Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Fundamentos Teóricos
A mudança do nome de Abraão, assim como de Sara, pode ser considerada como
um símbolo da transformação da personalidade que significa esse renascimento
espiritual, como estabelecido na aliança com o Todo-Poderoso.
A associação dessa aliança com o sacrifício está indicada de várias formas no texto:
Quando atingiu Abraão a idade de 99 anos, apareceu-lhe o Senhor e disse-lhe: Eu
sou o Deus Todo-Poderoso; anda na minha presença e sê perfeito (tamim). Farei
uma aliança entre mim e ti (...) Abrão não será o teu nome e sim Abraão (...)
Circuncidareis a carne de vosso prepúcio; será isso por sinal da aliança entre mim e
vós.
O que tem oito dias será circuncidado- entre vós; e minha aliança estará na vossa
carne e será aliança perpétua (...) Como para Sarai, tua mulher (...) Sara deverá
ser seu nome (...) Sara, tua mulher te gerará um filho. (Gn 17:1-19)
A aliança exigia que Abraão fosse tamim, um todo sem falha ou divisão na
obediência à vontade divina.
Tal sacrifício daquilo que é animal na natureza humana para aquele que é perpétuo
estava representado pelo ritual da circuncisão, o sinal da aliança, um rito
normalmente efetuado no oitavo dia, isto é, um dia depois dos sete dias da criação
e, assim, símbolo da eternidade.
Nesse caso, o sacrifício da carne do prepúcio é apenas o símbolo de uma
consagração íntima do ser que se dedica ao serviço divino, os frutos da sexualidade
sendo também devotados a essa elevada aliança.
Porém, o significado do sacrifício animal é revelado com mais clareza com respeito
ao filho miraculoso que vai nascer, contra todas as leis da natureza, através dos
renomeados Abraão e Sara.
O significado da ordem divina de vendar Isaac não é simplesmente a prova final de
Abraão, pois, por sua obediência, uma bênção foi transmitida a toda a humanidade:
"e, em tua semente, todas as nações da Terra serão abençoadas; porque
obedeceste à minha voz" (Gn 22:18).
As coisas mais significativas que Moisés devia fazer para Aarão e seus filhos "para
os consagrar, a fim de que me oficiem como sacerdotes" (Ex 29:1), envolvem o
"carneiro da consagração" (Ex 29:22).
Primeiro um pouco do seu sangue era colocado no topo de suas orelhas direitas,
polegares direitos e dedões direitos dos pés (Ex 29:20), um ato que simbolizava o
fortalecimento de seu lado direito espiritualmente expansivo e a integração dos três
centros psíquicos que podem ser identificados com essas extremidades, a mente
com as orelhas, o coração com os polegares e os instintos com os dedões.
Até mais importante do que sua unção e da do santuário com sangue e óleo, era o
uso final a ser dado ao carneiro:
Tomarás o carneiro da consagração e cozerás sua carne no lugar santo; e Aarão e
seus filhos comerão a carne desse carneiro e o pão que está no cesto à porta da
tenda da congregação; e comerão as coisas com que for feita a expiação, para
consagrá-los e para santificá-los; o estranho não comerá delas, porque são santas.
(Ex 29:31-33)
Isso é o que presumimos que tenha sido a experiência diária dos sacerdotes
oficiantes, a transformação miraculosa da carne em espírito pela execução de seu
ritual e a absorção de sua santidade em si mesmos, o que forma a base de todos os
desenvolvimentos cosmológicos posteriores que podem ser associados ao
conhecimento sacerdotal.
Podemos distinguir dois principais desenvolvimentos teóricos que têm sua fonte na
Lei Mosaica: o dos profetas e o dos sacerdotes.
A elevação de Elias aos céus é percebida misticamente por Eliseu, que assim se
torna não apenas o filho espiritual de Elias, mas entende também o veículo de seu
transporte, a carruagem, como sendo a comunidade de Israel, aquela que vimos
Deus denominar como Seu filho.
Como um verdadeiro santo do Senhor, Elias tornou-se um daqueles que formará a
comunidade ideal representada coletivamente como o filho divino, e sua passagem
pela vida também demonstra a salvação finalmente alcançada depois de uma vida
devotada ao aprimoramento do poder espiritual, a transcendência da mortalidade.
A história da vida e morte de Elias é o exemplo culminante da verdade principal da
tradição sacerdotal, a de que há práticas espirituais pelas quais o homem envolve-
se do poder divino, superando as limitações terrenas na vida e além dela, e que o
objetivo da existência humana é o aperfeiçoamento dessa santidade para que
alcance duração eterna.
Essa verdade central nos livros históricos, que observamos desde Abraão até Elias
como de natureza sacerdotal, alcança pela primeira vez expressão literária
individual nos escritos do maior profeta que era também um sacerdote zadoquita,
Ezequiel.
É ele quem traz claramente unidos os conceitos do filho e da carruagem que foram
também percebidos por Eliseu.
Como Eliseu teve a visão de uma carruagem que lhe conferiu poder espiritual e
permitiu que reconhecesse sua filiação àquela fonte humana de poder presente na
carruagem, assim também fez Ezequiel, no que parece ser um empréstimo literário.
Escrevendo cem anos depois da redação de 2 Rs, no século VI a.C., Ezequiel teve a
visão de uma carruagem enviada por Deus com o termo que fez notável "filho do
homem", e estava cheia com Seu espírito: "Esta voz me disse: Filho do homem,
põe-te em pé, e falarei contigo. Então, entrou em mim o Espírito quando falava
comigo, e me pôs em pé" (Ez.2:1-2).
A frase "filho do homem" (ben adam), que terá uma notável história posterior no
Apocalipse, aparece 87 vezes no livro de Ezequiei, em referência a ele mesmo, o
profeta-sacerdote, e está diretamente relacionada com o que ele vê na carruagem-
trono.
A carruagem que ele vê tem quatro níveis — as Rodas, as Criaturas Vivas, o
Firmamento e o Trono — "sobre essa espécie de trono, estava sentada uma figura
semelhante a um homem (...) Essa era a aparência da Glória do Senhor"
(Ez 1:26, 28).
A Glória, ou Kavod, de Deus, que ele viu sentada no trono, tinha "a aparência de
um homem".
A frase "filho do homem" usada pelo Deus de Ezequiel parece implicar que o
profeta é um filho humano de Deus, um ser derivado do homem que alcançou o
status de filiação divina antes atribuída coletivamente a Israel.
A essência dessa visão do trono, diversa daquela de Isaías — "Eu vi também o
Senhor sentado sobre um trono" (Is 6:1) —, não é diretamente de Deus, mas do
homem glorificado.
É o homem em seu estado final de transfiguração espiritual que representa aqui a
Glória de Deus e o propósito final da criação, a Glória, assim, representando a
forma superna do filho divino.
O significado essencial da visão de Ezequiel, então, é que o filho do homem, o filho
humano de Deus, é aquele que atingiu a capacidade mística de ver a natureza
divina de seu próprio ser.
Esse entendimento torna-se parte da tradição kabbalista mais recente que, em seus
níveis mais elevados de ascensão mística, permite que a face que alguém
descortina no trono é sua própria.
Assim, Abraham Abulafia, o grande mestre da meditação kabbalista, escreve:
"Quando um indivíduo entra completamente no mistério da profecia, vê-se de
repente sua própria imagem diante de si".
Ele acrescenta ainda, como suporte para sua afirmação, uma referência ao trabalho
de Moshe de Narbonne que se refere a essa antiga tradição:
"Quando os sábios ensinam que os profetas 'se assemelham a uma forma de seu
Criador', querem dizer que eles se assemelham à forma que está na própria alma
do profeta (...) a seu Criador, isto é, a Deus. Por isso está escrito, 'sobre a forma
do trono, havia uma forma como uma imagem de um homem' (Ez.1:26). Essas
formas e imagens existem na alma do profeta (...)".
Essa é a mensagem essencial de todas as formas mais recentes de misticismo
judaico, pois todas são derivadas diretamente da visão de Ezequiel.
Os kabbalistas enfatizam os quatro níveis da carruagem, que identificam com os
quatro mundos de emanação cósmica; os místicos Merkabah, à ascensão da
carruagem (Merkabah) através dos sete céus para a visão do trono; e os escritores
apocalípticos, às duas formas da filiação divina.
Todos tomam de Ezequiel sua revelação particular do aprendizado sacerdotal que
preserva seu mais profundo significado.
A tradição mística no Judaísmo é, então, a descendência direta do aprendizado que,
podemos presumir, era ensinado no Templo como parte do treinamento para o
sacerdócio.
No último capítulo, assim como no próximo, argumentamos que esse treinamento
sacerdotal também conservava e transmitia o antigo legado do entendimento
científico: primariamente as leis governantes e os números, formas e sons
harmônicos correspondentes; e também a astronomia necessária para fazer o
calendário religioso.
Embora a tradição rabínica mais recente derive amplamente dos profetas, a
tradição místico-esotérica, que sempre manteve uma existência oculta, mas vital
pela história judaica, deriva seguramente do sacerdócio, à medida que sua tradição
foi filtrada pelo principal ensinamento de seu grande profeta, Ezequiel.
A expressão bíblica culminante dessa tradição, derivada diretamente de Ezequiel, é
aquela do livro de Daniel, que agora pensamos ter sido escrito no século II a.C.
Na visão do trono de Daniel, o termo "filho do homem" está diretamente aplicado a
uni dos dois seres supernos vistos por ele:
O Ancião dos dias se assentou; suas vestes eram brancas como neve, e os cabelos
da cabeça como pura lã; seu trono eram chamas de fogo, e suas rodas eram fogo
ardente (...) Eu olhava em visões noturnas e eis que vinha com as nuvens do céu
como o Filho do homem, e dirigiu-se ao Ancião dos dias, e o fizeram chegar até ele.
Foi-lhe dado domínio, glória e um reino, para que os povos, nações e homens de
todas as línguas o servissem; seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o
seu reino jamais será destruído (...) os santos do Altíssimo receberão o reino e o
possuirão para todo o sempre. (Dn 7:9, 13-14, 18).
De outro lado, temos agora prova de que, da idade de 4 a 25 anos, isto é, antes
que tivesse essa experiência, Mani tinha sido — como seu pai Patek antes dele —
membro da seita elkesete judaico-cristã na Babilônia (...)
Sabemos agora que, como criança, Mani era um menino judeu, que foi circuncidado
e celebrava o Shabat.
O Cristianismo que Mani aceitava era precisamente sua forma esotérica que
derivava de Ezequiel.
Como Quispel mostra posteriormente:
Mani assumiu o nome de apóstolo porque ele interpretou seu "gêmeo" como o
"Paracleto" (mensageiro da verdade) (...) que Cristo mandaria (...)
Ele não caiu em autodeificação; não era o seu empírico ego, mas seu self
transcendental era o Paracleto (...) os judeus-cristãos estavam inteiramente
convencidos de que o Espírito Santo era uma hipóstase feminina (...)
A experiência religiosa de Mani, seu encontro com o self, pressupõe e espiritualiza o
simbolismo da unção, do renascimento e o mysterium coniunctionis do batismo
judaico-cristão.
Com certeza, o batismo teve uma origem judaica e era a principal prática dos
essênios.
Scholem recorda-nos que "não podemos descartar a possibilidade de um fluxo
contínuo de idéias específicas da seita de Qumran para os círculos rabínicos e dos
místicos da Merkabah no caso do Shi'ur Komah, como também em outros campos".
Apesar de poder ter havido uma fertilização cruzada no período pós-cristão, entre
os ramos esotéricos do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, e de todos com o
Gnosticismo, é sem duvida o Judaísmo que teve a prioridade temporal e uma
tradição de prática e conhecimento esotérico completamente desenvolvida muito
antes dessas outras correntes aparecerem, algo que ele transmitiu aos demais,
bem como diretamente às suas próprias formas de misticismo judaico
continuamente em desenvolvimento.
O misticismo judaico nos últimos séculos do Templo é geralmente atribuído aos
fariseus, já que a classe sacerdotal dos saduceus provavelmente tenha rejeitado o
conceito de um pós-vida, conforme divulga amplamente Flavius Josephus.
Porém, mesmo que muitos sacerdotes tenham se tornado materialistas, as
evidências apontam que ao menos aqueles sacerdotes da casa de Zadok foram os
conservadores de uma tradição mística ancestral mais amplamente disseminada
nesse período por alguns dos sacerdotes mais devotos, talvez pela universalidade
de sua hierarquia elevada.
Que a literatura apocalíptica desse período era produto desses sacerdotes anti-
hasmoneus é uma tese apresentada por Ithamar Gruenwald:
Para as pessoas que consideravam o Templo corrompido pelas mãos de um clã de
sacerdotes indignos, não havia outra alternativa que não conceber que Deus havia
retirado Sua presença do templo terreno para o céu mais elevado (...)
O conceito apocalíptico ofereceu, entre outras coisas, expressões de tais críticas a
respeito do sacerdócio de Jerusalém (...) e ainda mais, se levarmos em
consideração o fato de que o movimento apocalíptico era principalmente um
produto do levítico, e portanto sacerdotal, conclui-se então que os tons polêmicos
que o atingiram não tinham apenas uma orientação anti-sacerdotal, mas faziam
eco a uma luta sacerdotal interna por hegemonia e autoridade.
Os "filhos de Zadok" não apenas tinham o acordo a respeito de sua posição, como
também eram aceitos como intérpretes da Torah mosaica, em suas especificações
ritualísticas e ainda em suas "coisas ocultas":
Então, os sacerdotes recitavam os favores de Deus manifestados em Sua poderosa
ação e declaravam toda a Sua graça misericordiosa para com Israel (...)
O Mestre instruía todos os filhos da luz e ensinava-os a natureza de todas as
crianças dos homens (...) os filhos da verdade neste mundo.
E para as aflições de todos que andavam com esse espírito, elas seriam curadas,
grande paz em uma longa vida, frutificadora, juntos com uma bênção perene e
alegria eterna em uma vida sem-fim, uma coroa de glória e um manto de
majestade na luz sem-fim.
Aqui temos uma referência quase explícita ao mistério do filho como a forma eterna
do ser, dotado de uma "coroa de glória" apropriada apenas para uma forma divina,
apesar de uma forma cuja semente deve ser reconhecida como plantada neste
mundo.
Esses aliados redimidos eram coletivamente chamados "filhos da Companhia
eterna", da verdadeira superna Comunidade de Israel entendida como aquela à
qual Deus se refere: "Israel é meu Filho" (Ex 4:22).
Essa doutrina anteriormente oculta está agora sendo revelada para essa
comunidade na esperança de que possa ser mantida secreta: "O Intérprete não
deve ocultar deles, sem medo do espírito de apostasia, nenhuma dessas coisas
ocultas de Israel que tenham sido descobertas por ele".
E a resposta do novo iluminado é extática:
Meus olhos pasmaram
Naquilo que é eterno,
Na sabedoria oculta dos homens,
No conhecimento e sábio projeto.
Continua