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AS FADAS MORDEM POR TI

“O peso das aflições cresceu


com a dívida contraída pelo sono insolvente.”1

Isolda estava letargicamente apática. Obviamente concentrada, mas não na realidade


próxima. O escritório a sufocava. Prazos apertados, clientes nervosos, superior estressado.
Sentada à sua mesa olhava a todos em volta com o olhar distante quando chamavam seu
nome. A sua mente estava perigosamente próxima daquilo que seu psiquiatra chamava de “o
outro lado”. Quando adolescente, pintara os cabelos loiros de preto, usava roupas pretas, se
tornara reclusa e praticava secretamente a Thelema. Deprimida e ansiosa começou a usar
drogas. À medida que viajava mais nas alucinações, a realidade se curvava e dava lugar às
fobias, devaneios e fixação por suicídio. Era esquizofrenia.

O tratamento foi difícil. Internada, durante as crises mais severas, era forçada a usar camisa
de força. A abstinência do LSD piorava tudo. Sessões com o psiquiatra eram complementadas
com remédios de tarja preta, e Lexotan para dormir. Após dois anos, a junta médica a declarou
apta para viver em sociedade, mas teria de continuar a tomar antidepressivos e calmantes,
com a recomendação de consultas periódicas ao psiquiatra. Fez supletivo, recuperou o tempo
perdido, prestou vestibular para contabilidade. Recomendação do psiquiatra. Não queria
arriscar que ela se tornasse química ou médica, como ela queria. Temia que com o acesso a
drogas e substâncias perigosas, pudesse ter recaídas.

Hoje estava formada, no seu primeiro emprego como contabilista, não tinha amigos
no escritório e se concentrava unicamente em trabalhar. Mas seu chefe, incompetente e
traiçoeiro, começou a atrapalhar a carreira de Isolda, com medo da dedicação de sua
funcionária lhe tomar a vaga que ocupava. Concomitante a isso, os remédios dela começaram
a não fazer o efeito que faziam no passado. Mas ela não percebia isso. O que agravava era o
fato dela negligenciar cada vez mais as consultas, e aumentar as doses do Lexotan, pois as
noites de sono tranquilo estavam diminuindo. Reflexo das crises de ansiedade. Os sonhos
eram perturbadores, pesadelos constantes, cansaço e indisposição. E aquela tarde estava
excepcionalmente sufocante, afastando-a cada vez mais da realidade.

Aos Gritos de "HOFFMANN! SE VOCÊ NÃO ESTÁ SE SENTINDO BEM VÁ PARA


CASA! NÃO ATRAPALHE MAIS O ANDAMENTO DESSE BALANÇO QUE
JÁ ESTÁ ATRASADO HÁ TRÊS DIAS!!" e pouco atenta para se sentir humilhada pelo
assédio moral, Isolda se dirigiu ao apartamento que morava, nem ligando para o momento
presente. Quase foi atropelada ao atravessar a faixa de pedestres no sinal vermelho. No
ônibus, só desceu no ponto certo por que uma vizinha sua a avisou de sua parada. Alienada,

1
Willian Shakespeare – Sonho de uma Noite de Verão
entrou no elevador e foi direito para o apartamento. Deixando a bolsa no sofá e chutando os
sapatos para o lado, tomou meio frasco de Lexotan e, em cinco minutos, a realidade virou
uma espiral.

Se alguém for pesquisar, mesmo que superficialmente, todas as culturas humanas relatam a
existência de seres fantásticos: Fadas, Kobolds, Demônios, Tengus, Sacis, Djins, Anjos,
Espíritos, Trolls, entre vários outros. Se esse alguém pesquisar profunda e extenuantemente,
em tomos antigos e obscuros, vai entender que todos esses nomes se referem a apenas uma
espécie: os Faeyries. Aí esse alguém pergunta: "como é que cada um desses seres tem uma
aparência diversa da outra e são da mesma espécie?" E a resposta é que essa espécie em
questão tinha vários dons e habilidades, e a mais utilizada era a de alterar sua forma. Por
vezes, eram Kobolds sorrateiros, outras, Djins majestosos, Silfides de vento ou Trolls
violentos. Era uma questão de se apresentar da maneira que melhor lhe convêm. Os povos
pagãos tinham contatos com esses seres, mas com o advento do avanço do cristianismo,
negando crenças e deuses das culturas que eram absorvidas em combate e conquistas, e
muitas vezes caçando esse "povo das fadas" eles quase foram exterminados e se olvidaram
do contato humano.

Então, quando Roma finalmente reconheceu e adotou o catolicismo como religião oficial do
império, e começou a expandi-la a todos os povos, o "povo das fadas" foi o povo mais
prejudicado. Muitas vezes confundidos com Deuses Pagãos, o Povo concedia graças e
benefícios aos seus "fiéis" em troca de sacrifícios e oferendas por dispor do dom da magia.
Então, a comida oferecida na janela, a criança dada aos espíritos da floresta para ser criada e
educada, as celebrações de fertilidade no auge da primavera, os festivais de colheita, tudo
isso favorecia ao povo. Mas a igreja condenava essas manifestações e combatia o “demônio”
onde quer que fosse.

Desesperados e fugindo dos homens, as fadas abriram o portal para seu reino selvagem e
etéreo. Somente por meio dos sonhos podiam voltar ao plano material, que por acaso é onde
vivemos. E somente através dos sonhos podiam se nutrir e sobreviver. Tornaram-se o que a
doutrina espírita comumente chama de espíritos obsediadores. Poucos puderam se livrar
dessa sina e voltaram ao plano material, mas não sem chagas nos seus corações e almas.

Dois desses indivíduos espreitavam Isolda desde a infância. Começaram com simples
casos de Obsessão, e ao adentrar na adolescência já a tinham Fascinado, e então veio a
subjugação completa pouco antes da época de seus pais a internarem. Em seus sonhos,
absorviam a energia onírica, devorando a mente de Isolda enquanto dormia. Naquele dia, era
só mais uma noite comum, uma “refeição comum” se você achar comum ter a sua alma
devorada todo dia. Os dois eram Lustiel e Mornox, e estavam conversando e devorando
sonhos enquanto Isolda corria desesperada de uma quimera a outra, se esquecendo da
presença deles em sua psique a cada mudança.

Mas dessa vez, Isolda sonhou alto. Era uma paladina, a guerreira sagrada que em seu
corcel branco corria em direção às ruínas do castelo, onde, no quarto mais alto, da torre mais
alta, resgataria seu príncipe dos dois dragões que o mantinha cativo, e após matá-los
arrebataria seu homem com um beijo e faria amor com ele no chão empoeirado. Então o
sonho foi interrompido quando Lustiel em forma de dragão vermelho e Mornox na de dragão
negro entraram nesse sonho.

- Em guarda, vis criaturas de coração imundo! Sou Isolda da Germânia e vim libertar meu
amado Tristan!
- Então Lusti o Aberron gritou: MALDIÇÃO! É SÓ EU DEIXAR O REINO POR TRÊS
ANOS E TITÂNIA FICA TREPANDO COM O PUC ESSE TEMPO TODO?!?
- Olhem para mim enquanto ataco vocês! – Bradou Isolda.
- Hahahaha e ele matou o bobo da corte dele depois que o encontrou e nem percebeu que era
você que assumia a forma dele para transar com a rainha? – Perguntava Mornox.
- Não, nessa hora virei uma muriçoca e saí do quarto enquanto o Puc se finava.
- Ai Nox.. só você mesmo para tentar se reproduzir com a Titânia.
- O que eu podia fazer? Ela é uma das poucas mestiças que estão aptas a gerar novas vidas.
E o Aberron sai da Agrestia das Fadas por três anos! Pediu para levar corno né?
- Não me ignorem feras do mal! Pela Glória de Cristo! Sintam meu aço! – Então Isolda atacou
Mornox com sua espada. Sangue jorrou do obsessor, que pela primeira vez foi ferido pela
obsediada.
- PORRA! ESSA VACA ME MACHUCOU! SEGURA ELA LUSTI!

Rápido como o pensamento, Lustiel se transformou em um Boitatá e constringiu o


corpo de Isolda.

- Como vossssê fessss issso Issssolda.... Mornoxxxx está ferida.... Essstamosss a vinte anosss
te obsssediando nosss alimentando de ssssua alma e nunca vimosssss nada de essspecial em
vossssê... – Sibilava a Boitatá Lustiel
- O QUE ESTÁ HAVENDO??? ME SOLTA SUA COBRA CHIFRUDA!!!!
- Acho que ela acordou, mas por que ainda está sonhando? – Perguntara Mornox.
- Olhe a nuca dela. Para ela te ferir sssó pode ssser messstisssaaa...
- Mas Lusti, pra um mestiço nos machucar assim tem que ser bruxa, você sabe, bruxa mesmo,
com magia. Nada desses wiccans bobalhões que fazem pacto de sangue com ketchup! E não
temos mais bruxos nascidos desde o grande exílio!
- OLHE!!!! AGORA!!!

Nisso Mornox assumiu a forma de um Elfo belo, de um sorriso insano e largo, com
olhos sem pupila tomados totalmente da cor âmbar, se aproxima de Isolda, puxa os cabelos
para cima, e vê a marca de uma lua crescente envolvendo um pentagrama.
- Ela é uma bruxa verdadeira Lusti! Uma Mestiça!
- Então vossssê ssssabe o que issssso ssssignifica... Filhossss!!! Podemosss finalmente ter
nosssa linhagem!!! Prenda-a numa corrente. No calabousssso tem váriassss.

Deslizando pelo “cenário” de onde as projeções de todos estavam Mornox foi até o
calabouço do castelo do sonho de Isolda e trouxe as correntes. O mais estranho é que Isolda
tinha consciência o tempo todo de onde Mornox “estava” e o que fazia, como um observador
distante.
- Aqui está Lusti, vamos prendê-la. Isso, agora pode soltar, e tranforme-se em um macho.
- Você sabe que prefiro tomar as formas das fêmeas. Se não fôssemos hermafroditas
ia querer ser mulher...
- Não reclama, você está um tesão. Masculinidade lhe cai bem. – Afirmou Lustiel com
sinceridade, olhando o Duegar forte e barbudo que Mornox se tornara. - Vamos possuí-la, os
dois...

Presa e amordaçada, pelas próprias correntes que criara, Isolda olhava aqueles seres
sem acreditar no que via e ouvia. Acordada dentro de um sonho? Aquele Elfo e aquele Anão
estavam falando de reprodução, magia, Titânia, Aberron e Puc? Como poderia ser? Há anos
ela tinha lido “Sonho de uma noite de verão”, mas nem se lembrava mais como era. Mordendo
com força os elos em sua boca, Isolda quebrou a corrente. Outra insanidade. Mas, se estava
num sonho dela, na mente dela... poderia sim forçar a sua vontade como bem entender, e
lembrou-se da maior lição de Aleister Crowley: “Faça o que quiseres, há de ser tudo da Lei.
A Lei é Amor, Amor sob vontade: eis o desafio”. Então tudo se resumia a controlar os
instintos e o medo e, com força de vontade, moldar a realidade como bem entender. Magia
existia afinal, e aqueles dois haveriam de pagar. Vinte anos servindo de alimento né?

Com Isolda dobrando a realidade em seus sonhos, Lustiel e Mornox de repente se


viram presos, cada um em uma “Cruz de Santo André”, a armadura brilhante que Isolda vestia
foi substituída por um vestido longo, negro, com a bainha se arrastando como um vestido de
noiva, com mangas e um decote profundo, que mostrava a curva de seus seios, e entre eles,
um pingente de uma lua crescente envolvendo um pentagrama. Uma adaga cerimonial surgiu
em sua mão esquerda. Então, com um olhar taciturno, falou:

- Cavalheiros, tenho algumas perguntas, e vai ser bastante doloroso se não responderem a
verdade. E acreditem, eu saberei se não for verdade.
- Vai se foder! Solta a gente – Respondeu Lustiel surpreso, se debatendo na cruz.
- Comida atrevida. É promovida a chocadeira e começa a se achar. Espera só a gente se soltar
– secundou Mornox.

Era melhor não terem feito isso. Chamas irromperam da cruz queimando-os. Duas
lanças de aspecto sinistro se materializaram no ar, tocando-lhes a garganta ameaçadoramente.
Após três segundos as chamas sumiram como se nunca estivessem ali.

- Fui bastante educada, mas não aceito mal criações. Se pensarem em se transformarem
novamente, as lanças lhes perfuram e as chamas voltam. Agora minha primeira pergunta.
Qual a verdadeira natureza de vocês? Você elfo, responda.
Ainda em agonia, pelas queimaduras, Mornox respondeu – Somos Faeyre. Meu nome
é Mornox. O Duegar é Lustiel.
-Já sabia seus nomes. Não sou surda. Mas Faeyries estão extintos há séculos. Avisei para não
mentirem.
Uma corrente elétrica percorreu as lanças e saltou para os corpos dos prisioneiros.
Eles gritaram como Banshees ensandecidas.

- Mais uma vez, qual é a verdadeira natureza de vocês? Responda Lusti – Isolda falou a última
parte com a voz imitando jocosamente a maneira carinhosa de Mornox chamar o parceiro.

Vendo que Isolda estava falando sério, Lustiel se acovardou. Não era leal a ninguém, muito
menos às leis promulgadas por Lorde Aberron.

- Atualmente, no plano material, somos menos que espíritos que vampirizam a energia dos
humanos. Na agrestia das fadas, nosso plano espiritual, ainda somos Faeyries, mas as Leis
de Lorde Aberron nos proíbem de revelar a verdade aos mortais. Nox não mentiu para você,
- Exijo respostas exatas. Aprendi a história de como vocês foram massacrados.
Então o Povo das Fadas se tornaram obsediadores?
- Foi a maneira que nós encontramos para sobreviver.
- Como isso aconteceu?
- Nos tempos antigos os humanos viviam em harmonia conosco. Uma raça ajudando a outra.
Quando o cristianismo começou a avançar sobre os pagãos, nós fomos caçados, em
desespero, quase extintos, Nosso rei Aberron decretou o exílio na agrestia das fadas. Como
o nome já diz, é um local estéril, a vida não existe lá, sem como nos nutrir e sobreviver, o
portal dos sonhos ficou aberto, então todas as noites nós saímos e nos alimentamos daqueles
que nos expulsaram da mãe terra.
- E por que queriam me engravidar? Alberron não é um personagem de
Shakespeare?
- Na Agrestia das Fadas nós nos tornamos uma espécie estéril. Não nos reproduzimos entre
nós, só com humanos que já descendiam de nós. Muitas vezes no passado houve cruzamentos
entre faeyres e humanos, então quem leva nossa linhagem pode nos fertilizar ou ser fertilizada
por nós. E desses, poucos nascem bruxos. Antes era comum, mas o sangue foi ficando fraco.
Shakespeare era mestiço e nos conheceu. Ele escreveu o Sonho de uma Noite de Verão em
homenagem ao rei e à rainha.
- Entendo. Então vocês se acovardaram e fugiram. Por que não voltam?
- Lorde Aberron não permite. O portal só pode ser reaberto por ele, ou alguém mais poderoso.
– respondeu Mornox dessa vez. – Ele teme que sejamos extintos se voltarmos. - Então, por
vinte anos eu fui dada como louca enquanto vocês me devoravam a alma. Tudo porque um
covarde não ousou retornar ao seu mundo de direito. Cavalheiros, vou romper esse portal.
As fadas retornarão e terei minha vingança contra o seu rei. Afinal, ele também é culpado
pelo meu martírio.
- Então se nos permite, nós já vamos embora, aguardar a liberdade. – Disse Lustiel.
- Não vão não...

Falando isso, Isolda pôs a adaga na cintura, e, segurou a as cabeças firmemente. Entoando
um feitiço de telepatia, suas mãos se tornaram intangíveis e entraram nos crânios de Mornox
e Lustiel, e invadindo a consciência deles, aprendeu como entrar no Reino de Lorde Aberron.
A dor que sentiram era indescritível.
- Há... aqui está o caminho. Quando vocês começaram a me obsediar eu fui me tornando
esquizofrênica, me afundando em drogas e ocultismo. Aprendi Thelema. A magia também
foi praticada por humanos, não sabiam? Aprendemos com os Faeyres. E hoje, Aberron vai
cair. Meus poderes crescerão, pois vocês, os devoradores, serão devorados, sem clemência,
sem o menor respeito, e o prazer vai ser todo meu.

Os dois cativos começaram a gritar desesperadamente enquanto em sua frente, Isolda


se metamorfoseava num monstro de aparência humanóide, com uma cabeça de formato oval
com três olhos negros em cada lado do rosto, narinas ofídias e uma boca enorme, com vários
e vários dentes grandes e afiados. Dentes de predadores impiedosos. O monstro sorriu, e os
devorou com uma satisfação maligna, sentindo-se mais e mais poderoso a cada mordida.

E assim o reinado de Lorde Aberron conheceu o princípio do fim, com sua patética e
caótica corte debandando quando a morte do soberano bateu às portas do palácio. E assim a
magia das fadas retornou ao mundo.

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