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A pulsão negativa ou a síndrome de Batleby nos artistas do Não

Sidnei Alves da Rocha

O que leva alguém a se interessar pelos artistas do Não? A estudar “a doença, o mal
endêmico das letras contemporâneas, a pulsão negativa ou a atração pelo nada”? A tentar
entender por que literatos talentosos e com “apurada consciência literária muito exigente,
nunca cheguem a escrever”? A falar dos que escrevem “um ou dois livros e depois”
renunciam “à escrita” ou dos escritores que, “após retomarem sem problemas uma obra em
andamento, fiquem, um dia, literalmente paralisados para sempre”? (VILA-MATAS, 2004, p.
6). É o que o narrador de Bartleby e Companhia, de Enrique Vila-Matas, tenciona responder
em sua incansável pesquisa, na qual demonstra toda a sua “destreza como rastreador de
bartlebys” (VILA-MATAS, 2004, p. 6), “um escritor imerso em seu arquivo, compulsando
seus livros, papéis, documentos para a composição de uma obra” (MARQUES, 2018, 469).
Para Vila-Matas, porém “apenas da pulsão negativa, apenas do labirinto do Não pode
surgir a escrita por vir” (VILA-MATAS, 2004, p. 7), como Derrida falando da pulsão de
morte, do mal de aquivo, da necessidade de arquivar justamente para não perder, escrever
para o futuro, armazenar para o porvir, arquivando e salvando nesse ou naquele suporte.
Além da excepcional qualidade da obra, três dados chamam a atenção do leitor: um, a
quantidade de artistas do Não apresentada no romance; dois, a memória prodigiosa desse
escritor com “uma ativação mais vasta da memória secundária, através de uma re-pesca de
um determinado dado já anteriormente filtrado e arquivado” (COLOMBO, 1991, p. 94) e que
soube arquivar uma gama tão numerosa de personalidades que abandonaram a escrita ou que
tiveram um momento em suas vidas de não produção ou que nunca produziram, mesmo
tendo potencial para fazê-lo – é óbvio que o autor fez pesquisas além da memória para
garimpar essa quantidade de exemplos, além de contar com a ajuda de colaboradores; e, três,
a linguagem às vezes poética apresentada ao longo da narrativa, com uso de linguagens
figuradas de belos efeitos sonoros e semânticos, transformando-a em uma obra profunda e
interessante e não um texto composto por uma lista ou coleção aleatória de escritores, obras e
personagens portadores da síndrome de Bartleby, como poderia sugerir a primeira impressão.
É um romance ou, conforme seu personagem-narrador, é um diário e “ao mesmo
tempo um caderno de notas de rodapé comentando um texto invisível”? (VILA-MATAS,
2004, p. 6). Essas dúvidas mostram a dificuldade de classificação do livro devido às
características literárias concernentes à temporaneidade e isso se deve ao fato de que Vila-
Matas, assim como muitos de seus contemporâneos, “cultiva sua biblioteca e frequenta
diferentes tradições literárias com desenvoltura e liberdade”, apropriando-se de diferentes
“gêneros e modelos textuais, para decompô-los e combiná-los em novos esquemas e sínteses,
sem se submeter a restrições impostas pelos limites do que seja próprio do literário ou de que
formato deva ter uma obra de arte literária”, fazendo-o se revelar híbrido, instável e informe,
“escapando a formas pré-definidas ou fixas” (MARQUES, 2018, 468-469).
A escolha de Bartleby para figurar como modelo da narrativa deve-se ao fato de essa
personagem de um conto de Herman Melville intitulado Bartleby, o escrivão, passar os dias
no escritório, inclusive aos domingos, olhando pela janela em direção a uma parede de Wall
Street, em uma atitude de negação que tanto influenciou Vila-Matas. O patrão de Bartleby,
que é o narrador em terceira pessoa, conta que sua negação iniciou-se quando este o chamou,
dizendo de modo ligeiro o que desejava de seu escrivão, “isto é, conferir um pequeno
documento”, mas ficou surpreso “quando, sem sair do seu retiro, Bartleby respondeu com
uma voz singularmente amena e firme, ‘Acho melhor não’”. (MELVILLE, 2014, p. 9).
Talvez por ter tido uma personagem como elemento norteador de sua pesquisa, o
narrador tenha misturado alguns personagens da ficção aos escritores do Não, que, a exemplo
do personagem Bartleby, que não parava de escrever quando iniciou seu trabalho no
escritório, “como se estivesse faminto por ter algo para copiar”, para quem “não havia pausa
para a digestão. Trabalhava dia e noite, copiando à luz natural e à luz de velas”. Copista que
“escrevia em silêncio, com apatia, mecanicamente” (MELVILLE, 2014, p. 8). Assim, vale
citar como personagem do Não o Paranoico Pérez, de Antonio de la Mota Ruiz, no capítulo
60 que “nunca conseguiu escrever um livro, porque sempre que tinha alguma ideia para um e
se dispunha a fazê-lo, Saramago o escrevia antes dele. Paranoico Pérez acabou transtornado.
Seu caso é uma variante interessante da síndrome de Bartleby” (VILA-MATAS, 2004, p.
111).
Um dos casos mais interessantes do livro, retomado em outras partes da narrativa, é a
desculpa dada por Juan Rulfo, autor de Pedro Páramo, justificando que a sua desistência do
ato de escrever deveu-se à morte de seu tio Celerino, que era quem lhe contava as histórias.
Do mesmo autor, vem a desculpa de que hoje “até os maconheiros publicam livros. Têm saído
vários livros por aí muito estranhos” e, por isso, ele preferiu guardar silêncio (VILA-MATAS,
2004, p. 10). Felipe Alfau agiu da mesma forma em relação ao silêncio, mas ele não tinha um
tio Celerino e atribuiu a culpa de sua paralisia por cinquenta e um anos ao fato de aprender a
falar inglês, fato extremamente prejudicial a um latino (VILA-MATAS, 2004, p. 12).
Em outros casos “a escrita é abandonada porque a pessoa simplesmente cai em um
estado de loucura do qual nunca se recupera”, deixam de escrever por se considerar um “zero
à esquerda” e querer ser esquecido, como Walser (VILA-MATAS, 2004, p. 17), ou aquele
que se considera um “ninguém”, como Pepín Bello (VILA-MATAS, 2004, p. 20), entrando
nesse rol até Rimbaud, cuja totalidade de sua obra literária fora produzida até seus dezenove
anos de idade, seguida de um silêncio que duraria até a sua morte (VILA-MATAS, 2004, p.
14).
O oitavo capítulo relata a escrita de Primo Levi a respeito de seus companheiros de
campo de concentração que não queriam ser personalidades da pulsão negativa, que queriam
voltar para suas casas para contarem o que viram a fim de que tais atrocidades não voltassem
a acontecer, sendo os dois últimos parágrafos desse capítulo exemplares do ato de arquivar,
do desejo que todos têm de “resgatar por intermédio da memória cada fragmento de vida que
subitamente nos volta, por mais indigno, por mais doloroso que seja. E a única maneira de
fazê-lo é fixá-lo com a escrita.” E conclui com outra pérola da narrativa e da necessidade de
arquivar nossas experiências, ao afirmar que “a literatura, por mais que nos apaixone negá-la,
permite resgatar do esquecimento tudo isso sobre o que o olhar contemporâneo, cada dia mais
imoral, pretende deslizar com a mais absoluta indiferença” (VILA-MATAS, 2004, p. 23).
O capítulo catorze é especialmente fascinante, pois nos remete à Biblioteca à noite, de
Alberto Manguel, quando o personagem-narrador confessa que “daria tudo para possuir a
biblioteca impossível de Alonso Quijano ou a do capitão Nemo”, afirmando que “todos os
livros dessas duas bibliotecas estão em suspenso na literatura universal, como estão também
os da biblioteca de Alexandria, com aqueles 40 mil rolos que se perderam no incêndio
provocado por Júlio César” (VILA-MATAS, 2004, p. 32) e que, segundo “proclamavam os
alexandrinos, era um lugar onde a memória era mantida viva” (MANGUEL, 2006, p. 29) e
nesse tempo “os ptolemaicos e seus bibliotecários certamente sabiam que memória era poder”
(MANGUEL, 2006, p, 35). Ela, “que pretendia ser o depósito da memória do mundo não
soube conservar para nós a memória de si mesma” (MANGUEL, 2006, p. 31).
Esses livros desaparecidos “não são mero nada, ao contrário estão todos em suspenso
na literatura universal, assim como estão todos os livros de cavalaria de Alonso Quijano ou os
misteriosos tratados filosóficos da biblioteca submarina do capitão Nemo”. Por isso “os livros
de Dom Quixote e de Nemo são ‘o acervo do navio’ de nossa mais íntima imaginação”
(VILA-MATAS, 2004, p. 32). Essas “bibliotecas de sonhos poderiam adquirir realidade
física. A biblioteca que o capitão Nemo exibe ao professor Aronnax em Vinte mil léguas
submarinas”, em sua maioria, “estava ao alcance de qualquer cavalheiro culto na França de
meados do século XIX”, com “as grandes obras dos mestres antigos e modernos, […] as mais
belas criações da humanidade nos reinos da história, da poesia, da ficção e da ciência”,
artistas que vão “de Homero a Victor Hugo, de Xenofonte a Michelet, de Rabelais à sra.
Sand” e o leitor sabe que “todos eles são livros reais”. (MANGUEL, 2006, p. 235). Por outro
lado, “as bibliotecas de livros imaginários nos deliciam porque nos permitem o prazer da
criação sem a faina da pesquisa e da redação”, sendo-nos, “duplamente perturbadoras:
primeiro, porque não podem ser reunidas; segundo, porque não podem ser lidas. Seus tesouros
promissores devem permanecer fechados para todos os leitores”, porém sua caçada, “apesar
de necessariamente infrutífera, não tem como parar” (MANGUEL, 2006, p. 233).
Um caso interessante de “biblioteca não menos fantasma, mas com a particularidade
de que existe, de que pode ser visitada a qualquer momento, é a Biblioteca Brautigan, que se
encontra em Burlington, Estados Unidos”. Ela “reúne exclusivamente manuscritos que, tendo
sido recusados pelas editoras às quais foram apresentados, nunca chegaram a ser publicados.
Essa biblioteca reúne somente livros abortados” e “quem tiver manuscritos dessa espécie”,
pode enviá-los a essa fantástica “Biblioteca do Não” (VILA-MATAS, 2004, p. 32).
Triste exemplo mencionado por “QuaseWatt” é o de Maria Lima Mendes, imigrante
cubana na França, pessoa inteligente e com enorme potencial, mas a moda dos romances na
época em que chegou a Paris na década de 70 de “descrever com morosidade as coisas: a
mesa, a cadeira, o canivete, o tinteiro…”, prática que não vingou, que se mostrou totalmente
infrutífera, fez-lhe muito mal e a deixou totalmente paralisada (VILA-MATAS, 2004, p. 34).
Um dos casos citados pelo autor de narrativa do Não encontra-se no capítulo 28 e é de
Felisberto Hernández em suas Narraciones Incompletas, cujos desenlaces ficavam sempre por
terminar. Esse autor “nunca renunciou a escrever, não é um escritor do Não, mas suas
narrativas são” (VILA-MATAS, 2004, p. 60). Nesse quesito, outra referência interessante é a
de Luis Felipe Pineda e seu “arquivo de poemas abandonados” (VILA-MATAS, 2004, p.
103), lembrado no capítulo 57 e que não passava do primeiro verso. Anos mais tarde, em um
reencontro entre o personagem-narrador e Pineda, este escreveu um poema completo em um
papel de cigarro e que, depois de lido, se transformou em um cigarro. “Ele fumou seu poema”
(VILA-MATAS, 2004, p. 107) e continuou sem publicar, embora fosse um talentoso poeta.
O capítulo 31 é dedicado ao famoso escritor Jerome David Salinger, que segundo
Vila-Matas é “um nome imprescindível em qualquer aproximação à história da arte do Não”.
Autor das deslumbrantes e famosíssimas obras “O apanhador no campo de centeio (1951),
Nove estórias (1953), Franny e Zooey (1961) e Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira e
Seymour: uma introdução (1963)” (VILA-MATAS, 2004, p. 65), mas, a partir daí, nunca
mais publicou, vindo a falecer em 2010, com mais de 45 anos de inatividade e de reclusão.
Para concluir as poucas menções aos artistas do Não que me foram possíveis abordar,
é importante mencionar Melville, portador do mal endêmico antes mesmo da existência de
seu personagem, “o que nos poderia levar a pensar que talvez tenha criado Bartleby para
descrever sua própria síndrome” (VILA-MATAS, 2004, p. 89), adquirida ao abandonar os
contos de aventura pelos quais era bastante conhecido e “considerado cronista da vida
marítima” e iniciar sua produção de “obras-primas”, sendo assim condenado “ao fracasso com
a absoluta unanimidade das ocasiões equivocadas” pelo público e pela crítica. Assim, “tudo o
que escreveu nos trinta e quatro últimos anos de sua vida foi feito de modo bartlebyano, com
um ritmo de baixa intensidade, como preferindo não fazê-lo e em um evidente movimento de
rejeição ao mundo que o havia rejeitado” (VILA-MATAS, 2004, p. 90).
Todos esses relatos de Vila-Matas nos faz lembrar de Raduan Nassar, ganhador do
Prêmio Camões 2016, talvez o nosso maior artista do Não, autor que, desde 1981, não produz
nada de novo na literatura. A Obra completa de Raduan Nassar foi publicada pela Editora
Companhia das Letras em 2016, contendo o romance Lavoura Arcaica (1975), a novela Um
copo de cólera (escrita em 1970 e só publicada em 1978), alguns contos produzidos entre
1960 e 1970, publicados de forma esparsa e como coletânea intitulada Menina a caminho
(1997), outros dois contos intitulados O velho (1958) e Monsenhor (1958) e, por fim, o ensaio
A corrente do esforço humano (1981), que não ultrapassam 420 páginas, mas de uma riqueza
literária e linguística incontestável. É ainda detentor de uma rica fortuna crítica e teve duas
adaptações para o cinema de suas obras Lavoura Arcaica e Um copo de cólera.

Referência:
COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos: memória social e cultura eletrônica. Tradução
de Beatriz Borges. São Paulo: Perspectiva, 1991.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Cláudia de


Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.

MARQUES, Reinaldo. Ficções do arquivo: o literário e o contemporâneo. In: COELHO,


Haydée Ribeiro; VIEIRA; Elisa Amorim (Org.). Modos de arquivo: literatura, crítica,
cultura. Rio de Janeiro, Batel, 2018. p. 465-483.
MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão. Tradução de Irene Hirsch. São Paulo: Cosac
Naify, 2014.

VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e companhia. Tradução de Maria Carolina de Araújo e


Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

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