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Sacco & Vanzetti


7a. versão 3 de novembro de 2014

Mil novecentos e quinze:


o Presidente Woodrow Wilson descreveu os imigrantes que viviam nos Estados Unidos
como "americanos de origem estrangeira
que verteram o veneno da deslealdade nas próprias artérias da nossa vida nacional."

Mil novecentos e dezesseis:


dirigentes do movimento operário americano sentenciados a vinte anos de prisão
nenhum delito a não ser sua filiação aos sindicatos da IWW,
Trabalhadores Industriais do Mundo.

Mil novecentos e dezenove:


são expulsos dos Estados Unidos centenas de operários.
Em Montana, nas minas de cobre,
são mandados ao desterro em massa no deserto, e presos milhares de grevistas.

Mil novecentos e vinte:


são presas mais de oito mil pessoas,
que são obrigadas a desfilar acorrentadas nas ruas de Boston.

Só nas primeiras décadas do século passado ingressam nos Estados Unidos


mais de três milhões de imigrantes.
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Bartolomeo
Estados Unidos. Gennaio 1920.
Signorina Luigias Vanzetti. Villafalleto, Itália.
Querida irmã: aqui estou de volta a cidade.
Finalmente comprei o carro e a balança para vender peixe.
Peixe! Peixe fresco! Frutos do mar!
As facas eu já tinha.
Fui bem nas primeiras semanas mas agora, com a neve, já não posso trabalhar.
Peguei o touro a unha e peguei um emprego numa obra,
mesmo assim as coisas não vão bem:
o cimento escasseia por conta da greve dos ferroviários que se mantém a meses.
Com certeza você tinha razão, e papá também ...

Luigia
Bartolo ... Con quei soldi del carreto abresti potuto prendere il biglieto di retorno ...

Bartolomeo
Você tinha razão sim, com certeza.
Quem sabe no ano que vem junto o suficiente.
Ao fim e ao cabo não vai ser muito o que vou deixar aqui:
amigos, isso sim, e alguns baldes de suor.
De todo modo estou, como te contei, melhor que quando cheguei.
a alguns já não tratam como animais.
Daqueles dias não quero me lembrar.
Dormir na rua e andar revirando latas de lixo
para encontrar um pé de repolho ou uma maçã.
Três meses rodando Nova York para conseguir trabalho
até que aquele piamontês me levou à reboque para a cozinha de um clube.
O lugar não tinha janelas.
O vapor d'água para lavar caçarolas formava no teto umas gotas como pedras
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que caiam nas nossas cabeças durante o dia inteiro.


O calor dos fornos inchava as pernas.
As pias não tinham ralo.
a água caia no chão e corria até um bueiro sem tampa.
Quando se tapava, as plataformas inundavam e nós atolávamos na lama.
Trabalhávamos doze horas em um dia, quatorze no outro.
As saídas eram de cinco horas a cada dois domingos.
Comíamos o que sobrava e dormíamos ali mesmo.
Seis dólares por semana!
Comparado com aquilo o que ganho hoje até parece humano.
Nicola Sacco, o companheiro do qual te falei,
vai voltar para a Itália com toda a família.
Eles também querem me convencer,
talvez estejam conseguindo.
Querida Luigina:
Felicito em meu nome a todos os amigos e vizinhos.
Beijos às tias, a Ettore, a Cencina, a Nalín e família
e a papá.

Luigina
E pra mim?

Bartolomeo
Mil beijos e muito carinho. Teu. Bartolomeo Vanzetti.

Nicola
Subo ao terraço para poder ver as estrelas...
Rosa, nos Estados Unidos não se vê o céu!
Da rua vemos apenas algumas. Não me acostumo...
Meus olhos doem.
Nos primeiros anos não me dava conta.
Sentia mas não me dava conta.
Descobri numa manhã que cruzava a ponte a pé.
Rosa ... aqui há muitos fios, não tem graça.
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Antes enterravam essas coisas: os canos, os fios ...


agora te colocam em cima da cabeça. Que mania!
Vão terminar tapando o céu.

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Dante já dormiu?

Rosa
Não vai Nicó. Não quero.

Nicola
Subiu para isso?

Rosa
É.

Nicola
Já te disse que não tem perigo nenhum

Rosa
Bartolomeu esteve aqui. Me contou.

Nicola
Não queria que você se assustasse.

Rosa
Quem era?

Nicola
Não tem importância.
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Rosa
Tem importância.

Nicola
Salcedo. Outro companheiro.
Jogaram ele pela janela da delegacia. Estavam interrogando. Eles tem uma lista.
Estamos preocupados. É preciso avisar a todo mundo para ficarem prevenidos,
tirar o material de propaganda que existir.

Rosa
Não vai.

Nicola
Rosa ...

Rosa
Que vá outro. Outro que não tenha família.

Nicola
Como se esse fosse um tempo pra se ficar em casa preso às saias da mulher ...

Rosa
Temos dois filhos!

Nicola
Há alguma outra forma nesse calvário para que algum dia eles fiquem melhor?

Rosa
Há. Voltarmos.

Nicola
Paciência ... O consulado tem tudo o que precisa. Como se isso mudasse as coisas. Aqui ou lá.
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Rosa
Aqui não nos querem.

Nicola
Lá também não. Rosa ... Vou me cuidar.

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Stewart
...um relógio com corrente com muito uso, não se lê a marca ...

Nicola
Vou precisar de algum dinheiro ...

Rosa
Isso não. O dinheiro da viagem não se toca.

Stewart
... cinturão com fivela de bronze, monograma B e V ...

Bartolomeo
Bartolomeo Vanzetti.

Nicola
Vinte a mais ou vinte a menos, que diferença faz?!

Rosa
Faz! Faz!

Stewart
Um par de óculos com aro direito quebrado ...
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Nicola
Meus ... Não tenho tempo, me dá ...

Rosa
Não

Stewart
Revólver Colt calibre 32.

Bartolomeu
Meu.

Nicola
Vamos ... me espera!

Stewart
O que você tentou sacar quando foi detido?

Bartolomeu
Quis pegar meus papeis de imigração. Estavam comigo ...

Stewart
Seis balas do calibre mencionado...

Nicola
Rosa ... amanhã estou de volta. Te prometo que é a última vez ...

Stewart
Casaco preto ...

Nicola
Meu também ... Juro! Não tenho tempo. Me dá.
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Rosa
Só vinte.

Stewart
... um chaveiro com duas chaves, uma comum e uma pequena de cadeado ...

Nicola
A última ...

Rosa
Melhor levar mais três, para qualquer coisa ... Mas nenhum mais!

Stewart
Vinte e três dólares: duas notas de dez e três moedas de um ...
Um cortador de aço e osso...

Nicola
Um cortador de charutos ... Senhor ... Podemos saber porque nos prende?

Stewart
Rotina.

Nicola
Rotina?

Stewart
Rotina. Rotina policial.

Nicola
Mas temos direito a ...

Stewart
Claro. Direitos. Conheço seus direitos, e também meus deveres, senhor ...
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Nicola
Sacco. Nicola Sacco

Stewart
Um jornal em italiano, de filiação anarquista, e um impresso em papel vermelho ...

Nicola
E verde ... Vermelho e verde, da Itália.

Stewart
Vermelho e verde, de la misma orientacion ácrata.
Bom. Senhor Vanzetti deverá aguardar aqui, enquanto interrogo o senhor Sacco.
Logo farei o mesmo com o senhor.
Agora vou fazer algumas perguntas. Não é obrigado a responder se não quiser ...
mas se responder, suas respostas poderão ser utilizadas contra você num tribunal.

Nicola
Tribunal ...?

Stewart
Estão presos sob suspeita.

Bartolomeo
De quê?

Stewart
Isso já já veremos. Se incomodaria de repetir seu nome ...?

Bartolomeo
Bartolomeo Vanzetti. Vanzetti com dois tês.

Stewart
Casado?
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Bartolomeo
Não. Sou solteiro. Todos os meus parentes estão na Itália.

Nicola
Tenho mulher e dois filhos. Dante e ...

Stewart
Repita por favor o nome e o sobrenome da pessoa que disse que vinham buscar.

Bartolomeo
Poppy. Só sei que se chama Poppy.
Todo mundo chama ele assim. É um sobrenome como se diz aqui.

Nicola
O ...Bartolomeu ia se encontrar com um amigo dele,
e me pediu para acompanhar até Bridgewater.

Stewart
Como se chama esse senhor?

Nicola
Não sei. Eu nunca o vi. Não sei.

Stewart
(A Bartolomeu) E vive aonde ... ?

Bartolomeu
Onde vive ...?

Stewart
Esse Poppy ...

Bartolomeo
Não sei.
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Stewart
A quanto tempo você o conhece?

Bartolomeo
Bastante tempo. Trabalhamos quase dois anos em Plymouth. Uma fábrica de sapatos.

Stewart
E a única coisa que você sabe é que ele se chama Poppy?

Bartolomeo
Todo mundo chama ele assim.

Stewart
Sinais particulares? (Um tempo) Descrição.

Bartolomeu
Grandote e gordo, cabelo branco ... Anda sempre com uma camisa azul.

Stewart
Camisa azul ...

Bartolomeu
Azul.

Stewart
Mas você o viu hoje ...?

Nicola
Não, não. Viemos de trem. Uma viagem grande. Não terminava nunca. Depois descemos ...
Andamos um pouco, até uma praça grande,
mas Bartolomeu disse que já era muito tarde, e que esse amigo já devia ter se deitado.
Por isso voltamos.
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Bartolomeu
Uns amigos que vi, me disseram ...

Stewart
Amigos ...

Bartolomeo
Uns amigos ...

Stewart
Dados pessoais. Os nomes ....

Bartolomeo
Não sei. Não os conheço.

Stewart
A que partido pertence?

Bartolomeo
Partido?

Stewart
Partido. A que partido?

Bartolomeo
Nenhum.

Nicola
Eu não me meto com política. Trabalho na fábrica Milford. Sapatos.
Stewart
E como é que levava esse jornal anarquista?

Nicola
Um homem distribuía na rua. Deu a nós também.
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Bartolomeo
Estavam jogados na praça e aí pegamos. Nem li.

Stewart
Anarquista ou socialista?

Bartolomeo
Que ...

Stewart
Seu partido.

Bartolomeo
Nenhuma das duas coisas.

Stewart
Está inscrito em algum sindicato, senhor Sacco?
Em alguma organização de trabalhadores ...grêmio ...?

Nicola
Não.

Stewart
Tomou parte em alguma greve ...? Um piquete ...?

Bartolomeu
Não.

Stewart
Conhecia a Andrea Salsedo?

Bartolomeu
Não.
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Stewart
Mas deve ter lido seu nome nos jornais?

Bartolomeo
Não sei. Não me lembro.

Stewart
Era um anarquista. (Bartolomeu nega) Um vermelho.

Bartolomeo
Não sei ...

Stewart
Um lixo. Se matou em Nova York.

Bartolomeu
Por quê?

Stewart
Estava preso. Quando viu que conhecíamos toda a sua atividade se suicidou. Algo a dizer?

Bartolomeu
Nada.
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Thayer
(bate o martelo) Incorpora-se ao processo o informe do tenente Stewart ao procurador.
Procurador Katzmann:
pode dizer-nos a data exata que recebeu o informe mencionado?

Katzmann
Posso, sim senhor. Na manhã de 6 de maio, na Delegacia de Brockton.
Vinte e quatro horas depois da prisão dos acusados.

Thayer
Pode verificar se trata-se do mesmo informe?

Katzmann
Sim senhor. (Katzmann começa a ler rapidamente)
Cinco de maio de 1920.
Com base no primeiro interrogatório do qual juntamos cópia ...
surgem evidências suficientes de que os dois cidadãos italianos detidos em Bridgewater
testemunharam em falso.
Apesar de não se ter investigado com rigor por falta de tempo,
resulta presumível que Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti ... etc, etc, etc ...
Boa peça tenente Stewart ...!

Stewart
O procurador Katzmann os chamará pelo sobrenome.
Aqui está o expediente: duplo homicídio e roubo em South Braintree.

Katzmann
Stewart faça um resumo inteligente dos fatos ...

Stewart
Em 15 de abril as três da tarde na rua Pearl,
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em frente a fábrica de sapatos Slater & Morril, Palmenter,


o caixa da firma e Berardelli da segurança ...

Katzmann
Stewart ... você tem uma estranha noção de resumo.
Fizeram o roubo ... assassinaram os dois ... fugiram com a bolsa ... Quanto?
Stewart
16.000 dólares, mais ou menos.

Katzmann
O que mais?

Stewart
Fugiram num carro preto que os esperava.

Katzmann
Carro preto ...

Stewart
Tinham outros três homens. Ao menos é o que dizem as testemunhas.
Os cinco com aspecto de estrangeiros.

Katzmann
Sabe-se alguma coisa do dinheiro, do carro?

Stewart
O dinheiro ainda não começou a circular. O carro encontramos num parque.
Pensaram que era perigoso e o abandonaram.
Pedimos aos informantes que nos avisem se alguém quiser alugar veículos.
Foi por isso que esses dois caíram.
Uma oficina mecânica nos deu o informe e fizemos a detenção.
Pista falsa: não sei o que fizeram mas não tem nada a ver com isso.
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Katzmann
São todas as testemunhas?

Stewart
Tem mais um: Luiz Pelser, mas não se apresentou.
Insiste em que não viu nada e não houve maneira de ...

Katzmann
Alguma coisa mais?

Stewart
Sim. Mostrei às testemunhas algumas fotos de arquivo.
Uma empregada reconhece um dos assaltantes: Tony Palmisano.
Da gangue Morelli.

Katzmann
Palmisano?

Stewart
Tenho a foto e a testemunha. É só fazer assinar a declaração e partem todos.

Katzmann
Prepare o reconhecimento.

Stewart
Acabei de dizer que já identificamos um dos ...

Katzmann
Diligência, Stewart ... Traga logo esses italianos.

Stewart
Já disse que eles não tem nada a ver com isso ...
é preciso investigar em que estavam metidos, mas ...
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Katzmann
Stewart. Me pagam para encontrar culpados.
Os inocentes não precisam que ninguém os encontre.

Stewart
Sim senhor.

Katzmann
Bom. Agora traga todas as testemunhas e traga aqui esses dois.

Stewart
Juntos?

Katzmann
É, juntos.

Stewart
Katzmann ... existem regulamentos.
Não posso por todos juntos em ...

Katzmann
E eu não posso perder o dia nessa ruína
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Stewart
Passem para aqui.
O procurador Katzmann precisa interrogá-los.

Katzmann
Como já sabem foram citados para reconhecer estes homens detidos por nossa polícia.
Limitem-se a observá-los atentamente. Depois responderão às perguntas do caso.

M. Splaine
Se me permite senhor,
eu vi uma foto há um momento atrás que o tenente me mostrou e pude ...

Katzmann
O que é que a senhora está fazendo ?! Não compreende que não pode ...

M. Splaine
Eu ...

Katzmann
Quem lhe pediu para falar?
Toda a maquinaria complicada de um procedimento não pode deixar-se perder só porque ...

M. Splaine
Sinto muito ... acredite ... eu pensei ...

Katzmann
Não pense. Ninguém pediu que faça isso.
Só olhe estes homens e trate de reconhecer neles aquele assassino.

Katzmann
(a Cesare Rossi) Você ... nome, sobrenome, ocupação.
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C. Rossi
Cesare Rossi. Trabalho na secadora da lavanderia.

Stewart
Estava no terraço com o outro, o que não se apresentou. A lavanderia fica em frente a ...

Katzmann
Italiano? (Cesare faz que sim) Pense bem no que vai declarar.
Advito-o que o falso testemunho é um delito grave. Reconhece algum dos dois?

C. Rossi
O que é que eu vou dizer? Estávamos com o Pelser no terraço, pendurando roupa.
São vários andares. De tão alto não é possível ...

Katzmann
Não reconhece então?

C. Rossi
Mal os víamos ... vim porque me pediram, mas dali de cima nem Pelser nem eu podíamos ...

Katzmann
Obrigado.

Stewart
Quando você mandar eu preparo as fotos.

Katzmann
(A Levangie) Você ...

Stewart
O senhor Levangie é o guarda da passagem de nível por onde o carro cruzou ao fugir.

Katzmann
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OK ...

Levangie
O de bigode. Ele dirigia.

Katzmann
Senhor Levangie ... Tem certeza?

Levangie
Como? Quer que eu ponha por escrito? Eu assino onde me pedir.

Katzmann
Bom. Até que enfim alguém com os olhos abertos.

Levangie
O outro eu não sei. Mas que o de bigode dirigia, dirigia.

Katzmann
Não é preciso muito mais por hoje. Claro que teremos que molestá-lo de novo.

Levangie
Se é para isso ... já era hora de começarem a limpar um pouco... são italianos, não é?
Estou de olho neles. Lutei lá com nossas tropas ...

Katzmann
Veterano de guerra, hein?

Levangie
Nós nos matando lá e esses aqui comendo nossa comida ...

Katzmann
Chamaremos o senhor, senhor Levangie.

Stewart
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Um só entre quatro, e nenhuma outra prova.


Não acredito que seja suficiente para deixá-los lá dentro.

Katzmann
Veremos, tenente .. veremos.
(A Mary Splaine) Olha quem ficou aqui?!
Essa senhora que quase deixa tudo ir por água abaixo.
M. Splaine
Sinto muito ... realmente sinto. Eu não sabia que não se podia falar ... é a primeira vez que ...

Katzmann
Bom ... já está feito. Nome, sobrenome, profissão ...

M. Splaine
Splaine. Mary Splaine. Sou a contadora da fábrica ...
Eu estava tirando uns comprovantes de caixa ...
Bom, como as três da tarde, as quinze horas eu ...

Katzmann
(Interrompe) Senhorita! Pedimos apenas uma coisa, escute bem:
reconhece algum dos detidos?
O cabelo, as mãos, o bigode?
Alguma coisa que nos sirva de ajuda.

M. Splaine
Bom eu ...

Katzmann
Isso, vai em frente ...

M. Splaine
Não, não ... não posso dizer nem que sim nem que não.
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Katzmann
Entendo. Pode ir.

M. Splaine
Compreenda minha posição ...

Katzmann
Obrigado Senhorita Splaine. Ao sair pode pegar seus documentos.
Confirme seus dados se precisarmos cita-la novamente. pág 41

Katzmann
Você tinha razão; com estes elementos, não podemos segura-los aqui...
mas não posso me arriscar a leva-los assim diante do juiz!
Preciso eles presos aqui mais alguns dias...talvez, amanhã mesmo... (p.42)

Tenente...

Stewart
Tenente o caralho!
O senhor mostrou os dois suspeitos sozinhos,
e sabe muito bem que tem que mostrá-los misturados com outros!
Interrogou as testemunhas em grupo, quando a lei exige que se faça individualmente!
Acha pouco? E agora, me pede que segure os dois presos!

Katzmann
Eu preciso disso...

Stewart
E eu preciso do meu salário! (p. 43)

Meu maldito salário! Ou por amor a que porra, você acredita que continuo aqui?
Estou cagando pra sorte desses dois italianos!
Mas quero eles longe daqui, desta delegacia! Hoje mesmo!
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Katzmann
Eles são culpados.

Stewart
Não quero correr mais riscos...

Katzmann
São culpados.

Stewart
Não há nenhuma testemunha! Nem uma só, que os comprometa minimamente!

6
Ao chegar aos Estados Unidos achei-me só,
com pouco dinheiro e pouca roupa na bagagem.
Ainda na véspera estava no meio de pessoas que me compreendiam
e nessa manhã acordei num país onde a minha linguagem
significava nada mais do que os gritos inarticulados de um animal.
Para onde ir?
Que fazer?
Alcancei a terra prometida mas em vão interroguei o céu,
e o metrô que rolava com enorme estrondo não me trazia nenhuma resposta.

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Thayer
Fica anexado ao processo o relatório policial da seção política.

Katzmann
Seção política...? O que estes dois tem a ver com isso, com a seção política...? (p. 44)
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Stewart
Não sei. Acabam de enviar, lá da Central.

Katzmann
(folheando o relatório com interesse crescente)
Stewart, Stewart...tem muita coisa interessante aqui...
Tenente, traga aqui o de bigode. ( Stewart vai sair)
Tenente... Sobram elementos para uma boa causa...

Stewart
Procurador Frederich Katzmann.

Bartolomeu
Quero dar queixa do tratamento que estamos recebendo.
Não nos deixaram dormir a noite toda, e nem sequer nos disseram o que fazemos aqui, presos.

Stewart
Fale somente quando lhe perguntem alguma coisa.

Bartolomeo
Eu já disse tudo o que tinha para dizer. (p.45)

Katzmann
Não. Isso não é verdade...
A Itália é uma república...

Bartolomeu
É.

Katzmann
Então, como é que tem um rei? Porque tem um rei, não tem?
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Bartolomeu
É...tem...um rei.

Katzmann
Uma república com um rei...

Bartolomeu
República não é.

Katzmann
Gosta deste pais?

Bartolomeu
Deste? (p. 46)

Katzmann
deste, sim! Deste! De qual outro, seria ?

Bartolomeu
Quando vão parar com isso?

Katzmann
Gosta ou não gosta?

Bartolomeu
Não é uma pergunta que dê ...

Katzmann
Sim...ou não.

Bartolomeu
Eu teria que separar...tem coisas que...
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Stewart
Limite-se a responder á pergunta.

Bartolomeu
Que pergunta?

Katzmann
Que pergunta?! A que nós fizemos! Gosta deste pais?

Bartolomeu
Não dá para responder, assim. (p.47)

Stewart
Sim ou não.

Bartolomeu
Não...eu...

Katzmann
Não...ele disse que não.

Bartolomeu
Não! Não disse...quer dizer que eu não...
Já chega! Não aguento mais!
Não entendem que já não aguento mais?

Katzmann
Gosta deste pais?

Bartolomeu
Gosto.
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Katzmann
Ahã. Então por quê faz atos anti-americanos?

Bartolomeu
Eu jamais fiz isso.

Katzmann
Nega que é um anarquista? (p.48)

Bartolomeu
Nego. Não.

Stewart
Sim ou não.

Bartolomeu
Não.
Katzmann
É por isso que anda armado na rua?

Bartolomeu
Já disse umas cem vezes. É para defesa pessoal.

Katzmann
Precisa se defender de quê neste pais?

Bartolomeu
Tenho um negócio. Vendo peixe. Tem roubos.

Katzmann
Quando chegou á América, já estava filiado ao partido, ou se filiou aqui?
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8
Bartolomeu
Eu não...Já chega! Me recuso a continuar respondendo!

Thayer
Pedido recusado. (P. 49)

Thompson
O meu cliente tem o direito, Meretíssimo!

Thayer
Indeferido.

Katzmann
Não quer responder porque está vendo que aos poucos está se incriminando.

Bartolomeu
Não! Me nego a responder porque já não aguento mais!
Estou caindo de sono! Já não entendo mais nada!

Katzmann
Bartolomeu Vanzetti, o acuso formalmente de duplo homicídio e roubo,
cometidos no dia 15 de abril do presente ano,
tendo como cúmplice o detento Nicola Sacco.

Nicola
Rosa...! Rosa!

Bartolomeu
Como “assassinato”..?! Está me acusando de assassinato!
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Katzmann
Duplo assassinato e roubo. (p.50)

Medeiros
A seringa, filhos da puta! Quero a seringa!
Enfiem no cu a clemência! Enfiem a cadeira elétrica também...!
Tragam a seringa e uma boa agulha, e enfiem no olho do cu todo o resto!

Bartolomeu
Me deixa em paz! Não me toquem!
Assassino, eu?!
Quem nós poderíamos matar ?!

Katzmann
Mataram para roubar.

Bartolomeu
Que absurdo imundo é esse ?

Katzmann
Temos uma testemunha. Reconheceu o senhor.

Bartolomeu
Mentira! Mentira! Mentira!

Thayer
Se o réu não se comporta devidamente, será retirado da sala.

Thompson
Tem três testemunhas contrárias, Excelência! (p. 51)

Bartolomeu
Juro pelo que há de mais verdadeiro, que está mentindo!
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Katzmann
É o senhor quem mentiu, até agora. Mentiu ou não?

Bartolomeu
Menti! Menti, sim senhor, porque não quis confessar que era um anarquista!
Menti, sim, porque tive medo de terminar como o Salcedo!
Sou um anarquista, sim!
Mas isso não tem nada a ver com ser um delinquente!
Nicola! Nico! Você ouviu?
Somos assassinos e ladrões!

Nicola
Bartolomeu?!

Bartolomeu
Assassinos e ladrões!

Nicola
Bartolomeu...?! O que estão fazendo com ele...?!
Rosa
Nicola...! Nicola...!

Nicola
Rosa! (p. 52)

Bartolomeu
Assassinos e ladrões...! Luigia, não acredite no que dizem os jornais...!

Nicola
O que fizeram com ele, Rosa?! Bartolomeu! Me deixem sair daqui! Me deixem sair daqui...!
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9
Thompson
Senhor Vanzetti...Senhor Sacco, finalmente. Não via a hora de que me autorizassem.
Sou Thompson, o advogado de vocês... William Thompson.
Infelizmente, esta primeira visita terá que ser muito rápida.
Imagino como estão se sentindo, mas gostaria que soubessem, para a tranquilidade de vocês,
que estou tão convicto da sua inocência, quanto vocês mesmos.
Estudei o caso minuciosamente, e não tenho a menor dúvida ao respeito.
Então, não há nada a temer. Graças a Deus, a incomunicabilidade foi suspensa,
e ainda temos vários dias para preparar a defesa.
No dia 31 de maio, teremos a primeira audiência.

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Thayer (p. 53)

Senhores jurados, confiamos à sua consciência e decisão sobre a vida de dois homens.
Este tribunal sabe muito bem que se trata de uma tarefa difícil e inquietante.
No entanto, confiamos plenamente em vosso patriotismo e em vossa devoção pela justiça.

Thompson
Senhor Bartolomeu....Senhor Nicola...
Há uma coisa que, com sua permissão, sinto o dever de comentar com os senhores.
Já estarão a par de que muitos advogados recusaram este processo.
Eu suponho que os senhores imaginam o porquê disso.
Gostaria, então, de explicar-lhes porquê eu o aceitei.
Senhor Sacco, senhor Vanzetti: sou advogado porque acredito firmemente na justiça.
Na justiça de Deus. E na deste país.
Senti, portanto, a obrigação ética de assumir este caso.
Se um inocente fosse condenado pelo preconceito de um homem da lei,
todas essas mesmas leis perderiam o sentido.
Gostaria também de esclarecer que nada me une às suas idéias políticas,
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mas como confio em nossa democracia e nesta constituição,


posso admitir a existência de qualquer ideologia, por mais extravagante que seja.
Gostaria que, amanhã, ao sairem livres deste tribunal,
os senhores possam admitir comigo as virtudes e a vigência das nossas leis. (p. 54)

Thayer
...e agora, senhores jurados, farei as perguntas de praxe,
que deverão responder com total honestidade.
Os senhores tem alguma relação de amizade ou de parentesco com os acusados,
ou com as vítimas deste processo?
Já apresentam alguma opinião prévia sobre a culpabilidade ou a inocência dos imputados?
Os senhores detém alguma prevenção ou preconceito contra os réus?
Os seus princípios são contrários à pena de morte?
Esta Corte confia em que os jurados saberão desempenhar corretamente a sua função.
Está aberta a sessão.
Solicito aos réus que fiquem de pé.
(BARTOLOMEU fica de pé. NICOLA, nervoso, não compreende).

Bartolomeu
(A Nicola): Si alzi...

Thayer
Os réus tem algo a declarar antes de que a acusação tome a palavra?

Nicola
Temos, sim. Que somos inocentes.

Thayer
O acusado só pode responder por si mesmo. (p. 55)

Nicola
Que sou inocente.
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Bartolomeu
Tem várias coisas que precisaria dizer...

Thayer
O acusado só tem o direito de afirmar a sua inocência ou admitir a própria culpa.

Bartolomeu
(em voz baixa) Sou inocente.

Thayer
O acusado deve se pronunciar de tal maneira que todos o escutem.
Dizem que os italianos tem uma garganta de ouro, então certamente será um prazer ouvi-lo.

Nicola
Parli piu forte.

Bartolomeu
(em voz mais alta) Sou inocente.

Thayer
Os réus podem sentar. A primeira testemunha pode ingressar na sala.
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Uma voz (p.56)

No dia 10 de junho, apresenta-se perante o tribunal Luis Pelser.


Muda o seu testemunho dado anteriormente na delegacia,
ele se contradiz e declara, agora, que reconhece o Sacco como um dos assassinos.
Dez dias após a primeira audiência, no dia 20 de junho, depõe o vigia de barreira Levangie.

Thompson
Senhor Levangie, o senhor trabalha como vigia na barreira onde aconteceu o assalto?

Levangie
Sim, senhor.

Thompson
Segundo o seu depoimento, e o de outras testemunhas,
os assaltantes subiram num carro e passaram em alta velocidade pelo senhor. Confere?

Levangie
Mais ou menos.

Thompson
O senhor quer dizer que não foi exatamente assim, como descrevi?

Levangie
Bom, é... foi assim, mas o carro não passou na minha frente tão rápido.
Pararam para atravessar os trilhos, e tiveram que ir mais devagar,
então pude ver bem o homem que estava dirigindo. (p.57)

Thompson
E, segundo o seu depoimento, quem dirigia era Vanzetti?
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Levangie
Sim, senhor. Posso jurar que era ele.

Thompson
E o que viajava ao lado dele era Nicola Sacco?

Levangie
Não. Já disse que não posso reconhecer Sacco.
O sol estava batendo de frente no vidro do carro.
Não vou afirmar afirmaria uma coisa assim se não estiver cem por cento seguro.

Thompson
Porém, está “cem por cento seguro” de que o homem que dirigia era o Vanzetti.

Levangie
Estou.

Thompson
O carro passou a que distância do senhor?

Levangie
Bem, a alguns passos... (p.58)

Thompson
E a que velocidade?

Levangie
...na verdade, não sei bem,
mas era devagar o suficiente para ver o rosto de quem dirigia.

Thompson
E era Vanzetti?
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Levangie
Escute...eu já disse que era ele. Já falei isso umas cem vezes.

Thompson
Nesta mesma sala, cinco pessoas declararam, sob juramento,
que Vanzetti não sabe dirigir.

Levangie
E daí?

Thompson
Olhe bem para o homem a quem está acusando.
Vanzetti, por favor, fique de pé.
Senhor Levangie, de que cor é o cabelo do acusado?

Levangie
Pretos...são pretos.

Thompson
E como descreveria a sua aparência? (p.59)

Levangie
Não sei...ele é grande.

Thompson
Não é magro, é?

Levangie
Não, magro ele não é não.

Thompson
Senhor Levangie, antes do senhor,
três testemunhas declararam que o homem que dirigia o carro era magro e loiro...
38

Levangie
Eu não me importo com o que os outros dizem...

Thompson
Já terminei; pode retirar-se, Sr. Levangie.

Thayer
A sessão está suspensa.

12
Uma voz
Testemunho de Mary Splaine,
testemunha de acusação, no dia 20 de junho de 1921. (p.60)

Katzmann
Senhorita Splaine, presenciou o assalto de South Braitree?

M. Splaine
Sim, senhor. Uma coisa horrorosa, realmente.

Katzmann
Onde a senhora estava na hora do assalto?

M. Splaine
No meu escritório. No primeiro andar da fábrica.

Katzmann
Muito bem. Conte-nos tudo o que viu.

M. Splaine
Claro. Vi um homem com uma arma, que atirou contra o coitado do Berardelli,
e fugiu num carro preto, onde outros assaltantes estavam esperando por ele.
39

Katzmann
Esse homem está nesta sala?

M. Splaine
Está sim, senhor. (Aponta para NICOLA) É aquele. O que não tem bigode
(NICOLA fica de pé, abruptamente. Em outro espaço, ROSA escuta, comovida) (p.61)

Nicola
Ele precisa saber que não fui eu! Rosa, conta isso para ele! Ele vai ler nos jornais!
O que vai pensar do pai dele? Filho: Sacco é um grande sobrenome.
Um sobrenome bom e antigo! E Dante é um nome maravilhoso!
É uma grande honra chamar-se Dante Sacco...!

Katzmann
Sabe o nome da pessoa que acaba de apontar?

M. Splaine
Sei sim. Nicola Sacco.

Katzmann
Obrigado, Senhorita Splaine.

13
Uma voz
Cesare Rossi. Italiano. Operário da lavanderia. Declara no dia 2 de julho de 1921.

Thompson
Onde o senhor estava no momento do assalto? (p.62)
40

Cesare Rossi
No terraço.

Thompson
No terraço da lavanderia?

Cesare Rossi
Sim senhor.

Thompson
Quem se encontrava ali com o senhor?

Cesare Rossi
Luis Pesler. Outro empregado que trabalha lá comigo.

Thompson
Sr. Rossi, o senhor sabe que Pesler declarou, ainda agora,
que reconhecia no acusado Nicola Sacco o assassino de South Braitree?

Cesare Rossi
Sei sim.

Thompson
O senhor foi testemunha de diferentes depoimentos do seu companheiro,
em que declarava o contrário?

Cesare Rossi
Sou, sim. Ele fala o que quiser.

Thompson (p.63)

Agora conte-nos, por favor, tudo o que viu.

Cesare Rossi
Pesler e eu estávamos estendendo umas roupas, no terraço.
Estávamos conversando quando de repente ouvimos tiros na rua.
41

Fomos olhar, e vimos os ladrões que fugiam, correndo,


e o guarda costas do caixa, caído no chão.

Thompson
Quem foi olhar primeiro? O Sr. Pesler, ou o senhor?

Cesare Rossi
Olhamos os dois ao mesmo tempo.

Thompson
Quer dizer que os dois viram a mesma coisa?

Katzmann
Protesto, Meretíssimo. A testemunha não tem como saber...

Thompson
Vou mudar a pergunta, então.
(A Cesare) O senhor conseguiu reconhecer os assaltantes que fugiam?

Cesare Rossi
Olha só, o que estou dizendo, os senhores podem conferir agora mesmo, se quiserem.
Podem subir lá e olhar. Qualquer um com dois olhos pode fazer isso.
É só olhar lá do terraço para perceber que de lá de cima, é impossível reconhecer alguém. (p.64)

14
Katzmann (p.65)

Senhor, se o senhor e o tribunal me permitirem,


gostaria de fazer algumas perguntas complementares ao Sr. Levangie...

Thayer
Se a defesa não se opuser...
42

Thompson
Sem objeções, meretíssimo.

Katzmann
Obrigado, advogado.
Assim como destacou o meu colega,
o seu depoimento nos surpreende um pouco.
De fato, antes da sua declaração,
três testemunhas descreveram o motorista do carro como sendo um homem loiro e magro...
Será que o senhor se enganou, Sr. Levangie...?

Levangie
Não, não senhor.

Katzmann
Bem...também não precisa ser tão categórico. Qualquer um pode cometer um erro...

Levangie
Se eu digo que vi, é porque vi. (p.66)

Katzmann
Senhor Levangie, por favor, acompanhe o meu raciocínio:
o senhor presenciou o assalto, e também viu que assassinavam duas pessoas.
Obviamente, ficou impressionado.
Depois, viu que os assassinos entravam no carro e fugiam na sua direção.
Nesse momento, deve ter sentido medo, o que é normal.
Nesse estado de ânimo pode perfeitamente ter cometido um erro...

Levangie
Mas acontece que...

Katzmann
Fique calmo, senhor Levangie...
O advogado Thompson acaba de provar claramente
43

que Bartolomeu Vanzetti não podia estar no volante desse carro porque ele não sabe dirigir.
Mas isso não significa que Vanzetti não estivesse dentro desse carro.
Senhor Levangie,
se o senhor insiste com tanta certeza e até jura ter visto Vanzetti dirigindo esse carro,
mesmo sabendo que o seu depoimento pode levar esse homem à cadeira elétrica,
evidentemente, a sua declaração tem que ser verdadeira, não é mesmo?
Será que, por causa de seu estado de nervos e pela velocidade do carro,
o senhor confundiu o lugar que ocupava Vanzetti dentro daquele veículo?

Levangie
O que significa...? (p.67)

Katzmann
Pense por um momento. Tente lembrar bem a cena.
Não poderia ser que Vanzetti estivesse no banco de trás, atrás do motorista?

Levangie
Bom, agora que penso melhor...

Thompson
Protesto, Meretíssimo!

Thayer
Por quê motivo?

Thompson
É evidente que a acusação sugeriu uma resposta á testemunha.

Thayer
Não é evidente. Indeferido.
A acusação tem mais alguma pergunta a fazer?
Katzmann
Não, Meretíssimo. (p. 68)
44

Thayer
A sessão está suspensa.

15
Bartolomeu
Querido pai: escrevo de novo para reafirmar, mais uma vez, a minha inocência.
Para lhe dizer que conto com uma boa defesa,
que ao meu lado tenho um bom exército de pessoas generosas que não me abandonam,
nem nunca me abandonarão,
e contar também que estou com boa saúde, e bom estado de ânimo.
É provável que ao receber esta carta, o processo já tenha terminado,
e esperemos que com a minha absolvição.
Pai: parece difícil imaginar a situação atual deste pais,
que o senhor tanto admirou há alguns anos atrás.
Estamos vivendo uma triste época.
Época de corrupção, época em que o poder é assaltado desesperadamente,
e desesperadamente se defende.
O Estado faz bem o mal, e o mal o bem,
e se apressa em jogar na prisão um homem honesto e culpar um inocente.
Já não nos surpreendem as coisas mais incríveis.
Existe aqui nesta corte uma sociedade,
entre advogados e autoridades judiciais que é capaz de condenar ou absolver
quem eles quiserem.
Que canalha podem ser as pessoas honestas, e que puta a justiça!
Perdi a fé nesta justiça.
Estou falando da justiça que recebe esse nome,
e não daquele sentimento que vive no coração do homem,
e que nenhuma força infernal jamais poderá esmagar.
Pai querido: dê minhas lembranças a todos.
Um beijo e um abraço. De sue filho. Bartolomeu. (p.69)
45

16
Thompson
Senhorita Splaine, já foi interrogada pela polícia ...

M. Splaine
Sim senhor. E declarei que não tinha certeza de que fosse ele o assaltante.
Estava mesmo em dúvida.
Mas depois, vendo as fotos de Sacco que saíram nos jornais,
me convenci de que era ele mesmo.

Thompson
No entanto, quando na delegacia lhe mostraram a foto do prontuário de um homem,
a senhora afirmou categoricamente que era ele o assassino.

M. Splaine
É, sim... me pareceu.
Mas depois, me disseram que esse homem já estava preso fazia um tempo.
Acho que me confundi...Todo podemos errar, não é? (p.70)

Thompson
A que distância se encontrava do lugar do assalto?

M. Splaine
Uns trinta metros.

Thompson
Senhorita Splaine,
poderia ser amável de me dizer a cor da gravata daquele homem,
o que está de pé, junto á porta da sala?

M. Splaine
Bem...para ser sincera...não, não senhor. Não enxergo bem daqui.
46

Thompson
Por algum motivo em especial?

M. Splaine
É que sou um pouco míope.

Thompson
E sabe a quê distância se encontra essa pessoa?

M. Splaine
Não, não sei.

Thompson
Está a menos de quinze metros, senhorita Splaine!
Poderia me explicar, então,
como é que pode reconhecer Nicola Sacco a trinta metros de distância...? (p.71)

M. Splaine
Eu... Bem, eu o reconheci. Não vejo porquê...

Nicola
Ma perche dice queste bugie...!

Katzmann
Senhorita Splaine, se me permite...Estou um pouco surpreso.
Não entendo por quê oculta justamente esse detalhe...

M. Splaine
Que detalhe ...

Katzmann
Por algum motivo que não consigo entender, a senhorita não está dizendo toda a verdade.
47

M. Splaine
Eu...

Katzmann
Por quê razão, senhorita, se nega a admitir que nesse momento
- o que é natural, quando se está trabalhando em um escritório -
estava usando os seus óculos? (p.72)

M. Splaine
Claro! Meu Deus, eu não disse, não...?

Thompson
Protesto, Eminência!
A atitude do procurador, dando a resposta às testemunhas, é realmente inaceitável!
Com todo o respeito que esta corte merece,
este processo está virando um...um verdadeiro circo!

Thayer
Dr. Thompson!
Não gostaria de ter que incriminar o senhor por ofender esta corte!

Thompson
Pois o que ofende a corte, é a atitude do procurador.

Thayer
Já chega.
Não considero que o procurador tenha sugerido a resposta à testemunha.
Creio que apenas tentou clarear as suas ideias, um pouco imprecisas.

Thompson
Justamente essa imprecisão é que lhe tira a validade!
Thayer
Quem vai decidir isso é o júri.
48

Alguma outra pergunta á testemunha? (p.73)

Katzmann
Não, meretíssimo.

Thayer
Dr. Thompson...gostaria de advertir-lhe que a sua insolência está ultrapassando os limites.
Não venha a dizer depois que não lhe avisei:
Se continuar assim, vai ser o senhor quem vai terminar no banco dos réus...

Thompson
Com todo o respeito, Senhor Juiz...
Esse banco dos réus, hoje, é o lugar mais limpo desta sala.

17
Luigia
Que valor tem a identificação incerta de uma mulher quase cega,
quando centenas de pessoas com visão normal dizem:
"Não, não é este homem"?
Que valor tem a identificação incerta de um homem por duas, três ou quatro pessoas,
quando centenas de pessoas,
muitas das quais tiveram uma melhor oportunidade para ver, dizem:
"Não, não é este homem"?
O linchamento midiático fracassou no seu desejo de acabar o caso
pelo linchamento da multidão.
A manifestação terminou;
o Estado não tem nada contra nós, exceto a determinação de nos condenar.
Há algo pior que tudo isso!
Sacco e Vanzetti não estão tão absolutamente abandonados
como pensaram os seus perseguidores.
Nossos amigos correm em nossa ajuda formando comites de defesa.
O que poderia a imprensa dizer?
49

Que as suas histórias não foram mais que falsidades?


Que o Estado não tinha provas, nada, contra nós?
Isso não nos teria levado à cadeira elétrica,
nem perderíamos este vil processo.
Quantas coisas verdadeiras e favoráveis
poderia e deveria ter publicado a imprensa sobre esta tragédia?
Precisamente por esta razão, para nos derrotar,
a imprensa reacionária se manteve silenciosa,
quando o silêncio era uma necessidade daquilo que, no seu conjunto,
foi um crime midiático,
perpetrado contra nós pela imprensa reacionária americana.

18
Thompson
Senhor juiz, gostaria de interrogar novamente ao senhor Cesare Rossi.
Senhor Rossi, aquele dia do assalto, o senhor trabalhava na lavanderia.

Cesare Rossi
Trabalhava, sim.

Thompson
Ainda trabalha lá?

Cesare Rossi
Não senhor. Fui demitido.

Thompson
Por quê? (p.75)

Katsmann
Nada disto é pertinente, meretíssimo!
50

Thompson
É sim, meretíssimo. Acredito que a resposta pode ser muito importante.

Thayer
Prossiga, então.

Thompson
Por quê foi demitido?
Cesare Rossi
Depois do assalto, não se tocou mais no assunto.
Alguns dias depois, a Polícia chamou o Pelser e eu,
nos mostraram os acusados e perguntaram se nós os reconhecíamos.
Dissemos que não.
Uma semana depois, o chefe nos chamou, e disse que estávamos demitidos.
Quando perguntamos por quê, nos explicou que era uma decisão da gerência.
Pedimos para falar com o gerente, mas ele não nos atendeu.
Alguns dias depois, passei na frente da lavanderia e vi, por acaso, o chefe de obras.
Eu perguntei a ele se não tinha jeito de voltar a trabalhar lá.
Ele quis mudar de assunto,
mas no final me disse que poderíamos voltar à lavanderia
se disséssemos à polícia que reconhecíamos esses dois homens como os assassinos.
Eu falei para ele que ele estava maluco, e ele me disse para pensar melhor no assunto.
Fui logo ver o Pesler, e contei tudo para ele.
Ele não me disse nada,
há poucos dias fiquei sabendo que estava trabalhando de novo na lavanderia.
Até hoje, não consegui nenhum emprego, em canto nenhum da cidade.
Só de escutar o meu nome, fecham logo a porta na minha cara.

19
Thayer (p.76,77,78)

Katzmann, ninguém vai poder dizer, quando estes italianos forem absolvidos,
que a justiça não prevaleceu!
51

Katzmann
De quê absolvição está falando, Thayer...?

Thayer
O que pretende, afinal? Que eu condene alguém sem provas?
O senhor esquece com quem está falando...

Katzmann
Nem Sacco nem Vanzetti são inocentes, Thayer...

Thayer
Então, prove! Esse é o seu trabalho!

Katzmann
Thayer, como quer que...? Estou entre a cruz e a espada ...
O senhor está me pressionando!...Os nossos estão me pressionando...!

Thayer
A quem se refere como “os nossos”, Katzmann?

Katzmann
Preciso lhe responder? (p.79)

Thayer
Eu sempre agi dentro da lei...!

Katzmann
E disso se trata.
O senhor não diz sempre, que todas as nossas ações devem almejar o bem do nosso pais...?
O nosso povo está esperando esta condenação.
E o senhor sabe muito bem a quem me refiro quando digo “os nossos”.
Só tem um juiz no pais inteiro capaz de dar uma lição exemplar contra a subversão.
As eleições já estão chegando.
52

A distribuição de cargos na Suprema Corte, também.


Não os decepcione, Thayer. Pode ficar tranquilo. Os nossos não vão decepcioná-lo.

20
Uma voz
No dia seis de julho de 1921, depõe perante o tribunal Nicola Sacco.
Katzmann
Senhor Sacco, lembro-me que, em certa ocasião,
o senhor disse que amava a liberdade, e os países livres.

Nicola
É, disse. (p. 80)

Katzmann
O senhor amava este pais em maio de 1917?

Nicola
Tenho que explicar ...

Katzmann
Não entendeu a pergunta...?

Nicola
Entendi, sim.

Katzmann
Então, responda sim ou não.

Nicola
Sim.

Katzmann
53

Sei...amava sim...e foi para provar o seu amor que fugiu para o México,
quando a nação precisava do senhor como soldado?

Nicola
Fui embora para não lutar.

Katzmann
E quando voltou de novo?
Nicola
Depois do armistício. (p.81)

Katzmann
Quando a guerra já havia terminado.

Nicola
Foi, sim senhor.

Katzmann
O senhor percebe que está assumindo o fato de ser um desertor?

Nicola
Io non sono un vigliacco...!

Thayer
A fala do acusado não se entende.

Nicola
Eu disse que não sou um covarde...se foi isso o que quis insinuar!

Katzmann
Então, por quê desertou...?

Nicola
Sou contrario a guerra, por princípio!
54

Katzmann
Quer dizer que a sua filosofia lhe impede lutar...?

Nicola
As minhas idéias sono...são... contra qualquer forma de violência. (p.82)

Katzmann
Que idéias, as idéias políticas?

Nicola
(A Thompson) Preciso rispondere a...esta pergunta?

Thayer
Naturalmente.

Nicola
Sou anarquista. E o anarquismo é contra todo tipo de violência...

Katzmann
É mesmo? Permita-me dizer-lhe que isto é novo para mim.
Suponho também que tenha surpreendido a todos os que se encontram nesta sala.
O senhor se esqueceu dos anarquistas que assassinaram, neste país, o presidente Mackinley?
Que explodiram uma bomba em Wall Street que despedaçou dez compatriotas inocentes...!

Nicola
Non sono stati gli anarchici!

Thayer
Se o réu insistir em usar o seu idioma, se solicitará a tradução do intérprete.

Nicola
Digo que os não foram anarquistas....Que não somos assassinos. (p.83)
55

Katzmann
Ah, é mesmo? Pois a história dos últimos anos, senhor Sacco,
nos demonstra que anarquia é sinônimo de subversão contra a ordem constituída,
de desprezo pela propriedade privada, de incitação à violência...

Nicola
(A THOMPSON) Che cosa ha detto?

Katzmann
(A THOMPSON): Eu mesmo posso esclarecer.
Digo que o anarquismo tem se valido, ao longo de toda a sua história,
da violência e do roubo...!

Nicola
Cosa state a dire queste fesserie davanti allá gente?! Sovversivi noi...?!
E da teci il pane che si basti per sfamarci e noi li rispeteremo... Ribelli noi? Che significa?
Se ci trattare come gli animali per forza che ci rebelliamo. Ladri...?
Ladri noi che lasciamo il sangue pero campá?

Katzmann
Alguém poderia, por gentileza, traduzir...?

Thompson
Protesto, meretíssimo.
As apreciações políticas do procurador estão afetando o meu cliente.
Peço que por favor se acalme e esclareça tudo agora, em nossa língua.

Nicola (p. 84)

Sim, senhor...

Thayer
(Com uma folha de papel nas mãos) Não é necessário, Dr. Thompson.
A tradução legal está em mãos desta corte. (Lê)
56

O senhor Sacco admite, entre outras coisas, conforme posso ler aqui,
que alguns anarquistas recorrem a rebeldia violenta...

Nicola
Não, senhor... não foi isso o que eu disse...

Thompson
Protesto, meretíssimo... A tradução não é...
Thayer
Caso a defesa desejar, pode consultar aqui...

Nicola
Mas eu não disse isso...

Thayer
O senhor há de convir que não há outra maneira de verificá-lo,
a não ser as atas do intérprete. (p.85)

Nicola
Pelo amor de Deus...!

Thayer
Já disse que cale a boca! Sente-se!

Katzmann
Conforme o relatório do Departamento Politíco da polícia,
o senhor participou de várias greves em Staughton, Boston... confere?

Nicola
Sim.

Katzmann
Também participou daquela greve dos metalúrgicos, em Plymouth, em 1920?
57

Nicola
Participei.

Katzmann
E não foi nessa greve, que mataram três policiais?

Nicola
Foi. E sete operários, infelizmente.
Katzmann
Infelizmente pelos sete operários...? (p. 86)

Nicola
Infelizmente por todos. Os policiais também são seres humanos.

Katzmann
Ah, “também”!
Naquela época já havia comprado o revólver que tinha quando a polícia prendeu o senhor?

Nicola
No dia 12 de janeiro? Acho que sim.

Katzmann
E no dia da greve estava com ele?

Nicola
Não! Não vai dizer agora que fui eu quem matou os policias...?!

Katzmann
Eu não disse nada. Foi o senhor quem acabou de sugerir essa possibilidade.

Thompson
Protesto, meretíssimo!
58

Katzmann
Já terminei. (p.87)

Thompson
Sacco, acalme-se... Onde o senhor estava, no dia e na hora do assalto?

Nicola
No consulado italiano, em Boston.

Thompson
Falou com alguém lá, alguém o viu?

Nicola
O funcionário da seção de passaportes...
eu expliquei a ele que estava voltando para a Itália,
que tinha urgência com os papéis...que o meu pai precisava de mim lá...
que havia acontecido uma tragédia.

Thompson
Com a permissão da corte,
solicito que este testemunho seja reconhecido como válido para os efeitos legais
(Entrega a THAYER o documento), e que seja dado a conhecer aos jurados.

Thayer
(examinando o documento) A corte o considera válido para os efeitos da lei.
(Lê) “Depoimento de Giuseppe Andrower, apresentado a James M. Bowcock,
Vicecônsul dos Estados Unidos da América na Cidade de Roma, Reino da Itália.
Fala o senhor Androwe:
No dia 15 de abril de 1920, chegou ao Consulado Italiano de Boston o senhor Nicola Sacco,
para apresentar uma fotografia para o seu passaporte...”, (p.88)

Nicola
(Relembra, enquanto isso, a carta de seu pai)
“Nicola, meu filho: Sei que a notícia da morte da sua mãe vai deixar você triste.
59

Antes de partir, ela teria gostado muito de ver você. Só falava disso, ultimamente...”.

Thayer
“...A fotografia era, na verdade, uma foto da família, com a sua mulher e o seu filho.
Expliquei a ele que não era isso o que pedíamos,
e levei a fotografia ao secretário do Consulado para que a visse...”.

Nicola
“...Não deixa de voltar, não. Agora vocês tem um filho, também.
Podem entender muito bem o que significa ter um filho longe, por tantos anos.
Gostaria de ver você de novo junto da gente. Não vejo a hora de estar aqui com você ...”.

Thayer
“Lembro muito bem da data porque, enquanto conversávamos sobre o pedido
olhei para um calendário que havia na escrivaninha do secretário”.

21
Uma voz
10 de julho de 1921. Declaração de Bartolomeu Vanzetti.

Katzmann
Onde o senhor conheceu Nicola Sacco?

Bartolomeu
No México.

Katzmann
Em que ano?

Bartolomeu
Em 1917.
60

Katzmann
E por quê o senhor se encontrava no México?

Bartolomeu
Porque não queria ser obrigado a lutar. (p.90)

Katsmann
O senhor é portador de alguma deficiência física?

Bartolomeu
Não. Sempre fui um homem saudável.

Katzmann
Então...por quê desertou?

Bartolomeu
Pelos meus princípios políticos.

Katzmann
São os mesmos que os do Sr. Sacco...?

Bartolomeu
São.

Katzmann
E pelo fato de compartir as mesmas ideias subversivas ficaram amigos?

Bartolomeu
Não temos ideias subversivas.
Somos anarquistas,
e como anarquistas, combatemos tudo aquilo que atenta contra a liberdade.
Quando conheci Nicola, ele ainda não era um anarquista ativo.
61

Katzmann
Poderíamos dizer, então, que foi o senhor quem o iniciou...
quem o induziu a fazer parte ativamente...? (p.90)

Bartolomeu
Ele já tinha as suas ideias, mas não eram muito claras.
Achava que um homem com mulher e filhos não devia meter-se nessas coisas.

Katzmann
E o senhor o convenceu?

Bartolomeu
Sim senhor.

Katzmann
E a partir desse momento, abandonou o seu dever como marido e pai...

Bartolomeu
O Nicola Sacco jamais fez isso. Ele ama muito a sua família.

Katzmann
No entanto, participou de greves e manifestações subversivas.

Bartolomeu
Um anarquista e um subversivo são duas coisas diferentes.

Katzmann
(pega um gorro azul e o estende para o Bartolomeu)
Já viu este gorro antes? (p.92)

Bartolomeu
Eu tenho um igual.
62

Katzmann
Será que não é este?

Bartolomeu
Não sei dizer. São todos iguais...

Katzmann
Olhe bem para ele... não tem alguma particularidade que lhe permita identificá-lo...?

Bartolomeu
Este tem um buraquinho, e o meu era quase novo.
Além disso, o meu tinha cheiro de peixe, eu uso quando ando por aí, vendendo.

Katzmann
E quando o senhor o tira da cabeça, onde costuma guardá-lo?

Bartolomeu
Na loja, penduro ele num prego.

Katzmann
Senhores do júri, eis aqui a razão deste buraco: o prego onde o acusado pendurava o gorro dele.
Sabe onde foi achado este gorro?

Bartolomeu
Não, senhor. (p. 93)

Katzmann
No lugar e no dia do assalto, junto do corpo do Berardelli.

Bartolomeu
Então, não é o meu. Eu não matei ninguém.

Katsmann
Poderia fazer o favor de experimentar o gorro? Não?
63

Bartolomeu
Não.

Katzmann
Tem que experimentar.

Bartolomeu
Não vou fazer o papel de palhaço.

Thayer
Ninguém quer faltar-lhe com o respeito, senhor Vanzetti.
O senhor não pode negar-se a experimentar o gorro.
(BARTOLOMEU, tenso, coloca o gorro na cabeça, que fica evidentemente pequeno nele).

Katzmann
Não, não,... ajeite bem... (BARTOLOMEU tenta). Ajeite bem, já disse!...
(KATZMANN pega o gorro e força. BARTOLOMEU o arranca, com violência. Dá medo.)

Bartolomeu (p.94)

Já chega.

Katzmann
Explique-me, por favor,
por quê mentiu de tal maneira quando foi interrogado pela polícia.

Bartolomeu
Estava com medo.

Katzmann
Medo de quê?

Bartolomeu
Medo de terminar como...! Como outros companheiros.
64

Katzmann
Explique-se melhor.

Bartolomeu
Medo de que ...

Katzmann
Explique-se melhor.

Bartolomeu
Medo de terminar como o Salcedo! O meu....o nosso companheiro...!
Eu fui lá para reconhecer o corpo, dois dias atrás...!
O seu corpo todo despedaçado.
Despedaçado ...! E vou pronunciar o seu nome aqui para que todos saibam...! (Grita)
Andrea Salcedo....! Despedaçado! Na calçada da delegacia de polícia de Nova Iorque...!

Katzmann (p.95)

Está usando isso para justificar suas mentiras.

Bartolomeu
É verdade, menti, mas isso não quer dizer que tenha assassinado alguém...!

Katzmann
Mas prova que tinha alguma coisa a esconder.

Bartolomeu
Tinha. Que era anarquista.

Katzmann
Não! Que era um dos assassinos.
E que o carro que tentava conseguir era para fugir da cidade com o seu cúmplice,
e usar o dinheiro roubado.
65

Bartolomeu
Mesmo que use muitas armadilhas contra nós,
não poderá provar nada, porque desse crime, somos inocentes. (p.96)

22
Uma voz
No dia 16 de julho pela manhã,
o advogado Thompson encerra a sua defesa com o alegação final.
Pela acusação o procurador Katzmann faz o mesmo.

Thompson
Senhores da corte, senhores jurados.
Sei que neste momento,
o meu dever seria fazer um balanço dos depoimentos apresentados neste processo,
destacar a evidente fraqueza das testemunhas da acusação
e a irrefutável validade dos álibis apresentados por esta defesa.
Sei também que deveria convidar à reflexão
sobre a firmeza de uma prova constituída por um gorro com um buraco,
que se converteu em uma “prova irrefutável” de culpa.
Poderia, até mesmo, insistir e demonstrar, mais uma vez,
que no dia do assalto Sacco se encontrava em Boston, e Vanzetti em Plymouth.
Talvez devesse fazer tudo isso.
Porém, se a evidente má fé das testemunhas
e o visível afã da acusação em prejudicar estes dois inocentes
não convenceram os senhores, com os fatos,
como haveria eu de esperar convence-los com as minhas palavras...?
Não. Não vou falar mais deste processo.
Vou falar, sim, do outro, do verdadeiro processo que foi julgado aqui nesta sala:
do processo contra Sacco e Vanzetti pelo delito de anarquismo.
Esta circunstância, sobre a qual a acusação colocou sua maior ênfase
não conseguiu, contudo, transforma-los em dois assassinos.
Devo lembra-lhes:
66

os acusados não estão aqui para serem julgados por suas convicções políticas.
A constituição dos nosso pais, uma das mais esclarecidas do mundo,
não deixa dúvida alguma a esse respeito:
todo homem deve ser julgado independentemente de suas opiniões políticas,
sua raça ou sua religião. (P.97)

Senhores jurados:
no dia em que prenderam os meus clientes,
Rosa Sacco, a esposa do acusado,
assim que soube da prisão do seu marido,
realizou a lamentável tarefa de queimar todos os livros de política que Sacco tinha em sua casa.
Senhores, quando um cidadão, em qualquer lugar do mundo,
chega à humilhação de ter que queimar os livros que prefere e que ama,
é porque existe algo monstruoso ao seu redor, que atenta contra as suas idéias.
É porque existe algo que está cerceando a sua liberdade. Termino aqui.

Katzmann
Meretíssimo, senhores membros do juri.
Antes de começar, gostaria de parabenizar á defesa pelo brilhante trabalho que desenvolveu.
Isto não são apenas palavras de praxe.
Poucas vezes, ao longo da minha carreira,
tive como adversário um colega tão habilidoso em sua tarefa...e na tarefa de ajudar á acusação.
Pois é, senhores,
porque são as palavras da defesa as que vão me permitir demonstrar a culpa dos acusados.
Analisemos rapidamente um argumento
ao que o meu colega da defesa atribuiu uma importância vital:
os álibis dos réus.
Segundo essas testemunhas,
na hora do assalto Sacco estaria no Consulado Italiano, em Boston e Vanzetti em Plymouth.
Mas...quem declarou isto?
Italianos. Todas as testemunhas são italianas. (p.98).

Alguns, são companheiros do partido de Sacco e Vanzetti; outros, são simpatizantes.


Prezados jurados:
não tenho nenhum preconceito contra os italianos,
mas por uma questão óbvia de objetividade, não posso me abster de falar, sobre este tema.
67

Os emigrantes italianos, nem aqui nem em nenhum outro pais,


tentaram integrar-se se com os outros cidadãos;
pelo contrário, isolam-se em grupos separados do resto da comunidade,
e mantém entre si laços do mais inflamado nacionalismo.
Um italiano que mora na América jamais se transforma em um americano;
segue sendo, sempre, um italiano que mora na América.
Há entre eles um desprezo tácito por este país que os acolhe,
que lhes dá de comer e lhes oferece condições de vida que jamais tiveram em seu pais natal.
E todo mundo sabe que todo italiano segue essa lei de ferro, tremenda,
herdada das sociedades secretas medievais:
essa lei de criminosos, conhecida como “Omertá”.
Omertá pela qual se protege um compatriota, sem importar quem seja.
Omertá que proíbe denunciar alguém da mesma raça,
mesmo que este tenha cometido o pior dos crimes.
Omertá, que significa mentira e silêncio.
E agora, escutem bem:
estou falando de uma lei que os partidos políticos de extrema esquerda obedecem cegamente.
Os subversivos, os partidos inimigos da América.
Reflitamos nisto.
Podemos ter certeza de que os álibis de Sacco e Vanzetti não procedem,
justamente, desta cumplicidade, de um encobrimento sinistro, nascido nas leis da máfia ?
O que nos permite pensar que este caso seja uma exceção?
Não é, senhores. (p.99)

A defesa alegou que a constituição do nosso país,


em seu liberalismo esclarecido,
prescreve que um homem
deve ser julgado independentemente de suas ideias políticas, religiosas ou de raça.
Porém, quando estas verdades se transformam em atos criminosos
não podemos invocar a constituição para defende-las,
simplesmente porque se viola o código penal.
É sabido que esses partidos se valem de meios criminosos:
atentados, sequestros, roubos, encobrimentos e corrupção.
Nosso país está atravessando um dos momentos mais tristes e vergonhosos de sua história.
Por isso, senhores jurados, tenho o dever de lembrar-lhes que toda a América os observa.
68

Diante dos senhores,


há dois homens que, além de representar uma ameaça para o nosso amado país,
são dois criminosos.
A parte saudável de América
espera dos senhores uma sentença
que prove que é mentira que a corrupção infestou tudo, e todos.
A América os observa, senhores jurados,
e espera ouvir a límpida e firme voz da incorruptibilidade, da coragem e da justiça.

23
Thayer
Bartolomeu Vanzetti e Nicola Sacco:
o júri reconhece os senhores como culpados de homicídio em primeiro grau.
Tem algo a declarar antes que seja pronunciada a sentença?

Nicola
Eu não sei falar, senhor; não sou um orador. (P.100)

O meu amigo, o meu companheiro Vanzetti vai falar melhor do que eu, certamente.
Mas o que sim posso dizer
é que nunca soube, nem li, nem ouvi que tenha havido na história algo tão cruel
quanto este tribunal.
O senhor juiz, o senhor mesmo, conhece a minha vida, sabe por quê estou aqui,
e agora vai me condenar.
Poderia contar-lhe toda a minha vida, dia após dia; mas...de que adiantaria?
O que é necessário, será dito pelo meu amigo Bartolomeu.
Ele é tão inocente quanto eu, e o senhor o sabe perfeitamente.
Nunca, jamais, nem ontem nem hoje, fui culpado de nada.

Bartolomeu
O que tenho a declarar é que sou inocente.
Não apenas dos assassinatos que me acusam,
69

mas nunca em toda a minha vida roubei, matei nem derramei uma única gota de sangue.
Gostaria que fique bem claro que sempre lutei por terminar com o crime na terra,
não somente o crime que a lei e a moral oficial condenam,
mas também esse outro crime que admitem e protegem:
a exploração do homem pelo homem e a violação contra a dignidade humana.
E se existe alguma razão para que aqui seja julgado,
se existe alguma razão pela qual vão me condenar, é esta e nenhuma outra.
O senhor, Juiz Thayer, ficou contra nós mesmo antes de nos conhecer.
Foi suficiente saber que éramos anarquistas para converter-nos em assassinos.
Permita-me dizer o que penso: não são os nossos pecados os que se julgaram aqui.
São os nossos sonhos. Nossas esperanças. Foi isso o que vocês condenaram. (p. 100)
O que vocês acham que podem matar.
Fazem unicamente porque acreditam que nossos sonhos ameaçam a realidade.
Sonhamos transformar o ódio em amor, e aqui o ódio manda.
Sonhamos com um homem solidário,
e a realidade de vocês só se sustenta com a concorrência selvagem.
Acreditamos na verdade e na liberdade, aqui só vale a opressão e a mentira.
Descobrimos que aqui os direitos e os privilégios só se adquirem e se mantém através da força.
Compreendemos que em nome de Deus, da lei e da pátria,
se cometem os delitos mais ferozes;
que os povos estão corrompidos no coração, nos sentimentos e na mente
por culpa do exemplo e da vontade dos governantes.
Mas também entendemos que a igualdade
é a única base moral sobre a qual pode vigorar o contrato social humano.
E que se nós e a geração que as nossas mulheres carregam em seus ventres
não somos capazes de mudá-lo,
todos teremos fracassado,
e a humanidade continuará sendo cada vez mais miserável e mais infeliz.
Desejo dizer mais uma coisa, senhores jurados, e acreditem que digo de todo o meu coração:
ficaria feliz se me condenassem à morte, somente para poder gritar a todos:
“Fiquem atentos!
Tudo o que te disseram, tudo o que te prometeram, era mentira, uma ilusão, uma fraude”.
Prometeram-nos liberdade...Onde está a liberdade...?
Prometeram-nos prosperidade....Onde está a prosperidade...?
70

Onde está o progresso espiritual que nos prometeram?


Onde está o respeito pela vida humana?
Nunca antes houve, como hoje, senhores do jurados, tantos crimes e tanta corrupção. (p. 102)
Isso é o que gostaria de dizer:
não desejaria nem para um cachorro sarnento, nem para uma cobra,
nem para a criatura mais miserável da terra,
o que eu sofri por delitos que não cometi.
Mas há algo me consola, sofri por crimes que sou culpado.
Sofri, e sofro hoje, por ser italiano; é verdade, sou italiano.
Estou sofrendo por ser anarquista, sou anarquista.
Mas estou tão convencido das minhas ideias, tão convencido de ter razão,
que se os senhores pudessem me mata duas vezes e eu pudesse renascer mais duas,
voltaria a fazer exatamente o que fiz até agora.
Falei muito de mim, e nem sequer mencionei Sacco, meu amigo. Meu companheiro.
Ah, é! Talvez eu fale melhor do que ele, mas acreditem:
muitas vezes tive que conter a minha emoção diante deste homem
a quem vocês chamam de ladrão, a quem chamam de assassino e a quem vão condenar.
Farão isso, eu sei, vão condena-lo
Mas escutem bem o que vou dizer:
podem fazer com ele tudo aquilo que a sua crueldade lhes permitir.
Podem matá-lo, mas quando o fizerem, escutem bem...
o seu nome, Nicola Sacco, seguirá vivo dentro do coração dos homens,
até quando os seus ossos, senhor Katzmann, e os seus, senhor juiz, já tenham virado pó,
e os seus nomes, suas leis e suas tristes instituições não serão mais do que uma lembrança.
Uma negra lembrança desse passado, deste passado,
em que o homem era o lobo do homem.
Terminei. Obrigado por terem me escutado. (p.103)
71

24
Thayer
(Lê) Bartolomeu Vanzetti e Nicola Sacco,
no dia do Senhor de 19 de julho de 1921,
esta corte os condena à morte
transmitindo a passagem de uma corrente elétrica através de seus corpos.
(Medeiros começa a uivar/ a gritar). Esta é a sentença da lei.

25
Rosa
(e junto com ela Luigia, dão um grito dilacerado) Asassini....!!!

Medeiros
Filhos da puta! Soltem esses italianos...! Escrotos! / Arrombados!
Fui eu que assaltei essa fábrica...! Fui eu que matei esses homens!
Fui eu que que vi os olhos de vidrados deles! Os seus rostos pálidos!
A baba e o sangue escorrendo no chão! Fui eu que levei esse dinheiro!
E querem saber o que fiz com a puta da minha parte...?!
Enfiei tanta morfina no fiapo de veia que ainda me resta, mas tanta morfina,
que acabou saindo pelo meu cu...! Doutor e a puta que te pariu...!
Eu quero essa seringa agora, ou arrebento a cabeça contra as grades...!
Quero a seringa e quero um juiz...! Vou confessar o assassinato de South Braitree...!

26
Uma voz
Entre 1921 e 1927 a defesa solicita, em diversas oportunidades, a revisão do caso.
Todos os pedidos são recusados,
um após o outro pelo Juiz Thayer e pela Suprema Corte.
72

A defesa apela para o governador,


que nomeia uma comissão investigadora.
A comissão ratifica a culpabilidade de Sacco e Vanzetti. (p.104)

Medeiros
Filhos da puta, soltem os italianos...!

Uma voz
Durante 6 anos a justiça rejeita uma apelação após a outra.
A execução vai sendo adiada por diversas vezes.
Crescem, ao redor do mundo, os protestos pelo caso.

27
Bartolomeu
Allora mangia...

Nicola
No.

Bartolomeu
Você também não vai falar comigo...?
Nos dão a oportunidade, e você nem vai falar comigo.

Nicola
No.

Bartolomeu
Por quê...? (p.105)

Nicola
Você vai me convencer. Se falar, vai me convencer.
Veio aqui para isso, não é?
73

Bartolomeu
Foi.

Nicola
Pelo menos, é sincero.

Bartolomeu
Já está há duas semanas sem comer. Aonde quer chegar...?

Nicola
Aonde se chega sem comer?

Bartolomeu
A um hospital, com um tubo enfiado pela boca.
Não é mais humilhante?
Allora mangia...
Faz seis anos que estamos aqui...
Vai se render agora...?

Nicola
Agora, antes, depois...? Que diferença faz?

Bartolomeu
Agora temos esperança de novo.

Nicola
Faz seis anos que vivemos de esperanças...!
Quantas e quantas vezes acreditamos...?
Seis anos que brincam com a gente...
Nos levam perto da cadeira, e nos afastam dela. Já chega...!
Quero ter a liberdade de morrer em paz!

Bartolomeu
Mas logo agora.
74

Nicola
Agora.

Bartolomeu
Medeiros repetiu a sua confissão. Eles tem que rever o caso.

Nicola
Você escutou os gritos dele?
Dia e noite, por meses e meses!
Esse homem está maluco, destruído pela morfina,
e vai com certeza para a cadeira elétrica também....
Quem vai acreditar nele?

Bartolomeu
Interrogaram ele de novo. Apresentaram três recursos...

Nicola
Esse pessoal nem vai olhar isso!

Bartolomeu
Já não se trata de Thayer, Nicó...
Quem decide agora é a Corte de justiça.
Há provas de sobra, desta vez.

Nicola
Não me peça fé. A minha fé acabou. (p.107)

Bartolomeu
Não. O que estou pedindo é que não me deixe sozinho.

Nicola
É você quem me deixa sozinho. Sozinho com o medo.
75

Bartolomeu
Medo...?

Nicola
É medo, sim! Medo! De quê...? Medo de ter esperanças de novo. De recomeçar tudo.
De acreditar de novo que há justiça para nós. Quantas vezes já acreditamos,?
Quantas vezes nos agarramos à vida? Para quê?
Para que mil e uma vezes nos digam “Enganamos vocês; preparem-se para morrer”.
Chega...! O melhor que Deus deu ao homem foi morrer só uma vez.
E que ninguém nos avise, nunca, a hora da morte. Quantas vezes já morremos...?
Já contou? Dez? Trinta? Cem? (Não pode conter o choro.)

Bartolomeu
Nicó... (Ficam se olhando um tempo. Se dão um abraço seco e breve.)
Questa volta sara quella buona... (Lhe oferece uma colher de comida.)
Una per Dante...(Uma pausa. Nicola começa a comer.) Una per Agnese...Una per Rosa...

29
Uma voz
Em Paris, vinte cinco mil pessoas na frente da Embaixada dos Estados Unidos
clamam pelo perdão de Sacco e Vanzetti. (p.108)

Em Londres, Berlim, Hamburgo, Moscou, Calcutá, Bruxelas,


milhares de pessoas saem às ruas para pedir clemência para Sacco e Vanzetti.

Bartolomeu
Que outra coisa esperava, advogado?

Thompson
Mais uma vez, está com a razão. Mas ainda temos o governador.
Se apresentamos a apelação ainda a tempo...
76

Bartolomeu
Já chega, Thompson. Fez o que podia.

Thompson
Escute... (p.113)

Bartolomeu
Eu disse chega. Tentou de tudo.

Thayer
Não, a clemência ainda não.
O governador não vai poder negá-la.
Já preparei o ofício. Se aceitam as acusações e pedimos...

Bartolomeu
Justiça.
Se tem uma coisa que pedimos, e continuaremos pedindo, é justiça.
Se eles não nos dão, é porque não a tem. Justiça. Faz anos que não me fala de outra coisa:
Sua justiça. O que está acontecendo agora, Thompson?
Deixou de acreditar nela, e passou a acreditar no perdão...?

Thompson
Não...eu..

Bartolomeu
O perdão quem pede são os culpados. Eu sou inocente.

Thompson
Trata-se de uma estratégia, Vanzetti. Se detivermos a execução poderíamos...

Bartolomeu
O senhor é um grande advogado.
Queria dizer isso.
E vou lhe agradecer até o último segundo tudo o que tem feito por nós. (p. 114)
77

Passamos tanto tempo falando em leis, em recursos, que não tive a chance de dizer isto.
Hoje digo: grande advogado. Agradeço imensamente tudo o que fez pela minha vida.
Agora deixe o que ainda resta comigo.

Thompson
O senhor não pode abandonar agora.

Bartolomeu
Abandonar...? Nunca estive mais perto de uma meta. (Pausa)
Thompson, o senhor não sabe com quanta obstinação defendi minha inocência.
Sou inocente. As pessoas sabem disso.
Os que são como eu acreditam nisso. Não tenho mais nada a pedir.
São eles que nos devem justiça,
e gostaria muito que nos dessem porque isso mostraria o fracasso das suas mentiras,
e a força da nossa verdade.
Porém, se não a nos dão, se não anulam a pena: nada vai gritar mais alto do que a nossa morte,
que esta justiça está podre. Estão presos no seu próprio chiqueiro, Thompson.
No fundo esta é a nossa vitória.

Thompson
Mas...de quê vitória está falando...?

Bartolomeu
Minhas idéias.

Thompson
Dos seus sonhos! (p.115)

Bartolomeu
Pode chamar assim também.

Thompson
Mas eu sou advogado, Vanzetti.
Para mim, não há vitória se não salvar a vida de vocês,
78

e esta depende agora da sua assinatura neste maldito papel.


E nesta maldita decisão do governador do Estado.
Não vou ficar aqui, sentado, esperando um milagre! Assine aqui e me deixe agir!

Bartolomeu
É inútil que volte a me pedir; e nem tente com Nicola. Já tomamos uma decisão.

Thompson
E eu...? O que acha que vai ser de mim..?
Sou o seu advogado...! Isto significa alguma coisa, não?

Bartolomeu
É. E nós, somos libertários. Também significa alguma coisa.

30
Uma voz
Greves na Colômbia, Venezuela, Chile, Brasil, e Argentina.
Na África do Sul, cinquenta mil operários largam o trabalho e se enfileiram nas ruas.

Nicola
Medeiros ... Sou eu, Sacco. (p.117)

Medeiros
E daí...?

Nicola
Eu não o conhecia ainda. O vi no pavilhão algumas vezes, mas nunca aqui, no pátio.

Medeiros
Vai continuar falando por muito tempo...?! (Grita) Guarda...! Carcereiro...!
O gringo aqui está querendo briga...!
79

Nicola
Eu, briga...? Por quê...? Só queria dizer-lhe quem sou. Sou um dos condenados que....

Medeiros
Acha que sou idiota...? Por acaso não te conheço...?
Um milhão de pessoas gritam o teu nome lá fora todos os dias. Sou surdo por um acaso?
Chega. (Grita) Guarda...! Está me fodendo! Sou um homem perigoso...! (Ri)
Vou acabar com este italiano e vão ter que me eletrocutar duas vezes!

Nicola
Me pergunto por quê fez aquilo.

Medeiros
O quê... (p.118)

Nicola
A confissão.

Medeiros
Guarda...! Olha aqui, o gringo...!

Nicola
Todo dia me pergunto se era mesmo o assassino,
ou se confessou somente porque já estava condenado.
Porque não tinha nada a perder.

Medeiros
O quê é que há..? Não gostou, não...? Confessei e pronto...

Nicola
Seja como for, foi misericordioso. Você é um homem bom.

Medeiros
Que merda há com você, gringo...? Confessei porque quis...Porque tenho culhões...
80

Porque posso mostrar para qualquer um os culhões que o Celestino Madeiros tem...
Todas as noites uma multidão fica gritando aí fora por vocês...porque querem salvá-los.
Mas o que conseguiram com seus gritos? Não é por aí que se conseguem as coisas.
Por mim, não tem nem um cachorro sarnento aí fora.
E se tivesse, ele gritaria: “Medeiros filho da puta...! Assassino...lixo....”!
Mas todo este lixo fez por vocês mais do que toda essa merda de advogados.
Mais do que todos esses idiotas aí fora. (p. 119). Por quê...?
Porque eu tenho as bolas que é preciso ter...!
Já te disseram alguma vez quantas vezes já roubei?
Trinta e dois. Cinco mortes nas minhas costas!
Eu estava lá, naquele assalto de South Braintree. Ou não...o que importa?
Conheço bem os olhos dos mortos. Os dentes arrebentados no meio-fio.
O sangue seco, grudando nos dedos. Eu sei que são inocentes.
Vejo isso no seu olhar de ovelha mansa.
E sendo eu um merda, como eu sou, te salvo a vida,
enquanto lá fora nenhum só deles tem culhões para isso!
Vão me eletrocutar...cinquenta mil vólts...Alguém imagina o que é isso...?
E quando este corpo virar um pedaço de carvão na cadeira,
nas sarjetas, nos prostíbulos, nas ruelas o meu pessoal vai dizer, com o chapéu na mão:
Um brinde aos culhões do Celestino Medeiros!

31
No dia 5 de abril, a corte suprema de Massachusetts
confirmou pela segunda vez a decisão do juiz Thayer:
“Ao carrasco, Sacco e Vanzetti!”
O procurador declarou:
“Quanto antes queimem Sacco e Vanzetti,
antes se extinguirá a agitação em seu favor,
terminando assim todo o perigo para nós”.
“Farei tudo o que a Lei me permitir para acabar com eles o quanto antes possível”.
81

Bartolomeu
Será este o meu último primeiro de maio?
Tudo me leva a crer que sim.
Mas eu quero cantá-lo, mais uma vez
e saudar outra vez aos oprimidos, aos rebeldes e a todos os libertários,
na “glória de seu sol luminoso”.
Quero saudar os trabalhadores,
que curvados sobre a máquina, sobre o sulco da terrra, no mar e nas minas,
brinda ócio e honores a quem não produz nada, e possui tudo.

Nicola
04 de agosto de 1927
Meus queridos amigos e companheiros:
Na cela dos condenados à morte,
soubemos pelo comitê de defesa que o governador Fuller,
decidiu nos matar em 10 de agosto.
Não nos surpreende esta notícia, pois sabemos que a classe capitalista é severa,
sem nenhuma piedade com os bons soldados da revolução.
Estamos orgulhosos por morrer e cair como todos os anarquistas podem cair.
Agora é com vocês, camaradas!
Como eu disse ontem, só vocês podem nos salvar,
porque nunca tivemos fé no governador,
sempre soubemos que o governador Fuller, Thayer e Katzmann são assassinos.
As minhas saudações calorosas e fraternais a todos.

Uma voz
A Igreja católica, anglicana, protestante, ortodoxa, a comunidade mussulmana e os rabinos,
pedem ao presidente dos Estados Unidos a clemência.

Luigia
É feia... O que um italiano vem fazer aqui?
Feia e triste, a América.

Bartolomeu
82

Quando vai voltar?

Luigia
Se tudo correr bem, você vem comigo.
Caso contrário, vou levar as tuas cinzas para casa.

Rosa
Vamos voltar, Nicola. Na terceira classe. Do mesmo jeito que a gente veio.
Você vai sair daqui, e vamos voltar.
Quando chegarmos á Torremaggiore,
vou subir no monte, olhar para cá e gritar para a América, até ficar sem voz:
Eu te amaldiçôo!

Nicola
Eu te amo, Rosina. Eu te amo.

Rosa
Vamos gritar. Você vai gritar do meu lado, lá do alto daquele monte...

Luigia
O que esta terra fez a eles!
O Nicola também não quis se confessar,
e nem aquele assassino, o que grita sem parar, quis a confissão.

Bartolomeu
O Medeiros.

Luigia
Tadinho desse maluco. Delira. Diz que o Sacco já lhe deu a absolvição.

Nicola
Dá um abraço forte aos meus filhos. Um beijo a cada um.
Que Dante saiba que nunca deixei de falar nele.
Nem no último segundo. Que ele saiba.
83

Você está tão bonita.

Rosa
Bonita, ele me disse. Você está tão bonita.
lembra de todas as palavras que um homem deve saber.

Nicola
Liberta. Terra. Pace. Speranza...

Rosa
Addio Lugano bella...O dolce terra pia....Banditi sensa terra...gli anarchici vai via....

Luigia
“Eu não posso rezar, Luigia...”, disse...

Bartolomeu
As coisas são as coisas, e a única oração que as coisas tem, são as ações de cada um.

Luigia
Eu agi errado?, me perguntou. Agi pouco?
Quando hoje á noite for caminhando até a câmara ,
cada passo da gente será uma palavra dessa oração que você está pedindo...

Bartolomeu
Cada passo, Luigia...Depois, vou entrar ali, darei o meu último grito

Nicola
Dante...você cresceu, e devo falar-lhe como a um homem.
Tem que consolá-las e protege-las. Eu confio as duas à você.

Rosa
Lembre sempre, disse: ajude os fracos, os perseguidos e as vítimas.
84

Nicola
Dante,
Companheiro é aquele que comparte o pão...

Rosa
...Essa é a nossa idéia, disse.
O final da vida não é o final da esperança:
um homem espera também nos seus filhos.
E nos filhos dos seus filhos.

Nicola
A nossa idéia vai chegar, Dante.
Daqui a alguns anos, ou daqui a um século.
Com outro nome. Com outra forma, talvez, mas vai chegar. Vai chegar.

Luigia
Eles matam você como a Cristo, e você o renega.

Bartolomeu
Nós não somos mártires, Luigia.
Nem profetas.
Somos apenas desses que nascem para viver como formigas.
Mas...formigas que um dia descobriram
que os nossos deveres nos davam também direitos,
e levantamos a voz:
“Permitam-nos viver melhor...”
Então, a engrenagem começou a andar.
Primeiro, nos prendeu.
Agora, nos tritura...

Luigia
Mas, Bartolo, como posso entender...?
85

Bartolomeu
...Como você pode entender, Luigia...Se não fosse por isto, o que teria sido de nós...?
Falaríamos pelas ruas, a homens indiferentes...? Morreríamos desconhecidos...?
Eu nunca teria imaginado fazer tanto a favor dos homens.
No fundo, irmã, esta agonia é a nossa vitória.

Luigia
Me fez o pedido. Pôs a mão assim, na minha cara...
"Te peço que beijes o papai por mim..."

Bartolomeu
...Que o beijes por mim.

Nicola
Querido filho, nunca te esqueças:
não é o corpo do papai o que querem eletrocutar.
São as suas idéias.

Uma voz
23 de agosto de 1927.
O governador e o presidente recusam o pedido de perdão para Sacco e Vanzetti.
Depois da execução de Medeiros, ambos vão morrer na cadeira elétrica.

Luigia
Ele disse:
Aos companheiros desterrados,
em uma pátria que a cada dia se torna mais e mais madrasta.
Aos fugitivos pelos caminhos do mundo.
Aos confinados nas ilhas penais.
Aos sepultados vivos nos bastidores do capitalismo.
Aos desterrados na Sibéria.
A todos vocês, oprimidos, perseguidos, martirizados,
que derramaram todas suas lágrimas.
A todos vocês, que não se renderam,
86

nem entregaram o seu coração indócil e sua vontade de ferro.

Quero saudar, por fim, o túmulo,


as fossas conhecidas y desconhecidas de todos os caídos,
cobri-los das flores mais vermelhas do jardim do meu coração.
Flores para vocês, mortos queridos;
flores e lembranças de pensamentos redentores.
Aos vivos, eu digo:
Resistam.
Depois de toda noite, vem a aurora.
A hora da revolução e da vitória virá.
Salve, companheiros!

Agnese
Quando eu nasci me pai já estava na prisão.
Quando o assassinaram na cadeira elérica,
em 23 de agosto de 1927,
eu tinha 7 anos.
Nicola
Buona sera, signori. Addio Rosa. Addio figli miei. Addio agli amici. Viva l’anarchia

Bartolomeu
Busquei minha liberdade na liberdade de todos,
minha felicidade na dos demais, queria uma casa para cada família,
pão para todas as bocas, educação para todos os corações, luz para todos os intelectos.
Estou convencido de que ainda não começou a História do homem,
que nos encontramos no último período da Pré-História.
Vejo com os olhos da alma que o céu nos fulmina com os raios do novo milênio.
Só queria dizer que nunca cometi nenhum crime; somente alguns pecados.
Eu perdôo os que me fizeram mal.
Gracie a tutti che mi hanno aiutato. Sonno innocente. Buona sera, signori. Viva l’anarchia!

E debaixo do belo sol de maio, grito o meu:


Viva a anarquia e a Revolução Social.
87

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