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20/06/2018 A raiz da greve dos caminhoneiros e a regulação do trabalho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

A raiz da greve dos caminhoneiros e a


regulação do trabalho

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29 Maio 2018

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Quase todas as análises sobre o movimento dos caminhoneiros, assim como
ocorre em outros casos em que o assalariamento não é explícito, assimilam
acriticamente a condição de 'autônomos' dos trabalhadores, sem perceber que a
própria designação é um elemento central da gestão do trabalho pelas empresas,
escrevem em Vitor Araújo Filgueiras, professor de Economia da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e José Dari Krein, professor do Instituto de Economia
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Eis o artigo.

Os preços dos combustíveis têm sido o foco dos debates relacionados ao


movimento que praticamente paralisou o transporte de mercadorias no Brasil
desde a semana passada. Isso não surpreende, pois, de fato, esses preços
(particularmente do diesel) foram o estopim da disputa que estamos assistindo.
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Desde então, muito tem se falado na Petrobrás e na gestão da empresa, o que é


certamente algo bastante relevante, não apenas pela sua influência nos preços
dos combustíveis,bem como por conta do papel que a maior empresa do país
tem em seu desenvolvimento.Também têm aparecido muitas referências à
dependência da economia brasileira em relação ao transporte rodoviário como a
variável chave para explicar o imenso impacto das paralisações nas rodovias.

Mas há algo essencial que não tem aparecidonas discussões: como a forma de
regulação do trabalho no transporte rodoviário de cargas é uma raiz da
crise. O modo como muitas empresas organizam os trabalhadores que
transportam as mercadorias é muito interessante para os seus negócios sob
diferentes aspectos, dentre eles, a tendência a externalizar os conflitos
distributivos inerentes à produção baseada no trabalho assalariado.

Ao invés de contratar trabalhadores formalmente como empregados, empresas


que distribuem suas mercadorias ou aquelas especializadas em transporte de
carga contratam centenas de milhares de motoristas como se fossem autônomos
(via pessoa física ou jurídica). Essa estratégia não é exclusividade do setor, nem
se restringe ao Brasil. Pelo contrário, é um expediente que tem se expandido em 
várias atividades e em diversas partes do mundo. No nosso país, com a crise do
emprego nos últimos anos, essa forma de contratação tem crescido no conjunto
do mercado de trabalho [1].

Não se pode confundir o verdadeiro trabalhador autônomo, aquele não


submetido ao arbítrio alheio, com a estratégia de contratação na qual as
empresas não admitem sua condição de empregadoras. Motorista autônomo, de
fato, é aquele que presta serviços para diferentes clientes, sem depender, nem
estar subordinado, a nenhum deles. Por exemplo, autônomo é aquele motorista
para o qual você liga uma vez para fazer o carreto de sua geladeira. Existem
muitos trabalhadores com esse perfil, mas eles não são a maioria, nem os
protagonistas do transporte de cargas no Brasil.

Quem dita a dinâmica do setor são empresas, sejam elas donas das cargas ou
firmas especializadas no próprio transporte. Elas contratam e gerem centenas de
milhares de trabalhadores para realizar as atividades de distribuição. Para isso,
uma parte dos motoristas é admitida como empregado, enquanto outra fatia,
provavelmente a maior, é contratada como se não fosse assalariada, a despeito
da sua subordinação aos ditames empresarias. No início de 2017, de acordo com
a Confederação Nacional dos Transportes (CNT), estavam inscritos
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1.664 milhões de veículos para transporte de cargas no país, sendo


1.088 milhões de propriedade de empresas e 553 mil vinculados a
motoristas classificados como autônomos [2].

Enquanto isso, segundo a RAIS, as empresas de transporte de carga mantinham


não mais do que 868 mil trabalhadores como empregados formais, aí
incluídos não apenas motoristas, mas todas as demais funções.

As nomenclaturas podem confundir (carreteiro/agregado - Transportador


Autônomo de Carga (TAC) - Eventual/(TAC) - Agregado, Empresa de
Transporte Rodoviário de Cargas - ETC), mas a contratação de motoristas sem
a admissão do vínculo de emprego tem a mesma lógica: é uma estratégia de
gestão do trabalho. É comum motoristas supostamente autônomos (muitas
vezes contratados como pessoas jurídicas) trabalharem sempre para a mesma
empresa e com exclusividade, em horário e com preços de frete unilateralmente
impostos pela contratante. O pagamento desses motoristas depende
exclusivamente do número de fretes realizados, e seu trabalho é
meticulosamente monitorado por satélite/GPS. As empresas também dirigem
as atividades impondo prazos exíguos e multas para atrasos. Em suma, há uma
série de evidências da completa falta de autonomia desses “autônomos”. 
É possível ter uma ideia da dimensão da gestão do trabalho via contratação de
motoristas sem formalização do vínculo de emprego por meio de dados das
Fiscalizações do Ministério do Trabalho. Para ilustrar, em 2012,
auditorias em apenas 9 empresas de transporte de carga identificaram que
92.654 motoristas de caminhão trabalharam como empregados sem carteira
assinada, sendo irregularmente contratados como “autônomos” pessoas físicas
ou vinculados a 20.458 pessoas jurídicas terceirizadas.

Ao contratar motoristas sem admitir sua condição de empregadoras, as


empresas não cumprem nenhum direito trabalhista. Assim, tornam a vida
desses trabalhadores completamente inseguras, sem sequer uma renda mínima
(um salário básico) para sobreviver. O frete, que, de fato, constitui o salário
desses trabalhadores, costuma não obedecer qualquer parâmetro mínimo.
Também não há descanso remunerado, férias, etc. O motorista se sente
completamente dependente da execução de cada serviço,e por isso tende a
trabalhar mais e descansar menos.

Apenas nas Fiscalizações do Ministério do Trabalho citadas foram


identificadas 472.606 jornadas de trabalho superiores a 10 horas por dia.
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Segundo o órgão, a maioria dos acidentes envolvendo caminhões está


relacionado ao cansaço por jornadas excessivas. Não parece ser coincidência
que, em pesquisa da própria CNT [3], de 2016, só 23,3% dos motoristas
entrevistados ditos autônomos afirmaram estar satisfeitos e cumprindo as
normas de descanso e 65% disseram não cumprir a lei, enquanto entre os
motoristas empregados, 67% estavam satisfeitos e 51,7% afirmaram cumprir os
descansos previstos na lei. Apenas 21% dos autônomos disseram que
flexibilidade de horário é um ponto positivo do trabalho.

A questão, do ponto de vista da gestão do trabalho, é que o trabalhador


contratado como autônomo tende a ser ainda mais subordinado à empresa, pois
sua relação é completamente precária e cada frete pode ser o último.

Mas não para por aí. À negação dos direitos trabalhistas se soma a transferência
dos custos dos insumos (combustível, pneus, manutenção, etc.) aos
trabalhadores ditos autônomos. Desse modo, além de não ter renda certa, os
motoristas têm que cobrir os custos inerentes à atividade, radicalizando sua
insegurança. As empresas gastam menos, correm menos risco e têm um
trabalhador ainda mais dócil laborando em seu benefício.

Não bastasse, ao transferir para o trabalhador o risco do negócio, incluindo os
custos dos insumos, as empresas têm conseguido desviar da relação de trabalho
o foco da disputa distributiva. Aceitando a condição de “autônomo” imposta
pelas empresas, o motorista tem visto nos preços dos insumos uma fonte de
determinação dos seus ganhos mais importante do que o preço pago pelos seus
serviços. Antes da atual crise, outras mobilizações já traziam como principal
demanda o preço do combustível. Segundo a supracitada pesquisa da CNT,
56,4% dos motoristas enquadrados como autônomos considerava o custo do
combustível o principal problema do seu trabalho (contra apenas 24,9% dos
contratados como empregados), e apenas 1% apontava o valor do frete como a
reivindicação mais importante para a categoria.

Pensemos o seguinte: por que a mobilização para reduzir o preço do diesel não
atinge os motoristas de ônibus? A resposta é simples: Porque as empresas de
ônibus (ainda) não negam a condição de assalariamento dos seus trabalhadores
e, consequentemente, o aumento do preço é um problema fundamentalmente
das empresas. Quão improvável é ver trabalhadores de siderúrgicas e
montadoras de carros reivindicando a redução do preço do carvão e dos pneus,
ao invés de pleitear melhores salários?

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Estamos tratando da atividade em que mais morrem empregados no Brasil


todos os anos, segundo as fontes oficiais - mais de 10% dos mortos no conjunto
do mercado de trabalho formal, consideradas as atividades isoladamente. Como
a subnotificação dos infortúnios pode chegar a 90% entre todos os trabalhadores
acidentados no Brasil [4], ela provavelmente é pior no setor de cargas, dado o
desproporcional contingente de motoristas não admitidos como empregados
formais.

Vale ressaltar que a regulação pública do trabalho, seja nas leis, seja na atuação
das instituições, têm contribuído para legitimar esse cenário. A contratação de
trabalhadores como autônomos, pelas empresas, não é novidade no setor, mas
parece ter piorado. A regulação dos TAC, ETC, etc. tende a legitimar e
recrudescer essa estratégia, ainda mais estimulada com a recente reforma
trabalhista. No judiciário, a disputa sobre os limites ao uso de motoristas de
carga como assalariados disfarçados está suspensa desde o final de 2017, por
conta de uma liminar do STF concedida por Luís Roberto Barroso [5].

O processo de disputa focado no preço dos insumos não é determinístico.


Mesmo no assalariamento disfarçado dos motoristas contratados como
autônomos, a luta poderia ser por melhores salários. A rigor, a demanda está 
presente na atual greve, pois a tabela com preço mínimo do frete é apenas um
eufemismo para uma espécie de salário mínimo. Todavia, tal demanda está
longe de ser a pauta que tem sido mais enfatizada. Os motoristas parecem
mesmo assumir a retórica empresarial de que são autônomos, de modo que
sofrem, morrem, mas não demandam serem menos explorados por seus
empregadores.

Quase todas as análises sobre o movimento dos caminhoneiros, assim como


ocorre em outros casos em que o assalariamento não é explícito, assimilam
acriticamente a condição de “autônomos” dos trabalhadores, sem perceber que a
própria designação é um elemento central da gestão do trabalho pelas empresas.
Enquanto isso, por ser no custo do insumo a disputa que estamos assistindo, os
empresários se aproveitam da afinidade eletiva entre patrões e empregados, e
apoiam (ou mesmo promovem) as paralisações.

A regulação do trabalho é um elemento estrutural para entender os eventos


recentes no Brasil. Trabalhadores são precarizados e geridos pelas empresas de
tal modo que direcionam seus esforços sem perceberem ou serem capazes de
enfrentar quem fundamentalmente impõe seus baixos rendimentos, grande
instabilidade e péssimas condições de trabalho.
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Notas

1- Pesquisa CNT de perfil dos caminhoneiros 2016. – Brasília: CNT, 2016.

2 - Anuário CNT do transporte – estatísticas consolidadas 2017. – Brasília:


CNT, 2017.

3- Pesquisa CNT de perfil dos caminhoneiros 2016. – Brasília: CNT, 2016.

4 - Ver, Filgueiras, Vitor. Saúde e segurança do trabalho no Brasil. 1. ed.


Brasília: Movimento, 2017. Disponível em: http://www.cesit.net.br/saude-e-
seguranca-do-trabalho-no-brasil/

5 - Se o leitor não tiver medo de se assustar com o nível a que pode chegar uma
decisão judicial, vale a leitura da redação de Barroso, disponível na internet.
Recomendamos, para compensar, o texto de Rodrigo Carelli: “Barroso versus
o mundo: o contrato-realidade e o transportador autônomo de cargas”,
disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/barroso-versus-
o-mundo-o-contrato-realidade-e-o-transportador-autonomo-de-cargas-
21032018.

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