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NAS ALGEMAS DA
ETERNIDADE
Autor
CLARK DARLTON
Tradução
MARIA M. WÜRTH TEIXEIRA
Digitalização
VITÓRIO
Revisão
ARLINDO_SAN
Extraviado no tempo por 70 anos...
— reencontra o rumo da Terra.
O relato de Rhodan teve início com a Terceira Potência, que posteriormente deu
origem ao Império Solar. Há cerca de setenta anos, em fevereiro de 1.972. Perry Rhodan
organizava seu Exército de Mutantes. Em toda a parte do mundo, devido às explosões
atômicas efetuadas, as características hereditárias dos recém-nascidos sofriam alterações,
fazendo nascer pessoas dotadas de capacidades anormais. Surgiram telepatas, telecinetas,
teleportadores, teleóticos, teleauditivos, videntes e hipnos.
E apareceu um homem chamado Ernst Ellert.
Ellert era um mutante cujos poderes ultrapassavam tudo que a imaginação humana
pudesse conceber. Enquanto seu corpo descansava, o espírito podia sair do organismo em
repouso e invadir o território desconhecido do tempo. Desta forma, foi ao futuro,
regressando com a ciência dos fatos ainda por acontecer. Talvez fosse o que se costuma
denominar de vidente; porém, na realidade, era muito mais do que isso. Rhodan
classificou-o de teletemporário ou teletemporador.
E certo dia se deu a desgraça.
No decorrer de uma experiência, Ellert sofreu tremendo choque elétrico, e morreu
instantaneamente.
Morreu, mas não estava morto!
Seu espírito — ou sua alma — deixara o corpo e vagava sem rumo pelo futuro e
pelo passado; no entanto o corpo sem alma não apresentava o menor sinal de
decomposição. Apesar da ausência de palpitações cardíacas, o sangue continuava morno.
A temperatura corporal não sofreu alteração.
Pessoa alguma sabia explicar o ocorrido. O espírito de Ellert não retornou ao
presente. Não achou mais seu corpo. Tudo que se poderia supor era que se extraviara na
eternidade.
Mas, caso ainda regressasse algum dia, e não encontrasse mais seu corpo?
Rhodan encontrara solução para esta possibilidade.
***
Nos arredores de Terrânia, então ainda chamada Galáxia, os robôs operários tinham
concluído a tarefa constante da programação recebida. A galeria aprofundava-se a
cinqüenta metros na rocha viva do deserto de Gobi. O revestimento esmaltado das
paredes, duro como aço, garantia para todo o sempre a perfeita impermeabilidade. Nem
uma só gota de água se infiltraria na galeria.
No fundo, Rhodan mandou escavar um recinto quadrangular provido de aparelhos
produtores de oxigênio, material de informação, instruções, e reservatório de energia. Um
sistema de alarme automático — aperfeiçoado nos anos subseqüentes — assegurava o
aviso imediato, caso Ellert retomasse posse de seu corpo algum dia.
No meio da câmara fúnebre, de quatro por quatro metros, havia um leito, acoplado
ao complexo sistema de alarme. Bastava respirar uma vez dentro da câmara para fazê-lo
entrar em funcionamento. Sobre o leito repousava o corpo de um homem.
Era Ellert quem jazia sob os instrumentos eletrônicos, com cintas metálicas presas
ao pulso esquerdo e aos dois tornozelos. Um capacete envolvia a cabeça. Próximo da
boca haviam colocado um espelho, ligado a células de selênio. Um resquício de hálito
seria suficiente para ativar todo o sistema de alarme.
O mausoléu mandado construir para Ellert por Perry Rhodan não se equiparava ao
de nenhum outro mortal. No entanto — e Rhodan já pressentia isso na época — Ellert
não era mortal na acepção comum do termo. Sentia vagamente que algum dia, num futuro
próximo ou remoto, tornaria a rever o teletemporário.
Encheram a galeria com uma massa pastosa imediatamente solidificada. Nada no
mundo poderia perturbar agora o descanso do morto. E, no entanto, existia um acesso
para a câmara fúnebre, conhecido exclusivamente por Rhodan. E mesmo que Ellert
acordasse realmente algum dia, não levaria mais de meia hora para livrar-se de sua
prisão.
Mas o que encontraria, quando “acordasse”?
Uma terra estorricada por um sol vermelho, tão perto dele que poderia precipitar-se
no disco de fogo a qualquer instante? Ou um planeta privado de toda a vida por invasores
espaciais?
Absorto em cogitações, Rhodan presenciara o erguimento do marco em forma de
pirâmide, que os robôs colocavam sobre o mausoléu.
Depois dera meia-volta, retornando à povoação que seria um dia a mais poderosa
cidade da Terra: Terrânia.
***
Durante setenta anos, nada aconteceu. Surgiu o Império Solar, e o poder de Perry
Rhodan chegou às raias do incomensurável. No entanto, sob a cúpula energética de
Terrânia, continuava existindo um recinto onde iam dar os terminais de todos os sistemas
de alarme. E uma minúscula lâmpada no imenso painel jamais se acendera.
Sob a lâmpada via-se um nome:
Ernst Ellert.
***
Naquele dia, 14 de setembro de 2.043, dava plantão na sala de alarme, conforme era
conhecida a central de vigilância, um sargento de nome Stootz.
Stootz não conhecia Ellert, evidentemente, mas conhecia suas obrigações. Estas
nada tinham de excitante ou difícil. Resumiam-se em verificar quais das lâmpadas se
acendiam no painel.
Não que o sargento fosse um leigo, incompetente para qualquer outro serviço. Pelo
contrário! Casualmente era seu dia de plantão, obrigação que tocava, em rodízio, a todos.
Na realidade Stootz era um dos mais competentes técnicos em rádio e eletrônica da
seção de telecomunicações. Além de saber que uma das lâmpadas poderia acender, sabia
também por que ela acendia. Pois, atrás do painel, aparentemente singelo, se escondia um
sofisticado sistema de instalações positrônicas e eletrônicas. Dali, os fios partiam nas
mais diversas direções, terminando em geral diante de um hiper-receptor. Mesmo que
dessem alarme no sistema solar XY, a milhares de anos-luz, a luzinha correspondente
brilharia diante de seus olhos.
E Stootz conhecia a série de providências que deveria tomar em semelhante caso.
Com um gesto, acionou igualmente a sinalização acústica, a fim de assegurar que
nenhum eventual alarme lhe escapasse à atenção. Tranqüilizado, abriu um livro e pôs-se a
ler.
Em torno dele, reinava a calma da noite incipiente. Apenas da central de rádio vinha
um ou outro zumbido, produzido pelos hiper-registradores ou pelo transmissor de
imagens. O centro nervoso do Império Solar jamais dormia. Não podia dormir nunca,
caso não quisesse mergulhar para sempre no sono da morte.
***
A dois quilômetros da galeria de Ernst Ellert, Allan D. Mercant descansava em seu
confortável lar.
Mercant conservava a mesma aparência jovem — ou melhor, idosa, mas sadia — de
sete décadas atrás. Junto com os mais chegados colaboradores de Rhodan, recebera no
planeta artificial Peregrino a ducha celular prolongadora da vida. O cabelo ralo
continuava louro, e, em seus olhos, luzia a perene vivacidade que praticamente o
predestinara ao posto de chefe da defesa no Império Solar.
Na tela de seu estereotelevisor, evoluía um grupo de bale da ópera russa.
Aconchegado numa poltrona, suficientemente afastada para poupar a vista, Mercant
apreciava o espetáculo. Não gostava de deitar muito cedo. Só perto de meia-noite seu
organismo atingia o estado de fadiga necessário. E então costumava desligar bruscamente
o aparelho, às vezes até no meio de um programa, e ia dormir.
Eram onze e meia, agora.
Também na casa de Mercant existia uma terminal das linhas de alarme — desde que
não esquecesse de ligar a chave adequada em seu escritório, antes de deixar o serviço no
prédio central da administração. Como sempre, tomara tal providência.
Mercant bocejou.
— Ah, o cansaço chegando, afinal! — balbuciou.
Por pouco lhe passaria despercebido o estridente som da campainha, ecoando pela
casa.
Alarme!
Saltou da poltrona, esquecendo instantaneamente o cansaço.
Algo devia ter acontecido, para que o chamassem em plena noite!
Enquanto se precipitava para seu gabinete, onde estava instalado o aparelhamento de
comunicação, passou em revista, mentalmente, as possíveis probabilidades...
Algum problema num recanto perdido da Terra, talvez; se bem que tal hipótese fosse
bastante improvável. Ou um inferno desencadeado em algum sistema solar, nos confins
do Universo. Por outro lado, o alarme poderia provir do próprio Rhodan — afinal, ele não
partira exatamente para um piquenique ao levantar vôo com metade da frota bélica do
Império... Sim, as possibilidades eram infindas.
Só não lhe ocorreu a que acontecera agora.
Aproximou-se rapidamente de um aparelhinho embutido no tampo da escrivaninha e
calcou um botão.
O vidro fosco iluminou-se imediatamente, mostrando o rosto um tanto perplexo do
sargento Stootz.
— Fala a central de rádio, sala de alarme, Sir!
— Que foi? — gritou Mercant, interrompendo as formalidades regulamentares de
introdução. — Por que me acordou?
Todo mundo sabia que Mercant não se recolhia antes da meia-noite, e o sargento
Stootz não desperdiçou tempo em protestos.
— Alarme, Sir! Faz dez segundos que uma lâmpada vermelha está acesa...
— Qual delas, que diabo?
O sargento inclinou-se ligeiramente — movimento que o videofone mostrava
claramente — a fim de examinar de perto a luzinha vermelha.
— Debaixo da lâmpada só há um nome, Sir: Ernst Ellert.
Mercant teve a sensação de sentir uma mão gelada apertar-lhe o ombro. Conhecia
bem o caso do teletemporário desaparecido.
E sabia o que significava o alarme desencadeado no mausoléu!
Suas ordens foram imediatas e precisas.
— Acordar imediatamente o professor Haggard e alguns membros de seção médica!
Haggard deve procurar-me o mais depressa possível. Iremos ao mausoléu. Depois chame
Rhodan pelo hiper-rádio, sistema Mirta ou Siamed, urgentemente. Passe a ligação para cá
assim que for feita. Preciso irradiar uma mensagem. A seguir... — hesitou, e concluiu: —
É tudo!
Mercant desligou o videofone, e ficou parado, imóvel e rígido. Da sala, vinham os
derradeiros acordes da segunda sinfonia de Tchaikovsky.
Depois, o silêncio caiu pesadamente sobre ele.
***
Na central de comando da Drusus, depois que Rhodan concluiu sua narrativa, o
silêncio falou mais alto. Atento aos controles, Sikermann absteve-se de qualquer
comentário; não tirava os olhos das escalas e instrumentos de medida. A Drusus
aproximava-se, à velocidade da luz, do ponto de transição.
Encostado na parede, Atlan fitava Rhodan.
Gucky preferiu aguardar. Acocorado de olhos fechados sobre o sofá, parecia dormir.
Mas Rhodan sabia que se tratava de puro fingimento. O rato-castor vibrava de excitação.
Discreto como sempre, Harno ocupava seu lugar junto ao teto.
Rhodan percorreu um a um com o olhar.
— Pois é, é esta a história de Ernst Ellert. E agora brilha a lâmpada vermelha que
anuncia seu retorno. Mercant me avisou sem tardança pelo hiper-rádio. Não sei se
chegaremos a tempo em Terrânia, mas temos de tentar... Não pode haver dúvida de que o
espírito de Ellert retornou ao corpo depois de setenta anos. Acho que não preciso mais
revelar a ninguém o teor de minha suposição...
Atlan levantou os olhos.
— Acha que Ellert e Onot são uma só pessoa, não é? — disse, com voz sem
expressão.
Rhodan acenou.
— Tudo indica que sim, em especial, as alusões feitas por nosso amigo
desconhecido. Conhecia-me, sem saber de onde. Dizia-se peregrino da eternidade,
testemunha visual do começo e do fim do mundo. Ellert podia viajar no tempo... mais
uma coincidência. Não, não duvido mais; por fim achamos Ellert...
— ...ou ele nos achou! — emendou Gucky. Sua voz clara tinha um acento peculiar.
— Ele deve ter estado à nossa procura.
— É bem possível — concordou Rhodan, percebendo que Sikermann dava início à
transição.
A primeira dor das ondas de choque percorreu-lhe o corpo. Depois disso, nada mais
se sentia. E quando tornaram a olhar para a tela, ela mostrava o sistema solar terrestre.
Aterrissar era questão de rotina.
Mal trocaram algumas palavras enquanto a Terra crescia, preenchendo por completo
a tela. Com leve solavanco, a imensa nave tocou o solo.
Tinham chegado ao destino.
Rhodan desembarcou com Atlan e Gucky, colocando disfarçadamente Harno no
bolso da túnica.
Mercant veio-lhes ao encontro. Parecia exausto. O sol acabava de apontar ao leste, e
ele não dormira um único minuto na última noite.
— Bem-vindos à Terra! — exclamou, estendendo a mão aos homens. Depois
abaixou-se e cumprimentou também Gucky. — Felizmente não chegaram tarde demais.
Por enquanto não aconteceu nada.
Era o que Rhodan queria saber. Suspirou, aliviado, e embarcou no veículo
providenciado para a viagem até o mausoléu. Este fora judiciosamente erigido no coração
do deserto, a uma segura distância da expansão imobiliária de Terrânia. Jamais poderia
ser engolfado pelas novas construções.
Enquanto paredes passavam em disparada à direita e à esquerda, e o veículo estendia
as asas para fora da fuselagem, a fim de subir obliquamente, Mercant sumariou a
situação, em frases curtas e concisas.
— Haggard aguarda junto ao mausoléu, com toda sua equipe; mas por ora, nada
aconteceu. A luz de alarme continua acesa. Nenhuma alteração na pirâmide. O concreto
protetor parece continuar intato.
Rhodan acenou. Conferia mais ou menos com o que esperara, sem ter completa
certeza. De qualquer forma, caso suas suposições fossem corretas, ainda era cedo para
Ellert retomar posse do próprio corpo.
A cidade foi se distanciando. Abaixo do planador, desfilava velozmente a monótona
área desértica. Por fim surgiu no horizonte a esbelta silhueta do obelisco, nitidamente
delineada contra o céu da manhã.
O mausoléu!
O planador perdeu altura rapidamente, e pousou a menos de vinte metros da
reluzente pirâmide metálica. Um grupo de homens acorreu; por trás deles, via-se uma
camioneta com a insígnia da Cruz Vermelha.
Também o professor Haggard pertencera ao grupo beneficiado por Rhodan com a
ducha celular, durante a estadia no planeta Peregrino. Seu vulto magro adiantou-se, um
tanto curvado; fato, no entanto, sem relação alguma com sua idade real.
Estendeu a mão a Rhodan, dizendo:
— Nossa vigília se revelou infrutífera!
Cumprimentou também Atlan e Gucky, que saiu imediatamente gingando em
direção da pirâmide.
Rhodan percebeu o ligeiro tom de ceticismo na voz do médico, sentimento bastante
compreensível. Qualquer pessoa normal se sentiria cética ao escutar a história de Ellert.
— Eu não esperava outra coisa — replicou, contemplando pensativo a pirâmide.
Atlan e Gucky faziam o mesmo. — No entanto, creia-me, Ellert não tardará a reaparecer.
Talvez já daqui a poucos dias.
Haggard não se convenceu.
— Sabe que sou um cientista, Perry. Portanto, desconfiado por natureza. Não posso
crer que um organismo enterrado há setenta anos volte à vida.
— Sabe tão bem quanto eu que Ellert não morreu realmente. Foi você mesmo quem
o examinou, juntamente com Manoli, naquela ocasião. Porventura encontrou explicação
para o fenômeno?
— Não, nenhuma... — concordou o médico, com relutância. — Evidentemente que
não! Mas sete décadas é tempo demais...
— Não para quem viu a eternidade de perto! — disse Rhodan, encerrando a inútil
discussão.
Seu olhar deteve-se absorto sobre a pirâmide, cujo cume começava a dourar-se aos
primeiros raios do sol.
Sabia como chegar às profundezas do mausoléu sem danificar a camada de
concreto. Sentiu certo constrangimento diante da perspectiva de penetrar na câmara
fúnebre, mas depois o raciocínio lógico venceu.
— Esperem aqui, vocês todos — disse. — Quero apenas Atlan por companhia.
Vislumbrou de relance a face ansiosa de Gucky, e sacudiu quase imperceptivelmente
a cabeça. Sua mão direita cerrou-se em torno de Harno dentro do bolso.
Deveria levá-lo?
Resolveu que sim.
Avançou alguns passos, seguido por Atlan, detendo-se diante das altas e lisas
paredes da pirâmide. Com a mão esquerda, alisou o metal frio. Passou-a de um lado a
outro repetidas vezes. Por um momento, parou. Depois fez mais uma leve pressão e, a
cinco metros da base do monumento, uma placa deslizou no chão do deserto.
Mercant praguejou baixinho ao presenciar a cena. Nem sequer suspeitava da
existência de uma entrada secreta; muito menos que fosse conhecida por Rhodan.
Este lhe acenou amistosamente, como se tivesse adivinhado os pensamentos do
amigo. Depois segurou o braço de Atlan, conduzindo-o para a abertura surgida no solo
rochoso. Uma íngreme e iluminada escada levava ao fundo.
Rhodan tivera que revelar seu segredo, fato que, agora, já não lhe importava. Sabia
que em breve a pirâmide teria cumprido sua função. Tomou a frente, e Atlan seguiu-o,
sem hesitar.
Os dois homens, que algum dia poderiam dominar o Universo, desciam ao encontro
de um morto que não estava morto, e tinha muito a lhes dizer.
***
Ao “morrer”, recebendo em cheio uma descarga de milhares de volts, Ernst Ellert
não perdeu a consciência um só instante. Sentiu tremenda dor, porém apenas por uma
fração de segundo. Depois foi lançado fora de seu corpo, projetado para a
intemporalidade do espaço sem fim. Tudo a seu redor mergulhou no vazio infinito, sem
começo nem fim.
Redemoinhos coloridos vinham em sua direção e tornavam a afastar-se. A despeito
de não possuir mais ouvidos, escutou estranhas melodias eletrônicas. Todas estas
impressões iam e vinham ritmicamente, como se tivesse caído no seio de um Universo
em pulsação.
Flutuava no nada absoluto, e uma vez pareceu ver passar ao longe um sol rodeado
de planetas. Vias lácteas giravam lentamente em espiral, ficando para trás no espaço.
A própria eternidade parecia encolher.
E depois mergulhou na corrente do tempo, em velocidade sempre crescente. Perdera
por completo o contato com o elemento que até então julgava dominar. Desamparado,
precipitava-se num infinito que já não podia ter relação alguma com matéria. O presente
ficou para trás, longe, longe...
Nada podia deter sua queda para o futuro.
Bruscamente sucedeu a primeira encarnação. Tão rápida e inesperada que caiu ao
sentir o próprio peso — ou melhor, o peso do ser em cujo corpo penetrara.
O espírito lançado ao mais remoto futuro encontrara nova morada, porém o corpo
que o abrigava não era humano. O ente tinha quatro patas, e escassa inteligência. Ao lado
dela, o intelecto de Ellert pôde acomodar-se facilmente.
Conseguira até conversar com o ser. Chamava-se Gorx, e informou que também seu
planeta se chamava Gorx, assim como o sol e o Universo. Tudo tinha o nome de Gorx,
porque naquele mundo existia um único Gorx.
Ellert procurou concentrar-se, e o inacreditável aconteceu: podia abandonar o corpo
de Gorx. Ainda viu o vulto lerdo e peludo engatinhar pelo chão, em direção de uma
caverna rochosa.
Não, não seria ali que encontraria resposta para suas perguntas.
Concentrou-se novamente, e disparou para o espaço, que era simultaneamente
tempo. Turbilhonou através da corrente do infinito, mas desta vez de volta, conforme lhe
provavam as vias lácteas que ultrapassava. Quando parou, estava suspenso no nada.
De que forma orientar-se agora? Não existiam pontos de referência. Era uma gota no
mar do tempo. Foi então que Ellert compreendeu que jamais haveria possibilidades de
voltar.
Tinha-se transformado em prisioneiro da eternidade.
E a questão crucial não era saber onde se encontrava, mas sim quando... Pergunta
aterrorizante, que ninguém podia responder.
E portanto Ernst Ellert, o prisioneiro da eternidade, percorreu milhões de anos em
busca do presente...
***
O alçapão tornou a fechar-se, com um baque surdo.
Atlan só não estremeceu porque previra o ruído. Além disso, não queria dar a
impressão de fraco diante de Rhodan.
Estreita e apertada, a escada parecia levar a um poço sem fundo. Rhodan precedia
Atlan, a passos decididos.
Deteve-se diante de uma parede inteiriça, esperando que o amigo o alcançasse.
— A câmara fúnebre fica aí atrás, almirante.
— Está melhor guardada do que a maior arca de tesouros do mundo — disse Atlan,
impressionado.
Rhodan acenou gravemente.
— O corpo de Ellert é um tesouro, mesmo desprovido de alma. Mas quando ela
regressar...
Deixou a frase incompleta, e pôs a mão sobre a fechadura embutida no metal. O
calor de seu corpo, e as vibrações individuais do cérebro ativaram o mecanismo. A porta
abriu para um exíguo corredor, em cujo extremo havia outra porta. Esta abriu-se sem
dificuldade.
Rhodan entrou na câmara fúnebre um passo adiante de Atlan.
Ernst Ellert achava-se sobre o leito, como se tivesse acabado de adormecer.
O rosto estava um tanto pálido, mas não exangue. Os cabelos escuros e bem
ordenados davam-lhe boa impressão. Os olhos estavam fechados, os lábios firmemente
cerrados.
Ernst Ellert não respirava. O espelho diante de sua boca não estava embaçado.
Rhodan deteve-se longamente diante do mutante. De pé, a seu lado, Atlan mal
ousava respirar, assombrado com o que via. Haviam sido chamados por um morto, e o
apelo tinha sido atendido, através de mais de seis mil anos-luz.
Depois surgiram os primeiros impulsos mentais, débeis e tateantes, sondando a
consciência dos dois homens. Aos poucos, tornaram-se mais fortes.
— Perry Rhodan, você veio? Esperei-o por muito tempo.
Foi um verdadeiro choque para Rhodan, pois desta vez ele sabia quem
silenciosamente e por telepatia, lhe falava.
Com voz rouca e comovida, respondeu:
— É você, Ernst Ellert! Eu sabia que voltaria algum dia, porém nunca imaginei que
demorasse tanto. Ocupava o corpo de Onot, o físico-chefe dos druufs, não é?
— Ainda o ocupo, Rhodan! Só pude libertar metade de meu espírito. Porém um dia
ficarei totalmente liberto. Mas até lá...
— Até lá...? — perguntou Rhodan, ansioso, sentindo os impulsos fugir.
— Não posso deixar os druufs sozinhos, pelo menos enquanto existir a passagem
para a nossa dimensão temporal. Quando os dois Universos tiverem passado um pelo
outro, minha tarefa estará concluída.
Rhodan estremeceu. As palavras tinham sido pronunciadas em voz audível. Às suas
costas!
Voltou-se abruptamente, e viu Atlan encostado à parede, lívido e abalado. Apesar
disso, sua boca se movia, e disse!
— Sim, Rhodan, falo através de seu amigo Atlan. Estou livre, conforme já
mencionei, porém ainda não de todo. Entretanto, o suficiente para apossar-me do corpo
de Atlan. O que não o impede de me ouvir.
Rhodan esforçava-se por compreender a situação.
— Conte-nos o que aconteceu — pediu.
E Ellert contou, usando a voz de Atlan:
— Enquanto vogava na corrente de tempo, inteiramente desorientado, andei sem
descanso de Universo para Universo, de era para era. Conseguia mover-me com inteira
liberdade, porém não encontrei mais o que chamamos de presente. Estava extraviado,
conforme julgava. Até encontrar certo dia os druufs. O único povo existente no Universo,
na minha opinião.
Após breve pausa, Ellert prosseguiu:
— Eu estava enganado. Não havia apenas um tempo, mas diversas dimensões
temporais, coexistindo lado a lado. Numa das dimensões, a nossa, eu teria sido capaz de
orientar-me, e achar o caminho de volta para o presente. Porém o choque recebido me
jogou para fora de nosso tempo; cruzando o nada, fui parar na dimensão dos druufs. E, de
lá, não havia retorno. Eu estava definitivamente perdido.
Fez-se prolongado silêncio.
Rhodan começava a compreender gradualmente o que ocorrera. Ninguém poderia
ter dado descrição tão objetiva dos fatos como Ellert, pois pessoa alguma no mundo vira
ou vivera coisa semelhante.
— E vai poder retornar definitivamente para junto de nós em breve, retomando a
posse de seu corpo?
— Sim, Perry! Retornarei, sem a menor dúvida. No entanto, mesmo que pudesse
voltar hoje, eu não o faria. Os druufs representam perigo muito maior do que imagina.
Tenho certa influência sobre eles, pois sob a forma de Onot pertenço à elite
governamental. Se eu não tivesse agido, eles teriam dominado a Terra há três meses, e
com ela nossa Via Láctea.
— Há três meses? — indagou Rhodan, procurando lembrar.
— Claro! Eles saíram de seu Universo por uma brecha repentinamente surgida, e
atacaram o reino de Árcon. Muitos planetas pereceram entre fogo e fumaça nessa
ocasião, e vários perderam alguns continentes...
A voz de Atlan estacou de repente, e ele olhou admirado para Rhodan. Depois Ellert
continuou a “falar”, mas voltando à telepatia.
— Agora lembro de onde conheço Atlan, por cuja boca eu falava. Há três meses ele
ainda era comandante de uma frota de guerra arcônida, encarregada de colonizar um
sistema solar.
Antes de formular sua resposta, Rhodan lançou rápido olhar a Atlan.
— O sistema solar, Ellert, era “o nosso”. E seu encontro com Atlan não ocorreu há
três meses, mas sim há dez mil anos. Precisou viajar a tão remoto passado a fim de
reencontrar o presente?
Ellert levou tempo para responder:
— Minha memória ainda está falha, e perdi por completo a noção do tempo.
Duvido que ainda seja capaz de viajar ao passado ou ao futuro. O que por si já garante
minha volta para junto de vocês, pois não perderei a Terra de vista. Porém não podemos
deixar os druufs entregues a si mesmos. Só após o fechamento da zona de descarga, não
haverá mais perigo.
Rhodan lembrou-se de um detalhe importante.
— Como Onot, você trabalha num projeto interessante. O congelador de tempo,
conforme o chamamos. Que vem a ser isso?
— Como Onot, eu poderia explicar; mas como Ellert não disponho de informações
suficientes. Caso as consiga, talvez eu possa construir um aparelho idêntico na Terra.
— Mais uma pergunta — disse Rhodan. — Os druufs dispõem de um tipo de
propulsão que evita transições bruscas. Sabe dizer-me algo a respeito?
Mais uma vez, Ellert valeu-se de Atlan para falar:
— Saberei, quando recuperar totalmente minha liberdade. Por enquanto, só sei que
os druufs rompem a fronteira do hiperespaço, que existe igualmente na outra dimensão
temporal, sem o menor choque. Assim que é alcançada a velocidade da luz, entra em ação
um compensador automático, que além de neutralizar o tempo, ainda impede
modificações na massa. Em tempo mínimo, a nave acelera para milhões de vezes a
velocidade da luz. Apesar de voar pelo hiperespaço, o Universo normal permanece
visível. Vantagem inapreciável para a orientação, dispensando os exaustivos cálculos
atualmente exigidos para todo hipervôo. Além disso, elimina a dor resultante da
rematerialização. Vôo visual! Experiência única!
A despeito da intensa excitação, Rhodan manteve-se calmo e objetivo.
— Acha que pode conseguir-nos os planos deste tipo de propulsão?
— Não voltarei para meu corpo sem os planos. Muito obrigado, aliás, por tê-lo
conservado tão cuidadosamente. Não tive a menor dificuldade em localizá-lo.
— O que foi que lhe deu liberdade parcial?
— Creio que sabe, não...? O campo do congelador de tempo, no qual fui parar
graças à curiosidade de Gucky — Ellert calou por um instante, depois acrescentou,
pensativo: — Curioso, sou capaz de lembrar nomes e coisas que jamais conheci, por não
existirem naquele tempo.
Rhodan contemplou a face imóvel do mutante. Tão morta e rígida como antes. Mas
um dia tornaria a viver...
— Que me aconselha? — perguntou.
Ellert voltou à telepatia. Talvez não quisesse sobrecarregar demais Atlan.
— Continue a combater os druufs, e providencie a destruição da grande central de
cálculos abaixo da capital, em Druufon. No entanto, sem que recaiam suspeitas sobre
você. Alie-se a Árcon, e deixe os robôs cuidar da tarefa. Caso Onot pereça nesta
operação, não fará muita diferença. Acho que ele morrerá de qualquer maneira quando
eu o abandonar totalmente.
— E se o regente não concordar?
Quando Ellert falou, Rhodan achou os impulsos mentais mais fracos.
— Faça o que digo! Não resta muito tempo... até a vista, Perry, Atlan. Preciso
voltar para Druufon. Onot desmaiou. Preciso...
Os impulsos cessaram de repente.
Ellert se retirara, ou fora forçado a retirar-se.
Porém um dia...
Rhodan contemplou mais uma vez a face sem vida, debaixo dos aparelhos
eletrônicos de alarma. Depois virou-se bruscamente, dizendo a Atlan:
— Podemos ir.
Atlan seguiu-o calado.
Passaram pelas duas portas, subiram os estreitos degraus e suspiraram de alívio ao
atingir a superfície. O sol agora alto no céu lhes pareceu verdadeiro símbolo. Seus raios
significavam vida e esperança.
Por trás deles, a placa rochosa tornou a ocultar a entrada do poço.
Pardo junto à pirâmide, Gucky declarou:
— Acompanhei telepaticamente toda a conversa.
Rhodan acenou-lhe amistosamente. Mercant veio ao encontro de Rhodan.
— E então? — indagou, ansioso. Suas qualidades telepáticas eram fracas demais
para permitirem participação nos acontecimentos ocorridos no interior da câmara
fúnebre. — Que aconteceu? Onde está Ellert?
Rhodan fitou o cume da pirâmide ao responder:
— Ellert retornará, quando for chegado o momento. Ele e nós ainda temos uma
tarefa para cumprir. Ele falou conosco, Mercant, porém seu corpo ainda precisa continuar
em repouso. Mande colocar guarda permanente em torno do mausoléu. Na próxima vez
em que a lâmpada vermelha se acender, será a hora!
Olhando em torno, avistou Haggard. Cumprimentou-o igualmente.
— Não tardará muito, doutor, e poderá realizar um exame médico em Ellert. Exame
físico, bem entendido, pois quanto ao estado mental...
Rhodan silenciou repentinamente.
Depois fez meia-volta e encaminhou-se sem mais uma palavra para o planador.
Gucky já se encontrava na cabina.
3
Levado por uma inquietude interior para a qual não achava explicação, Rhodan
voltou no mesmo dia para Mirta VII. Talvez conscientizado pelas palavras de Ellert,
compreendendo agora, claramente, o quanto eram ameaçadores os druufs. Era mais do
que tempo de infligir uma derrota significativa aos monstros.
Ainda antes de atingirem a velocidade exigida para a transição, Harno lhes trouxe
uma imagem do sistema Siamed.
Inflada para o dobro do tamanho de uma bola de futebol, a superfície curva mostrou
primeiro as naves assediantes do regente. Postadas diante da zona de descarga, tocaiavam
as unidades dos druufs que tentavam passar por ela.
Rhodan inspirou profundamente ao ver a nuvem cintilante.
Lançou um olhar interrogador a Atlan.
— Quantas são? Pode dar uma estimativa?
O imortal arcônida respondeu:
— Trinta mil unidades, pelo menos, entre grandes e pequenas. Também há naves
dos saltadores entre elas. Uma frota e tanto!
— Não obstante, os druufs dariam conta dela, caso não sejam impedidos — replicou
Rhodan. — Acho que atenderemos finalmente os pedidos de socorro do regente.
Após refletir um pouco, acrescentou:
— Trinta mil naves! Com isso, pode-se conquistar um Universo inteiro. Jamais
imaginei que Árcon dispusesse de tamanhas reservas.
Na voz de Atlan, havia um tom de orgulho, quando respondeu:
— Que aliado será Árcon, quando o reino for novamente governado por um
imperador, e não por uma máquina!
Harno trocou de imagem. Surgiu Druufon, circundado por vigilantes cruzadores
cilíndricos; sua missão era proteger o planeta, já agredido, de futuros ataques. Seria muito
difícil romper a poderosa barreira. Talvez até inteiramente impossível.
Diante de tão manifesta superioridade, Rhodan imaginou quantas vítimas seriam
feitas numa possível batalha.
Harno mostrava agora a base subterrânea de Hades. Já haviam sido instalados doze
transmissores-receptores de matéria, com alcance máximo de dois anos-luz. O que
significava que homens e materiais podiam ser introduzidos no Universo dos druufs, sem
ser necessário a nave transportadora passar pela perigosa zona de descarga.
Transmissores de matéria...?
Na mente de Rhodan, começou a delinear-se um plano tão arrojado e fantástico que
não levou a idéia adiante.
Mas, afinal, por que não...?
Por coincidência, Atlan formulava, no mesmo instante, idéias semelhantes. Tendo
em vista a similitude de caráter daqueles dois homens, o fato dificilmente poderia ser
atribuído a um acaso.
— Também os druufs conhecem o transmissor de matéria, não é? — perguntou
Atlan, rompendo o silêncio.
Rhodan levantou rapidamente os olhos, dando com o ar indagador de Atlan. De seu
sofá, o rato-castor pigarreou. Harno deu sua tarefa por encerrada, “murchou” e subiu para
o teto.
— Possuem um, pelo menos — confirmou Rhodan, Por quê?
Atlan sorriu.
— Aposto que sabe por que pergunto, bárbaro. Viu tão bem quanto eu a frota
bloqueadora dos druufs, e deve ter imaginado uma maneira de chegar à central de
cálculos, sem perder metade de seus efetivos na tentativa. Há dois modos: tentar novo
acordo, a fim de poder aterrissar, ou atacar abertamente. Fora disso, ainda existe uma
terceira possibilidade!
— Foi exatamente esta que me ocorreu também — confessou Rhodan, retribuindo o
sorriso. — O acordo com os druufs, nos moldes do anterior, está fora de cogitação, já que
pretendemos entender-nos com Árcon. Restaria, portanto, o ataque aberto. E como prefiro
contorná-lo, por razões compreensíveis, só nos fica a terceira possibilidade: os
transmissores. Não é isso que pensa?
— Exatamente, Rhodan! Mas como?
Rhodan disse simplesmente:
— Ellert-Onot!
Atlan acenou em silêncio. Depois calaram-se. Apenas ficaram observando o Coronel
Baldur Sikermann iniciar a transição que os levaria a Mirta VII, também chamado Fera
Cinzenta.
***
Ainda na noite do mesmo dia — tempo terrestre — a Drusus decolou novamente,
vencendo com uma curta transição o trajeto de vinte e dois anos-luz até a zona de
descarga. Distância esta que, meramente por acaso, pouco se modificara, apesar do
contínuo deslocamento da faixa de superposição ao longo da Via Láctea. Ela seguia com
metade da velocidade da luz; no entanto também o sistema Mirta se movia, com
velocidade e rumo idênticos.
A Drusus materializou-se bem no meio de uma formação de cruzadores ligeiros do
Império Arcônida. Pela reação um tanto indecisa, Rhodan percebeu que se encontrava
diante de unidades tripuladas por seres vivos, e não por robôs.
Antes que os saltadores — indubitavelmente se tratava dos aliados do regente —
pudessem tomar atitude, Rhodan entrou em contato radiofônico com eles.
Foi com imensa surpresa que os saltadores constataram estar mais uma vez diante
do endiabrado terrano: e mais surpresos se mostraram, quando Rhodan manifestou o
desejo de falar com o regente.
Asseguraram-lhe que podia fazer contato com Árcon sob a proteção da poderosa
frota de batalha, sem o risco de ser molestado.
Além disso, Rhodan sabia que os saltadores podiam ouvir igualmente a conversação
que iria ser travada. E essa circunstância era a principal razão para sua maneira de agir.
Rhodan, Atlan, Reginald Bell e Gucky dirigiram-se para a central radiofônica da
Drusus. O receptor do hiper-rádio já estava ligado.
A tela oval mostrou o conhecido símbolo do cérebro-robô de Árcon: a imensa semi-
esfera metálica pousada sobre um pedestal. Simultaneamente se ouvia a gravação da frase
captada há semanas:
— O regente de Árcon chama Perry Rhodan, o terrano! Nosso inimigo comum ataca
com forças superiores! Se não nos aliarmos, estaremos perdidos! Solicito a ajuda de Perry
Rhodan! Manifeste-se, Rhodan!
A mensagem era repetida ininterruptamente, a breves intervalos. Até então Rhodan
não respondera.
— Eu já teria enjoado disso há muito tempo — comentou Bell, observando com
interesse profissional a semi-esfera.
— Claro, você não tem temperamento de robô — esclareceu Gucky, acomodando-se
confortavelmente num canto, a fim de observar com exatidão os acontecimentos. —
Felizmente...!
Sem lhe dar atenção, Rhodan aproximou-se do transmissor.
— Aqui, Rhodan! Que proposta tem para me apresentar, regente?
Depois aguardaram.
Não porque as ondas de rádio necessitassem de algum tempo para percorrer o
incomensurável trajeto. Pelo hiperespaço, alcançavam Árcon instantaneamente; captadas
pelo equipamento local, eram conduzidas ao regente. O cérebro-robô tinha ampla
capacidade para realizar simultaneamente centenas de conversações daquele tipo. Um dos
canais receptores ficara permanentemente livre para Rhodan.
No entanto, até mesmo o robô precisava de algum tempo para refletir e pesar toda a
gama de possibilidades. A pergunta de Rhodan devia tê-lo pegado de surpresa.
Apesar disso, dali a cinco segundos, a voz mecânica se fez ouvir na central
radiofônica da Drusus.
— É você, Rhodan! Meus cálculos me diziam que continuava vivo. Conhece os
druufs?
— Sim, conheço-os. Que sugere?
— Minha frota está em prontidão. Reforce-a com a totalidade de suas naves, para
um ataque conjunto. Nós destruiremos os druufs.
— Não estou tão certo disso — declarou Rhodan decididamente, percebendo que,
mais uma vez, o regente tentava matar dois coelhos com uma cajadada. Aniquilados os
druufs, seria a vez da Terra. — Tenho plano melhor!
— Se for melhor que o meu, está aprovado.
— Destaque uma nave de guerra do tipo Titan para atravessar a brecha, e entrar no
Universo dos druufs. A tripulação será formada exclusivamente por robôs guerreiros.
Providencie para que pelo menos uma ou duas dúzias deles desçam em Druufon, e
desencadeiem uma confusão infernal.
Depois de curto silêncio, veio a resposta:
— Não vejo sentido nesta ação, Rhodan...
— Verá, se continuar a ouvir.
— Então fale.
Rhodan expôs ao cérebro-robô todo o plano anteriormente discutido com Atlan.
Tudo foi dito em poucas frases. A idéia era tão óbvia e lógica que o regente respondeu
imediatamente:
— O plano é bom; concordo com ele. Receberá o que pede.
— Eu espero.
As naves dos saltadores os envolviam por todos os lados. Seu número era tão grande
que ocultava as estrelas. Rhodan, Atlan e Bell estavam novamente na central de comando.
Gucky ficou na sala de rádio.
— Estou curioso por ver o que vai acontecer — disse Atlan, afundando com um
suspiro na poltrona mais próxima. — Por que não funcionaria?
Rhodan não deu resposta, atento em observar, na tela, as naves dos saltadores. Havia
alguns cruzadores-robôs entre elas. Unidades das mais perigosas, pois atacavam sem a
menor preocupação com a própria perda. Os tripulantes-robôs limitavam-se a obedecer
ordens, e desconheciam o medo.
Enquanto esperavam, algumas modificações foram feitas a bordo da Drusus. Um
dos imensos porões de carga foi desocupado; era bastante amplo para acomodar vários
cruzadores ou outra espécie de material.
Passou-se meia hora.
E depois, a menos de um segundo-luz da nave, materializou-se um cargueiro. Vindo
do hiperespaço, freou assustadoramente perto da Drusus, dando a impressão de catástrofe
iminente. Deteve-se bem próximo a ela.
Pelo rádio, Rhodan entrou em contato com o comandante.
— Trago os robôs de combate pedidos.
— Obrigado. Direto de Árcon?
— Exato. Ordens do regente.
— Ótimo; vou abrir as escotilhas de carga. Pode mandar transferir os robôs. E
quanto à segunda exigência?
— Uma nave bélica de Árcon está à disposição.
Rhodan agradeceu e cortou o contato.
O resto era mera rotina.
As duas naves foram interligadas com cabos magnéticos. Pela prancha
gravitacional, 500 possantes robôs de combate marcharam da abertura do cargueiro para
o compartimento de carga da Drusus.
Tratava-se de colossos do modelo mais recente, com quase três metros de altura. Na
altura do peito possuíam uma protuberância rotativa, eriçada de armas, permitindo-lhes
atirar simultaneamente em todas as direções. Os quatro braços terminavam em radiadores
energéticos. Depois de ativado, cada um daqueles monstros metálicos era um inferno
ambulante, espalhando fogo e destruição. Bastava programar adequadamente seus
cérebros positrônicos.
Uma hora depois, as escotilhas foram fechadas, e os cabos desamarrados; as duas
naves separaram-se vagarosamente, tomando rumos opostos.
Novamente Rhodan entrou em contato com Árcon.
— Tudo pronto, regente. Marque o ataque para amanhã. Tempo: meio-dia, hora da
Terra.
— Tempo já convertido! Tudo entendido! — após imperceptível pausa, o regente
acrescentou: — Boa sorte, Rhodan da Terra!
— Muito grato — replicou Rhodan, com certa frieza.
Não havia razão para supor que o regente expressara tal voto movido por
sentimento. Pura vontade de se fazer de bonzinho...
A Drusus ganhou velocidade, afastando-se algumas horas-luz da coligação de
saltadores e robôs. Depois Rhodan ligou para Hades.
O Tenente Stepan Potkin, comandante substituto da base secreta no seio do reino
dos druufs, já estava devidamente instruído. Comunicou que o transmissor III se
encontrava em prontidão.
Rhodan e Atlan dirigiram-se para o compartimento de carga da Drusus.
Não era por acaso que ficava vizinho ao transmissor de matéria da nave.
— Bem, vamos à viagem — disse Atlan, abrindo a porta da sala. Ao mesmo tempo,
disse aos robôs: — os primeiros vinte entram comigo na cabina. Dentro de exatamente
dez segundos segue o segundo grupo. Em duzentos e cinqüenta segundos, a operação de
transferência estará completada. Então receberão nova programação.
De pé junto à porta, Rhodan viu Atlan entrar na cabina com os vinte guerreiros
mecânicos. Dois segundos após, todos tinham desaparecido. Materializariam-se no
mesmo instante em Hades, a dois anos-luz de distância.
Os próximos vinte, os próximos....
Com a última leva, também Rhodan deixou a Drusus.
Sikermann colocou-se em posição de espera. Seria uma dura prova de paciência
para ele próprio, para Bell e Gucky. Especialmente para o rato-castor, impaciente por
natureza.
Em Hades, tudo decorreu conforme o programado.
Enquanto os técnicos tratavam de preparar os robôs para a tarefa em perspectiva,
Rhodan e Atlan foram procurar o Capitão Rous, companheiro de Potkin no comando da
base. O hangar de Hades abrigava o cruzador ligeiro Califórnia.
Marcel Rous pertencia ao grupo de pioneiros na exploração da dimensão temporal
dos druufs, muito antes do aparecimento da tal zona de descarga. Mediante um gerador
de campo lenticular, tinham conseguido romper a barreira de tempo, proeza que quase
lhes custara uma sentença de prisão perpétua no cárcere do tempo.
Suspirou de satisfação ao ver Rhodan e Atlan, vindo-lhes ao encontro de mão
estendida.
— Alegro-me, Sir...
— Tudo em ordem — disse Rhodan, em tom tranqüilizador, apertando-lhe a mão.
Atlan cumprimentou igualmente Rous, e, a seguir, Rhodan resumiu os
acontecimentos ocorridos na Terra, concluindo:
— Precisamos agora de um contato telepático com Ellert. Nem sei como seria
possível sem o concurso de Harno.
Enfiando a mão no bolso, retirou a bolinha negra. Atlan nem percebera que Rhodan
trouxera Harno.
— Pode achar Onot?
Harno inflou, transformando-se em tela.
— Vou tentar — disse o impulso no cérebro dos três homens.
Névoas coloridas ziguezaguearam pela superfície curva e leitosa, acabando por
condensar-se na imagem de um planeta, que crescia visivelmente. Druufon!
No entanto, Harno avançou mais, até o interior do planeta. Todas as instalações
importantes dos druufs localizavam-se nas profundezas do solo, resguardadas pela sólida
rocha de Druufon. Ali pulsava o coração da poderosa tecnologia que ambicionava
sobrepujar até o tempo.
Onot aparecia bem em evidência.
O físico-chefe dos druufs repousava. Estava deitado, de olhos fechados.
“Portanto”, refletiu Rhodan, “deve ser especialmente fácil estabelecer contato com
Ellert, se é que seu espírito não está também dormindo. Será que ele dorme alguma
vez?”
Rhodan não teve tempo de formular resposta para sua dúvida, pois já sentia o
cauteloso tatear de impulsos estranhos em sua consciência — prenuncio da aproximação
de Ellert.
Também o Capitão Rous e Atlan entenderam o que Ellert dizia:
— Seu plano, Rhodan, é muito hábil! Pode ver-me?
— Vemos Onot, o cientista. Harno encontrou-o.
— Seus pensamentos são fragmentos apenas. Diga coerentemente o que devo fazer,
para que engano nenhum comprometa o plano. Eu ouço.
Rhodan disse:
— A frota do regente de Árcon atacará novamente Druufon; no decorrer da ação,
tentará fazer descer uma nave de guerra cheia de combatentes-robôs. Operação que visa
apenas fazer camuflagem, pois dificilmente os robôs conseguirão chegar à central de
cálculos. Esta parte será reservada aos robôs distribuídos por nossos doze transmissores
de matéria. Ligaremos os aparelhos pouco depois do início do ataque arcônida. Seu único
encargo será colocar “casualmente” a ligação da estação receptora na central de cálculos,
em sintonia com a nossa. Pode fazer isso?
— Devo poder, pois afinal eu sou Onot — veio a resposta clara e decidida. —
Renovarei o contato a tempo, Rhodan. O plano não pode falhar. Tudo em ordem, fora
disso?
Rhodan não tinha mais perguntas a fazer.
— Fora disso, tudo em ordem, Ellert. Até amanhã...
Não houve resposta. Talvez os contatos fossem cansativos para Ellert, e ele evitasse
desperdiçar energia desnecessariamente.
Atlan perguntou de repente:
— E que papel nós desempenharemos na ação planejada?
— O Capitão Rous irá conosco, Atlan. Faremos uma visita sem compromisso aos
druufs, bem na hora da confusão. Gostaria que continuassem nos considerando amigos...
Pelo menos até conseguirmos o segredo da propulsão estelar — Rhodan sorriu, deliciado.
— Belo nome, não acham?
— E o congelador de tempo?
— Um presente que não seria de desprezar, caso possamos obtê-lo — replicou
Rhodan, que atribuía pouca importância àquela invenção. — Menos interessante do que a
propulsão estelar, com a qual gostaria de equipar nossas naves. Em comparação com os
hipersaltos, apresenta uma série de vantagens.
— Quando partimos? — indagou Rous, excitado.
— Amanhã — prometeu Rhodan. Porém, logo emendou-se: — Receio ter que
desapontá-lo, meu caro. Parece-me mais conveniente seguir para Druufon na Drusus. Os
druufs já conhecem a nave de guerra, e ela imporá mais respeito do que a insignificante
Califórnia. Não leve a mal...
— Razões estratégicas pesam mais — declarou Rous, escondendo a decepção.
Ou talvez nem sentisse decepção alguma, pois certamente aquele vôo infernal não
constituiria prazer algum.
Rhodan deu-lhe as derradeiras instruções, a fim de assegurar a perfeita coordenância
de horários, e retornou com Atlan e Harno para junto do Tenente Potkin, que dirigia a
programação dos robôs.
— Iniciarão sua tarefa destrutiva, assim que pisarem na central de cálculos
subterrânea dos druufs. Cada um destes robôs-combatentes possui a força de fogo nuclear
de um pequeno destróier. Quando imagino os 500 em ação simultânea...
— Melhor não pensar nisso — aconselhou Rhodan, contemplando as máquinas
enfileiradas. Semelhavam-se a seres pré-históricos e, no entanto, faziam parte de um
futuro recém-iniciado para a Terra.
Harno desceu, deixando que Rhodan o colocasse no bolso. Parecia sentir-se bem lá
dentro, evidentemente. Rhodan nem sentia seu peso.
— Retornaremos ainda hoje para a Drusus, permanecendo em contato através do
hiper-rádio. Assim que a frota de Árcon atacar, amanhã cedo, começa nossa grande
partida contra os druufs. Espero que eles não recusem participar do jogo!
— É disso que tudo depende — comentou Atlan.
Porém a opinião de Rhodan era diversa.
— Ora, não fará diferença. De uma ou de outra maneira, nossos quinhentos
lutadores alcançarão a central de cálculos, arrasando tudo à sua frente. Porém isso me
colocaria na posição de inimigo dos druufs, o que eu lamentaria imensamente.
Atlan não respondeu. Acompanhou-o calado até o transmissor que os levaria de
volta para a Drusus.
Continuava cético, fiel à sua natureza.
***
Ainda lhes restavam quatro horas até o começo do ataque.
Após repousante sono, Atlan e Gucky chegaram quase juntos ao camarote de
Rhodan. Bell já estava presente, sonhadoramente reclinado num assento. Gucky se
encaminhou para lá, e, num salto, se instalou ao lado do amigo. Aconchegou-se a Bell,
sem ligar para seu olhar meio desconfiado.
Rhodan tomara o desjejum, e sentia-se bem disposto. O plano estava traçado, e nada
podia alterá-lo. Tinham diante de si quatro horas ociosas, sem maiores preocupações.
Sob o teto flutuava Harno, o enigmático ser de energia e tempo, reduzido a uma
inofensiva bola.
Atlan tomou lugar diante de Rhodan.
— Agora falta pouco, bárbaro.
— Em determinadas circunstâncias, quatro horas podem representar longo espaço
de tempo...
A Drusus ainda se mantinha a alguma distância da frota espacial de Árcon. A menos
de um ano-luz de distância, tremeluzia a zona de descarga. Imóvel em relação à Drusus, à
frota e ao sistema solar do Universo relativista; porém, na realidade, deslocava-se com
metade da velocidade da luz através do Universo. Unicamente graças a este acaso
permanecera estável por tanto tempo. Durante os fugazes contatos entre os dois
Universos, estas zonas de superposição duravam apenas horas ou dias. Às vezes, até
poucos segundos.
— Sinto-me contente com a pausa — confessou Rhodan. — As derradeiras horas e
dias foram verdadeiramente exaustivos. E não sei se o futuro será mais tranqüilo.
— Dificilmente — opinou Atlan. Lançou um olhar a Bell, ocupado em acariciar a
nuca de Gucky. — Até nosso rotundo amigo vai demonstrar inesperada lepidez em breve.
Bell não reagiu à provocação.
— Lepidez...? Que bela palavra, almirante! Mas acho que está enganado. Que tenho
eu a fazer? O trabalho principal caberá aos robôs, e a Ellert — estacou, como se a
menção do nome lhe recordasse algo. — Aliás, será que ainda teremos novas de Ellert?
— Claro que sim, mas só alguns minutos antes do ataque, ou no decorrer da ação.
Vai depender da oportunidade que ele tiver.
Rhodan calou, olhando para o alto, como se quisesse perguntar algo a Harno. No
entanto, nada disse.
— Por que não pergunta, Rhodan?
O impulso mental penetrou em todos os cérebros.
Por um instante, Rhodan revelou certo constrangimento por ver-se descoberto, mas
logo sorriu, sacudindo a cabeça.
— Não devia ser tão indiscreto, Harno! Sabe muito bem o que queria perguntar-lhe.
E não é de hoje... Responda se quiser!
— Quer saber se posso fazer mais do que refletir imagens. Claro que posso,
Rhodan, desde que tenha a devida permissão! Há coisas que até a mim são proibidas.
— Proibidas... por quem?
Era a mesma pergunta que Harno já deixara de responder certa vez. Poderia ou
quereria respondê-la algum dia?
— Por aquele que já encontraram.
Rhodan ergueu os olhos para o teto.
Desistiu de novas perguntas, adivinhando que Harno se envolveria em silêncio. Ao
contrário de Bell, mais desinibido.
— Que quer dizer? Já encontramos tanta gente...
— Não pode classificá-lo de gente — corrigiu Harno, silenciosamente, mas em tom
enérgico. — Trata-se de um ser de inimaginável inteligência, imortal como eu, porém
infinitamente mais sábio e poderoso. Seu lar é o Universo todo, e nutre-se da luz das
estrelas.
— Parece que vocês dois têm muito em comum — disse Bell, pensativo. —
Também você vive da luz das estrelas. Tira delas energia, e a capacidade de ser como é.
Afinal, o que vem a ser você?
Gucky observou, constrangido:
— Sua curiosidade chega a ser inconveniente, gorducho!
Antes que Bell pudesse replicar, Harno comunicou:
— Já mencionei uma vez que a curiosidade gera o conhecimento. Portanto, não
levem a mal a curiosidade de Bell. Afinal, minhas respostas não dependem dele, mas sim
do que me permitem ou não falar. Sim, sou aparentado com ele, com o ser onipotente que
por sua vez também conhece limites. Aquele que não tem limites nem sequer eu conheço.
Jamais alguém o verá de perto.
Rhodan percebeu que a conversa tomava rumo perigoso.
— Deixemos isso de lado — disse, categoricamente. — Harno falará quando julgar
oportuno. O que, no entanto, não me impede de querer conhecer suas capacidades, Harno.
O que, além de qualquer recanto do Universo, pode mostrar-nos?
— Como se isso não bastasse! — veio a réplica um tanto irônica. — Que quer que
eu possa?
Aquilo pegou Rhodan de surpresa, deixando-o quase sem ação. Recuperando-se,
formulou de maneira mais generalizada sua questão:
— Pode alterar a forma esférica de seu corpo caso necessário? Isto é, poderia tomar
a forma de um cubo, em vez de uma bola?
Nas suas mentes ecoaram risadas. Realmente, Harno estava rindo! Externamente a
bola não apresentava modificação alguma, mas era indubitável que ria da pergunta de
Rhodan.
— Também Harnahan queria saber por que eu tinha formato de bola. Disse-lhe
que, conforme todo mundo sabe, a esfera é a mais perfeita das formas. Claro que posso
me transformar num cubo se for necessário!
— Obrigado, Harno! Vou-me lembrar disso na devida ocasião. E talvez ela se
apresente mais cedo do que esperamos. Uma pergunta adicional, ainda: pode voar acima
da velocidade da luz sob qualquer forma?
— Posso, sim!
— É tudo que eu queria saber, Harno.
A sede de sabedoria de Rhodan estava satisfeita.
Só aos poucos, os demais foram tomando consciência da imensa significação
contida no que acabavam de ouvir. Seus olhares espantados prenderam-se ao teto, onde
flutuava a pequenina e insignificante bola.
Apenas Gucky relevou a tensão numa observação zombeteira.
— Conforme constataram, não é a forma física que importa, mas sim o que esta
dentro dela. Bell é enorme por fora, enquanto eu sou pequeno. A conclusão lógica seria...
Em seus cérebros, Harno ria gostosamente.
***
O físico-chefe Onot não vinha se sentindo bem há algum tempo.
O mal-estar começara há três ou quatro meses. Inicialmente, dores de cabeça.
Depois começou a perder a consciência — por instantes, segundo lhe parecia. No entanto,
ao consultar posteriormente o relógio, constatava que havia passado horas inteiras.
Onot evitou cuidadosamente cientificar o venerável Conselho dos Sessenta e Seis de
suas observações; além disso, uma voz íntima se opunha à noção de que alguém tomasse
conhecimento de sua doença.
Tratar-se-ia realmente de doença?
Pois havia sintomas paralelos que intrigavam Onot.
Muitas vezes, quando se achava sozinho em seu laboratório, ocupado com as
misteriosas experiências com o tempo, tinha a nítida impressão de estar sendo observado.
Como se não estivesse mais sozinho, com alguém espiando por cima do ombro. E a
presença invisível exercia incrível influência sobre seu modo de pensar.
De alguma forma, o fato devia ter relação com suas experiências. Afinal, analisava o
problema tempo, e não seria de admirar se algum dia topasse com seres ou objetos vindos
do passado ou do futuro. Por outro lado...
Cientista objetivo, e o melhor de sua raça, aliás, Onot jamais poderia acreditar em
assombrações. Não estava doente. Simplesmente não podia estar doente!
De maneira alguma deveria adoecer!
Onot encontrava-se em seu laboratório. Sabia que lá fora a situação chegava a um
estado crítico. A zona de descarga no Universo, há tanto tempo prevista por ele, se tornara
realidade, assegurando por longo prazo acesso à outra dimensão temporal. A
superposição progredira, mas ninguém — nem sequer ele próprio — poderia prever a
duração deste estado de coisas.
Ao mesmo tempo ela trazia um risco. Assim como os druufs podiam sair de seu
Universo, os estranhos da outra dimensão podiam penetrar no reino de Druufon. E fora
exatamente o que acontecera.
Onot sorriu sarcasticamente. Os invasores não podiam ter escolhido ocasião mais
apropriada. Sua invenção estava pronta e testada. No devido momento poderia
transformá-la numa arma capaz de conquistar vias lácteas inteiras. Além disso, a frota
convencional dos druufs era suficientemente poderosa para rechaçar qualquer adversário.
Sabia que, naquele preciso momento, as potentes naves de guerra se organizavam
para atacar a frota de robôs, que bloqueava a entrada da zona de descarga. Em Druufon
haviam sido feitos preparativos para receber “condignamente” qualquer unidade, que
escapasse aos defensores.
Ao ligar pela derradeira vez o gerador que ativava o campo do congelador de tempo,
sorria ainda. Nenhum sinal exterior denotou o fluxo de energia através da complexa
aparelhagem; e a radiação distribuída pelo refletor no teto era invisível. Desta forma,
apenas parte do recinto ficava sob a influência do campo de tempo. Uma seção circular,
com cerca de dez metros de diâmetro.
Onot deu um passo para a frente, e pôs a mão no bolso do amplo jaleco. Retirou-a
de punho fechado. Abriu-o cautelosamente, certificando-se de que o pequenino micar, um
animal parecido com rato, ainda vivia. Os micars eram amplamente usados para
experiências.
— Nada vai lhe acontecer — murmurou para o trêmulo bichinho, em tom
conciliador. — De certa forma, você se tornará até imortal, pois o tempo vai passar
milhões de vezes mais devagar para você. Mas só se eu deixar o campo de tempo ligado
tanto assim...
Riu estrepitosamente, mas ouvidos humanos seriam incapazes de captar tanto sua
gargalhada, quanto as palavras pronunciadas depois:
— E agora, divirta-se... Descrevendo amplo arco com o braço, lançou o esperneante
micar para dentro do invisível campo de tempo.
Primeiro o micar voou e depois quedou imóvel no ar, sem executar mais o menor
movimento. Como se tivesse sido pregado no nada, ou imobilizado por súbito
encantamento. Parecia morto, aprisionado no interior de um bloco de gelo. Ficou
suspenso no ar, a menos de cinco metros de Onot.
O físico-chefe contemplava-o com satisfação, mas sem surpresa alguma, pois era
exatamente este o resultado que esperava.
O micar vivia agora em outra dimensão temporal, criada artificialmente. Antes que
completasse um movimento respiratório, ou caísse ao solo. Inteiramente desamparado,
encontrava-se à mercê do druuf, invisível para ele. O mesmo sucederia a qualquer ser
vivo atingido pelo campo de tempo de Onot. Um gerador de dimensões apropriadas
poderia subjugar um mundo inteiro.
Um único detalhe aguardava solução: como atingir o adversário indefeso sem cair
igualmente sob a influência do campo de tempo? Era este o problema que Onot ainda
precisava resolver.
O cientista encaminhou-se para o painel de controle. Com alguns gestos, ativou o
indutor de choques entrementes construído. Seria absurdo penetrar no campo de tempo,
evidentemente, pois, no mesmo instante, o invasor estaria sujeito às condições ambientes.
Teria diante de si um adversário inteiramente normal. O mais certo era tentar matar, ou
pelo menos atordoar, o inimigo paralisado, sem incorrer em risco. Depois o campo de
tempo poderia ser desativado novamente, e o conquistador tomaria posse do mundo
dominado.
Quando a tela acusou o impacto do indutor de choque, o micar continuava suspenso
no mesmo ponto. Onot deixou-o atuar por dez segundos antes de tornar a desligá-lo.
Trêmulo de excitação, voltou à posição inicial, e pousou a mão sobre a alavanca que
interrompia o campo de congelamento de tempo.
O micar precipitou-se no chão, caindo de dois metros de altura, como se uma mão
invisível o tivesse soltado de repente. Onot apressou-se a recolher o animalzinho,
levando-o até bem perto dos olhos. Viu a pele fremir sob o efeito das pulsações do
diminuto coração. O micar vivia, porém estava inconsciente.
Onot suspirou de satisfação. A experiência tivera completo êxito.
As ondas de choque, especialmente neutralizadas, não eram influenciadas pelo
campo de tempo; atravessavam-no em velocidade normal. O que significava que se
poderia alcançar e influenciar qualquer objeto desejado sem ser forçado a pisar na zona
perigosa.
Assim o problema estava resolvido.
Onot triunfara.
Agora era só convencer o Conselho a liberar os recursos necessários para a
construção de um gerador gigante, e sua invenção poderia ser produzida em larga escala.
Não teria dificuldade em consegui-los.
Mal acabou tal reflexão, tornou a sentir a dolorosa pressão no cérebro. Mera estafa,
talvez. Não se preocupou muito no momento; decidiu ir para sua moradia privada, anexa
ao laboratório. Estava tão cansado e exausto...
“Andei me excedendo no trabalho”, pensou.
Vislumbrou com satisfação a ampla cama. Sem sequer fechar a porta, jogou-se sobre
o leito e fechou os quatro olhos.
Adormeceu instantaneamente.
***
Todos estes acontecimentos se deram simultaneamente.
O Conselho dos Sessenta e Seis deliberava na arena. Desta vez, os representantes do
povo haviam sido admitidos, pois discutia-se a necessidade de um ataque imediato. Os
adversários vindos do outro Universo precisavam ser rechaçados, e, além disso,
aniquilados. A passagem para a dimensão temporal do outro Universo não podia ficar
bloqueada.
A sessão foi rápida e sem atritos.
As propostas dos sábios foram unanimemente aprovadas e sancionadas pela
assembléia. Os comandantes de esquadrão receberam ordens de deixar suas naves em
rigorosa prontidão, e decolar dos hangares subterrâneos ao primeiro sinal.
Druufon passou a ser uma fortaleza armada até os dentes. Em todos os pontos do
planeta, os canhões até então ocultos emergiam do chão; apontavam ameaçadoramente
para o céu luminoso, no qual o sol gêmeo rubro-verde desenhava estranhos reflexos.
Entraram em ação as gigantescas instalações destinadas a produzir inimagináveis
quantidades de energia, a ser liberada durante a batalha.
Druufon preparava-se para aniquilar Árcon.
Por puro acaso, a frota robô do regente recebia no mesmo momento ordem de
ataque.
Aquilo poderia significar o fracasso total para Rhodan, mas também a vitória
garantida.
Ninguém saberia dizer ao certo.
Nem mesmo Ellert.
4
Quando o carro robotizado parou, deixando Onot descer, todas as luzes tinham
acabado de apagar no corredor subterrâneo. Tudo ficou envolto em trevas.
O druuf avançou às apalpadelas, apoiando-se nas paredes, em busca de saída. Não
conhecia muito bem aquela parte do labirinto de cavernas, por ser domínio de outros
cientistas. Porém ele, Onot, era o físico-chefe de sua raça.
— Que foi que aconteceu? — murmurou baixinho, esperando que seu
acompanhante invisível respondesse. Já nem sabia o que fazia ali sem ele.
“A central de cálculos no subsolo da cidade foi arrasada. Pode achar o caminho
para a superfície?”
— Deve estar perto, mas é difícil distingui-la, com as luzes apagadas.
“Os geradores de emergência não tardarão a entrar em ação”, consolou Ellert, com
uma pontinha de ironia. “Às vezes, é bem mais cômodo não possuir corpo.”
Onot não respondeu. Avançava com cautela, e suspirou de satisfação ao ver a luz
piscar, e depois permanecer acesa. Agora poderia andar com mais desembaraço, e achar a
saída. Antes de alcançar o elevador, ouviu passos apressados se aproximando.
Eram dois druufs, que pararam espantados ao vê-lo.
— Onot! — exclamou um deles. — Que faz aqui? Que foi que houve lá na cidade?
— Um ataque dos estranhos — explicou Onot, preparando-se para um relato
detalhado.
No entanto calou bruscamente. Como dizer aos dois cientistas que fora ele que
deixara o inimigo entrar na central de cálculos? Que diriam eles? Como reagiriam?
Acreditariam que agira sob pressão?
— Na cidade, Onot?
Onot caiu em si. Precisava agir com a máxima cautela, a fim de não ser tomado por
traidor.
— Não, na central de cálculos. Os estranhos fizeram descer robôs, dos quais a maior
parte foi abatida; apesar disso, alguns deles conseguiram atingir a central. Tive sorte, e
ainda pude encontrar um carro para fugir a tempo. Que poderia fazer, só e desarmado,
contra os invasores?
— Você não tem trabalhado em novas armas? — perguntou um dos druufs,
desconfiado. — Todo mundo sabe...
— Faltou-me tempo... — interrompeu Onot, apressadamente. — Posso me
considerar feliz por ter escapado com vida. A central de cálculos foi inteiramente
destruída.
— Não sobrou nada?
— Até onde pude verificar, não. Uma grave perda para nós. Não sei o que o
Conselho fará a respeito.
— Se for conforme diz — estamos perdidos.
Porém Onot discordou. Não por vontade própria, mas porque Ellert ordenava.
— Ora, possuímos mais centrais, todas elas equipadas com pessoal competente. Nós
derrotaremos o adversário. Mas não me detenham mais, tenho o que fazer!
— Aqui? Em nosso setor? — perguntou um dos druufs, admirado.
— Sim, claro — replicou Onot, afastando-se depressa.
Sabia agora onde estava, e queria chegar à superfície o mais depressa possível. Os
elevadores funcionavam normalmente. A corrente antigravitacional empurrou-o para
cima, e Onot respirou fundo ao avistar o luminoso sol gêmeo Siamed.
Em contraste com as instalações subterrâneas, a superfície de Druufon mais parecia
terra deserta e estéril. Só a capital fazia exceção. Ao longo do litoral, havia mais algumas
cidades. Porém o sistema nervoso central dos druufs ficava profundamente oculto na
crosta do planeta.
A terra tremeu de repente, e Onot teria se precipitado ao solo se não tivesse se
amparado à parede mais próxima. Vários druufs atravessavam assustados a praça deserta;
vendo Onot, correram para ele.
— Que houve? — perguntaram, demonstrando inteiro desconhecimento do que
ocorria. — Alguma explosão, ou terremoto?
— Ambos — replicou Onot, laconicamente. O desconhecido ordenara-lhe que se
recusasse a dar informações. — Não há razão para preocupações...
Acenando-lhes — isto é, repuxando a boca triangular — seguiu adiante com
marcada displicência, como se estivesse apenas passeando. Os druufs seguiram-no com
olhares perplexos. Bem, se aquele cientista tão famoso mostrava tamanha calma, o perigo
não devia ser grave. Retornaram a suas ocupações.
“E agora, trate de cuidar de sua própria segurança!” soou a ordem muda em seu
cérebro. “Seu laboratório secreto! Não diga a ninguém para onde vai. Nós dois nos
entregaremos a algumas experiências ali.”
— Sujeito endiabrado! Que é que ignora a meu respeito?
“Nada, Onot!”
O físico-chefe pôs-se em movimento, desanimado. Ansiava por descanso e sono.
No parque de estacionamento havia diversos dos veículos tele dirigidos. Embarcou
num, e acionou a alavanca energética. Assim que Onot marcou o rumo no mapa embutido
abaixo do painel, o carro disparou.
Depois recostou-se comodamente no assento estofado.
— Como sabe de meu laboratório secreto, assombração?
“Conheço seus pensamentos e recordações, Onot. Sei tudo sobre você. Já não pode
guardar segredos, por mais que tente controlar seus pensamentos. Somos um só, você e
eu. Poderia esconder algo de si mesmo, Onot?”
O sábio não respondeu. Olhava para a frente, onde, após uma curva, surgiriam as
montanhas. Lá, por baixo da rocha maciça, ficava seu laboratório. Uma antiga estação
experimental abandonada, que descobrira certo dia, puramente por acaso. Instalara-se
nela, e ali passava dias seguidos, deixando o Conselho supor que saíra em férias.
Onot tinha coisa mais interessante a fazer do que viagens de férias.
A estrada era ruim, porém o fato não tinha importância. O carro flutuava sobre um
colchão de borracha, que absorvia todas as irregularidades do solo. A velocidade
aumentou quando entraram numa reta.
— Que quer de mim, afinal? — perguntou Onot.
A voz do desconhecido falou alto e claro:
“Deixe de perguntas, e dê-se por feliz. Podia ter perecido no inferno em que se
transformou a central de cálculos. E saiba que não encontrará mais nada nela, caso
queira voltar lá algum dia. Só que não pode. Foi visto ligando o transmissor...”
Onot assustou-se mortalmente. Se aquilo fosse verdade...
“É verdade!”, afirmou Ellert, incisivamente. “Aquele druuf que encontrou no
corredor ficou desconfiado, e curioso por saber o que fazia em seu departamento. Por
sorte desistiu de desligar novamente o transmissor, pois nem sonhava com o que ia
acontecer. Mas ele também se salvou e, neste exato momento, encontra-se na presença
do Conselho, relatando o que viu. Você, Onot, é agora considerado o maior traidor de
seu país.”
Onot sentiu o mundo ruir a seu redor.
— Por que fez isso comigo? Não lhe bastou forçar-me a praticar aquele ato
detestável? É preciso também que todos saibam?
“Sim, é preciso. E é melhor assim.”
Ellert não explicou por que seria melhor. Sabia que não existia mais possibilidade de
volta para Onot, e que poderia deixá-lo entregue a si mesmo durante alguns minutos.
Precisava urgentemente fazer novo contato com Rhodan.
As montanhas ficavam ainda a meia hora de distância.
***
Enquanto se aproximavam da Drusus, Rhodan não pronunciou uma única palavra.
Esforçava-se por entender a atitude dos druufs. Por um lado, recusavam ajuda em
Druufon, e por outro tentavam aparentar uma superioridade que estavam longe de
possuir. E se o maçarico de gravidade fosse blefe, muitas outras coisas também poderiam
ser. O congelador de tempo, quem sabe?
Ou a propulsão estelar?
Não, era pouco provável, pois neste caso Ellert estaria a par. E ele confirmara a
existência da propulsão estelar, e do congelador de tempo. Ambos eram realidade.
A Drusus erguia seu gigantesco vulto diante deles. A escotilha já estava aberta,
quando desceram do carro, que retornou imediatamente para a cidade, depois de
descrever uma elegante curva. Sem falar, cada qual absorto nos próprios pensamentos,
deixaram-se levar pelo raio de tração para o interior da nave.
Só na central de comando Bell reencontrou a fala.
— Agora é que eu não entendo mais nada!
Sikermann ergueu os olhos.
— Que houve? Escutei tudo, e acho...
— Pode ter escutado — disse Rhodan. — Mas não ouviu os pensamentos deles.
Coisa que Gucky fez.
Explicaram tudo a Atlan e Sikermann. Espantado, o arcônida disse:
— Ousados, esses druufs. Jogam tudo numa só cartada, e sabem blefar. Reconhecem
que estariam perdidos, caso descobríssemos suas fraquezas. Mas estão conscientes de que
podem vencer a parada. Só me intriga saber como é que o tal de Tommy-1 se arriscou
tanto, a despeito de saber que Gucky é telepata.
— Só soube depois — explicou Rhodan.
— E então apressou-se a ir embora. Receando, naturalmente, que descobríssemos o
que pensava. Mas felizmente descobrimos.
— Ninguém tapeia Gucky! — exclamou o rato-castor, orgulhoso.
Bell lançou-lhe um olhar, mas nada disse.
— E agora? — indagou Atlan, ansioso.
Antes que alguém pudesse lhe responder, os impulsos mentais de Ellert
sobrepujaram tudo. Impuseram-se às suas ondas cerebrais como um transmissor de sinal
mais potente.
— Escapei do inferno, no corpo de Onot. Estamos a caminho do laboratório
secreto dele. Talvez lá eu consiga gravar numa microfita visual os detalhes de
construção da propulsão estelar. Até agora, não tive oportunidade de discutir o assunto
com Onot. Como está a situação por aí?
— Tudo em ordem — falou Rhodan, em voz alta. — Não deseja abandonar,
finalmente, Druufon, e regressar conosco à Terra?
Em seus cérebros ecoou um riso meio lamentoso.
— Ainda é cedo, Perry. Preciso continuar aqui até ter a certeza de poder agir
livremente a qualquer momento. O corpo de Onot me é altamente conveniente. Além
disso, jamais conseguiria lhes fornecer a propulsão estelar se deixasse o corpo de Onot
agora.
Atlan acenou para Rhodan.
Realmente, Ellert estava com a razão. Ellert poderia retornar à Terra, quando
julgasse conveniente; não existia mais impedimento algum. E no momento, o mais
importante era conseguir os planos de construção da propulsão estelar.
— Está bem, Ellert. Decolaremos agora, abandonando Druufon. Os druufs nos
mentiram, afirmando que são capazes de defender-se sozinhos neste seu mundo, e
dispensaram nossa ajuda. Garantem que seus cientistas desenvolveram armas fabulosas,
com as quais poderiam dominar o universo inteiro. Mas confessaram que não seria fácil
conquistar o nosso. Que sabe a respeito?
— Nada, por enquanto, mas saberei em breve — replicou Ellert. — Preciso
recolher-me agora, pois as montanhas se aproximam. Torno a falar quando tivermos
chegado, e eu estiver de posse dos planos.
A pressão deixou seus cérebros.
— Será que ele vai poder comunicar-se conosco, quando não estivermos mais na
dimensão temporal dos druufs? — perguntou Bell, preocupado.
— Creio que sim — disse Rhodan. — Isto, no entanto, o obrigaria a deixar Onot
sozinho, enquanto passa pela zona de descarga. Se entendi bem, Ellert pode deslocar-se
livremente através do tempo e do espaço sem o corpo de Onot. Só que, antes, nunca
conseguira passar de uma dimensão temporal a outra; por isso não reencontrava o
caminho para a Terra, e para o presente.
— Espero que não se extravie outra vez — comentou Bell, franzindo a testa. — Pois
assim que a “fenda” entre os dois Universos tornar a fechar-se, o caminho estará cortado.
— Ele passará a tempo — afirmou Rhodan, acenando para Sikermann. — Prepare a
Drusus para a decolagem, coronel. Proporcionaremos a nossos amigos um belo
espetáculo de fogos de artifício, a fim de que tenham pelo menos um motivo para
sentirem-se satisfeitos com seus aliados.
Dois minutos após, a gigantesca esfera alçou-se no ar, e disparou para o alto, em
direção do luminoso céu da tarde. Cruzou sem problemas pelo cinturão de barragem,
disposto pelos druufs em torno de seu mundo. Depois acelerou para a velocidade da luz, e
desapareceu sem deixar o menor vestígio, e sem produzir abalos no hiperespaço.
Materializou-se no mesmo instante por trás de Hades.
***
Lento e desajeitado, Onot desembarcou do veículo, e encaminhou-se para a parede
rochosa. Jamais vira alguém naquela região, porém não conseguia desvencilhar-se da
sensação de estar sendo observado. Desconhecendo o que fosse uma consciência pesada,
era compreensível que deixasse de identificar os sintomas correspondentes.
Sob a pressão de sua mão, uma placa de rocha deslizou para o lado a porta de
entrada camuflada. Degraus conduziam para baixo.
Tateando no escuro, Onot encontrou o computador e acendeu as luzes.
Imediatamente os degraus começaram a rodar, poupando-lhe o trabalho de descer pelos
próprios pés. Às suas costas, a porta fechou-se automaticamente.
“Belo esconderijo”, louvou Ellert, com uma ponta de zombaria. “Aqui ninguém
poderá achá-lo, principalmente a polícia do Conselho.”
Onot empalideceu.
— Se for preciso, juro que você me obrigou a ligar o transmissor.
“Estou extremamente curioso por saber se alguém acreditaria no tal espírito
invisível”, replicou Ellert.
Onot não respondeu, remoendo sua amargura. Era o primeiro a reconhecer que seus
protestos não mereceriam o menor crédito. Logo ele, o eminente cientista, ocasionar a
destruição da central de cálculos? Não existia desculpa para tal atitude. Realmente não!
— Estou em suas mãos — confessou ele, deprimido. — Que mais quer?
“Algumas miudezas aproveitáveis, meu caro. A propulsão mais rápida do que a luz
para espaçonaves, o gerador do campo de congelamento de tempo...”
— Para quê? Acha que ainda não traí suficientemente minha raça?
“Não confunda as coisas, Onot”, respondeu Ellert. “Já esqueceu que ajudei a
desenvolver o campo de tempo? Sei como é gerado, porém necessito de instruções
detalhadas numa fita audiovisual, de preferência em micro formato. Da mesma forma,
quero em microfita os planos de construção da propulsão estelar. Só depois de me
fornecer ambas, estará livre de mim. Então poderá fazer e deixar de fazer o que bem
entender.”
— E o que me resta? — gemeu Onot, na maior consternação. — Você causou minha
perdição.
Ellert hesitou ligeiramente, e depois afirmou:
“Talvez não, Onot. Caso não crie dificuldades, e faça tudo que exijo, provarei
facilmente sua inocência perante o Conselho.”
— Como?
“Dizendo que o forcei. Posso comunicar-me com eles da mesma maneira pela qual
falo com você. Isso os convencerá. Então poderá voltar para a cidade, se esta ainda
existir.”
Onot suspirou de alívio e readquiriu o ânimo.
— Está bem, farei tudo que pede. Uma segunda porta vedava a passagem no
corredor. Abriu-se como a primeira, por imposição da mão em determinado ponto.
Onot se instalara efetivamente com grande conforto. Seu refúgio habitual quando
queria meditar sobre os mistérios das leis naturais, ou procurar novos caminhos. Ellert
conhecia o laboratório, pois Onot passara bastante tempo nele durante os últimos meses.
E fora ali que desenvolvera o congelador de tempo.
O olhar de Ellert — através da visão de Onot — caiu sobre o pequeno modelo
experimental num canto do laboratório. Com a central de cálculos destruída, aquele era
agora o único exemplar existente. Montado sobre um pedestal, o modelo era pouco maior
do que um caixote de maçãs. Claro que faltava a ligação de força, e o aparelhamento
correspondente.
“Existem microfitas aqui?”, indagou.
— Não, para quê? — replicou Onot.
“Facilitariam nossa tarefa. Como pretende fornecer-me os planos de construção da
propulsão estelar se não temos microfitas?”
Onot ficou sem resposta. “Conhece este tipo de propulsão, não é?”, certificou-se
Ellert.
— Claro que conheço, apesar de não ser invenção minha. Posso explicar-lhe
detalhadamente...
“Não é isso que importa. Quero tudo documentado, com desenhos e fórmulas
detalhadas. Nem mesmo assombração pode guardar na memória todos os dados
necessários para fabricar propulsores estelares. Portanto, precisamos arranjar
microfitas. Tem alguma sugestão?”
Onot não tinha nenhuma, apesar de mostrar-se subitamente muito interessado em
ajudar seu intimidante companheiro. E só fitas não resolveriam o problema; precisariam
igualmente do aparelhamento técnico exigido: fotografometros, duplicadores,
projetores... Nem de longe era tão simples quanto Ellert imaginava.
“Ora, daremos um jeito, Onot. Por enquanto, sente-se um pouco, descanse, e
converse à vontade sobre o princípio em que se baseia o vôo linear mais veloz do que a
luz. Talvez já me sirva para alguma coisa...”
Sem opor resistência, Onot começou a revelar os segredos de seu povo.
***
O cruzador ligeiro Califórnia era igualmente uma esfera espacial, porém seu
diâmetro não ultrapassava cem metros, e possuía incrível capacidade de aceleração. A
nave alcançava em cinco minutos a velocidade da luz. Campos antigravitacionais de
inimaginável potência neutralizavam qualquer compressão.
O Capitão Rous deu as derradeiras ordens para a decolagem, e a Califórnia disparou
do hangar subterrâneo para o negro céu de Hades.
De pé, ao lado de Atlan, Rhodan presenciou a aproximação de uma formação de
naves do robô regente. Mandou atacá-las imediatamente. Algumas unidades dos druufs
postadas nas proximidades tornaram-se testemunhas do incidente. Rhodan sabia que se
defrontavam apenas com naves-robôs, cuja destruição acarretaria unicamente perdas
materiais.
Quase simultaneamente com o ataque-surpresa, o regente de Árcon recebia uma
curta e concisa mensagem hiper-radiofônica, dizendo que tudo corria de acordo com os
planos. No entanto, Rhodan se veria obrigado a destruir mais algumas naves arcônidas,
porém providenciaria para que nenhuma vida humana fosse sacrificada.
Os dez cruzadores menores do regente reagiram desesperadamente, porém
sucumbiram diante das armas da Califórnia. Os druufs não precisaram intervir.
Retransmitiram a mensagem de Rhodan para Druufon, onde ela desencadeou surpresa, e
ligeiras esperanças. Exatamente o que Rhodan pretendia que ela fizesse.
A Califórnia precipitou-se através da zona de descarga, realizou verdadeiro vôo de
patrulha, destruiu mais um observador teleguiado de Árcon, e retornou ao Universo dos
druufs. Avistaram uma esquadrilha de bloqueio dos seres descendentes de insetos.
Patrulhava a “fenda” de lado a lado, pouco abaixo da velocidade da luz. Unicamente as
curvas exigidas para manobrar mediam por vezes muitos milhões de quilômetros.
O Capitão Rous mandou emitir o sinal-código.
A Califórnia teve trânsito livre.
Rhodan era a calma personificada, quando disse a Atlan:
— Era isto que eu queria saber, almirante. Você irá para Fera Cinzenta, na Drusus, a
fim de trazer reforços. Não nos limitaremos a estabelecer uma base fortificada em Hades;
escavaremos também outros planetas. Os druufs vão ficar sabendo que força bruta e blefe
não levam a nada. E quando Ellert nos trouxer a propulsão estelar, atacaremos em
conjunto com Árcon. Sente-se mais tranqüilo agora?
— No que se refere a Árcon, sim. Mas acredita seriamente que os druufs jamais
suspeitem de nossas intenções? Afinal, não podemos nos instalar em todos os seus
planetas, sem que eles percebam. Algum dia acabarão descobrindo.
— Tenho minhas dúvidas a este respeito — discordou Rhodan. — Enquanto lhes
faltarem recursos para romper nossas barreiras de absorção, é totalmente impossível que
dêem por nossa presença.
Atlan não respondeu. Manteve-se calado até a Califórnia desaparecer no hangar de
Hades.
Rhodan deixou a nave, e foi procurar Potkin.
— Vou para a superfície agora, tenente. Durante minha ausência, as ordens dadas
por Bell deverão ser acatadas como se fossem dadas por mim! Certamente posso tomar
emprestado um traje espacial em seu estoque, não?
— Que pretende fazer, Sir?
— Nada de mais, Potkin! Uma pequena excursão, apenas...
— Mas sozinho? Posso destacar alguns homens escolhidos para...
Rhodan recusou.
— Quem diz que vou sozinho? Não se preocupe, um bom amigo irá acompanhar-
me.
— Gucky?
— Não — disse Rhodan, sorrindo, enquanto enfiava a mão direita no bolso da
túnica. — Harno!
***
Onot largou o estilete com o qual traçava complexas fórmulas e desenhos numa
lâmina plástica. Suspirou.
— Muito mais difícil do que havia imaginado. Mas talvez você compreenda pelo
menos o princípio básico.
Para um observador imparcial, a situação apresentava aspecto quase fantasmagórico.
Sentado, em total isolamento, diante de uma mesa no laboratório, o druuf manuseava toda
a sorte de aparelhos e instrumentos. Quando falava, olhava para cima, como que
dirigindo-se a algum suposto interlocutor. Depois parecia dar ouvidos a uma voz íntima, e
apresentava novas respostas. Como se Onot tivesse enlouquecido, entregando-se a longos
monólogos.
“O princípio em si é simples”, disse Ellert. “Mas não é suficiente para suprir os
especificados planos de construção. Necessitamos de um sistema de microgravação.
Talvez isso nos obrigue a voltar mais uma vez para a central de cálculos.”
— Mas...
“Nada de preocupações, irei só, deixando você aqui. Caso ainda encontre algo de
pé por lá, incorporo-me em outro druuf, e faço-o trazer o material para cá. A seguir, ele
esquecerá tudo, como se jamais tivesse acontecido.”
Onot recostou-se de repente em seu assento.
— Que foi isso?
Ellert já o havia percebido anteriormente, mas rejeitou a intromissão. Algum dos
habituais impulsos mentais, tão abundantes em toda a parte... Porém de repente conseguiu
ordenar e identificar o impulso.
Mas era Perry Rhodan...!
O impulso era intenso e próximo.
Ellert isolou Onot, fazendo sua mente adormecer. Agora podia dispor inteiramente
do corpo, e comandar os centros nervosos, sem que o druuf tomasse consciência do que
fazia. Onot agora era Ellert.
Levantou-se, e saiu pela porta que o levaria à superfície. Já não receava uma
armadilha. A poucos metros dele, banhado pelo sol poente, via-se um vulto...
Vestia um traje espacial, com o capacete desatarraxado balançando solto. Rhodan,
sem a menor dúvida...
Junto a ele, um delgado cilindro metálico, com dez metros de comprimento, e
aproximadamente três de diâmetro. A diminuta escotilha parecia permitir apenas a
passagem de um homem.
Uma mini-espaçonave!
Ellert-Onot correu em direção de Rhodan, estendendo-lhe a grotesca manzorra de
druuf.
— Bem-vindo, Perry... posso chamá-lo de Perry?
Era a primeira vez que Ellert e Rhodan se reencontravam pessoalmente, apesar de o
mutante não ocupar seu verdadeiro corpo.
— Chamava-me assim quando era um espírito invisível — disse Rhodan. — Por
que não agora, que ocupa o corpo de um druuf? Não está surpreso por ver-me aqui?
— Mas claro!
Os lábios de Onot se moviam, como se os sons viessem deles. Rhodan não poderia
afirmar se Ellert enviava mensagens telepáticas, ou se pronunciava realmente palavras.
— Senti de repente você me chamando. Como foi que me encontrou? Ninguém sabia
que eu estava aqui.
— Harno me ajudou — replicou Rhodan.
— Harno?
— Logo ficará familiarizado com Harno, e parece-me que vocês dois têm muito em
comum. Mas primeiro, quero fazer-lhe uma pergunta: pode finalmente deixar Druufon?
Onot sacudiu a cabeça.
— Só depois de obter os planos da propulsão estelar. Não é tão simples, apesar de
eu ter entendido o princípio. Necessito da micro documentação, para ser utilizada na
Terra. Onot vai arranjar as microfitas.
— Posso ajudá-lo nisso?
— Não, pois só nos serve material druuf. Esperemos que não chegue tarde demais.
— E quanto ao campo de tempo?
— Refere-se ao congelador de tempo? Também para ele me faltam os planos exatos,
o que no entanto é menos grave. Primeiro, porque ajudei a inventar o aparelho; além
disso, há um pequeno modelo experimental aí no laboratório. Vou tentar levá-lo,
posteriormente.
— Ora, não acha mais simples deixá-lo diretamente em minhas mãos?
Onot fez um gesto que poderia ser interpretado como surpresa. E Rhodan acreditou
perceber na voz de Ellert um tom pesaroso.
— Como é que não pensei nisso antes? Mas naturalmente! Já que veio para cá
numa espaçonave, é só colocar o modelo a bordo, e você o leva. Seus cientistas saberão
extrair alguma utilidade dele. O resto eu lhes explico mais tarde. Precisam apenas
acautelar-se para não irem parar inadvertidamente no campo de tempo projetado no
decorrer das experiências. No entanto, não correrão graves riscos se desligarem logo o
aparelho.
Rhodan concordou.
— Pois bem. Pode trazer o modelo até aqui, ou é pesado demais?
O druuf repuxou a boca, e Rhodan adivinhou que Ellert fazia um arremedo visual de
sorriso.
— Pesado? Ora, você nem imagina que força tem um druuf!
Onot dirigiu-se para a entrada do laboratório subterrâneo; voltou-se da porta, e
sorriu para Rhodan. Lançou mais um olhar de admiração para a pequena nave espacial, e
desapareceu no vão escuro.
Rhodan sorria também, um sorriso muito significativo.
Depois estremeceu repentinamente...
Alguns pontos surgiam no horizonte, aproximando-se velozmente. Uma esquadrilha
de ágeis caças, em vôo de patrulha. Que fariam ali na região montanhosa? Mero acaso,
talvez...
Por outro lado, podia não ser...
Num salto, Rhodan precipitou-se através da apertada escotilha para dentro da nave.
Ela tornou a fechar-se ainda antes dele se instalar no assento. Quando os três caças druufs
alcançaram o local, Rhodan já voava muito acima deles.
Compreendendo num relance, eles mudaram de curso. No entanto, por mais velozes
que fossem, jamais poderiam competir com um bote salva-vidas da frota terrana. Ficaram
irremediavelmente para trás.
Rhodan reduziu a velocidade, permitindo que os adversários se aproximassem. As
montanhas com o laboratório de Onot estavam a boa distância agora. Diante deles
apareceu o oceano.
O ecolote — aparelho em impecável estado de funcionamento — acusou uma
profundidade de quinhentos metros.
Aproximando-se, os três caças abriram fogo por todas as bocas. Os incandescentes
raios energéticos deslizavam pelos anteparos protetores do bote salva-vidas. Pouco
depois, porém, a pequena nave começou a balançar, perdeu velocidade, oscilou, e
precipitou-se no oceano. Mergulhou de frente, depois de uma última tentativa de
estabilizar-se.
Os druufs observaram atentamente os arredores, porém nenhum sobrevivente
emergiu da agitadas ondas do mar. Satisfeitos, fizeram rugir os propulsores, e
desapareceram na direção da terra firme.
Rhodan percorrera, entrementes, extenso trecho por baixo da água. Ainda bem que
suas naves espaciais podiam deslocar-se em qualquer meio, com velocidade diferente,
porém. Harno substituía, por ora, os instrumentos necessários. Sua superfície esférica
mostrou os três druufs, que desistiram da busca e afastaram-se.
Rhodan sorria de satisfação ao apontar para cima a quilha da nave, e emergir do
oceano como um raio metálico, sumindo segundos após no Armamento colorido.
Quando tornou a desembarcar junto da entrada do laboratório de Onot, com Harno
novamente guardado no bolso, o breve incidente já estava quase esquecido.
Ellert-Onot ainda não estava de volta, mas não devia demorar.
Despistara habilmente os druufs. Na certa o haviam tomado por algum espião da
frota-robô, agora devidamente abatido. Pois bem, que continuassem pensando assim!
“Por que Ellert tarda tanto...?”, pensou, indagando-se.
No mesmo instante, pressentiu a aproximação do mutante. Onot evidentemente
realizava tremendo esforço, pois Ellert estimulava-o constantemente a não desistir.
Depois Onot surgiu na abertura da porta. Carregava nos poderosos braços um bloco
metálico, que largou imediatamente no chão.
Rhodan examinou com ar interessado o bloco, enquanto Ellert dizia:
— Trata-se do primeiro modelo experimental do congelador de tempo. Mande levá-
lo para a Terra, Perry. Estou certo de que os cientistas terrestres saberão como levar
adiante as experiências, enquanto eu não regressar.
— Obrigado — limitou-se a dizer Rhodan. — Acha que nós dois seremos capazes
de colocá-lo a bordo sem ajuda?
— Que nada, deixa isso comigo! — disse Ellert, levantando novamente o volume.
Com visível esforço, empurrou-o através da escotilha aberta, ajeitando-o com mais
alguns movimentos. — Vai ter que encolher-se um pouco durante a viagem de volta, mas
como a nave parece ser bastante veloz, o vôo será curto.
— Sem dúvida — confirmou Rhodan. Vou decolar, e providenciar a remessa
imediata do modelo à Terra.
— Cuidarei da propulsão estelar — prometeu Ellert. — Irei ainda hoje à central de
cálculos debaixo da cidade, a fim de trazer o material para as micro gravações. Talvez o
encontre até na própria cidade.
— De todo o coração lhe desejo boa sorte, disse Rhodan, apertando a mão do druuf.
— Em caso de necessidade, se não puder separar-se de seu amigo Onot, venha para a
Terra no corpo dele. Não nos fará diferença. Dará notícias?
— Claro, Perry. Quanto ao que disse sobre Onot, vou considerar a possibilidade.
De alguma forma, sinto pena do coitado.
A porta para o subterrâneo só tornou a abrir-se muito tempo depois de Rhodan ter
sumido com sua mininave nas nuvens multicoloridas.
Onot lançava duas sombras distintas, sem dar atenção ao fenômeno...
Vagarosamente tornou a descer para seu refúgio rochoso.
***
A tempestade que açoitava a zona crepuscular de Hades amainara um pouco. No
horizonte boiava a imagem rubro-verde do sol gêmeo, um gigante fulgurante e
fantasmagórico. A atmosfera rala fazia o céu parecer escuro, apesar do brilho dos sóis.
Simultaneamente, algumas estrelas maiores cintilavam no Armamento.
Nas proximidades existia uma extensa cordilheira, que oferecia alguma proteção
contra o temporal. Os cumes mais elevados rebrilhavam em tons branco-avermelhados.
Atmosfera congelada, sem dúvida. Muito além ficava a gélida face noturna do planeta.
Profundas fendas e valas rasgavam a superfície rochosa. Não havia qualquer espécie
de vegetação. Nas profundezas dos íngremes vales, onde jamais chegava um raio de sol,
havia poças geladas. Hades era um mundo onde só se conseguia sobreviver, graças aos
artifícios tecnológicos. Sem traje espacial, a permanência era possível apenas na faixa
crepuscular, e isso por meia hora, no máximo. O ar era rarefeito, mas respirável por quem
não se submetesse a esforços físicos...
Junto a uma fenda, algo se moveu repentinamente...
O solo rochoso abriu-se; dele emergiu uma placa, trazendo dois seres vivos!
Bell e Gucky usavam trajes espaciais aquecidos, de feitio bem diverso. O pequeno
rato-castor fazia figura bem pitoresca no seu; no entanto, sentia imenso orgulho por vestir
uma confecção sob medida. Bell contentara-se com um modelo convencional.
A placa parou, e os dois encetaram a caminhada pelo planeta infernal, com os rádios
dos capacetes ligados.
— Droga de elevador — resmungou Bell, aborrecido, referindo-se à placa. —
Incômodo e antiquado. Quem me dera um elevador antigravitacional!
— Não se pode ter tudo — replicou a voz clara de Gucky. — Já me dou por
satisfeito por não ter tido que fazer a escalada a pé.
Olhando em torno, continuou:
— Puxa, onde se terá metido Perry? O Tenente Potkin disse que ele também usou o
elevador.
— E este é o único existente — comentou Bell, olhando interessado o duplo sol
colorido. — Talvez tenha simplesmente ido dar um passeio, e basta procurá-lo.
— Procurá-lo? Está bem, vá por aquele lado!
Coisa mais fácil de dizer do que de fazer.
Havia mil possibilidades de esconder-se na paisagem dilacerada. Além das inúmeras
fendas no solo, existiam blocos de rocha espalhados por toda a parte, morros escarpados,
vales estreitos e fundos. Realmente, não se saberia por onde começar a busca.
— Aliás, ele deveria até ouvir-nos enquanto conversamos — lembrou Bell. — Pois
o traje espacial dele tem capacete idêntico aos nossos.
Mudando de tom, chamou:
— Alô, Perry! Por que não responde? Está querendo brincar de esconder?
— Não deu um pio acerca do que pretendia fazer aqui fora — disse Gucky,
aborrecido. — Geralmente me traz junto...
— Talvez quisesse se livrar de um chato, para variar — interrompeu Bell,
sarcasticamente.
A reação de Gucky foi violenta:
— Cale a boca, ou vai ver uma coisa!
Bell achou melhor silenciar. Afinal, não sentia a menor vontade de ficar à mercê do
rato-castor naquele planeta inóspito. Seu olhar correu pela paisagem pouco atraente;
depois, por puro acaso, subiu pelos picos escarpados, detendo-se por fim no céu, que,
agora, estava negro-violeta.
Seria alguma estrela?
Adivinhando a pergunta de Bell, Gucky olhou igualmente para cima.
Uma minúscula estrela cadente riscava o céu, aproximando-se da superfície. Lenta
demais para uma estrela, mas para uma...
— Uma nave! — exclamou Bell. — Por todas as mulheres de Marte, uma nave! Não
das nossas, certamente...
— Faça-me o favor de deixar as mulheres fora da conversa! — reclamou Gucky,
energicamente. — Mas tem razão quanto à nave. Não trouxemos nenhuma deste formato.
Muito pequena...
— Parece com os caças espaciais, mas é menor — observou Bell. — Espero que não
se trate de um druuf.
— Aqueles hipopótamos jamais caberiam nela — afirmou o rato-castor, protegendo-
se por trás de um bloco de pedra, pois a pequena nave se aproximava velozmente.
Tudo indicava que pretendia pousar justamente ao lado da entrada para a base
subterrânea.
— Mexa-se, homem, senão aquele cara, seja ele quem for, transforma você em
nuvem energética!
Bell lançou-se ao solo, arrastando-se para o esconderijo, onde estava Gucky.
— Acha mesmo? — perguntou, esbaforido.
Gucky lançou-lhe um olhar de escárnio.
— Bem que valeria a pena.. — caçoou, espiando por cima da borda da rocha.
Constatou horrorizado que a nave já aterrissara.
E depois, ao sentir os impulsos mentais invadir-lhe o cérebro, começou a rir como
uma criança. Levantou e começou a andar tranqüilamente para fora do esconderijo.
— Gucky! — gritou Bell, apavorado. — Abaixe-se, homem! Ficou doido?
— Felizmente não sou homem — protestou Gucky, evidentemente ofendido com a
comparação.
Balouçando, aproximou-se da escotilha, nitidamente delineada no lusco-fusco;
postou-se diante dela, em atitude de espera.
— Pode vir sem susto, medroso — gritou para Bell, esquecendo que fora o primeiro
a procurar cobertura. — É apenas Perry.
Porém Bell tinha amor à vida. Contemplava, trêmulo, o rato-castor, e a nave
desconhecida, completamente estranha para ele. De onde Rhodan a teria tirado? Teria
sido encontrada em Hades, por acaso?
A escotilha abriu-se.
Ao desembarcar, Rhodan deu imediatamente com o rato-castor, que lhe acenava
alegremente.
— Ah... você! Como veio parar aqui?
— Pelo elevador — explicou Gucky, singelamente. — Muito mais me interessa
saber como é que você veio para cá...
— Nesta nave! — replicou Rhodan, saltando ligeiro para o chão pedregoso, graças à
gravidade pouco intensa. — Ótimo estar aqui. Pode ajudar-me?
— Conte comigo!
— Trouxe um caixote na nave. Quer tirá-lo para mim?
— Trabalho braçal? — Gucky sacudiu-se todo. — Não, tenho uma idéia melhor.
Voltando-se, gritou na direção do bloco de rocha:
— Bell! Estão chamando por você, o homem forte!
Reconhecendo Rhodan, Bell erguera-se. Estremeceu ao ouvir as palavras de Gucky,
e acercou-se de ambos sem uma palavra.
— Um caixote? Muito interessante! E o que tem dentro dele?
— Arraste-o para fora, e saberá — caçoou Gucky.
Rhodan fez um enérgico gesto com a mão.
— Como é, não vão ajudar, seus brigões? O volume pesa algumas toneladas... pelo
menos é o que pesaria na Terra. Aqui nossa tarefa é mais leve.
Tornou a embarcar, dizendo:
— Que esperam?
— Tipo esquisito de aeronave — comentou Bell, aprontando-se para seguir Rhodan:
— Nunca vi igual. Mais parece fruto da imaginação... Apesar disso, as formas
aerodinâmicas são aceitáveis.
Já dentro da nave, Bell arregalou os olhos ao ver o lustroso bloco de metal.
— É isso que devemos levar para fora?
— Já falei que as condições gravitacionais aqui valem um terço — replicou Rhodan,
pacientemente. — Conseguiremos facilmente, mesmo sem a ajuda de Gucky.
— Aquele sujeitinho sempre se esquiva do trabalho — disse Bell. — Bem que
poderia resolver o caso usando a telecinese.
— Depois ele fará isso. Primeiro gostaria de ver o caixote fora da nave.
Realizaram a tarefa em poucos minutos. Quando o brilhante bloco metálico já havia
sido depositado sobre a rude superfície do planeta, também Gucky se aproximou.
Contemplando-o pensativo, disse:
— Percebo que blinda seus pensamentos, Perry. Mais um segredo vedado para nós...
Pois bem, seja. Mas diga-nos ao menos o que há neste caixote metálico!
— Um modelo do congelador de tempo — disse Rhodan, calmamente. — Fui
buscá-lo no laboratório de Onot.
— E ele entregou a maravilha? — perguntou Gucky, espantado.
— Bem, na realidade foi Ellert — explicou Rhodan. — E agora faça o favor de
transportar imediatamente o modelo para a Drusus. Caso esta não se encontre aqui, leve-o
para a central do Capitão Rous. Bell e eu seguiremos atrás.
Bell desviou os olhos do modelo.
— Respondeu a uma pergunta de Gucky — constatou ele, um tanto ofendido. —
Teria a amabilidade de satisfazer igualmente minha curiosidade?
— Como fala empolado, o gorducho — troçou Gucky, instalando-se sobre o modelo
do congelador de tempo, a fim de estabelecer o contato corporal necessário à
teleportação. — Por que não o deixa espernear um pouco?
Rhodan sorriu significativamente.
— Não seria preferível saber primeiro o que é que ele queria perguntar? Vamos,
Bell, fale!
Bell inspirou profundamente.
— De onde tirou aquela nave? Conforme vejo, é um modelo totalmente
desconhecido para mim, e jamais encontrei tipo semelhante. Não foi em Hades que a
encontrou, não é?
— Claro que não! — disse Rhodan, voltando-se para o rato-castor. — Só falta você
afirmar que nunca em sua vida viu nave tão pequena!
— Não vi mesmo — confirmou Gucky, parecendo hesitar de repente. — Não que eu
me lembre...
Rhodan caiu na gargalhada.
— Ora, vejam! E eu imaginando que cada um de vocês conhecesse de cor e salteado
todos os tipos de nossas naves, sabendo distinguir uma da outra, e agora passo por esta
decepção! Será possível? Sabem o que é isto aqui? — apontou para o cilindro metálico de
dez metros de comprimento. — É um bote salva-vidas da Drusus. Quase todos nossos
cruzadores maiores dispõem desta espécie de botes, capazes de alcançar a velocidade da
luz, e acomodar uma porção de gente. Mas nenhum de vocês jamais se viu na
necessidade de ter de usar um bote salva-vidas; portanto, dá para compreender a
ignorância dos dois. Apesar disso...
Gucky fungou, furioso, fez um gesto vago na direção da pequena nave, preparou-se
para dizer alguma coisa, mas desistiu. Depois teleportou-se.
O modelo do congelador de tempo também dissolveu-se no ar.
Bell suspirou, aliviado.
— Boa lição deu a este malandro — comentou ele, dando mostras de querer
esquecer o mais depressa possível o penoso incidente. — Claro que eu conhecia os botes
salva-vidas, porém minha memória pregou-me uma peça...
Bell recusava-se aceitar a verdade, por achar mais agradável a versão fantasiosa.
“Achar uma nave espacial de procedência misteriosa num planeta desabitado... isso
sim é que era aventura!”, pensou um tanto desapontado.
— Pois é, de tecnologia o rato-castor não entende mesmo nada! — concluiu,
tentando encobrir seu erro.
Rhodan sacudiu a cabeça, resolvendo esquecer o caso. Encaminhou-se para a placa
do elevador, e postou-se sobre ela.
— Ande depressa, caso não queira pernoitar aí. E as noites aqui duram um bocado
de tempo, mais ou menos uma eternidade. Pois, devido à posição do sol, a noite aqui é
constante.
Com alguns passos, Bell estava ao lado de Rhodan.
Lentamente a placa desceu para o interior da base. Acima deles, a abertura se fechou
novamente.
Bell estava calado.
— Pois é — disse Rhodan, ao tomarem o corredor iluminado na base. — Parece-me
ser a única. De vez em quando é preciso recordar um pouco.
— Recordar? — perguntou Bell, intrigado, arrependido por ter ido espionar com
Gucky na superfície. — O que quer dizer?
— Recordar os conhecimentos, meu caro. A partir desta noite, tempo de Hades,
iniciaremos cursos dos quais participarão obrigatoriamente todos os oficiais e praças da
base. Aproveitamento das horas de lazer, digamos. E você dará a primeira aula.
— Eu, dar aula?
Rhodan acenou.
— Exatamente! O assunto desta noite: conformação externa dos diversos tipos de
espaçonaves terranas, a começar pelos botes salva-vidas. Creio que a repetição do assunto
será útil para determinadas pessoas. Que acha?
Bell sorriu, contrafeito.
— Prometo nunca mais pensar coisa alguma, a partir de hoje; isto é, caso possa
evitar. Pois bem, hoje à noite. Espero que Gucky também compareça.
— Pode contar com isso! — prometeu Rhodan, tomando o primeiro corredor lateral.
Bell seguiu-o com um olhar preocupado.
Em algum canto de seu armário, devia existir ainda um manual. Pois simplesmente
de memória...
Suspirou.
Não, pessoa alguma conseguiria guardar na memória todos aqueles detalhes!
***
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