão
às políticas criminalizantes subterrâneas, traçadas bem
longe dos espaços legislativos, no quotidiano das diversas
agências com poder seletivo do sistema penal.
Nem a atividade hermenêutica nem aquela
outra, a argumentativa, cingem-se exclusivamente à
semântica dos textos, apesar de dependerem deles
intensamente. Um pouco mais afastada da semântica
textual, existe toda uma hermenêutica da juridicização pela
qual eventos sociais são significativamente interpretados
como jurídicos a partir de narrativas contextuais e

275
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

remissões a acontecimentos. A intensa atividade


argumentativa desempenhada nesse território esforça-se
por fazer um evento cair sob a incidência de uma ou outra
norma, cujas conseqüências podem ser mais ou menos
gravosas. Aí não é a direção do feixe luminoso da
juridicização que se desloca, mas as próprias coisas sobre
as quais ele deita suas cores. Nessa hermenêutica da
juridicização os recursos aos textos são, a princípio,
escassos. É tida como clara a norma em seu texto, isto é, a
pré-compreensão sobre as coisas que lhe podem cair sob o
âmbito de significação é relativamente estabelecida,
podendo essa norma ser interpretada como clara.
Importante torna-se então a apresentação dessas coisas
juridicizáveis num dado contexto fático, conforme uma
versão específica que lhes torne passível de receber ou não
uma determinada significação normativa. Essas versões
nada são além de interpretações narrativas de fatos ou
acontecimentos sociais. Os interesses guiam o rumo dessas
versões. Elas podem então ter propósitos juridicizantes ou
desjuridicizantes: podem ser narradas para manter um
evento social no âmbito do direito, ou para sugerir sua
total irrelevância e conseqüente exclusão. Porém, à real
verdade dos fatos narrados não se tem jamais um perfeito
acesso retrospectivo. No mundo artificial do processo, a
verdade dos fatos é substituída por essas versões,
comumente forjadas de uma amálgama da qual fazem
parte coisas tão diversas como provas, argumentos e
interesses. Dessa mistura heterogênea nascem tais versões
como interpretações, na maioria das vezes bastante
tendenciosas. A militância de muitos advogados,
especialmente os penalistas, na construção hermenêutica e
retórica dessas versões torna-se freqüentemente
espetacular. Mas o caráter espetacular dessas atuações não
reside na modalidade dos malabarismos semânticos

276
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

praticados com palavras da lei, mas sim na perícia


despendida no contorcionismo dos fatos e no ilusionismo
com os contextos.
Em meio à disputa argumentativa entre essas
diferentes versões, o órgão julgador vai calibrando sua pré-
compreensão, inicialmente imparcial. No curso desse
processo, o intérprete-julgador vai progressivamente
tendendo a aderir às teses de uma das partes. Nesse
sentido, o ato de julgar desenha o atender a uma
parcialização progressiva: convencer-se das teses de uma
das partes e adotá-la como interpretação/aplicação,
reservando-se ainda o direito aos retoques feitos por
algumas composições. Isso pode ocorrer na sentença,
embora também em todos os atos preliminares envolvidos
na determinação da processabilidade de alguém.
O freqüente juízo interpretativo que enuncia a
violação de uma norma não pode de modo algum ser
convertido em uma singela constatação técnica. Declarar
que uma norma foi violada não é o mesmo que dizer de
um automóvel que ele é azul. Não é da descrição
verdadeira e verificável de um fato bruto que se trata, mas
sim de uma interpretação envolvendo a apreciação do
sentido de uma ação humana. Qualquer interpretação de
uma ação humana como violação jurídico-normativa afasta
preliminarmente do quadro de possibilidades significativas
uma série de outras tantas possibilidades que mais tarde
poderão retornar à consideração pela via argumentativa de
uma defesa. Quando algum réu é denunciado ou
pronunciado, a interpretação de alguém juridicamente
competente já o pré-compreendeu como criminoso.
Reverter essa pré-compreensão provisória no seu
contrário, ou seja, na forma de uma posição absolutória é
o intento da argumentação de defesa. O processamento e

277
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

o julgamento de alguém hermeneuticamente então


significam: interpretou-se uma norma e um dado contexto
fático a fim de se juridicizar uma situação social como
violação ou transgressão.
Mas essa aludida pré-compreensão
criminalizante, responsável pela determinação da
processabilidade de um indivíduo, não ocorre pouco a
pouco pelos sucessivos casos concretos semelhantes que
vão aparecendo. A índole dessa pré-compreensão
criminalizante ordinariamente busca subsídios em
propósitos bastante obscuros e até anônimos, bem
distantes das abstratas elaborações legislativas com seus
delírios ou encenações políticas a respeito do controle
social. Também é altamente discricionário o juízo sobre
quais pautas seletivas serão as mais intensamente
executadas no recrutamento dos contingentes suscetíveis
de processamento jurídico-penal. Essas pautas seletivas são
as responsáveis pelos rumos reais do sistema penal. Não
representam apenas a concreção da legislação, mas
também a eleição de qual legislação, dentre um amplo rol,
será aquela mais enfaticamente exigida de um determinado
modo. Contudo, a discricionariedade na adoção ou na
adesão a essas pautas seletivas mantém-se encriptada nas
linhas geralmente invisíveis das políticas criminalizantes e
imunizantes, pelas quais um sistema penal opera como um
fragmento mantido a serviço dos interesses de um sistema
maior de controle social. Esse é o mesmo sistema penal
que dilui no anonimato coletivo sua própria
irresponsabilidade e sua imensa contribuição para a
retroalimentação da exclusão social, especialmente nos
países periféricos.
Grande parte das interpretações criminalizantes de
uma mesma ocorrência social poderia ser interpretada ou

278
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

pré-compreendida como diversas outras possibilidades de


juridicizações, cujas conseqüências fossem exoneratórias,
tidas como ilícitas em outros campos não penais, ou
mesmo explicitamente indiferentes para o direito
(interpretação desjuridicizante). Apresentado desse modo
hermenêutico, um julgamento começa então muito antes
do momento tradicionalmente imaginado. A força desde
então exigida para se demover uma pré-compreensão
criminalizante passa a ser descomunal. Ainda mais se
agregarmos ao ímpeto preconceituoso de muitas dessas
pré-compreensões criminalizantes a impossibilidade de
acesso de muitos réus a boas defesas, como vem há muito
acontecendo com a maioria da população de apenados no
Brasil. O julgamento não é apenas um ritual, embora ele
culmine em uma ritualística na qual as possibilidades de
alteração de seu desfecho dependem mais de um
desempenho cênico do que de uma igualdade real entre
defesa e acusação. Por isso mesmo, os ditos bons
advogados criminais são justamente aqueles que a todo
custo evitam o início de um processo: tratam de apresentar
versões segundo as quais uma ocorrência pode ser
interpretada como um grande mal-entendido, como algo
indiferente ao direito. A honestidade e a candura desses
cavalheiros muito bem formados e mellhor ainda
remunerados têm estado a serviço dos escroques
dilapidadores dos recursos públicos em todos os níveis. O
maior volume de atividade desses cavalheiros não é na
defesa de transgressores corriqueiros, mas daqueles
criminosos cujos atentados atingem os recursos
responsáveis pela viabilização e manutenção do mínimo
ético em nossa sociedade. São esses muitos dos recursos
materiais que faltam no momento de implementação das
políticas públicas de asseguramento da dignidade mínima a
amplos segmentos sociais. E são justamente esses

279
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

segmentos sociais, aos quais se sonega os recursos


necessários à dignidade material pilhados pela corrupção,
aqueles a que só têm restado como alternativa o crime de
subsistência pelo qual são ainda amiúde reconduzidos à
sociedade pela sua porta dos fundos, os presídios. Nesses
verdadeiros zoológicos da estigmatização são colecionadas
em gaiolas imundas as várias espécies dos ditos
anticidadãos. Enquanto isso, a caterva de parasitas e
usurpadores passeia por Miami ou bebe champanhe por
detrás dos muros e cercas eletrônicas de seus palacetes,
celebrando o sucesso de defesas patrocinadas com o
produto do assalto aos cofres públicos. Ao atingirem o
mínimo ético de possibilitação de ingresso dos excluídos
no pacto social, esses se tornam os verdadeiros crimes
hediondos de nosso ordenamento jurídico. A despeito da
baixa ênfase das pautas seletivas relacionadas a esses
crimes, o elevado potencial lesivo dessas práticas
transgressivas alcança a raiz da inserção dos indivíduos
desfavorecidos na comunhão do sentido ético subjacente
às ações e relações sociais. E, por óbvio, sem a subjacência
desse sentido ético, o sentido jurídico resta cada vez mais
obstruído na elaboração da representação social
cooperativa desses indivíduos.

De mais a mais, um senso comum intensamente


conservador, aliado a um sentimento de justiça compelido
pela idéia primitiva de vindita na reação penal, acumplicia-
se com a sistemática privação de dignidade da pessoa
humana praticada no quotidiano dos presídios brasileiros.
Apenados brasileiros são recolhidos a recintos nos quais
simultânea e paradoxalmente o direito culmina sua
vigência enquanto aplicação e cessa sua outra vigência
enquanto garantia efetiva de direitos subjetivos. Nesses
presídios, qualquer condenação judicial a uma pena

280
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

privativa de liberdade é rapidamente comutada, pela via


burocrático-administrativa, para uma verdadeira pena
privativa de dignidade, infligida com a complacência do poder
judiciário e dos segmentos dirigentes que silenciosamente
atendem àquele lastimável clamor por vingança das elites
atingidas em seus luxos e privilégios, geralmente
indiferentes às causas estruturais da criminalidade com as
quais via de regra ainda colaboram. Sequiosos por
vingança quando têm seus automóveis riscados e roubados
ou seus filhos tornados dependentes de tóxicos ou mesmo
seqüestrados, esses segmentos sociais elitistas e
conservadores exigem cinicamente de juízes e de
representantes políticos o investimento da máxima
severidade das energias heterônomas do sistema criminal:
penas maiores, condenações mais veementes, construção
de mais presídios, aparelhamento das polícias urbanas com
equipamentos bélicos, diminuição da idade mínima da
imputabilidade penal, prisionização velada ou ostensiva das
instituições corretivas para crianças e adolescentes. Cegos
pela cólera de um hiperindividualismo narcíseo ferido no
seu imenso repertório de futilidades, esses segmentos
conservadores e seus dirigentes políticos não suspeitam
estar colaborando com a prosperidade de um ciclo
retroalimentador de exclusão social que inexoravelmente
lhes atinge pelas costas, como no arremesso vigoroso e
displicente de um certo objeto que não se suspeitava ser
um preciso bumerangue.

Como dissemos, o processo e o julgamento


são as primeiras partes visíveis da criminalização operada
num âmbito pré-compreensivo bastante prévio. Concebida
a juridicização como um fenômeno hermenêutico, torna-se
insuperavelmente conflituoso o compromisso estabelecido
entre essas certas palavras escolhidas pelo legislador (na

281
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

descrição da situação ou da coisa a ser juridicizada) e os


sentidos específicos atribuídos pelo intérprete a essas
certas palavras (na efetivação dessa juridicização). Essa
conflituosidade, entretanto, não compõe nenhuma
deformação da experiência jurídica, mas antes um traço
imanente de sua fenomenologia hermenêutica. Essa
conflituosidade natural decorre ainda do fato de que o
compromisso entre as palavras de um (o legislador) e as
especificações de sentido e referência de outro (o órgão
aplicador) pode ter seu cumprimento reivindicado à luz de
dois estatutos bastante diferentes. O primeiro desses
estatutos é o da linguagem política e ordinária, e apresenta-
se mais vinculado à perspectiva do legislador, sugerindo
análises orientadas pelo sentido comum das palavras e pelo
filtro político-utilitário dos interesses. O segundo desses
estatutos é o da linguagem dogmática e técnica dos juristas,
e demanda análises filiadas ao compromisso semântico da
pré-compreensão jurídica no uso de certas expressões e
conceitos cuja fidelidade é reclamada pela gramática da
validade.
Na tensão dessa mediação entre as palavras
ditas e as coisas escolhidas para figurá-las, a hermenêutica
constitucional opera de modo ainda mais escrupuloso, pois
em sua sede ambos os estatutos são freqüentemente
invocados: o político-utilitário e o jurídico-dogmático. Isso
significa que a pré-compreensão jurídica e a da
subjetividade dos intérpretes na jurisdição constitucional
incluem dados explicitamente políticos. Desse modo, a
jurisdição constitucional exerce uma missão crucial: dizer à
sociedade, à administração, ao legislador e aos juristas-
aplicadores o que se pode determinar normativamente a
essa mesma sociedade pelos órgãos criadores/aplicadores
de direito. Esse o que responde ao principal compromisso
da pré-compreensão jurídica: o da validade enquanto

282
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

submissão hierarquicamente controlável à legalidade e à


constitucionalidade. Na estimativa desse o que se
determinam tanto a forma procedimentalmente adequada
como alguns conteúdos para o exercício das práticas
legislativas, jurisdicionais e administrativas de produção do
direito. A jurisdição constitucional controla assim a
observância desse compromisso e fixa, em último caso, o
alcance do raio daquele círculo da pré-compreensão
jurídica, pelo qual se determinam as possibilidades,
maiores ou menores, da discricionariedade em cujo interior
se movimentam os órgãos criadores/aplicadores de direito.
Mas, como veremos a seguir, tampouco essa jurisdição
constitucional pode contar com critérios totalmente
objetivos buscados apenas no texto de uma Constituição.

4.4. A interpretação conforme a Constituição e a Constituição como


parâmetro interpretável

Abordaremos nesse momento algumas


peculiaridades a respeito da discricionariedade do
intérprete, e de sua pré-compreensão subjetiva, tornadas
mais nítidas na sistemática da chamada interpretação
conforme a Constituição. Ao contrário do que a
nomenclatura parece sugerir, a interpretação conforme a
Constituição não é apenas mais um dentre os vários itens
do menu das técnicas hermenêuticas disponibilizadas
como métodos aos operadores jurídicos. Antes mesmo da
Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF)
assinalava situar-se o princípio da interpretação conforme
a Constituição no âmbito do controle da
constitucionalidade das leis. Trata-se, portanto, de um

283
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

instrumento hábil a promover a interdição e o


direcionamento eficacial da forma de vigência de normas
potencialmente colidentes com preceitos da Carta
Fundamental.
Nessa imbricação admitida entre teoria da
validade e procedimento hermenêutico, o STF asseverou
não lhe ser cabida a função de legislador positivo.
Admitiu-se a possibilidade de uma corte declarar a
inconstitucionalidade de uma lei, embora não se aceitasse
sua ação positiva criadora de um texto de norma jurídica
com sentido absolutamente diverso daquele estatuído pelo
legislador. A interpretação conforme a constituição
apresenta-se então como um modo de harmonização
conteudística de uma norma infraconstitucional com a
Constituição. Revela-se como um procedimento orientado
à economia da inconstitucionalização e à preservação da
vigência de uma regra problemática.
Mas esse procedimento hermenêutico não pode
ser confundido com a simples integração de uma lei
deficiente ou lacunosa. Além de se prestar ao
solucionamento de graves problemas práticos do
ordenamento jurídico como as incômodas antinomias, o
princípio da interpretação conforme a Constituição
também oferece uma espécie de lenitivo às expectativas
por segurança jurídica. Esse procedimento traz sempre a
esperança de que em última instância os valores figurantes
nos conteúdos das normas possam e devam ajustar-se
àqueles de antemão já fixados pela própria Constituição.
Sendo assim, a interpretação conforme a Constituição
afigurar-se-ia como uma forma prática de garantia de
realização desse ajuste, principalmente na sua dimensão
estático-conteudística. Crê-se, dessa forma, que o moderno
princípio da interpretação das leis conforme a Constituição

284
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

poderia livrar a sociedade do escândalo da potencial


irracionalidade de um poder discricionário instalado no
pináculo da arquitetura institucional. Isso porque, afinal de
contas, segundo tal princípio, as pautas técnicas e
axiológicas pelas quais as normas infraconstitucionais
teriam suas validades aferidas já se encontrariam
previamente arroladas na Constituição. A Constituição
garantiria a máxima objetividade contra o risco de uma
discricionariedade coroada pela irrecorribilidade.
De outro lado, esse procedimento alicia uma
grande simpatia pelo fato de, a princípio, não exigir
maiores esforços investigativos ou mesmo elucubrações
dogmáticas mais sofisticadas. Sua aplicação procede de um
diagnóstico inicial, elaborado por proposições jurídicas, de
um conflito axiodeôntico (de valores e sentidos de dever ser)
seguido do julgamento harmonizante de uma norma em
relação a outra que, sendo constitucional (paradigmática ou
paramétrica), poderia hierarquicamente cancelar a validade
daquela que com ela colidisse. Mas, como veremos, tal
sensação de confiança depositada nos valores da
Constituição pode, às vezes, redundar numa quimera ou
numa falsa ilusão de segurança.
O constitucionalismo moderno produziu
cartas com alto índice de diversificação axiológica pela via
abstrata dos princípios positivados. Sucederam-se a esse
alto nível de axiologização demandas por interpretações
concretizantes de inspirações as mais variadas e até
díspares. Ademais, em termos jurídicos essas cartas
retratam a expressão do momento politicamente dramático
de elaboração de uma nova Constituição para um povo.
Independentemente de defendermos as Constituições
mínimas ou as dirigentes, sempre no momento de suas
elaborações diversos grupos avistam a oportunidade de

285
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

nesses documentos fazer constar ao menos uma parcela de


suas visões de mundo, no sentido gramsciano que essa
expressão assume ao significar também uma dimensão
existencial das ideologias. Mas essas visões de mundo em
nada ou muito pouco se relacionam com aquele esquema
dinâmico de delegações competenciais ou autorizativas
visto pelo positivismo como a ossatura formal do Estado
sinonimizado com o direito.
Ao serem constitucionalizadas, essas visões de
mundo condicionam, agora do ponto de vista dos
conteúdos normativos, tanto a produção dos legisladores
futuros como a tarefa hermenêutica de aplicação e controle
da elaboração jurídica cabida aos órgãos jurisdicionais.
Contudo, esse condicionamento ensejado pelas visões de
mundo jamais deixará de reclamar uma intensa mediação
interpretativa, pois o ato de declarar inconstitucional certa
norma em razão de um dissenso conteudístico é bastante
diferente do ato de declará-la inconstitucional caso tenha
sido elaborada por um órgão explicitamente incompetente.
Enunciado de modo sintético, a parte de uma Constituição
que não dispõe imediatamente sobre as competências ou a
arquitetura institucional do Estado presta-se a operar
como critério estático-conteudístico para a aferição da
validade normativa.
Durante o controle da validade normativa por
dissensos relacionados a conteúdos, a cena jurídica é
protagonizada pela variabilidade da discricionariedade do
intérprete. Está aí envolvido um poder, revestido de
competência, cuja variação de suas preferências ressente-se
da falta de maior fundamentação na assunção pública do
que deveriam ser suas posições. Especialmente quando por
tais posições se estabelece a parametricidade pela qual a
constitucionalidade passa a ser aferida. Contudo, muitos

286
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

tribunais, valendo-se de sua posição privilegiada no cume


da hierarquia institucional, rejeitam as tarefas de
fundamentação da escolha dos paradigmas constitucionais
adotados, acreditando ser suficiente a mera indicação
textual de um dispositivo-parâmetro. Parte-se aí da
suposição, ingênua ou talvez conveniente, de uma
parametricidade auto-evidente e inequívoca nos textos das
normas constitucionais. Não é necessário retornarmos
agora à insuficiência e à impessoalidade do puro texto na
determinação hermenêutica de uma norma. Basta
recordarmos a eleição de qualquer parâmetro
constitucional insinuando-se como uma seleção, pelo
intérprete, dentre uma gama de possibilidades. Assim visto,
o texto apenas não guia uma escolha, antes define o
resultado de algo escolhido. E nessa escolha, mediada pelo
intérprete, a parametricidade ainda tem sua variabilidade
incrementada pelas múltiplas visões de mundo dos autores
da Constituição. Da complexa afinação entre os critérios
de escolha utilizados pelo intérprete e as diversas visões de
mundo plasmadas em texto na Constituição, emerge a
construção da parametricidade pela qual se dá a
ponderação dos conteúdos normativos na interpretação
conforme a Constituição.
Diversas visões de mundo constitucionalizadas
tornam-se, não raras vezes, conflitantes entre si. Liberais,
socialistas, democratas-cristãos, social-democratas,
trabalhistas, comunistas, seitas religiosas com pretensões
políticas, grupos de pressão por interesses econômicos,
ecologistas, lobistas, anarquistas moderados e um sem-
número de minorias corporativas, aglutinadas por razões
inomináveis, são algumas das visões de mundo que
simultaneamente pretendem deixar assinalado no texto
constitucional, em maior ou menor medida, um capítulo,
um artigo, um parágrafo, um inciso, uma alínea ou uma

287
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

simples palavra apta a expressar seus anseios. Uma


Constituição daí resultante é sempre um fotograma que
congela o estado mutável de uma dada correlação de
forças verificada na história de uma sociedade. Qualquer
texto constitucional produzido à maneira de uma carta-
compromisso exibirá provavelmente uma unidade precária
em razão das vicissitudes políticas que passam a integrá-lo
sob a forma do pluralismo axiológico e de suas
contradições internas latentes ou potenciais. Mas tais
contradições latentes ou potenciais não chegam a se
revelar imediatamente dentro da própria Constituição, cuja
harmonia, organicidade e coerência são presumidas por
artifício de ficções operativas ou mesmo pela hegemonia
política que possibilitou o triunfo de uma dada visão de
mundo sobre outras tantas. Tais contradições latentes
poderão ou não aflorar ao longo do processo legislativo
infraconstitucional e, sobretudo, no âmbito da aplicação
das diversas leis nascidas sob a tutela de validade dessa
nova Constituição. Esse estado de coisas não chega a
configurar nenhuma anormalidade das constituições
modernas. São antes essas as próprias características de um
documento equilibrado no topo da curva onde a política
inflete-se para a direção do direito. Nesse ponto de
equilíbrio instável, o problema a ser destacado para o tema
da interpretação conforme a Constituição é o seguinte: ao
serem adotados critérios de conteúdo para a resolução de
problemas de validade normativa, surge uma pluralidade
de paradigmas constitucionais de idêntica hierarquia cujo
conflito poderia ser fatalmente paralisante à primeira vista.
Certos conflitos deôntico-axiológicos
horizontais seriam realmente insolúveis, haja vista tratar-se
de contradições entre normas de idêntica hierarquia. No
entanto, o sistema jurídico protege-se dessa potencial
paralisia adotando um regime de ficções funcionais, cujo

288
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

exemplo mais nítido é o da presunção de harmonia interna


e unidade do texto constitucional. Mas pensemos agora na
hipótese típica de uma norma infraconstitucional
interpretável à luz desses diferentes princípios granjeados
de uma mesma Constituição. Suponhamos também que à
luz de alguns desses princípios, interpretados por
determinados aplicadores, essa norma possa algumas vezes
ser considerada constitucional (válida) e, outras vezes, à luz
de outros tantos princípios e/ou aplicadores, possa ser
considerada inconstitucional (inválida). Evidentemente,
não haveria maior sentido prático em falarmos de puras
antinomias horizontais, principiológicas ou não,
verificáveis no interior de uma mesma Constituição.
Assim, só poderíamos apreciar esse problema de validade
admitindo o seguinte jogo de possibilidades: a
constitucionalidade da norma questionanda sendo
simultânea à sua potencial inconstitucionalidade,
considerando-se e até criando-se essas mesmas
possibilidades sempre à luz de parâmetros distintos e
virtualmente contrários de uma mesma Constituição.
Perceba-se que da simples distinção entre parâmetros
abstratos não nasce necessariamente uma
contraditoriedade. Esta só aflora quando uma terceira
norma, infraconstitucional, expõe o ordenamento jurídico
ao dilema da constitucionalidade versus
inconstitucionalidade. O solucionamento desse dilema
principia na eleição do paradigma pelo qual em grande
parte já se define o destino dessa norma
infraconstitucional no ordenamento.
A passagem da virtualidade dessa
contrariedade ao estado de uma contradição real é operada
pelas decisões dos intérpretes e suas pré-compreensões
jurídicas e subjetivas. Imaginemos agora as dificuldades
envolvidas no questionamento de algum dispositivo

289
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

integrante de uma lei de desapropriação interpretável à luz


do princípio da proteção à propriedade (cuja visão de
mundo é de matriz liberal) e do princípio da função social
da propriedade (cuja visão de mundo é de inspiração
socialista). Imaginemos também, em sede de controle de
constitucionalidade, intérpretes-aplicadores
comprometidos com essas duas visões de mundo. Em uma
situação dessas a singela recorrência ao puro texto
pretensamente paramétrico da própria Constituição não
ofereceria soluções razoáveis. Por uma interpretação
conforme a Constituição poder-se-ia tanto declarar esse
dispositivo constitucional como inconstitucional. As coisas
assim apresentadas dependeriam, em último caso, das pré-
compreensões dos intérpretes e de suas decorrentes
escolhas praticadas no rol do que estamos chamando de
visões de mundo constitucionalizadas. Quem poderá
finalmente decidir tais questões são as instâncias supremas
do ordenamento, detentoras das competências jurídicas
irrecorríveis para proceder à interpretação conforme a
Constituição, fixando o sentido constitucional e dizendo
quais são, dentre os vários possíveis, os critérios
efetivamente adequados (isto é, efetivamente preferidos)
para servir como paradigmas no seu solucionamento.
Entretanto, ao dizer quais são esses critérios, o tribunal
também deve suportar a responsabilidade justificativa
envolvida na fundamentação de suas escolhas. Quanto
mais publicamente o ônus dessa responsabilidade
justificativa é assumido, menos dissimulada resta a pré-
compreensão subjetiva orientadora de sua
discricionariedade. Com isso, expressamos nossa crítica à
prática da mera indicação do dispositivo paramétrico.
De outro lado, casos polêmicos de validade,
envolvendo conflitos entre critérios constitucionais,
dificilmente poderiam ser solvidos pela busca de um

290
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

consenso conteudístico. A confiança exacerbada na


racionalidade dos conteúdos poderia conduzir a becos sem
saída ou a paralisias decisionais. Por isso mesmo, dissensos
de conteúdos são convertidos na necessidade de
pronunciamento dos órgãos de máxima competência
jurisdicional do ordenamento, cuja validade das decisões é
limitada apenas pela sua discricionariedade, pela sua
própria capacidade eficacial e pela adesão ao compromisso
com a estabilidade institucional. Nos ordenamentos
jurídicos equipados com constituições dirigentes esse
estado de coisas avulta-se graças à elevada axiologização de
suas cartas fundamentais. A interpretação conforme a
constituição exigirá aí sempre grande esforço na fixação
derradeira do paradigma constitucional, dentre os vários
possíveis, à luz do qual será compatibilizada a norma cuja
validade encontra-se sob suspeita. Mas, como vimos, não é
por ser derradeira essa competência que sua
discricionariedade pode se furtar à tarefa fundamentativa.
A interpretação conforme a Constituição tem
vez quando, diante de normas infraconstitucionais
multissignificativas, certos sentidos são avaliados como
potencialmente inconstitucionais. Escolhe-se daí por dar
primazia àquelas interpretações que preservam a vigência
constitucional da norma questionanda, obedecendo a que
poderíamos denominar de princípio da economia da
inconstitucionalização. Tal princípio defluiria da compreensão
de que constantes inconstitucionalidades são indesejadas
por abalar a harmonia institucional entre os Poderes, a
segurança jurídica global e as próprias expectativas
normativas estabelecidas entre particulares e orientadas
pela positividade vigente cuja a validade se presume. Essa
economia das inconstitucionalizações também se justifica
pelo respeito devido à legitimidade do legislador ponente
das normas, denotando não ser institucionalmente

291
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

aconselhável um tribunal constitucional situar-se muito


freqüentemente acima daquele legislador. Assim, o
princípio da economia da inconstitucionalização traduz
ainda a idéia de que os tribunais não devem estabelecer
uma rivalidade com o Poder Legislativo, nem desgastar
gratuitamente a presunção de constitucionalidade das
normas ao adotarem uma prática sistemática de revogação
imprópria das leis.
A interpretação conforme a Constituição
consiste em um procedimento adotado, em particular,
para a conservação da vigência normativa e, em sentido
mais geral, para a promoção do reforço à estabilidade das
expectativas sociais normativamente estruturadas. A
interpretação conforme a Constituição é empreendida com
o firme propósito de salvar a permanência da norma
interpretanda no ordenamento. Ademais, dependendo da
configuração do sistema de controle da
constitucionalidade, uma Corte Suprema pode inclusive
fixar vinculativamente o sentido expresso e exclusivo em
que aquela norma questionada há de continuar a ser
considerada válida (constitucional). Logo, para a execução
de uma interpretação conforme a Constituição, dentre as
várias possibilidades hermenêuticas, algumas
interpretações (as preferíveis e fixáveis) podem ser
constitucionais e outras não (as rechaçáveis). No entanto,
como vimos, o consolo objetivista do recurso à
parametricidade do texto constitucional e à proteção
contra a discricionariedade pode se tornar ilusório. Na
interpretação conforme a Constituição procede-se à
adequação conteudística entre uma norma
infraconstitucional e outra que, na Constituição, tem seu
sentido geralmente já bem estabelecido pelos intérpretes
de uma corte com competência dessa natureza. Essa
adequação é sempre precedida de um cotejamento, pelo

292
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

qual se estabelece a intensidade do contraste entre a norma


e o parâmetro constitucional. Por esse cotejamento se tem
noção das reais dimensões da contrariedade à Constituição
a ser superada na interpretação harmonizante.
Os membros de uma Corte Constitucional
normalmente dispensam grande atenção à história
pregressa das interpretações semelhantes, embora não
estejam por elas estritamente vinculados. Também é essa
atenção ao passado jurisprudencial do campo
constitucional que demarca o círculo exterior da pré-
compreensão jurídica atinente aos mais elevados
intérpretes-aplicadores da Constituição. A singularidade
na determinação das dimensões da pré-compreensão
jurídica, no caso dos intérpretes-aplicadores de uma corte
constitucional, radica na incontrolabilidade de suas
decisões. Mas, afinal de contas, o que essa
incontrolabilidade das decisões de uma corte
constitucional teria a ver com as dimensões de sua pré-
compreensão jurídica? A resposta é bastante simples: é que
aí o círculo exterior da pré-compreensão jurídica pode
passar a ser desenhado pelo mesmo compasso que traça o
círculo interior da pré-compreensão da subjetividade
desses intérpretes. Portanto, a incontrolabilidade das
decisões de uma corte constitucional faz viger para todo
um ordenamento jurídico uma pré-compreensão jurídica
definida em grande medida pela discricionariedade de seus
membros. Como referimos há pouco, esse círculo exterior
da pré-compreensão jurídica, na sede de uma corte
constitucional, não decorre da delimitação por outrem de
um âmbito de discricionariedade, mas já produz uma
autodelimitação geral dentro da qual os intérpretes de
outros escalões deverão procurar se manter. Assim, esse
peculiar círculo da pré-compreensão jurídica é
autoproduzido na sede da jurisdição constitucional. Mas

293
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

essa autoprodução não significa a impossibilidade de suas


determinações serem ensejadas por apelos relativamente
exteriores ao sistema jurídico (como no caso das
influências do sistema político) ou mesmo interiores a esse
mesmo sistema (como no caso das decisões de escalões
inferiores que conquistam status de jurisprudência
constitucional).
A pré-compreensão jurídica, derivada de uma
decisão em sede constitucional, elabora-se por uma
combinação entre a fidelidade à história pregressa das
outras interpretações e a discricionariedade de seus
intérpretes-aplicadores. O que resulta dessa pré-
compreensão jurídica é então oferecido a todo o
ordenamento. Mas surgiram aí dois problemas distintos: o
da fundamentação dessa discricionariedade e o do caráter
vinculante dessa fidelidade. Da discricionariedade já
estivemos tratando até aqui; abordemos então o problema
da fidelidade.
A fidelidade ao passado das interpretações
constitucionais e à força de sua tradição, ou o pendor para
a inauguração de novas interpretações, não é nunca algo
decorrente apenas dos conteúdos do direito positivo, nem
da própria Constituição. Essa fidelidade pode ser traída a
qualquer momento por um ato discricionário imprevisível,
embora via de regra isso não ocorra em situações normais.
Mas, ao mesmo tempo, essa fidelidade não pode significar
uma interpretação para o futuro feita com os olhos
voltados para trás. As expectativas coerenciais de todo o
ordenamento jurídico, com as atenções dirigidas para sua
corte constitucional, constrangem-na à observância dessa
fidelidade, apesar de também se manterem sensíveis ao seu
caráter evolucionário. Além disso, uma outra maneira de se
conter a discricionariedade atribuída a quem diz em último

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

caso o que diz a Constituição é incumbir tais intérpretes de


se pronunciarem não apenas segundo aquelas exigências
mais técnicas, internas ao direito, mas também segundo as
demandas por normatividade de toda a sociedade. O
intérprete constitucional guarda a Constituição que guarda
a sociedade da qual ele próprio faz parte. Tolera-se assim
que nessa sua discricionariedade aflorem pré-
compreensões subjetivas cuja exteriorização, na forma de
posições, assumam momentaneamente as cores da
argumentação política.
Entretanto, há ainda certos casos de
interpretação conforme a Constituição nos quais o sentido
da própria norma constitucional a ser utilizada como
parâmetro necessita ser preliminarmente submetida a uma
rigorosa determinação interpretativa. Isso pode significar
que os intérpretes não aderiram às interpretações outrora
fixadas, ou ainda que uma questão inédita apresentou-se
no horizonte dos problemas possíveis. Nesses casos, antes
de a Corte pronunciar-se sobre a adequação da norma
infraconstitucional à Constituição, ela deverá esclarecer e
fixar o que essa norma paradigmática da Carta Magna
significa. Expresso noutros termos: antes de o intérprete
constitucional dizer se o que diz a lei está ou não em
contradição com a Constituição, ele deverá dizer o que diz
a própria Constituição. Somente então poderá esse
intérprete dizer se o que diz a lei está ou não em
contradição com o que ele disse que diz a Constituição
com vistas à ulterior harmonização constitucionalizante ou
mesmo a uma frontal inconstitucionalização . Sendo assim,
antes de se pronunciar sobre a adequação de uma norma à
Constituição, deverá ser esclarecido se há mesmo ou não
um parâmetro disponível, ou melhor ainda, necessitará
ficar estabelecido o sentido daquilo ao que uma norma
interpretanda deve ou não se adequar para, somente então,

295
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

poder ter sua constitucionalidade corretamente aferida.


Nesse tipo de interpretação conforme a Constituição há
um impedimento em se proceder imediatamente à
harmonização constitucionalizante justamente porque
antes se apresentou uma dificuldade na determinação do
contraste entre a norma e o próprio parâmetro
constitucional. Os debates sobre um critério
constitucional-interpretativo não atingiram aí um acordo
razoável a respeito de uma parametricidade. E isso pode
ocorrer quando os fundamentos de manutenção da
constitucionalidade são diversos ou quando as vias de
inconstitucionalização também são variadas. Esse quadro
de incerteza se instala criticamente quando alguns
membros de uma corte constitucional encontram razões e
critérios constitucionalizantes, enquanto outros podem
encontrar razões e critérios inconstitucionalizantes; e, mais,
um terceiro grupo pode ainda estar em dúvida sobre o
caso.
O aspecto da incerteza paramétrica presente
na interpretação conforme a Constituição traz à cena o
questionamento do próprio conceito de paradigma
constitucional. Sobretudo quando esse paradigma pretende
ser apresentado pela univocidade de uma simples indicação
de dispositivo que dispensaria maiores encargos
argumentativos e fundamentativos. Nossas reclamações
por fundamentação dirigidas aos intérpretes evidenciam
que nem mesmo a Constituição é um solo absolutamente
firme e seguro de onde se podem recolher valores e
sentidos inequivocamente objetivos de um ordenamento
jurídico. Quaisquer valores arrolados ou vistos como
implícitos na Constituição hão de ser constantemente
interpretados e reinterpretados, pois seus sentidos
reclamam não somente a fixação como a permanente
atualização. Essas ressalvas podem gerar uma grande

296
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

aflição ou um abalo daquela fé nutrida por muitos na


objetividade da Constituição. Mas essa objetividade tem
sido lograda, via de regra, à custa do escondimento do
intérprete que agora pretendemos trazer de volta à cena da
discussão pública. Teremos aí, em último caso, um
intérprete competente, figurando como a real fonte dos
valores que conformam o sistema conteudístico de um
ordenamento. Esse intérprete, no entanto, estará se
manifestando sobre um texto cuja força normativa jamais
deixará de exigir-lhe severas responsabilidades justificativas
e impor-lhe os limites semânticos e coerenciais das outras
interpretações realizadas pelo sistema.
A problematicidade semântica de um certo
paradigma constitucional talvez não possa ser notada, ou
mesmo jamais chegue a existir, senão em virtude de um
caso, pouco importando se real ou hipotético. É como se a
perturbação semântica estivesse incubada ou permanecesse
adormecida no texto constitucional, recolhida ao silêncio
de sua insignificância, na espera de um intérprete que a
perceba num problema concreto de aplicação hábil a
despertá-la. E é justamente o toque desse intérprete que,
ao apresentar uma contradição em um caso, real ou
potencial, desperta essa perturbação semântica para o
mundo das contingências significativas. É peculiar a esse
despertar súbito a provocação de um certo choque no
conjunto de certezas vigorantes entre os operadores
jurídicos. Em razão disso, esse choque pode inclusive ser
percebido como um abalo momentâneo na própria
segurança jurídica. No âmbito da jurisdição de controle da
constitucionalidade não faria sentido a fixação in abstracto
de significações contraditórias supostamente precárias ou
perturbadas presentes no texto constitucional. Distante do
caso, nesse terreno abstrato já basta o freqüente dissenso
doutrinário entre os comentadores com seus infinitos

297
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

matizes opinativos. Mas quando estivermos diante de um


dizer o que a Constituição diz para, logo após, avaliar
jurisdicionalmente a adequação de uma norma
infraconstitucional a esse dito, tal dito será sempre
enunciado em função do problema concreto que o
despertou. Uma norma infraconstitucional interpretanda,
cujo caso concreto contextual é responsável pela revelação
do déficit significativo da Constituição, desempenhará
também a função de circunscrever o campo das
possibilidades referenciais da norma constitucional
paramétrica a ser construída. É estabelecida uma
comensuração entre norma e parâmetro pela qual um é
pensado a partir do outro, sem que isso signifique alguma
reabilitação do princípio da interpretação da Constituição
conforme as leis.

Após essas reflexões, a interpretação conforme a


Constituição passou a ser em grande medida também uma
interpretação conforme um intérprete. Inexistindo um
controle institucional sobre o órgão que diz o que diz a
Constituição, a sua discricionariedade obedece a outra
ordem de limitações, especialmente àquelas de natureza
política, associadas à manutenção da estabilidade
institucional, e de compromisso com o universo
argumentativo das razões da herança jurisprudencial
administrada sob o olhar vigilante de toda a comunidade
jurídica. Fala-se atualmente de um fenômeno chamado
mutação constitucional. As chamadas mutações constitucionais
representam deslocamentos atualizantes ocasionados pela
alteração conjuntural na tensão entre a pré-compreensão
subjetiva dos intérpretes e a pré-compreensão jurídica. O
sentido dessas mutações indica a conquista de vigência de
uma nova pré-compreensão jurídica. Entretanto, essa
verdadeira ionização interpretativa pode estimular a

298
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

passagem de cargas hermenêuticas tanto da órbita da pré-


compreensão subjetiva dos intérpretes para aquela outra, a
da pré-compreensão jurídica, como também esse processo
pode experimentar sua via inversa, isto é, a passagem de
cargas hermenêuticas da órbita da pré-compreensão
jurídica para a pré-compreensão subjetiva dos intérpretes
que, dessa maneira, estariam assimilando tais mutações
como realmente suas. Entre outras razões, essas mudanças
de órbitas pré-compreensivas podem assim suceder-se
porque a subjetividade dos intérpretes mantém-se sempre
relativamente permeável àquelas outras maneiras, não
imediatamente institucionais, de interpretação normativa.
Por outro lado, a própria interpretação institucional das
normas, especialmente aquelas de caráter constitucional,
também é capaz de fornecer à sociedade, em inúmeras
circunstâncias, diretrizes aptas à incorporação às suas
maneiras informais de compreensão da normatividade.
Atento a esse fenômeno, Peter Häberle39 tratou de
caracterizar uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição.
Tal sociedade aberta envolveria as partes processuais
figurantes nos processos constitucionais, além de
funcionários públicos, juristas e pareceristas, lobistas,
governantes, associações sindicais, partidos políticos e
corporações parlamentares que influem na escolha dos
membros das cortes constitucionais, meios de
comunicação e interesses de seus proprietários, opinião
pública (embora seja difícil definir o que seja isso),
universidades e incontáveis outras parcelas organizadas da
sociedade civil. Essa idéia de Häberle a respeito da
sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, contudo,
não veicula nada de extraordinário. Ao menos desde o
advento da sociologia compreensiva já é sabido que
qualquer orientação normativa do comportamento
depende da interpretação social das normas e que,

299
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

portanto, não existe nenhum monopólio, embora


subsistam prerrogativas, dos intérpretes da Constituição
constitucionalmente autorizados de modo expresso. Além
do mais, traduzindo essa questão para nossa terminologia,
diríamos que ambas pré-compreensões -- subjetiva e
jurídica – são sempre mantidas relativamente suscetíveis
aos influxos hermenêuticos e também políticos dessa
sociedade abertas dos intérpretes da Constituição. À vista
disso, nossa concepção hermenêutica da interpretação
judicial das normas jurídicas, inclusive as constitucionais,
reivindica uma mútua permeabilidade entre as pré-
compreensões subjetivas e as pré-compreensões jurídicas.
E a membrana que regula essa permeabilidade tem a
dimensão exata de seus poros determinada pela quantidade
e pela qualidade de discricionariedade institucionalmente
tolerada pela combinação entre a pura vigência hierárquica
e a aceitação argumentativa da fundamentação das
decisões. Logo, no plano da interpretação da Constituição
realizada pelos tribunais dessa competência precípua,
quando alguma alteração nas pré-compreensões subjetivas
consegue passar à órbita da pré-compreensão jurídica --
reduzindo-se assim um espaço de discricionariedade
outrora adjudicado à liberdade criativa dos demais
intérpretes -- verifica-se o fenômeno de uma mutação
constitucional.
Mergulhos mais profundos nos diversos
outros aspectos hermenêuticos, presentes na interpretação
da Constituição, exigiriam uma abordagem mais
sistemática do que aquela propiciada por um texto de
caráter ensaístico. Porém, se não assumimos maiores
propósitos de aspiração doutrinária, é somente porque
antes mais nos interessa a urgência da problematização. Ao
suscitarmos focos de crítica e discussão, a elaboração das
teorias corre o saudável risco de se tornar uma atividade

300
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

mais socializada. E com isso talvez seja possível deprimir a


ânsia por verdades definitivas daqueles poucos autores que
tradicionalmente monopolizam o acesso à palavra escrita
na forma pretensiosamente técnica de uma ciência do
direito que flutua neutra acima das idiossincrasias
subjetivas.
A continuidade de nosso exame hermenêutico
do fenômeno jurídico precisa seguir recolhendo
postulados teóricos. Alguns desses postulados já foram
mencionados nas passagens anteriores. Outros podem
ainda ser buscados nas indagações que se seguem.

4.5. A concepção de descoberta da verdade na hermenêutica


heurística

Uma parcela significativa da hermenêutica


jurídica tradicional permanece ainda confortavelmente
assentada sobre certas concepções gerais caracterizáveis
por um fundo heurístico comum. Na apuração dos traços
essenciais desse fundo heurístico, nossa tese sustentará que
a hermenêutica tradicional forjou-se por uma aproximação
forçada dos métodos das ciências naturais. Assim, a
hermenêutica acercava perigosamente sua operatividade
àquela dos procedimentos das ciências naturais, nas quais
alguma coisa poderia ser propriamente descoberta uma vez
dada sua pré-existência. Devido, sobretudo, ao fascínio
positivista pelas conquistas logradas pela física e pela
biologia, ensejou-se um deslocamento dos modelos de
investigação das ciências naturais e exatas para o campo
das humanidades.

301
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Dispensados maiores preciosismos


conceituais, parece certo tratarmos no âmbito da biologia
de uma descoberta, como a das mitocôndrias, ou, da mesma
forma, na física, da descoberta do átomo. Entretanto, na
hermenêutica jurídica o efeito dessa matriz heurística
herdada da perquirição dos objetos empíricos tem
apontado para uma quimera: a de que os métodos de
interpretação do direito conduziriam à descoberta do sentido
real, verdadeiro, correto ou mais justo de uma norma.
A apologia do método e as exigências por
rigor desfraldadas por Descartes logo foram incorporadas
pelos catecismos positivistas de variadas devoções. E aí a
descoberta, em si originária do contínuo ato de busca,
restou condicionada pela qualidade de certas coisas
buscadas, as verdades científicas. As sucessivas revoluções
científicas sepultaram o sentido primitivo da descoberta: o
de ser realizada por descobridores lançados à busca pelo
mero prazer do desconhecido. A descoberta, antes de ser
um ato propriamente científico, mantinha o caráter
exploratório de uma abertura para as novas revelações
dadas ao longo de um percurso eivado de incertezas.
A esperança em um método científico
unificado, capaz de dar conta de todas as ciências, pôs de
lado as nuanças especificantes de cada território do
conhecimento, bem como eclipsou a antiga ênfase na livre
atividade especulativa. A busca passou então a orientar-se
obsessivamente pelo sentido prévio de algo buscado. E
assim esse ato perdeu grande parcela de sua capacidade
auto-reflexiva.
Como herança dos poetas gregos, a descoberta
ou revelação fora tida como o refinamento de uma certa
atenção para a captura de sentidos comunicados pelo logos.
Essa atenção era também a sensibilidade de uma escuta, a

302
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

do poder quase mágico atribuído à linguagem. Mas em


seguida as trevas medievais conseguiram converter essa
hermenêutica numa atividade puramente exegética, cujos
resultados afiançavam o poder da verdade encerrado no
monopólio da interpretação e intermediação da palavra
divina. Porém, o advento da Reforma socializou esse
acesso à interpretação da palavra divina e ainda trouxe à
cena uma outra questão fundamental, a discussão sobre as
formas concretas de vivência em conformidade com os
ensinamentos sagrados. As constantes preocupações com
os aspectos intelectuais comuns aos atos de interpretação,
agora também diretamente envolvidos na definição da
própria conduta dos indivíduos, fizeram nascer uma ciência
geral da interpretação, uma algemeine hermeneutik, proposta por
F. Schleiermacher.
A modernidade cartesiana, mantendo muitas
prerrogativas do espaço divino, tratou de modificar a
orientação de alguns assuntos interpretáveis segundo os
desígnios de Deus para os da Razão. E muito logo essa
Razão pariu as diversas ciências que alteraram os rumos do
temor, da criatividade e da liberdade de investigação. Sem
chegar a ser desencaminhado das trilhas de Deus, o
homem podia agora ser conduzido pelas diversas sendas
dos domínios da natureza. Essas ciências, e depois as
técnicas, aceleraram o mundo até o lugar no qual hoje nos
encontramos. Durante essa aceleração, tracionada pelas
ciências naturais, ficaram para trás diversos saberes
humanísticos. Foram experimentados uma empolgação e
um encantamento inocente com as potencialidades das
investigações dos domínios naturais. Todavia, desse
encantamento rapidamente passou-se a um progressivo
mimetismo: as humanidades seriam tão grandiosas quanto
a física ou a biologia se conseguissem seguir não só seus
passos, mas também seus modos de caminhar. O modelo

303
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

de descobertas no terreno científico-natural fora


transposto como um ideal universal também válido para as
humanidades. Além disso, o dedutivismo racional da
geometria, partido de verdades auto-evidentes da
matemática, reforçava a busca por leis gerais bem longe
dos domínios empíricos nos quais aconteciam coisas tão
afastadas de uma regularidade puramente racional, como é
o caso da própria sociedade. Não é preciso recordar a
culminância desse processo no advento da ortodoxia
positivista reinante como um verdadeiro consenso durante
longo período nos saberes sociais. Ainda hoje as metáforas
do darwinismo seduzem diversos cientistas sociais
propensos a uma naturalização da problemática do sentido
das ações. Atualmente o triunfo do pensamento mecânico
cede a uma nova coleção de metáforas de base, recolhidas
da ciência contemporânea – não mais o sistema
heliocêntrico de Copérnico ou o relógio cartesiano, mas
agora a célula, o computador, o termostato, as redes, os
sistemas inteligentes. A epistemologia descobre um caráter
quase lúdico na manipulação dessas representações.
Sugestões de metáforas parecem popularizar reflexões
filosóficas. Surgem vários profetas da pós-modernidade
anunciando o futuro dos saberes e das sociedades. A
hermenêutica experimentou nesse quadro geral um
desleixo no seu cuidado de si, muito embora lentamente
tenha principiado a ensaiar um ressurgimento como
disciplina filosófica.
Não são necessárias grandes digressões para se
chegar à conclusão de que a descoberta de coisas existentes e
a criação de coisas inéditas envolveriam procedimentos e
aptidões intelectuais bastante distintas. Todavia, essa criação
fora relegada como mais própria ao terreno estético pela
mesma gnosiologia que indagava sobre o que poderia ser
passível de conhecimento racional pelo homem. Sem

304
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

enfrentarmos maiores debates com o pensamento


monumental de Kant, parece correto falarmos
singelamente, também nas ciências naturais, sobre a criação
ou a invenção de métodos que, agora sim, poderiam
conduzir à descoberta de coisas até então desconhecidas
ou ocultas. Logo, nem mesmo algumas descobertas
poderiam se furtar à criação dos métodos pelos quais certas
coisas lhes são dadas a descobrir. O tema da criação
propõe assim a coisa criada como opus (obra) de um
criador: o autor e sua configuração de subjetividade
geralmente sintetizada pelas palavras talento e estilo.
Contudo, essas questões ligadas ao método, à procura
científica, à descoberta, aos objetos de investigação, às
teorias, aos instrumentos de pesquisa e à própria
subjetividade do cientista não são de nenhuma maneira
exclusivas da modernidade. Em outros tempos o homem
também esteve à volta com a descoberta da verdade,
embora o significado dessa palavra tenha variado
enormemente. A imbricação entre tais questões,
envolvendo a descoberta e a criação, pode ser remontada à
heúreka do sábio Arquimedes. Num rápido apanhado
retrospectivo, vejamos o que a história dessa palavra
imortalizada pelo sábio de Siracusa pode ainda elucidar a
respeito da tradição heurística da hermenêutica tradicional
e suas possíveis rupturas.
A palavra heurística provém do grego heuristiké,
formando-se pela substantivação do verbo heurískein, cujo
sentido envolve as noções de achar, descobrir e encontrar. Ora
nem tudo que é encontrado esteve antes perdido. Encontra-
se também aquilo que está escondido. E esse encontrar, mais
que um achar, denomina-se descoberta ou revelação.
Portanto, a atividade heurística envolve uma téchne, mais
propriamente a arte de adotar métodos que conduzam a
encontrar ou descobrir determinadas coisas. A interjeição

305
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

“heureca!”, com o sentido de descobri!, formada pelo pretérito


perfeito do verbo grego heurískein, foi imortalizada pelo
lendário Arquimedes de Siracusa ao resolver a clássica
questão proposta por um rei sobre a certeza da
composição de uma determinada coroa, supostamente
toda de ouro. Conta-se que Arquimedes teria ficado tão
entusiasmado com a descoberta de uma solução para a
questão que saiu nu pelas ruas bradando a célebre
interjeição heureca! (descobri!). Mas a heureca de Arquimedes é
mesmo uma descoberta ou seria mais uma invenção? A
resposta parece-nos evidente: trata-se de uma invenção. A
invenção ou criação de um novo método para descobrir a
verdadeira composição da coroa. Assim, Arquimedes não
descobriu diretamente se a coroa era ou não de ouro puro.
Ao mergulhar em sua banheira, observando a expulsão de
uma massa de água relativa à densidade específica dos
corpos e substâncias, criou um método apto a conduzi-lo à
descoberta sobre a composição da coroa.
Na hermenêutica jurídica, como de resto
também em boa parte das outras ciências sociais, muitos
teóricos e operadores práticos têm confundido a matriz
epistemológica de seus métodos com aqueles das ciências
naturais. Dessa confusão generaliza-se a exigência e a
reclamação da possibilidade de se chegar a soluções
precisas, como aquela de Arquimedes quanto à
composição da coroa de ouro. Porém, tudo indica não
haver coroa de ouro na interpretação do direito: não existe
uma verdade objetiva a ser descoberta. Por isso mesmo, no
mundo jurídico, a descoberta de um novo método deve
consistir apenas na invenção ou na proposição de uma
nova maneira de desencobrir ou revelar mais claramente um
determinado ponto de vista pré-compreensivo pelo qual
possamos apreender e edificar a experiência jurídica em
sua concretude. Os meta odos dos métodos são os caminhos

306
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

pelos quais se atingem certos resultados. São caminhos


(odos) a serem abertos e percorridos, passo a passo, na
condução rumo a um sítio onde habita o que alguns
chamam de verdade. Mas a esse destino final nem sempre se
pode chegar. O que não significa que o percurso aí
explorado conduza somente à inverdade ou à falsidade,
pois antes enseja a oportunidade de correção dos próprios
métodos. E tudo isso não deve ainda negligenciar um fato
capital: os resultados ou os destinos finais desses percursos
são essencialmente distintos quando considerados os
propósitos das ciências naturais e humanas. Pelas ciências
naturais o homem conhece a natureza para melhor
dominá-la, enquanto pelas ciências sociais pretende
conhecer mais e melhor algo sobre si mesmo enquanto
ente humano relativamente liberto dos condicionamentos
de sua animalidade natural. Assim, outra das muitas
diferenças entre os métodos das ciências naturais e das
ciências humanas reside na legalidade específica de seus
objetos de preocupação: no caso das leis naturais, o caráter
necessário da ocorrência dos fenômenos por elas descritos;
no caso das ciências humanas, a contingência das
possibilidades de ocorrência que, no âmbito social, tentam
ser reguladas segundo as prescrições meditadas pelas
ciências normativas do comportamento, como é o caso do
direito e da ética. Entretanto, nada disso implica que as
relações entre as ciências naturais e humanas não estejam
sofrendo drásticas alterações. Diversas teorias do final do
século XX são pródigas em questionar os limites e até o
sentido da distinção entre ciências naturais e ciências
humanas. Cada vez mais as ciências naturais buscam no
terreno social inspiração em seus modelos contingenciais.
E tudo indica ser esse um caminho de mão dupla.
Entretanto, isso em nada significa que as ciências naturais
estejam buscando se tornar socialmente mais benéficas. De

307
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

um lado, as recentes aquisições da neurofisiologia e da


genética molecular questionam o quanto da conduta
humana é determinado por sua herança natural e o quanto
ainda restaria a ser determinado por fatores de ordem social
nitidamente secundados. O espectro de um
neodeterminismo espreita o direito pós-moderno. Por
outro lado, desde o uso destrutivo da física nuclear pelo
militarismo, a ética e a política reclamam da produção
científica e tecnológica certos compromissos sociais com a
qualidade de vida das populações e não apenas com os
interesses mercantis das investigações puras ditas
desinteressadas. As ciências humanas, embora sem grande
poder real, tentam a todo custo manterem-se vigilantes
quanto aos resultados catastróficos dessas ciências desumanas.
Alheia a toda essa conjuntura de mudança nas
relações entre os saberes, a hermenêutica jurídica
tradicional ainda resta cativa da busca do sentido real ou
verdadeiro das normas. Entre nós, a hermenêutica técnica
de fundo heurístico, difundida por Carlos Maximiliano,
ainda afirmava que “Interpretar é [...] mostrar o sentido
verdadeiro de uma expressão; extrair de frase, sentença ou norma,
tudo o que na mesma se contém”.40 Não se trata aqui de
promovermos uma iconoclastia retrospectiva e injusta.
Mas apenas de apontarmos que também as ciências sociais,
como é o caso da ciência jurídica, de alguma maneira
evoluem ou se sofisticam. Da hermenêutica exegética dos
séculos XIX e anteriores à hermenêutica filosófica
contemporânea, seguramente muito já foi percorrido. Não
foram somente ciências como a biologia, que hoje tanto
nos empolga com o DNA, que outrora acreditaram em
homúnculos ou em geração espontânea. Nas ciências
naturais, o problema do método envolve aquele conjunto
de procedimentos a serem criteriosamente seguidos,
muitas vezes de modo impessoal, com vistas à revelação da

308
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

verdade acerca de uma realidade empírica pré-existente.


De outro lado, agora nas ciências humanas
contemporâneas, um método pode ser postulado como um
conjunto de categorias pelas quais se propõe a constituição
de uma pré-compreensão responsável por elaborar uma
parcela dessa realidade como uma dentre as muitas
interpretações possíveis. O método nas ciências naturais
almeja a certeza da verdade sobre a coroa de ouro. Suas
estratégias lançam mão dos recursos de verificação e
demonstração disponíveis nas inúmeras provas aceitas
como válidas por uma comunidade científica. Já o método
nas ciências humanas almeja algo muito diferente: o
conhecimento da própria condição humana para a qual
existem coisas como coroas, ouro, verdade e falsidade,
mentira e convencimento, amor e morte, linguagem e
interesses, justiça e solidariedade.
A concepção de hermenêutica aqui debatida
reclama a irradiação do debate metodológico das ciências
humanas para a província estagnada da ciência jurídica. A
idéia de se restabelecer o debate crítico da ciência jurídica
com as demais ciências do espírito poderia tranqüilamente
significar um truísmo para muitos, embora para outros
tantos nem seja possível perceber o grau de mimetismo
instalado no âmago de suas concepções e procedimentos
epistemológicos. O servilismo a um rigor alienígena e a
submissão a uma concepção de método impossível de ser
implementada por suas características naturalistas
tornaram a ciência jurídica um território exótico no
continente dos demais saberes humanísticos. Por outro
lado, diversos cientistas sociais, inclusive nas hostes
progressistas, não raramente reduzem o saber jurídico a
uma pura instância ideológica posta a serviço da
dominação. Procedendo dessa maneira, esses intelectuais
reforçam a aura mística responsável pela

309
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

hiperideologização das categorias constitutivas do mundo


jurídico. A reflexão sobre o jurídico é dispersa no apelo
direto ao relativismo das razões ideológicas e em uma
visão conspirativista do Estado, desperdiçando-se a
percepção da importância do direito como um vigoroso
instrumento de viabilização positiva da sociabilidade. No
outro extremo, refugiados nos seus arcanos, os iniciados
nos segredos e detalhes do mundo jurídico seguem
praticando sua seita de modo excessivamente indiferente
às conquistas das outras ciências sociais. Há nisso um
duplo sectarismo: o dos cientistas sociais paranóicos com
o fenômeno da dominação, praticamente intrínseco ao
direito, e o dos neófitos jurídicos com sua soberba diante
dos demais saberes sociais. Perdem aí tanto a sociedade
como os próprios saberes humanísticos, pois se a pura
dominação não esgota o fenômeno jurídico (como
pretendem alguns sociólogos reducionistas), tampouco a
ignorância dos demais saberes humanos pode patrocinar a
evolução do direito como uma ciência social (como é o
caso, só para citarmos um exemplo, da brutal ignorância
em psicologia da maioria de seus operadores).
Incrustada nesse panorama de deficiências e
intransigências, a hermenêutica filosófica principia a
destacar-se como algo muito além de uma simples técnica
alternativa à hermenêutica jurídica tradicional. Ao
incorporar o relevante legado da hermenêutica tradicional,
essa hermenêutica filosófica sai em busca de um paradigma
de reunificação geral para todo conhecimento humanístico.
Um paradigma em cujo contexto global o saber jurídico
seja ressituado com suas teorias e categorias postas em
permanente contato crítico com os outros saberes
humanísticos. Alguns chamam a isso interdisciplinaridade;
outros, transdisciplinaridade. Mas, para além dessas
palavras erodidas por diversos abusos e insucessos

310
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

práticos, o estabelecimento dessa intercomunicação


cooperativa entre os saberes requer clareza na adoção de
duas medidas, uma relativa às coisas tratadas pelas teorias,
outra relativa ao próprio olhar desses saberes. A primeira
medida, relativa à coisa olhada, exige o estabelecimento de
um acordo prévio sobre a problematicidade de um certo
objeto. Só há interdisciplinaridade a partir da preocupação
conjunta e multiangular sobre um mesmo tema
desdobrado em diversas questões pertinentes a um certo
campo problemático, como o do comportamento social
regulado por normas. Falamos então de uma
interproblematicidade. Porém, os saberes teóricos, além
de pensar seus problemas conexos, devem ainda pensar a
si mesmos. Assim, a segunda medida, concernente ao olhar
e à capacidade de um saber de ver a si próprio vendo algo,
exige a escavação de galerias subterrâneas entre as
fundamentações dessas disciplinas. Só pode haver uma real
interdisciplinaridade mediante o cotejamento e a
aproximação efetiva da compatibilidade entre as teorias de
base das diversas disciplinas humanísticas. Esse
cotejamento evita aquela interdisciplinaridade de baixa
consistência, responsável por transformar a atividade
teórica num labirinto obscuro de conceitos. Tal
interdisciplinaridade fraudulenta e performática degrada a
atividade teórica pela justaposição bizarra de conceitos e
categorias que se sobrepõem sem jamais tanger a realidade.
Até mesmo Kelsen havia bradado contra o
que chamou de sincretismo metodológico. Muito de seu
esbravejamento tinha razões legítimas. O anátema lançado
contra a mistura caótica e despropositada de saberes
enciclopédicos e opiniões sobre variados assuntos tem
nosso integral apoio. Em substituição ao sincretismo
metodológico propomos agora um ecumenismo
epistemológico, pois assim como todas as religiões tentam

311
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

resolver, cada qual a seu modo, o drama da transcendência


e a angústia pela finitude, as várias teorias tentam resolver
o drama da transcendentalidade e a angústia pela
especialização disciplinar. O que e o quanto conseguimos
conhecer sobre uma determinada região ôntica irmana
sabedores pelos fins últimos e comuns de seus saberes. A
caminhada conjunta se torna menos solitária. Comentários
sobre o que parece ser mera paisagem fazem aparecer
novas coisas por um caminho que jamais está
definitivamente percorrido.
As teorias e as categorias, pensadas de acordo
com um modelo hermenêutico peculiar à
interproblematicidade das humanidades, atuam nas suas
correlações com a realidade. Uma categoria é um artefato
analítico que pode nos auxiliar a conhecer melhor algum
dado sobre o real. Assim como por nossa linguagem
somos conduzidos a dizer e a pensar certas coisas, com as
categorias teóricas ocorre algo semelhante: por elas
podemos projetar como certas coisas podem existir ou
acontecer na sociedade. Mas essa possibilidade de
acontecimento não exibe um caráter probabilístico.
Queremos antes saber o modo pelo qual uma parcela da
realidade é estruturada, queremos saber como podemos
compreendê-la a fim de, entre outras coisas, quando for o
caso, transformá-la. Novas palavras permitem que novas
coisas sejam ditas. Do mesmo modo, novas categorias
permitem que outras estruturas sociais sejam evidenciadas
com maior clareza. E a interdisciplinaridade é um dos
modos pelos quais podemos ampliar a dizibilidade da
linguagem teórica pela qual se fala da sociedade nela
mesma, embora a função dessas teorias não seja apenas
enunciar o que é. Qualquer teoria da ou sobre a sociedade,
ao dizer o que é (leia-se: ao descrever), também diz muito,
algumas vezes implicitamente, sobre por que as coisas são

312
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

assim como se diz que são. Tal descrição é, então, uma


verdadeira interpretação da realidade social. Ou ainda o
oferecimento de artefatos interpretativos responsáveis pelo
condicionamento de determinadas compreensões dessa
mesma realidade social.
As teorias não só dizem singelamente o que é,
mas, ao sugerirem epistemologicamente como as coisas são
vistas, em grande medida também predefinem esse o que
pode ser dito que é. Em razão de todo esse poder
condicionante exige-se de qualquer teoria que pretenda
descrever ou interpretar uma realidade uma
fundamentação de seus pontos de vista descritivos. E com
relação a exigência dessa fundamentação, podemos flagrar
a tentativa capciosa de muitas teorias em contornar essa
tarefa ao pretenderem assumir pontos de vista
pretensamente privilegiados ou definitivos. No direito
essas tentativas produziram conseqüências desastrosas em
teorias de matrizes positivistas, jusnaturalistas e mesmo
críticas. Em razão disso, a recomendação da auto-
observação sugere uma espécie de policiamento prudencial
daqueles delírios absolutizantes que produzem teorias na
forma de esqueletos de conceitos descarnados de qualquer
musculatura histórica e social.
Aquilo que é apreendido analiticamente pelas
categorias pode ser recortado na ou da própria realidade.
Essa distinção, embora sutil, não nos parece constituir um
preciosismo ignorável. Coisas recortadas na realidade são,
em verdade, marcadas ou indicadas de um modo especial,
pontilhadas, ressaltadas, evidenciadas, porém sempre
mantidas no contexto do real do qual nunca são
completamente tiradas. Empregadas para recortar dados
ou porções de fenômenos na realidade social, as categorias
nos permitem concluir que, talvez originalmente, esses

313
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

dados ou porções fenomênicas não poderiam ser


nitidamente identificados no estado de sua naturalidade,
caso não estivéssemos nos socorrendo desses reagentes
químicos que colorem o real. Por outro lado, as categorias
também podem recortar partes da realidade e assim
constituírem, em uma ulterior recomposição teorético-
sistemática, uma nova realidade, agora artificial, integrada
pelo conjunto seleto das coisas destacadas. No campo das
ciências humanas muitas teorias acabam procedendo dessa
maneira ao incorrerem em uma verdadeira rivalização
imprópria com a realidade. Especialmente no direito
constata-se uma persistência nesse expediente: recriar o
real num universo ideal de coisas recortadas da realidade na
forma de categorias coerentemente relacionáveis entre si.
Em termos bem gerais qualquer teoria forma-
se por um conjunto articulado de categorias com certas
pretensões analíticas relacionadas a determinadas porções
de realidades específicas. Com a dogmática jurídica e com
a ciência do direito não se passa algo distinto. No caso dos
saberes sociais, uma teoria nada mais é que um conjunto
mais ou menos orgânico de categorias. Mas o ofício
analítico de qualquer teoria parece encerrar ao menos dois
procedimentos: o primeiro deles envolve a pré-definição
da porção do real de nosso interesse, num movimento de
delimitação ou de constituição de um objeto; o segundo
desses procedimentos (no qual em geral se incorre no erro
apontado como recorte da realidade) consiste em propor
esse real de um determinado modo, ao interpretá-lo ou
apresentá-lo em desconexão com o seu contexto de
origem. Isso assim ocorre porque quando as categorias
recortam parcelas da realidade, o compromisso da relação
interna entre as categorias substitui o compromisso da
relação entre teoria e a realidade social subjacente. Tal
substituição enseja discrepâncias analíticas fortemente

314
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

repercutidas na realidade social. E esse estado de coisas


pode ser freqüentemente notado no direito quando
determinadas decisões refletem a fidelidade a uma lógica
de conceitos de uma teoria alheia ás suas próprias
conseqüências.
Teorias cujo universo categorial pretende
rivalizar com a própria realidade constituem uma das
maiores fontes do autoritarismo epistemológico. Esse
autoritarismo pode ainda ser percebido na
compartimentalização disciplinar e na perda daquele senso
de totalidade responsável por nos resignar ao trabalho de
Sísifo que é a tentativa de captura da complexidade
inabarcável da realidade. Apesar do risco constante dessa
perda do senso de totalidade, a cultura da especialização
disciplinar conduz a uma profundidade louvável nas
elaborações teóricas: conhece-se cada vez mais sobre uma
parcela cada vez menor da realidade. As teorias
interproblemáticas recriam seus objetos e suas questões
pela interconexão dessas profundidades. E além das
experiências com a interdisciplinaridade, algumas
abordagens holísticas tentam abrandar os efeitos colaterais
dessa miopia disciplinar, muito embora os resultados
obtidos com esse tipo de intervenção ainda sejam pouco
significativos.
Ademais, o risco do autismo provocado pelas
teorias rivais da realidade social é constante. A maneira
mais prática e eficiente de diagnosticarmos o índice de
autismo e autoritarismo desse tipo de teoria consiste em
cotejar aquelas cujas pretensões cognitivas incidam sobre
objetos ou fenômenos comuns ou aproximados. Mas esse
cotejamento deve se dar naquele âmbito mais profundo, o
do fundamento das teorias. Quando as premissas de
fundamentação aceitas por uma dessas teorias colidirem

315
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

radicalmente com as premissas de outra, é provável que


uma fortificação esteja sendo erguida entre a complexidade
da realidade e a capacidade de cooperação de nossas
teorias. Poderíamos chamar a situação dessas teorias de
refringência à integração, especialmente porque é a
integração que parece nos aproximar, ao menos um pouco
mais, da complexidade do real. Eis uma crítica que pode
ser dirigida tanto às epistemologias jurídicas em suas
relações com os demais saberes sociais como às próprias
dogmáticas em suas relações entre si. Testemunha tal
situação o fechamento desses saberes às exigências sociais
que lhes dão um sentido último e até finalístico, pois
alguém já disse muito bem que nada é mais prático que uma
boa teoria. A resistência à integração do conhecimento
jurídico com as outras disciplinas humanísticas constitui
um obstáculo à construção dessa boa teoria social. E a
responsabilidade por essa resistência, como apontamos,
pode ser creditada em parte à presunção dos juristas e, em
outra parte, ao simplismo preguiçoso e ideologizante de
muitos cientistas sociais de áreas não imediatamente
jurídicas.
Uma tentativa de se superarem essas
limitações relacionadas à epistemologia jurídica pode ainda
ser entre nós analisada na experiência das chamadas teorias
críticas do direito. Contudo, muitas dessas chamadas
teorias críticas nem bem chegaram a ser teorias
propriamente ditas. Não conseguiram propor maiores
reestruturações no universo daquelas categorias
responsáveis pela pré-constituição da própria experiência
jurídica (a dogmática), ou tampouco estiveram dispostas a
debater pacienciosamente, em nível teórico, as diversas
vias interpretativas de aplicação alternativa do direito posto
(a hermenêutica). Relativamente distantes tanto da
dogmática jurídica como da labuta hermenêutico-aplicativa

316
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

dos operadores, as chamadas teorias críticas


inevitavelmente permaneceram confinadas no universo
acadêmico. E o que é ainda pior: muitas vezes ficaram
presas a um certo personalismo de seus mentores e líderes
performáticos. Vários textos produzidos por essa corrente
jamais ganharam vida própria para além da dicção
impressionista de seus autores. Assim, o que poderia ter se
tornado uma verdadeira escola crítica, com um razoável
fôlego analítico, acabou mesmo sendo, de um lado, uma
grande trincheira no combate pela redemocratização do
País, e, de outro, um clube de admiradores eticamente bem
intencionados, embora incapazes de um distanciamento
cauteloso e de exigências de rigor que situassem essa
produção teórica para além das denúncias meramente
ideológicas. A investidura por um ideal autolegitimante de
justiça mais uma vez procurou atalhar a parte mais árida do
ofício teórico. Ávidos por mudanças rápidas, alguns
pensadores críticos chegaram a considerar as minúcias da
dogmática como verdadeiros empecilhos à transformação
social progressista.
A dogmática não pode ser encarada, porém,
apenas como a versão sofisticada de um senso comum
revestido de uma enunciação teorética destinada a
dissimular as ideologias e os interesses subjacentes ao
direito posto. Essa visão conspiratória da dogmática está
impregnada por uma crítica superficial e precipitada. Antes
de qualquer coisa, a dogmática apresentou-se como a
forma mais inteligente e sistematizada de afirmação de
posições e de exposições de conceitos e fundamentações
que trazem previsibilidade e coerência semântica para o
discurso jurídico, especialmente no âmbito jurisdicional. A
maioria daqueles intelectuais críticos que se deram ao
trabalho de reprovar o estado de conquistas da dogmática
jurídica o fez num plano invariavelmente generalíssimo.

317
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Preferiram refutar a própria possibilidade de toda e


qualquer dogmática a oferecer outras dogmáticas que
trouxessem a fundamentação das posições ditas críticas ou
alternativas àquelas ordinariamente difundidas com
mínimas variações de autor para autor. Isso apesar de o
campo de disputa da dogmática ter sempre permanecido
generosamente aberto a quem nele desejasse ingressar para
jogar o seu jogo, evidentemente conforme suas regras.
Vista desse modo, digamos, neocrítico, a dogmática não
constitui apenas uma pura justificação do direito posto.
Passa também a significar, em nível mais profundo, um
âmbito de disputa teórica pela fundamentação prático-
procedimental de suas outras possibilidades de realização.
Eis nosso rápido balanço da valiosa
contribuição da reflexão hermenêutica para as ciências do
espírito em geral e para o saber jurídico em particular:
mostrar a irredutibilidade da questão do sentido às versões
naturalizantes que tanto impuseram as limitações de seus
métodos a problemas de índole bastante diversa. A
hermenêutica seguramente não resolve todos os problemas
epistemológicos das ciências sociais. Nem é essa sua
pretensão. Mas a hermenêutica possibilita pensar o caráter
social dessas ciências sociais ao oferecer uma meditação
sobre o principal elemento de diferenciação entre natureza
e sociedade: o universo interpretativo do sentido.

4.6. Hermenêutica e novos consensos: ressignificando o mundo


jurídico

Falamos até aqui de ressignificações do


mundo para novas legitimações no direito. Do que

318
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

tratamos? O olhar sobre o mundo jamais é inocente, pois


nele se projetam, como num espelho, os olhos de quem vê.
No caso dos operadores do direito, há no reflexo desse
olhar uma dupla (re)significação. A primeira concerne às
condicionantes culturais, éticas, de classe, de grupo,
ideológicas, políticas, psíquicas, muitas delas inconscientes
e operantes nas pré-compreensões dos sentidos do
mundo. São de improvável controle até pelas dificuldades
inerentes à sua baixa autoconsciência. A segunda dessas
ressignificações respeita ao prisma específico do técnico do
direito, circunscrito e delimitado pelas atribuições
específicas ao desempenho de sua função nos espaços
estatais, aqui genericamente tratados como sistema
jurídico. Trata-se, nesse caso, daquelas ressignificações do
mundo juridicamente demarcadas pelo discurso da
totalidade constitucional e institucional do direito,
compreendido tanto por quem dele faz parte como por
quem a ele em última instância se submete. Podemos assim
sumariar: as pré-compreensões de raiz subjetiva marcam
indelevelmente a vivência social dos operadores do direito,
são inelimináveis e devem ser traduzidas em posições
fundamentáveis. Sofrem ainda os sucessivos controles no
espaço público da estatalidade jurídica que lhes exige um
compromisso com a fidelidade à pré-compreensão jurídica,
considerada esta como o quadro predefinido de
possibilidades de opção mais ou menos discricionária
sobre o sentido aplicativo de uma norma. A forma
concreta de ser eficaz desse direito válido resulta do mútuo
refinamento entre pré-compreensões das subjetividades
dos intérpretes no interior dos limites variáveis das pré-
compreensões jurídicas sucessivamente analisadas em
escalões hierárquicos, nos quais, aliás, jamais deixam de
influir novamente outras pré-compreensões subjetivas. Na
decisão jurídica, a questão nuclear passa a ser então a de se

319
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

fixarem, de maneira transparente, quais são as regras do


jogo: o quanto de subjetividade não fundamentada pode
tolerar a discricionariedade. Ou ainda: o quanto de
discricionariedade pode seguir apelando ao argumento dos
métodos tradicionais de interpretação.
Sendo a esfera jurídica também estruturada no
campo cultural e político, sempre expressará, num grau
institucional, uma disputa de interesses – um conflito de
visões de mundo. Aí, tanto melhor se o jurista-cidadão
tiver consciência de suas possibilidades de atuação também
enquanto cidadão-jurista. Quando fusionados no mesmo
ser histórico-concreto, o cidadão-jurista e o jurista-cidadão
expressam o tipo-ideal do jurista-orgânico da democracia
constitucional, alguém capaz de uma dupla visão: a do
mundo das vivências não imediatamente jurídicas (cultura,
política, sociedade, ética) e a do mundo das vivências
jurídicas propriamente ditas. Essas duas visões implicam-se
mutuamente e também sugerem duas linhas de
reaproximação da cisão entre esses mundos. Tal
reaproximação pode articular novos consensos e até um
novo senso comum sobre o que seja ou deva ser o direito
em sua relação com o mundo dito não-jurídico. De alguma
forma, reapresenta-se nessa questão o dilema apontado
por Weber sobre a ciência e a política e suas éticas
correspectivas. Nesse caso, as éticas do jurista-cidadão e
do cidadão-jurista aproveitam a complementaridade
possível entre as éticas da convicção (eleição de uma causa)
e da responsabilidade (sopesamento entre meios e fins). A
reconciliação entre a ética da responsabilidade e a ética da
convicção aponta para a superação do dualismo
responsável por cindir a moralidade moderna. Não é mais
tolerável a preponderância de uma ética da convicção no
direito, pois isso dilui sua especificidade no político; por
outro lado, tampouco é aceitável a preeminência de uma

320
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

ética da responsabilidade de caráter meramente teleológico,


pois isso degrada o direito à condição de uma técnica de
engenharia social meramente utilitária. Assim, essa
recomposição entre a ética da responsabilidade e a ética da
convicção, operada na reconciliação entre o jurista-cidadão
e o cidadão-jurista, exige também o implemento de uma
pedagogia moral: as Universidades e todo ensino superior
de caráter crítico deverão estar preocupados não só em
instruir e ensinar seus docentes, mas também em educá-los
para esse compromisso com um mínimo ético abaixo do
qual não há nem mesmo algo que possa ser designado
como sociedade.
Nesses juristas-cidadãos cientes de sua
condição de cidadãos-juristas, a crença na luta democrática
como condição de redefinição do direito soma-se à crença
na luta pela constitucionalidade como condição de
afirmação da modernidade jurídica. Falando com os
termos de Hesse,41 os juristas-cidadãos devem professar a
crença na força normativa da Constituição e fazer dessa crença
não só uma profissão de fé, mas também uma prática
assentada na difusão de um compromisso ideológico com
as instituições da própria sociedade a cujo serviço estão.
Essa crença talvez recorra a algo não-empírico, de natureza
simbólica, dirão alguns. Mas não será esse dado simbólico
também responsável por uma parte substancial de nossas
ações e realizações no mundo social? Cremos que sim. A
reconciliação possível entre a ética da convicção e a ética
da responsabilidade, os compromissos entre as funções
como jurista-cidadão e cidadão-jurista, fazem com que a
aposta na democracia e no direito seja ao fim e ao cabo
uma só. Entretanto, essa ação conjunta nos mundos
jurídico e não-jurídico não almeja romper com o espírito
institucional dos membros do sistema jurídico, mas repô-lo
criticamente em três níveis de superação: a) teórico, no

321
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

qual se dá a ultrapassagem do discurso-denúncia de caráter


retórico-ideológico; b) político, de superação das ações
restritas às reivindicações imediatas e de cunho corretivo-
emergencial, que recusam a necessidade de elaborações no
nível jurídico-constitucional; e c) prático, de superação de
ações voluntaristas, com maior efetividade no quotidiano
dos destinatários, simultaneamente com um maior
compromisso teórico-orgânico. A consumação de tais
superações requer: a) no plano teórico, a adoção do viés
fundamentativo nas questões de conteúdo ético e a
consciência profunda da problemática hermenêutica nas
questões metodológicas; b) no plano político, a difusão de
uma consciência das corporações como parte pertencente
e comprometida com uma totalidade social cuja unidade
contraditória se encontra muitas vezes em risco; e c) no
plano prático, a possibilidade de estratégias de ações
combinadas entre os papéis de jurista-cidadão e cidadão-
jurista nos níveis teórico e político.
A otimização da proposta de efetividade do
mínimo ético para o sistema jurídico e social depende da
retroalimentação entre eficácia enquanto observância (dos
destinatários) e eficácia enquanto aplicação concretizadora
(do direito pelos órgãos do Estado). Essa relação entre
observância e aplicação do direito exige que os juristas não
esqueçam jamais de meditar sobre como o homem comum
age na concretude do seu quotidiano, isto é, sobre como
os membros de uma comunidade pré-compreendem as
normas jurídicas pelo seu sentido previamente moral e de
acordo com a vigência de seu sentimento de justiça e as
condições de suas capacidades conviviais. A eficácia é o
tema por excelência da sociologia jurídica. Mas essa
sociologia em muitas versões reduziu-se a uma pura
prescrição política sobre como o direito deveria ser para se
tornar justo. Deslizou-se assim para uma sociologia das

322
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

concepções de justiça. Não há nisso nenhum escândalo,


pois nada seria mais legítimo que intelectuais do direito
sugerissem, em debates francos, a melhor forma de
realização de suas visões de justiça social. Todavia, essas
prescrições de concepções específicas de justiça muitas
vezes renunciaram a analisar o objeto primordial da
sociologia jurídica: a eficácia do direito. A análise eficacial
fornece o melhor diagnóstico sobre como o fenômeno
jurídico da efetiva vinculação social por normas de direito
realmente ocorre, seja no caso institucional, seja no caso
dos grupos sociais. A retomada da problematização
eficacial na sociologia jurídica apresenta-se como uma das
grandes alternativas para o pensamento crítico. Com essa
tópica eficacial, é possível lutar por uma hermenêutica
material concretizante do mínimo ético. E nesse
movimento, a jurisdição, a hermenêutica, a sociologia e a
filosofia jurídicas têm a lucrar com um enriquecimento
mútuo. De outro lado, essa tematização eficacial pode
dedicar-se a pesquisar, em problemas concretos, sobre os
conflitos motivacionais entre as prescrições legislativas e
aquelas razões de ação ou deserção dos destinatários que
conduzem à inobservância, ao descumprimento e à
violação sistemática das normas postas. A análise da
convergência motivacional e finalística entre os planos de
vida dos cidadãos e as pretensões do direito estatal
fornecem um quadro de diagnósticos da capacidade real
desse direito para promover os interesses cooperativos e
corporativos. Além disso, a ponderação das razões para a
submissão ao direito também fornece notícias bastante
precisas acerca da permeabilidade de um ordenamento
jurídico para o asseguramento das reivindicações e das
lutas sociais. Com isso, a tópica eficacial proporciona
ótimos instrumentos para uma determinação dos níveis de
legitimitidade de um ordenamento jurídico, a ser estimada

323
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

pela consideração das correlações entre a eficácia


voluntária da observância autônoma e a eficácia
heterônoma às normas postas/aplicadas de modo
sancionatório-coativo.
A problemática eficacial, encarada assim como
o principal horizonte de preocupação da sociologia
jurídica, permite repensar as relações e a
complementaridade entre a ética e o direito desdobradas
em dois âmbitos analíticos inter-relacionáveis: a
criação/aplicação do direito pelas instituições e sua
observância pelos destinatários. Aceitando-se esse
desdobramento, o campo de pesquisas de uma sociologia da
eficácia enquanto aplicação pode ser concebido, entre outros,
como o de uma sociologia dos tribunais e da organização
da Justiça, como o de uma sociologia das pautas penais
seletivas, ou mesmo como o de uma sociologia das
políticas legislativas. Simultaneamente, o campo
problemático da sociologia da eficácia enquanto observância pode
ser proposto como o de uma sociologia da motivação dos
grupos ou dos indivíduos, ou mesmo como uma
antropologia jurídica pela qual são investigados os
substratos culturais das formações comportamentais mais
específicas de cada grupo submetido a uma ordem jurídica
genérica e muitas vezes desconhecedora dessas
particularidades. A pesquisa motivacional dessa sociologia da
eficácia enquanto observância demanda uma intensa
consciência hermenêutica sobre a adoção intercambiável
dos pontos de vista dos destinatários e dos operadores
jurídicos. Almeja-se por esse deslocamento da
compreensão investigativa saber como os destinatários
percebem as normas jurídicas enquanto auxílios ou
empecilhos aos seus planos de vida, como esses agentes
sociais tomam em consideração o direito oferecendo-lhes
razões suficientes para a desistência de determinadas

324
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

transgressões. Importa então ser alcançada a melhor


aproximação sobre como esses destinatários se vêem
sendo vistos pelo ordenamento jurídico e por outros
segmentos sociais: como criminosos? Como perigosos?
Como respeitáveis? Como cooperantes? Como excluídos?
Como merecedores de piedade? Como parasitas? Como
fracassados? Como preguiçosos? À pesquisa sociológica
dedicada ao fenômeno da eficácia normativa é
fundamental a reflexão sobre o modo como cremos que os
destinatários crêem ser vistos pelos sistemas jurídico e
social. Dentre muitos outros não menos importantes, esse
dado influi diretamente no exercício dos papéis sociais e na
intensidade da observância normativa exigida dos (e entre)
parceiros de convívio. Ademais, aí concorrem ainda as
ressonâncias entre a atribuição dos estereótipos
criminalizantes e os esquemas de atendimento a
expectativas postos em ação de duas maneiras:
horizontalmente, no convívio entre parceiros de
cooperação; e verticalmente, exigidos pelo Estado como
representante político da totalidade dessa cooperação.
A observância dos destinatários nesse quadro
resulta não da pura submissão, nem mesmo do simples
temor às sanções. Sujeito às particularidades das pesquisas
específicas, o cálculo de observância apresenta-se como
uma estimativa na qual inúmeras variáveis podem ser
computadas. Mas na formação desses cômputos uma
variável relacional jamais poderá estar ausente: a
consideração da convergência entre as pretensões dos
destinatários e aquelas patrocinadas ostensivamente pela
ordem jurídica. Os conflitos e as composições de
interesses promovidos nessa relação revelam o terreno
jurídico como um espaço aberto à disputa pelos diversos
projetos de sociedade com os quais os destinatários muitas
vezes nem estão diretamente comprometidos.

325
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

O tema da eficácia jurídica é de composição


complexa e só pode ser seriamente abordado através de
reflexões interdisciplinares. Meditado pela sociologia
jurídica, jamais poderá renunciar às aquisições da
psicologia do comportamento, da filosofia moral e da
própria antropologia. E, naturalmente, esse esboço aqui
ensaiado só pode indicar alguns contornos gerais dessa
pesquisa tão crucial dirigida a sabermos como nosso
direito estrutura-se socialmente. Assim, ao promover essa
pesquisa da eficácia normativa, as recomendações da
sociologia jurídica acerca de como o direito deva ser muito
provavelmente tornar-se-ão bem mais coerentes e
consistentes. Isso porque as chances de o direito realmente
chegar a ser como cremos que ele deva ser aumentam
exponencialmente quando tratamos de saber, de modo
rigoroso, como ele realmente é ou ocorre.
Conveniente então lançarmos mão de um
ceticismo mitigado: nem descrermos nas potencialidades
da normatividade espontânea, nem tampouco chegarmos a
exaltá-la como a panacéia da regulação social. Assumimos
o ponto de vista da equalização da complementaridade
entre autonomia e heteronomia, tentando com isso
recobrar um traço da regulação social desprezado pelo
positivismo: a recuperação da eficácia voluntária meditada
por suas respectivas condições materiais de ocorrência. Na
busca desse desiderato procuramos evitar a derivação de
éticas de princípios filosóficos. Antes tratamos de saber
como essa ética efetivamente pode se dar enquanto um
fenômeno social normativo cujas expectativas
comportamentais vêm reforçadas pelas normas de direito.
Pesquisamos as condições de sua estruturação para
oferecermos algumas indicações sobre como essa ética
pode acontecer, supondo-se, evidentemente, que ela seja
algo desejável. Todavia, o porquê de essa ética ser desejável

326
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

não foi aqui detidamente examinado. Escolhemos antes


apontar como não têm existido aquelas condições
elementares que possibilitam o acontecimento do
fenômeno moral. Ao longo desse percurso, nossa
estratégia teórica procurou manter-se de muitas maneiras
também modesta. Buscamos a todo o momento evitar o
seguinte procedimento: enunciar o que deve ser a partir do
que não é. Muitos filósofos e sociólogos tentaram, e ainda
tentam, derivar a fundamentação da moral de princípios
cuja elaboração exige um grau assustador de
descompromisso com a realidade social. Tentam assim
explicar a estrutura do que deve ser não apenas a partir do
que não é, mas também a partir do que não pode ser – ficções
delirantes, princípios metafísicos travestidos,
assembleísmos utópicos, momentos primevos do homem
desmentidos pela história e ainda diversos outros artifícios
que a todo custo evitam atingir o ponto crítico de uma
ética apresentada em seus compromissos empíricos: como
ela efetivamente pode acontecer no âmbito das relações
sociais? Quais condições a tornam socialmente possível?
Nós, evidentemente, não pretendemos ter oferecido
alguma resposta definitiva a essas questões. Ficamos
deveras contentes por termos suscitado essa problemática
da possibilitação da ética desde um ponto de vista mais
concreto, embora isso não signifique menos filosófico.
Filosofia e sociologia voltaram a dar as mãos em nossas
reflexões. Com a idéia do mínimo ético apresentamos a
moral como um problema não só de filosofia prática, mas
também de condições sociais. Pensamos com isso
simultaneamente situarmo-nos abaixo da bruma etérea de
algumas argumentações filosóficas excessivamente
abstratas e das atitudes intelectuais despreocupadas com a
miséria da condição de sobrevida de parcelas enormes de
nossa sociedade.

327
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

A deserção do pensamento acadêmico


brasileiro tornou-se uma prática considerada normal em
nome de atitudes pretensamente científicas. O preço desse
suposto rigor tem sido pago com a moeda infame da
exclusão social. Acorrem às cátedras e aos bancos das
Universidades jovens intelectuais oriundos de camadas
abastadas e tristemente descomprometidas com a
degradação do País. A irresponsabilidade social dessa elite
cultural dimensiona-se pelo tamanho de seu medo e de seu
clamor paranóico por segurança pública. Alheios à missão
da Universidade na construção das sociedades locais,
muitos membros dessa elite intelectual estão mais
interessados em importar padrões estrangeiros de
excelência, embora às vezes não passem de caboclos querendo
ser ingleses, como diria Cazuza. Se o pensamento humano,
como aventura intelectual, pode ter algum outro ideal além
de sua pura fruição narcísea, esse fim há de ser o de que
mais pessoas possam também pensar.

4.7. Da hermenêutica ao mínimo ético

A fenomenologia sugere-nos compreender a


interpretação como um modo de ser no mundo. Existimos
interpretando. Manifestamos o que interpretamos e
qualquer manifestação só nos chega por uma
interpretação. A palavra interpretar provém de inter-pretio:
uma negociação de preço, do valor dos significados. Essa
interpretação se dá como um diálogo, entre pessoas ou
com textos, ou com ambos e ainda também com
contextos. O diálogo é o empório dos significados no qual
se fixam os valores das palavras, seus preços. Aquilo que

328
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

não circula nesse diálogo é res extra comercio. É coisa fora da


interpretação, que não veio à luz no logos do discurso que é
diálogo. As pré-compreensões obscuras, não submetidas à
negociação fundamentativa, são também res extra comercio.
Colocar em circulação os pontos de vista pré-
compreensivos significa disponibilizá-los à interpretação
pela qual eles circulam na negociação do sentido. Mantê-
los no silêncio dos preconceitos recobertos pelos métodos
cientificistas é fugir à negociação. É ser um péssimo
comerciante do sentido. É não aceitar a negociação do
pretio (pretatio) no inter da interlocução travada no diálogo
público. Quem não quer comerciar ou quem não negocia
na praça pública onde se ajustam preços e valores das
significações é um avaro. A avareza na interpretação se
expressa como um obscurantismo preconceituoso pelo
qual as coisas são guardadas como se não devessem ser
gastas. Na avareza, ou no recolhimento aos recintos
estranhos à praça pública onde se dão os diálogos, não há
comércio: não há inter-pretatio. São maneiras de entrave à
circulação do sentido, modalidades de estagnação e de
renúncia à clareza e à discussão dos fundamentos.
Disponibilizar as pré-compreensões na forma de posições
no mercado das interpretações constitui uma medida
salutar para o comércio dos sentidos. Colocar essas
posições em circulação é testar o seu real valor a fim de
atestar sua eventual preciosidade.
A nova ciência jurídica deverá ser um
conhecimento prudente para uma vida decente. Essa é a
posição de Boaventura. A interpretação não é um ato
meramente cognitivo, mas também um ato de vontade,
uma decisão escolhida dentre outras tantas possíveis
porque conhecíveis. Essa é a posição de Kelsen. A crença
na melhor decisão, na mais justa ou na mais correta, aposta
todas as fichas do direito nas potencialidades da razão.

329
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Nessa equação pela qual a justiça é assimilada à razão,


podem se revelar recidivas jusnaturalistas. E a busca por
certezas do jusnaturalismo representa, em último caso, um
temor às contingências da vida – uma busca desesperada
por certezas, mesmo dogmáticas. Tudo indica
necessitarmos hoje de teorias que não tenham horror às
incertezas e que nem tentem maquiá-las com falsos
dogmas. Necessitamos de teorias e concepções de
sociedade empenhadas em enaltecer na incerteza a virtude
da pluralidade de possibilidades pelas quais a própria
democracia se torna viável.
Durante um longo período medieval a
hermenêutica reduziu-se a um puro exame das escrituras
sagradas. A analítica desses textos consistia numa exegese,
num conduzir para fora os significados: ex (para fora), gestain
(carregar, conduzir). A apreciação desses textos, e somente
deles, deveria ser suficiente para sacar de sua literalidade o
sentido preciso da vontade de Deus. A missão do exegeta
era a de conduzir para o exterior mundano os desígnios
divinos: revelar a verdade na e da palavra de Deus. Pela
supremacia desse método gramatical, as querelas semânticas
alcançaram preciosismos e sutilezas jamais vistos antes.
Pouco a pouco, a inteligência da língua ia revelando-se na
gramática como um verdadeiro sistema. Essa herança
exegética percorreu longos caminhos até o direito medieval
apresentar seus glosadores. Desde o século XII, os estudos
das codificações do direito romano, especialmente do
Código de Justiniano, forjavam alternativas a um
pluralismo jurídico caótico de um mundo medieval sem
centro. Depois dos glosadores, já no alvorecer da
modernidade, vieram os comentadores a se fundir com a
tradição racionalista. Com o ciclo das grandes codificações
tomou vulto a Escola da Exegese. As codificações
legislativas foram tidas como a obra suprema da razão

330
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

humana sistematizante. As idéias de obra e razão


materializam-se num sistema legislado. Dentro desses
códigos poderia ser encontrada solução para qualquer caso
possível. E de certo modo, com essa crença, a Escola da
Exegese reeditava sob outros fundamentos a analítica
gramatical herdada dos tempos medievais. A sacralização
da vontade do legislador e de suas eleições expressionais
atingiu o seu ápice. O método da aplicação pela subsunção
do caso à lei consumava a prestidigitação do intérprete, sua
ocultação ilusória. A fidelidade servil à vontade do
legislador fora seriamente encarada como uma questão de
respeito à separação entre os poderes. A aniquilação da
possibilidade de criação judicial experimentou um amargo
refreamento. No horizonte hermenêutico do século XIX
perfilaram-se o legado gramatical, o método subsuntivo e a
atenção exagerada à vontade do legislador cristalizada nas
codificações. Mas não tardaram os câmbios da realidade
social a tornarem obsoletas as aplicações silogísticas de
uma vontade legislativa intrinsecamente datada. As
transformações das estruturas sociais provocadas pela
emergência da industrialização relegaram as formas de
aplicação de muitas normas ao anacronismo. Apresentou-
se a idéia de uma interpretação evolutiva. A reação ao
dogmatismo exegético veio pela Escola Histórica,
propondo a interpretação do direito segundo uma óptica
que hoje poderia ser caracterizada como histórico-
culturalista. Sob as portentosas asas históricas da ave de
Minerva de Hegel desenvolveram-se duas crias bem
distintas: o romantismo da escola histórica de Savigny e o
materialismo histórico de um aluno e crítico deste último,
Karl Marx. Savigny trouxe à discussão os novos métodos
de interpretação. A razão não estava mais no sistema
legislativo, mas agora na atenção ao devir do próprio
sentido histórico manifestado em um espírito do povo

331
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

(Volksgeist). Porém, a sedução pelos métodos adotados


como estratégia de descoberta da verdade pelo mimetismo
das ciências naturais é um fenômeno cujos efeitos
puderam ser percebidos principalmente no início do século
XX. No século XIX, até a primeira metade, os
hermeneutas estiveram seduzidos com a matemática,
especialmente com o dedutivismo da geometria; na
segunda metade, homens como Marx impressionaram-se
com a descoberta das leis da natureza por Darwin.
Já os pandectistas alemães, sobretudo
Windscheid, haviam adotado uma perspectiva um pouco
diversa daquela de Savigny. Fiéis aos estudos romanistas,
trataram de perguntar qual seria a vontade do legislador
caso ele vivesse no tempo dessas transformações sociais
impensadas na norma original. Ensaiavam-se por aí
algumas vias de libertação da voluntas legislatoris. Os textos
normativos começam a ganhar vida própria, autônoma em
relação aos propósitos originais de seus autores. Ihering e
Gény incorporam mensurações teleológicas no processo
de interpretação do direito. O espírito do povo cede espaço à
noção de interesse.
Com a eclosão da linguistic turn no século XX, a
problemática interpretação ganhou rumos bem mais
ousados. Desde as abordagens precursoras de Humboldt,
no final do século XIX, passando pela semiótica, a
fenomenologia, a filosofia analítica da linguagem e as
teorias do discurso e da argumentação, diversas
aproximações ao fenômeno interpretativo foram
propostas. E não tardou o positivismo jurídico propugnar
a abolição das fronteiras entre a interpretação e a criação
normativa: a interpretação judicial era assumida como a
produção de uma norma particular dentro daquela margem
de discricionariedade deixada por uma norma mais geral. E

332
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

já na segunda metade do século XX, a hermenêutica


filosófica pôde indicar alguns caminhos para se
restabelecer o caráter interpretativo da totalidade da
experiência jurídica.
Mas, como vimos, não são apenas os textos
legais interpretados. Nem a própria jurisprudência, que às
vezes apela a aplicações silogísticas e mecânicas, deixa de
requerer também interpretações. In claris cessat interpretatio,
recordarão alguns. Mas hoje a hermenêutica filosófica nos
faz perceber que não existe norma naturalmente clara.
Qualquer norma tomada como clara só pode ser assim
considerada após ser pré-compreendida, isto é, interpretada
enquanto clara no contexto específico de uma intelecção que
sempre abarca as condições da totalidade do fenômeno
jurídico. Salientamos como a hermenêutica associada à
argumentação não envolve apenas a maestria no
malabarismo semântico de textos normativos e contextos
factuais. Sugerimos também um caminho hermenêutico
para a própria fenomenologia da constituição
interpretativa do mundo jurídico. Chamamos isso de uma
hermenêutica da juridicização. Nela, além da manipulação
dos fatos sociais submetidos à juridicização, passa-se
também, agora em um grau mais normativo, à
interpretação da consuetudinariedade e das práticas sociais
vinculantes geradoras de direito. Entretanto, tais práticas
não são em nada universais, pois se submetem às
vicissitudes das diversas culturas e visões de mundo de que
são constituídos os espaços sociais e integrativos.
Deslumbrados com a epopéia midiática da
integração global, cientistas sociais de nosso
contemporâneo mundo-mosaico voltam seus olhares
perplexos às diferentes culturas submetidas a um direito
que não mais suporta ser um. Incipientes tendências

333
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

etnoculturalistas sugerem tentativas de se compreender a


experiência jurídica não só desde sua pura universalidade
abstrata, mas também a partir das peculiaridades e
localismos dos povos aos quais se destina. Um olhar
saudosista para a aurora do direito romano poderia
enxergar no seu passado glorioso a pujança de sua
substância cultural. Muito mais que à legislação, o
verdadeiro sucesso do direito romano deve ser creditado
ao seu sistema pretoriano. Informados pelos costumes
locais, pelos ritos, pela vigência efetiva dos hábitos e pelos
fatos, os pretores distribuíam a justiça de forma sempre
próxima à realidade de seus destinatários. Mas se os juízes
de hoje não podem ser tão peregrinos como os pretores
romanos no exercício de seus ofícios, aí estão as diversas
ciências sociais para ajustar o foco de seus olhares sobre o
fenômeno do comportamento regulado por normas.
Estudos de antropologia jurídica inauguram novas
possibilidades para as hipóteses do pluralismo normativo.
A interpretação é uma atividade complexa pela
qual são mobilizadas inúmeras faculdades psíquicas. A
essas faculdades não temos um acesso mais generoso ou
mesmo tão preciso, a não ser que aceitemos ingressar em
uma discussão dos atuais estágios da neurofisiologia e da
filosofia da mente. Ao menos de momento, não nos
interessam esses propósitos. Quando qualificamos como
complexa a atividade interpretativa apenas salientamos, na
mobilização dessas múltiplas faculdades psíquicas, o
acoplamento de estados interiores ao mundo externo pela
via do principal instrumento dessa mediação: a linguagem.
Heidegger nos ensinou como o mundo nos chega
enquanto linguagem. Ensinou-nos também que não apenas
falamos das coisas que vemos, mas que antes vemos
somente as coisas de que podemos falar. A linguagem,
portanto, funda e constitui o mundo. Por isso mesmo, a

334
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

interpretação não se reduz a uma atitude passiva. Não


somos o mero receptáculo em estados interiores das
impressões do mundo exterior. O mundo é feito por nós
quando nos apropriamos dele interpretativamente. Nessa
mediação lingüística da compreensão, o mundo é por nós
transformado, constantemente desfeito e refeito. Mas nem
todas as linguagens são iguais. Existem certas linguagens
dotadas da capacidade de mobilizar grandes poderes
sociais, como é o caso do direito. Tais linguagens-poderes
imprimem novas condições de possibilidade à vivência do e
no mundo. Quem por ofício manipula essas linguagens na
sua lida quotidiana recebe então uma responsabilidade
adicional: a de fazer não só o seu próprio mundo, mas
também o daqueles onde muitos outros podem viver. Esse
mundo – ou esses mundos – precisa ser melhor porque
precisa apresentar mais possibilidades. Mais possibilidades
para que outros possam interpretá-lo e vivenciá-lo na
liberdade de realização de seus variados estilos e projetos
de vida. A realização efetiva dessas possibilidades exige o
que designamos de liberdade significada pela igualdade
material, a liberdade de não ser subjugado à penúria da
subsistência indigna, a libertação da indecência de não ter
acesso ao singelo e essencial pão às vezes situado como
um obstáculo insuperável ao maior patrimônio de riquezas
do homem: a vastidão de sua linguagem, que, ao ser feita
arte e cultura, faz o mundo aumentar em todas as suas
possibilidades para quem dela comunga. A comunhão do
acesso à linguagem irmana o homem na universalidade de
sua humanidade mundana. O direito precisa cuidar melhor
da forma social dessa mundanidade para que a linguagem
promova mais liberdade como expressão do homem em
todas as suas potencialidades criativas. Liberdade então
significa: ser livre da miséria que escraviza os homens pela
animalidade de seus estômagos famintos. Falamos assim

335
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

de uma socialização das calorias necessária a uma


socialização da linguagem. Longe da escravidão da fome e
da ignorância, somos minimamente iguais para sermos
cada qual mais livres a nosso próprio modo.
Hermenêutica e ética são temas recorrentes a
interpelar os operadores do direito na tarefa de construção
de alternativas jurídicas para a democracia. E esse debate é
também uma ótima indicação para um ensino jurídico
preocupado em reconstruir-se permanentemente pelo
aprendizado da ética e dos direitos humanos. Ética e
hermenêutica apresentam-se então como alternativas de
fundamentação para o direito. Pretendemos ter estendido
algumas pontes entre a hermenêutica e o mínimo ético. Os
olhares mais agudos seguramente notarão ainda a
possibilidade de muitos túneis, a maioria ainda por ser
escavados.
O mínimo ético, ao insistir na relação entre
ética e direito segundo um compromisso eficacial e uma
abordagem hermenêutico-fundamentativa, não desconhece
as fronteiras e as mútuas exterioridades entre esses
sistemas. Não incitamos qualquer fenomenologia ética a
tomar de assalto a fortaleza do direito. Propusemos apenas
o reenvio de uma diferença produzida por essa mesma
separação. A ética reingressa agora no direito como
produto de sua separação. E a ética que hoje entra na
forma dessa demanda por justiça social, como mínimo
ético, é essencial até para o próprio direito levar adiante
seu projeto de autonomização sistêmica. Trata-se,
portanto, de um reenvio útil à própria especialização
funcional dos sistemas sociais. Mas certamente haverá
aqueles mais interessados no consumo das metáforas da
moda, disponíveis nas prateleiras das delicatessen que
comercializam finas teorias do tipo exportação. Esses

336
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

sairão a público anunciando nas propostas desse ensaio


desvios ou insolências em relação aos cânones dos
produtos importados. Mas esses apóstolos da importação
poderão ser identificados facilmente. Bastará um pouco de
atenção a suas linguagens: provavelmente falarão mais das
suas metáforas de base do que da sociedade real e, quando
eventualmente se reportarem a esta, adotarão um
vocabulário bem estranho, que se esforça por falar de
homens com palavras usadas na biologia para se falar de
células.
Não temos tempo suficiente para brincar de
céticos radicais. Por aqui e por agora, resta-nos conceder a
devida atenção a pensadores que propõe o reaprendizado
da esperança. Uma esperança direcionada para projetos
sociais que, uma vez integrados e articulados numa
globalização contra-hegemônica, recompõem uma nova
totalidade possível desde a reinvenção criativa de cada uma
de suas partes. O reaprendizado dessa esperança é um
voto de confiança na sociedade como o lugar onde
podemos construir nossa felicidade. Mas essa aposta não
pode seguir sendo desmentida pelas decepções que
sonegam a milhões de pessoas o mínimo de decência pela
qual podem seguir tendo esperanças.
A crise das utopias, situada à raiz da crise das
ideologias, é antes a crise do próprio gigantismo da noção
de totalidade ostentada e pretensiosamente posta em jogo
pela Modernidade. As decepções com o projeto moderno
tornaram-se grandes decepções. Mas, em si considerados,
os sentimentos de projeção e de esperança não entram
jamais num colapso completo. A esperança é antes de tudo
uma característica existencial inscrita na condição de
temporalidade finita do próprio homem, ou do Dasein,
como diria Heidegger em Ser e Tempo. Assim, esses

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

sentimentos de projeção e de esperança, se não são postos


em crise total para os indivíduos, podem ser maciçamente
reinvestidos em outros domínios não imediatamente
público-societais da vida humana. O mínimo ético e nossa
abordagem hermenêutica procuraram apontar como é
necessário que essa esperança seja reconduzida para o
domínio social. Fica então a advertência pelo cuidado da
esperança social e de sua preservação contra as decepções
sucessivas que podem ocorrer nas situações-limite de
desespero e exclusão massiva. Quando uma sociedade não
espera nada dela mesma, uma espécie de suicídio do
sentido cooperativo se anuncia. O direito alternativo é uma
estratégia de dissuasão desse impulso de morte a que tem
sido conduzido o sentido social. O direito alternativo
representa uma maneira de seguir construindo as
condições materiais e culturais da esperança.Uma
esperança que não é jamais de um grupo apenas, mas
sempre a esperança de que todos possam chegar a ter
esperança.
O que comunicará ao mundo por vir as boas
idéias tidas no mundo ido, apesar dos eventuais fracassos,
é o sentimento de resistência. O direito alternativo
apresenta-se, nesse sentido, como um movimento de
resistência. A resistência é uma insistência ou mesmo uma
persistência, evidentemente não nos erros, mas naquilo
que pode vir a ser acertado. Fora disso só há o
determinismo exterior dos acontecimentos que nos
atingem como meras vítimas ou como individualistas
narcíseos, refugiados na fruição dos prazeres indiferentes
ao sofrimento de milhões de pessoas. Por isso o direito
alternativo também é uma manifestação de indignação
contra a indiferença e uma convocação para a resistência
organizada. Como disse o escritor Ernesto Sabato no seu
livro Antes do Fim: na resistência reside a esperança. A

338
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

resistência é a hospedaria do vir a ser, onde mora o futuro


que talvez possa ser melhor. Resistir significa então o
empenho na recuperação do sentido positivamente
precário das utopias e da capacidade projetante do homem
na sua aventura civilizatória. O u-topos da utopia, o seu lugar
nenhum, deve apresentar o sentido existencial do horizonte
que permanentemente todos projetamos à medida que
vivemos. E esse horizonte utópico não está em lugar
nenhum simplesmente porque é inatingível, mas
justamente porque está sempre à nossa frente, deslocando-
se conosco à medida que avançamos ou retrocedemos no
curso da história. Nossa proposta de fundamentação ética
e hermenêutica para o direito ambiciona contribuir com
um passo à frente nessa caminhada sem fim.

339
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

Notas

*
Este livro resultou de um fértil debate intelectual estabelecido
entre seus autores, expressando uma preocupação comum em
apontar novos horizontes para críticas reconstrutivas do pensamento
e da prática jurídicos. A partir de seu pós-doutoramento, em 1997,
na Universidade de Paris, o Prof. Edmundo L. de Arruda Jr.
produziu a trilogia Direito e Século XXI, Direito Moderno e
Mudança Social, e Direito, Marxismo e Liberalismo, obras de base
dos seminários de Sociologia Jurídica no CPGD-UFSC. Em 2000, o
Prof. Marcus Fabiano Gonçalves obteve nota máxima com distinção
e louvor ao defender, no CPGD-UFSC, a tese Epistemologia, Ética
e Hermenêutica: estudos de fundamentação filosófica para o direito
(prelo), apontando a necessidade de retomada das análises de
fundamentação no direito capazes de recuperar interconexões entre
as problematizações epistemológicas, éticas e interpretativas,
diagnosticadas como excessivamente compartimentalizadas. Os
autores voltaram a refletir a respeito de temas ligados à
fundamentação ética e hermenêutica durante os seminários
ministrados na disciplina Hermenêutica Jurídica, oferecida no
Mestrado do CPGD/UFSC, pela qual estiveram responsáveis nos
anos de 2000-2001. Durante esses seminários, surgiu a idéia de
elaboração de um manifesto que convocasse todos os setores do
pensamento crítico e progressista para uma refundação do MDA.
Após mais de um ano de trabalho, o projeto disso que seria um
singelo manifesto evoluiu até o presente ensaio.
**
Professor Titular do curso de Direito da UFSC. Coordenador do
IDA.
***
Mestre e Doutorando em Direito pela UFSC. Doutorando em
Filosofia pela Universidade de Paris X – Sorbonne.
1
O Congresso Internacional Direito, Justiça Social e
Desenvolvimento, marcado para o segundo semestre de 2002,
assinala os 10 anos do Movimento de Direito Alternativo.

340
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

2
NARDUCCI, Agustin Squella, Validez y eficacia del derecho en
la teoria de Hans Kelsen. in Revista de Ciencias Sociales,
Valparaiso, p. 146.
3
Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 217-221. Os
exemplos citados são nossos.
4
Cf. ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos, p. 105.
5
TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre Ética, p. 35.
6
CÍCERO. De Facto, p.24.
7
TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre Ética, p. 36.
8
O desenvolvimento das pesquisas em ética analítica de Ernst
Tugendhat pode ser analisado nas seguintes obras: Lições Sobre
Ética; Diálogo en Leticia; e Ser, Verdad e Acción.
9
TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre Ética, p. 61.
10
Idem, ibidem, p. 62.
11
FREUD, Sigmund. O Ego e o Id, p. 38., p. 39.
12
Idem, ibidem, p. 401.
13
Cf. TUGENDHAT, Ernst. Ser, verdade e ação, p. 404.
14
Idem, ibidem, p. 404.
15
Cf. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro, Quinhentos anos de
periferia. p. 102.
16
Agradecemos às valiosas considerações sobre o avanço do
neopentecotalismo no Brasil feitas pela antropóloga Marion Aubrée,
pesquisadora do Centre de Recherches sur le Brésil Contemporain
da École des Hautes Études en Scinces Sociales de Paris.
17
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente, p.
134.
18
FURTADO, Celso. In: BIDERMAN, Ciro et al., p. 64.
19
Report of the World Conference on Human Rights, U.N. GAOR,
48th Sess., U.N. Doc. A/CONF. 157/24 (Part I). Chapter III, I. 10,
1993.

341
Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

20
Vejam-se a esse respeito as pesquisas de João Luiz Duboc Pinaud
sobre a ilegalidade da cobrança da dívida externa brasileira.
21
Entrevista concedida ao jornalista Roberto D’Ávila no programa
Conexão, no ano de 2001, veiculado pela Rede Bandeirantes de
Televisão.
22
Vejam-se a esse respeito as categorias sociológicas do instituído-
sonegado; instituído-relido e instituído-negado, de Edmundo
Arruda Junior. In: Direito moderno e mudança social.
23
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 32.
24
Para uma análise detalhada, inclusive em dados, dos efeitos em
cadeia do fenômeno da exclusão social, veja-se o brilhante ensaio de
Friedrich Müller intitulado Que grau de exclusão social ainda pode
ser tolerado por um sistema democrático.
25
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 95-96.
26
Cf. GEERTZ, Clifford. O saber local, p. 325.
27
Nas obras Le jugement et le raisonnement chez l’enfant, de 1925,
e Le jugement moral chez l’enfant, de 1932.
28
PIAGET, Jean. Le jugement moral chez l’enfant, p. 292.
29
WEBER, Max. Economía y Sociedad, p. 251.
30
ARGÜELO, Katie. O ícaro da Modernidade, p.124.
31
Veja-se, a propósito: SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange.
Sociologia do direito: uma visão substantiva.
32
STEIN, Ernildo. A caminho de uma fundamentação pós-
metafísica, p. 147.
33
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 391.
34
ELIAS, Norbert. Engagement et distanciation: contribution à la
sociologie de la connaissance, Paris, Fayard, 1993, p. 88.
35
A expressão hermenêutica genealógica, de inspiração
nietzscheana, é adotada por Marcus Fabiano Gonçalves na

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Fundamentação Ética e Hermenêutica
alternativas para o direito

dissertação Epistemologia, Ética e Hermenêutica: estudos de


fundamentação filosófica para o direito.
36
MELLO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e depois
, p. 245-246.
37
BARROS, Manoel de. Ensaios fotográficos, p. 21.
38
Friedrich Müller. Metódica Estruturante.
39
HÄBERLE, Peter. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da
Constituição.
40
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito,
p. 9.
41
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição.

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