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Boa e má

amarfanhadas
masculinas e descombinadas, calças
usandocores no seu cabelo mal
de sopa e lenços espalhafatosos
manchadas ela estava
seu rosto ficava muito vermelho quando
cortado. pobre-
ela cheirava a suor. Não era só que ela ostentasse
doaulae
usava a mesma saia e blusa pretas e
A madameTournier
era cortada em viés e a blusa
todosanto dia, mas a saia
surradas era de seda de
esverdeada e rota de tão velha,
preta,que já estava
prestígio eram de extrema importância
boaqualidade.Estilo,
paranós na época.
enfren-
Elanos mostrava filmes e slides sobre os problemas
todos por culpa dos
udospor mineradores e estivadores chilenos,
EUA. A filha do embaixador estava na turma e também algumas
Freirasfizeram de filhasde almirantes. Meu pai era engenheiro de minas, trabalha-
tudo para me ensinar
Ia secundária
foi miss a ser boa. Na vacoma CIA.Eu sabia que ele realmente acreditava que o Chile
Dawson. colégio
nós na escola Santiago, 1952. precisavados Estados Unidos. Miss Dawson achava que estava
pretendíamos estudar seis de
em universidades abrindojovensmentes impressionáveis, quando na verdade esta-
um cursode educação americana
americana coma nova cívica e história vafalandopara adolescentes americanas mimadas. Cada uma de
professora professora,Ethel nóstinha um papaizinho americano rico, bonito e poderoso.
americana na Dawson. Ela eraa única
escola, as outras eram Garotasdessa idade sentem pelos pais o mesmo que sentem pelos
chilenas ou
Todas nós cavalos.É uma paixão. Ela dava a entender que os nossos pais
éramosmás
provanum com ela, mas eram vilões.
determinadodia eu era a pior.
e nenhuma se ia ter
de nós havia Como quase sempre era eu que falava, foi comigo que ela
cadsden durante estudado
0 tempo cismou,me mantendo em sala depois da aula, e um dia até
mente em inteiro da aula andoucomigo pelo jardim de rosas, reclamando do elitismo da
apuros,de ou, se
fazê-la falar sobre
segregação ou irnFria- escola.Eu perdi a paciência com ela.
dela, "O que é que você está fazendo aqui, então? Por que você
code quem
é de Bostonimitando seu jeito não vai dar aula para os pobres, já que se preocupa tanto com
sapatos, For Ela usava nasalado de falar,
causa de urn salto típi-
sos de aro urna eles?Por que ter qualquer ligação que seja com esnobes que nem
de metal- uxquelade ortopédico num
Tinha poliomielite, e a gente?"
dentes es óculos grc»
Pareciaque ela, paçadose Ela me disse que tinha sido ali que lhe ofereceram emprego,
Piorava urna voz horrível
sua vjrque ela era professora de história americana. Ainda não sabia
aparência de
propósito
falarespanhol, mas passava todo o seu tempo livre prestando
assistência aos pobres e
realizando trabalhos
pos revolucionários. Disse
que não era perdavoluntários
com a gente... se ela
conseguisse mudar a
de tempo dise à minha mãe que ia ajudar os pobres. Ela ficou enojada,
mentalidadede com medo de doenças, preocupada com os assentos dos vasos
urna
"Talvez você seja essa pessoa", sanitários.Até eu sabia que os pobres do Chile não tinham assen-
num banco de pedra. O
disse ela. Nós tosde vasossanitários. Minhas amigas ficaram chocadas com o
intervalo estava quase nos fatode eu me dispor a sair com a miss Dawson para onde quer
no fim.Perfume
quefosse.Disseram que ela era maluca, fanática e lésbica. Eu
"0 que você costuma fazer
nos fins de semana?", tinhaenlouquecido por acaso?
guntou. O primeiro dia que passei com ela foi horrível, mas eu man-
Não era difícil parecer tiveo trato para não dar parte de fraca.
completamente fútil, mas
mesmo assim. eu Todo sábadode manhã íamos até o depósito de lixo da cida-
Cabeleireiro, manicure,
costureira.Almoçono
Charles. Polo, rúgbi ou críquete, de,numa camionete carregada de panelas enormes de comida.
thés dansants, jantares,
até o dia raiar. Missa em El Bosque festas Feijão,mingau, biscoitos, leite. Montávamos uma enorme mesa
às sete da manhã de
go, ainda com as roupas da noite domilb numcampo, perto de quilômetros de barracos feitos de latas
anterior. Depoiscountry club
para tomar café da manhã, jogar achatadas.Uma torneira de água torta a uns três quarteirões de
golfe ou nadar, ou talvezAlgar.
robo, para passar o dia na praia ou distânciaservia a toda a comunidade que morava nos barracos.
esquiando no inverno.Cine Em frente aos esquálidos casebres de meia-água, havia fogueiras
ma, claro, mas em geral passávamos
a noite inteira dançando. ondeardiam aparas de madeira, papelão, sapatos, e que eram
"E pra você essa vida é satisfatória?", ela
perguntou. usadaspara cozinhar.
A princípio o lugar parecia deserto, apenas quilômetros e
"E se eu lhe pedisse para me dar os seus
sábadosduranteum quilômetrosde dunas. Dunas de lixo malcheiroso, ardendo len-
mês, você toparia? Só para você ver uma
parte de Santiago
que tamente.Depois de um tempo você começava a perceber que,
você ainda não conhece." atrásda poeira e da fumaça, havia pessoas espalhadas pelas dunas.
"Por que você está propondo isso pra mim?" Maselas eram da mesma cor da sujeira, seus andrajos iguais ao
"Porque, basicamente, eu acho que você é uma boapesoa, lixoem que rastejavam. Ninguém ficava de pé, todos andavam
E acho que você pode aprender com isso." de quatro, como ratos, enfiando coisas dentro de sacos de ania-
Ela segurouminhas
duas mãos. "Experimente." gemque faziam com que parecessem animais com corcovas,
Boa pessoa. Mas ela tinha me fisgado antes, com a palavra dandovoltas,disparando, chegando perto uns dos outros, encos-
revolucionários.Eu queria de fato conhecer revolucionários, tando os narizes, escorregando encosta abaixo, desaparecendo
que eles eram maus. feitoiguanasdetrás das cristas das dunas. Mas, assim que a comi-
Todo mundo pareceu ficar muito mais contrariadodoque da foi posta na mesa, dezenas de mulheres e crianças aparece-
era necessário com a ideia de eu passar os meus sábadoscoma ram,molhadase sujas de fuligem, cheirando a putrefação e
miss Dav,son, o que só serviu para comidaestragada.Elas ficaram agradecidas pelo café da manhã,
aumentar a vontade de ir.Eu

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comendo agachadas e com os cotovelos ossudos para fora
conversas revolucionárias, mas sim conversas sobre
louva-a-deus, nos morros de lixo. Depois de comerem, as Eu não ouvia
se amontoaram ao meu redor. Ainda rastejando ou esparramada trabalhoe dinheiro ou piadas sujas. Todos nos revezamospara
um vinho rústico, usando as mes-
no lixo, passaram a mão nos meus sapatos e pela minha comer lentilha e tomar chicha,
outras pessoas haviam acabado de usar.
-calça. mas tigelas e copos que
"Que bom que você não liga pra sujeira", disse miss Daw-
"Viu? Elas gostam de você", disse miss Dawson. "Isso
faz você se sentir bem?" son, sorrindo.
"Eu cresci em cidades mineradoras. Tinha muita sujeira."
O que eu sabia era que elas gostavam dos meus sapatos,
da
Mas as cabanas dos mineradores finlandeses e bascos eram boni-
minha meia-calça,da minha jaqueta vermelha Chanel.
tinhas, com flores, velas e Virgens de rosto doce. Aquele lugar
Miss Dawson e os amigos dela saíram de lá animadíssimq
era feio e imundo, com slogans cheios de erros de ortografia nas
conversando alegremente na camionete. Já eu estava enojada
e paredes, panfletos comunistas pregados com chiclete. Havia uma
deprimida.
fotode jornal do meu pai com o ministro de Minas, manchada
"De que adianta alimentar essas pessoas uma vez por
de sangue.
na? Isso não melhora a vida delas em nada. Pelo amor de Deus "Ei!", eu disse. Miss Dawson pegou a minha mão e a acari-
elas precisam de muito mais que biscoitos uma vez por semana' ciou. "Shh! Nós aqui só nos tratamos pelo primeiro nome", ela
Certo. Mas até que a revolução viesse e tudo passasseaser disseem inglês. "Pelo amor de Deus, não diga quem você é.
compartilhadovocê tinha que fazer o que pudesse paraajudar, Escute, Adele, não se sinta desconfortável. Para crescer, você pre-
mesmo que parecesse pouco. cisa encarar todas as verdades a respeito das personas do seu pai."
"Elas precisam saber que alguém tem consciênciadeque "Não com sangue nelas."
moram aqui. Nós dizemos a elas que em breve as coisaslio "Sim, exatamente desse jeito. Existe uma grande possibili-
mudar. Damos esperança para essas pessoas, é isso", dissemis dade de algo assim acontecer e você precisa se conscientizar dis-
Dawson. so." Ela apertou minhas duas mãos então.
Almoçamos num apartamento do sexto andar de um prédio Depois do almoço, ela me levou para El Niño Perdido, um
no sul da cidade, sem elevador. A única janela davaparaum orfanatoinstalado num velho prédio de pedra coberto de trepa-
poço de ventilação. Um fogão portátil e nada de água encanadl deiras, no sopé dos Andes. Era administrado por freiras francesas,
Toda a água que eles usavam tinha que ser carregada pelasesc* velhinhas encantadoras, com toucas em forma de flor-de-lis e
das até lá em cima. A mesa psta tinha quatro tigelas e quatro hábitosde um tom azulado de cinza. Elas flutuavam pelos cô-
colheres, uma pilha de pão no centro. Havia muita gentelá, modosescuros, acima dos pisos de pedra, planavam pelas passa-
conversando em pequenos grupos. Eu falava espanhol, maseles gens ao redor do pátio florido, abriam persianas de madeira, cha-
falavam um carregado caló quase sem consoantes, que eu tinha mando as crianças com vozes de passarinho. Afastavam crianças
dificuldade de entender. Eles nos ignoravam, olhando para loucas que estavam mordendo suas pernas, arrastando-as pelos
com um ar de tolerância zombeteira ou com completo desdém pezinhosminúsculos. Lavavamdez rostos em sequência, todos

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porque eu fosse boa, mas porque
os olhos cegos. Davam de comer a seis gigantes eu adorava ir lá, não
de me ver e
esticando o braço para cima para lhes dar colheradas de mingau brincar. ou a saraus
gostava de íamos ao teatro revolucionário
de aveia. Sábado à noite do nos-
Todos os órfãos tinham algum tipo de problema.Algurb Ouvimos os maiores poetas
de poesia. viria a amar e
Eram poetas cuja obra eu mais tarde
eram loucos, outros não tinham pernas ou eram mudos,alguns so século. eu não
quais viria a estudar e ensinar. Mas na época
tinham tido o corpo inteiro queimado. Não tinham narizouore. sobreos Éramos as
sofria, angustiada, constrangida e confusa.
lhas. Bebês sifilíticos e adolescentes mongoloides. Asdiversas ouvia. Só ataques contra os
americanas lá e só o que eu ouvia eram
moléstias transbordavam de todos os quartos, extravasandopara únicas a política
Unidos. Muita gente me fazia perguntas sobre
o pátio e para o lindo jardim descuidado. Estados as pergun-
não sabia responder; eu transmitia
"Há muita coisa a fazer", disse miss Dawson. "Eu gostode americanaa que eu envergonhada e
e traduzia as respostas dela,
dar mamadeira e de trocar as fraldas dos bebês. Você talvezgoste tasa miss Dawson aquelas pessoas, sobre
estava dizendo para
de ler para as crianças cegas... todas elas parecem muito inteli- perplexacom o que eu quanto
segregação,sobre o Plano Anaconda. Ela não percebia
gentes e muito entediadas." desprezavam, como elas debochavam dos
aquelaspessoas nos
Havia poucos livros. La Fontaine em espanhol. As crianças sobre a realidade delas. Riam do meu
clichêscomunistas banais
estavamsentadasem círculo, me encarando com olharesreal- unhas, das minhas caras roupas
corte de cabelo e das minhas
mente vazios. Nervosa, eu propus uma brincadeira, uma espécie eles me botaram no palco e o
informais.Num grupo de teatro,
de jogo de bater palmas e pés parecido com a dança das cadeiras. me diga por que você está no
diretorberrou: "Pois bem, gringa,
Elas gostaram da brincadeira e outras crianças também. me sentar, ao som de vaias e
meu país!".Eu gelei e fui correndo
Eu detestava ir ao depósito de lixo aos sábados, mas gostava que não pod ia mais
gargalhadas.Por fim, eu disse a miss Dawson
de ir ao orfanato.Gostava até da miss Dawson enquanto
saircom ela nas noites de sábado.
mos lá. Ela passavao tempo todo dando banho e ninandoos Consomê de
Jantare música na casa de Marcelo Errazuriz.
perfu-
bebês e cantando para eles, enquanto eu inventava jogos e brin-
martíniem pequenas taças na varanda, diante de jardins
cadeiras para as crianças mais velhas. Algumas coisas funciona- mados.Um jantar de seis pratos que começou às onze. Todo
vam e outras não. Corridas de revezamento não funcionavam, mundo caçoava de mim por causa dos meus dias com miss Daw-
porque ninguém queria passar o bastão. Pular corda era ótimo, son,imploravaque eu contasse para onde ia com ela. Eu não
porque dois meninos com síndrome de Down batiam corda conseguiafalar sobre isso, nem com meus amigos nem com
durante horas a fio sem parar enquanto todo mundo, principal* meuspais. Lembro de alguém fazer uma piada sobre mim e os
mente as meninas cegas, se revezava
para pular. Até freiras entra- meusrotos,como os pobres eram chamados na época. Eu sentia
vam na brincadeira; pulando e pulando, vergonha,consciente de que ali os empregados eram tão nume-
elas flutuavam, azuis,
no ar. Ciranda, cirandinha. Passa rososquanto os convidados.
anel. Pique esconde não fun-
cionavaporque ninguém batia Fui com miss Dawson a um protesto de trabalhadores em
pique. Os órfãos ficavam felizes

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frente à embaixada
dos Estados
ou menos um Unidos. Eu
quarteirão quando só
Wise, me arrancou um amigo tinha
do meio da do mente deixar miss Dawson sozinha na esquina. Eles disseram
multidão e me meupai,F
levou que iam falar com ela. Nós três fomos até Ahumada, até a esqui-
Ele estava na onde ela estava plantada orgulhosamente, enquanto transeun-
furioso. 'Que
Ele logo percebeu raios você
0 que miss acha que tes passavampor ela resmungando "gringa loca" ou "puta coia"
que eu não Dawson era está
entendia incapaz "Não é adequado, em Santiago, uma mocinha fazer esse
fazia a menor absolutamente nada tipo de coisa, e nós vamos levá-la para casa", foi tudo o que Tito
ideia do que de política,
seria desastroso aquilo significava. dissepara ela. Miss Dawson olhou para ele com desdém e alguns
para o meu pai Ele
se a imprensa dias depois, no corredor da escola, me disse que era errado deixar
que homens ditassem as minhas ações. Eu disse a ela que tinha
Numa outra tarde
da cidade de sábado, a sensação de que todo mundo ditava as minhas ações, que eu já
arrecadar dinheiro concordei em ir
para 0 orfanato. vinha saindo com ela aos sábados um mês a mais do que tinha
esquina e miss Fiqueiparada
Dawson em outra. prometido e que não ia mais fazer isso.
dezenas de pessoas Em apenasalgunsminuto "E um erro você voltar para uma existênciatotalmente
já tinham me
entendia, balançava insultado e me xingado.Eu
meu cartaz que não egoísta.Lutar por um mundo melhor é a única razão que há para
dido" e chacoalhava dizia "Doe paraElNiñoper. viver.Você não aprendeu nada?"
a minha caneca.
estavam a caminho Tito e Pepe, "Eu aprendi muito. Sei que muita coisa precisa mudar, mas
do Waldorfpara
sa, eles me tomar café. Maisque essa é uma luta deles, não minha."
tiraram de lá e depre9
me forçaram a ir "Eu não acredito que você tem coragem de dizer uma coisa
"Aqui não se faz tomar cafécome16
os pobres. Você esse
tipo de coisa. Quem dessas.Você não vê que é exatamente issoque está erradono
está ofendendo pede
implorar o que os pobres. Para uma mulheÇ mundo, essa atitude?"
quer que seja passa
vai destruir uma imagem chocante. Ela foi manquejando para o banheiro, chorando, e entrou
a sua reputação.
que você não Além do mais, ninguém atrasadana sala, onde nos disse que estávamos dispensadas.Nós
vai ficar com vaiacreditar
jeito nenhum o dinheiro. Uma seissaímosda sala e fomos para o jardim, onde sentamosna
ficar plantada moça nãopodede
ou almoços na rua sozinha. Você podeira bailes grama longe das janelas para que ninguém visse que não estáva-
beneficentes, mas mos em aula. As meninas me provocavam, dizendo que eu esta-
outras classes é ter contato físico com pessoas de
simplesmente vulgar va partindoo coração da miss Dawson.Ela obviamenteestava
tração ofensiva e, para eles, é uma demony
de condescendência. apaixonadapor mim. Por acaso ela tinha tentado me beijar? Isso
pode de forma E, mais ainda, vocênão
alguma se dar ao me deixou realmente confusa e enraivecida. Apesar de tudo, eu
uma pessoa luxo de ser vista em públicocom
da inclinação estavacomeçando a gostar dela, do seu comprometimento ingê-
Jovem demais, sexual dela. Minha querida,vocêé
você não nuo e persistente, da sua postura esperançosa. Ela era como uma
Tomamos café entende...
dizer. Então, jamaicano e eu ouvi o que eles tinhama criancinha, uma das menininhas cegas do orfanato quando elas
faleique entendia, arfavamde prazer, brincando no irrigador. Miss Dawson nunca
mas que eu não podia simpl&
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simplesmente não
haviaflertado
comigo e também não ficava o tempo todo
de alguém ou na praia, mas a senhora
como os meninos faziam. Mas ela queria
na casa no Chile."
do me tocar aí nua desse jeito
eu não queria fazer e eu me sentia pode sair por de você. Você vai ficar a vida
inteira parali-
fizessecoisasque "Eu sinto pena pessoas dizem que
pessoapor não
querer fazê-las, por não me importar mais
pelo que todo mundo faz, pelo que as
sada aos
injustiçano mundo.
As meninas ficavam zangadas ou fazer. Eu não me visto para agradar
vocêdeve pensar
que eu me recusavaa
falar sobre ela e me chamavam de quente hoje, e eu me sinto confortável com
outros.Está muito
Não havia ninguém com quem eu
rada da miss Dawson. pudo esse vestido."
ninguém a quem eu pudesse confortável, As pessoas vão
se falarsobre essascoisas, "Bom... eu não vou me sentir
o que era certo ou errado,
então eu só me sentia errada. para nós na rua. Aqui é diferente dos Esta-
dizercoisasgrosseiras
Ventavamuito no último dia em que fui ao depósitodeb dosUnidos..."
Lufadasjogavamareia no mingau, pitadas de grãos cintilantQ
acontecer com você seria você
"Amelhor coisa que poderia
Quando os vultos se erguiam nas colinas, era em meioa de vez em quando."
se sentir desconfortável
redemoinhode sujeira, de forma que eles pareciam fantasma Pegamosvários ônibus apinhados para chegar à fazenda
sob o sol forte e
prateados,dervixes.Nenhum deles tinha sapato e seus onde seria realizada a assembleia, esperando
uma
vamsilenciosamenteos montes úmidos. Eles não diziam viajandoem pé nos ônibus. Saltamos e fomos andando por
nem gritavam uns com os outros como a maioria das pesg)asque alamedalinda, ladeada de eucaliptos, depois paramos para nos
trabalham juntas, e nunca falavam conosco. Além das colinas& refrescarno riacho ao lado da alameda.
lixo fumegantesficava a cidade e, acima de todos nós, a branca Chegamos tarde demais para ouvir os discursos. Havia um
cordilheira dos Andes. Eles comeram. Miss Dawson nãodisse palcovazioe uma faixa que dizia "A terra de volta para o povo"
uma palavra, recolhendo panelas e utensílios ao som dossuspiru penduradaenviesadaatrás do microfone. Havia um pequeno
do vento. grupode homens de terno, obviamente os organizadores, mas a
Tínhamoscombinadoir a uma assembleia de trabalhadora maioriaali era de lavradores. Havia algumas pessoas tocando vicy
rurais fora da cidade naquela tarde. Comemos churrasquinhona Iãoe uma multidão aglomerada ao redor de um casal que dan-
rua e passamosno apartamento dela para que ela trocassede çavaLa Cueca de um jeito meio desanimado, sacudindo lenços
roupa. languidamenteenquanto davam voltas em torno um do outro.
O apartamento era sujo e abafado. O fato de o fogão Algumaspessoasse serviam de vinho de tonéis imensos enquan-
ficar em cima do reservatório de água do vaso sanitário me to outrasfaziam fila para se servir de espetinhos e feijão. Miss
sou engulhos, assim como o cheiro de lã Dawsonme falou para ir procurar um lugar para nós em alguma
velha, suor e calrlo. Ela
se despiu na minha frente, o dasmesas,que ela levaria nossa comida.
que eu achei chocante e assustad(l,
seu corpo deformado nu, Eu me espremi no canto de uma mesa cheia de famílias.
branco-azulado. Pôs um vestidode
verão sem manga, sem sutiã. Ninguémestavafalando de política; parecia que eram só pessoas
"Miss Dawson, não teria
problema usar essa roupa à
docampoque tinham vindo para aproveitar o churrasco
de gra-
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ça. Todo mundo estava muito, muito bêbado. Conseguiavistar
miss Dawson tagarelando sem parar na fila. Ela também estava lavar,esfregando a boca e o peito. Só o que conseguiu foi ficar
tomando vinho, gesticulando e falando muito alto para queas molhadae enlameada. Sentou na margem, chorando,o nariz
pessoas pudessem entendê-la. escorrendo.Eu lhe dei o meu lenço.
"Senhorita Perfeita! Um lencinho de linho passado a ferro!",
"Não é maravilhoso?", ela perguntou, trazendo dois pratos
enormes de comida. "Vamos nos apresentar. Tente conversar ela debochou.
"Sim", eu disse, já de saco cheio dela e só preocupada agora
mais com as pessoas. É assim que a gente aprende e ajuda."
em voltar para casa. Ainda chorando, ela saiu mancando pela
Os dois lavradores ao nosso lado concluíram, às gargalhadas,
alamedaem direção à estrada principal, onde começou a fazer
que éramos de outro planeta. Como eu temia, eles ficaramabis
sinalpara os carros que passavam. Eu a puxei de volta para o
mados com os ombros nus e os mamilos à mostra da missDaw-
meio das árvores.
son, não conseguiam entender o que ela era. Eu me dei contade "Olha, miss Dawson, a senhora não pode pegar carona aqui.
que não só ela não falava espanhol, como era quase cega.
Elesnão entendem... isso é pedir para entrar numa encrenca,
tava os olhos detrás de suas lentes fundo de garrafa, sorrindo, duasmulheres sozinhas pegando carona. Por favor,me escute!"
não conseguia ver que aqueles homens estavam rindo de nóse Mas um lavrador num caminhão velho tinha parado, o
não gostavam de nós, fôssemos o que fôssemos. O que estávamos motortrepidando na estrada poeirenta. Eu lhe ofereci dinheiro
fazendo ali? Ela tentou explicar que era do partido comunista, paranos levar até os arredores da cidade. Ele estava indo para o
mas, em vez de dizer partido, ficava erguendo brindes à "fiesta", centroda cidade, poderia facilmente nos levar até a casa dela por
e então eles brindavam com ela: "La Fiesta!". vintepesos. Subimos na carroceria do caminhão.
"A gente tem que ir embora", eu disse, mas ela se limitoua Ela pôs os braços em volta de mim no vento. Eu sentia seu
ficar olhando para mim, boquiaberta e bêbada. O homemao vestidomolhado, os pelos grudentos do seu sovaco enquanto ela
meu lado estava me paquerando sem muita convicção, maseu se abraçavaa mim.
estava mais preocupada com o homenzarrão bêbado ao ladoda "Você não pode voltar para aquela sua vida fútil! Não vá
miss Dawson. Ele estava acariciando os ombros dela com uma embora!Não me deixe", ela ficou repetindo até finalmente che-
das mãos enquanto comia uma costela com a outra. Ela estava garmosao seu quarteirão.
rindo sem parar, até que ele começou a agarrá-la e beijá-la.Aíela "Tchau", eu disse. "Obrigada por tudo", ou alguma boba-
desatou a berrar. gemparecida. Eu a deixei no meio-fio, piscando os olhos para o
Miss Dawson acabou no chão, chorando e soluçando incon- meu táxiaté que ele dobrou a esquina.
trolavelmente. Muita gente correu até lá no começo, mas As empregadas estavam encostadas no portão, conversando
foi todo mundo embora, resmungando: "Não é nada. Só uma com o carabinero da vizinhança, então eu achei que não havia
gringa bêbada". Os homens do nosso lado agora nos ignoravam ninguémem casa. Mas o meu pai estava lá, trocando de roupa
totalmente. Ela se levantou e começou a correr na direçãoda para ir jogar golfe.
estrada; eu fui atrás. Quando chegou ao riacho, ela tentouse "Você chegou cedo. Onde você estava?", ele perguntou.

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"Num piquenique, com a minha
professorade
"Legal.Ela é comunista." Melina
Simplesmente falei sem pensar.
Tinha sido um
Eu estava de saco
cheio da miss Dawson.
Mas foi
Três palavraspara 0 meu pai. Ela
foi demitidaem
mento daquele fim de semana e nós nunca
mais a vimos.
Ninguém mais sabia o que tinha
meninas ficaram contentes
acontecido.As
por ela ter ido embora.
um horário vago; em contrapartida, FicamGcom
seríamos obrigadasarepr
história americana na faculdade.
Não havia ninguém com
falar.A quem dizer que eu sentia quem
muito.

Em Albuquerque, no final da tarde, Rex, meu marido, ia


paraas aulas na universidade ou para o ateliê onde ele fazia suas
esculturas.Eu levava Ben, o bebê, para longos passeios de carri-
nho.Subindo a ladeira, numa rua cheia de olmos frondosos,
ficavaa casade Clyde Tingley. Nós sempre passávamospor aque-
Iacasa.Clyde Tingley era um milionário que tinha dado todo o
dinheirodele para hospitais de crianças do estado. Passávamos
pelacasadele porque não só no Natal, mas durante o ano inteiro,
ele mantinha luzes de árvore de Natal penduradas em toda a
extensãoda varanda e em todas as árvores. Ele as ligava bem ao
cairda noite, quando estávamos a caminho de casa. Às vezes ele
estavana varanda, na sua cadeira de rodas, um velho muito
magrinhoque gritava "Olá" e "Que bela noite" para nós quando
estávamos
passando.Uma noite, porém, ele gritou para mim:
"Para!Para!Tem alguma coisa errada com os pés desse menino.
Vocêprecisa levá-lo pra fazer um exame".
Eu olhei para os pés de Ben, que estavam ótimos.
"Não, é que ele já ficou grande demais pra esse carrinho.
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