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O ÓRGÃO SEGUNDO MATTHESON

Como contribuição a organistas e pesquisadores do “rei dos instrumentos”


apresentamos aqui a tradução de um texto de Johann Mattheson1, em sua obra: “Das
Neueröffnete Orchestre”, publicada em 1713 (Pars Tertia Judicatória – Cap. III – §3.
Von den Musicalischen Instrumenten). A tradução deste texto revelou-se mais
complexa do que a expectativa inicial. A linguagem da época é extremamente
rebuscada, dificultada ainda pelo chamado "jargão teuto-latino de cátedra" e do
freqüente uso de expressões francesas. Soma-se a isto a dificuldade que encontramos
em traduzir corretamente os termos técnicos, uma vez que também na nomenclatura
específica do instrumento houve mudanças no decorrer do tempo, sem falar do
desenvolvimento histórico do próprio instrumento. Exatamente com relação a este
desenvolvimento é que acreditamos trazer a melhor contribuição com esta tradução.
Embora com uma linguagem fortemente rebuscada e, para os critérios atuais, pouco
sistemática, Mattheson descreve com bastante detalhes a estrutura de um órgão
barroco, o que pode ser de interesse para a interpretação historicamente orientada de
obras deste período.
Na tradução optamos, para melhor compreensão, por uma aproximação à linguagem
atual, desde que isso não comprometesse a fidelidade ao conteúdo do texto original.
Ainda assim, termos técnicos, ou cuja tradução não nos pareceu óbvia, são
apresentados em negrito e seu original entre colchetes. Desta maneira, as pessoas que
conhecem a língua alemã podem se remeter ao conteúdo original da palavra ou
expressão, ou ao seu significado idiomático, muitas vezes impossível de ser reproduzido
na tradução. As notas de rodapé trazem alguns esclarecimentos que julgamos
necessários para complementar as informações contidas no texto.

Terceira Parte – Judicatória (relativa ao estilo)2 – capítulo III (os instrumentos


musicais) – parágrafo 3°

O mais perfeito dos instrumentos é sem dúvida o órgão ou o cravo


[clavier]3. O primeiro tem suas vantagens na estrutura artesanal e por conter maiores
possibilidades de variação [grössern in sich haltenden Veränderung]; o outro
entretanto não lhe deve nada em arte e rigorosa erudição [erfordernder Wissenschaft].
Isto porque puxar os registros ou vozes no órgão não é arte nenhuma, tanto que a
maioria dos calcantes [Calchantés] ou foleiros [Bälgentreter] o faz tão bem quanto o
próprio organista, sem por isso precisar de um treinamento [Introduktion] ou ter
necessidade de conhecer a coisa em si [res per causa], principalmente se já exerce este
ofício há bastante tempo. Mas, para ajudar, [Ist aber ja etwas daran] poderíamos
escrever todo o esquema em uma simples folhinha de papel [oktav-Blättchen] que, uma
vez decorado, ficaria para sempre na memória, sem necessidade de se quebrar a cabeça
por isso.
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Os jogos de principais [Pfeiffen-Werke], os de lingüeta [Flöt-Schnarr-Wercke]


e as misturas [Mixturen] representam a parte principal dos registros, tanto nos órgãos
pequenos quanto nos grandes, e não é muito bom combinar o jogo de principais com o
de lingüetas em um só teclado - a não ser no pedal ou em caso de necessidade, para se
tocar forte ao acompanhar uma congregação numerosa, quando o volume do
instrumento é fraco ou mediano. As misturas e as flautas também não se combinam em
um mesmo teclado, pois aquelas devem ser usadas apenas no Pleno. Ao jogo de
principais pertencem os principais de todo tamanho e profundidade, dos 8, 16 até aos
32 pés, as oitavas de vários calibres de 2, 4 e 8 pés, as quintadenas, as sesquiálteras,
etc., etc. Ao jogo de lingüetas pertencem os trombones, trombetas, charamelas,
cornetas, dulcianas, regais e outros. Ao jogo de flautas pertencem os tubos fechados
de madeira [höltzernen Gedacte], o Nasardo, o flageolet [Spitz-Flöt], a flauta
transversal, o sub-baixo, e similares. Às misturas pertencem todas as misturas e
misturas agudas [Mixturen und Scharffen] de 5,6,7, até 10 filas. Oito pés no órgão se
equipara à altura normal da voz humana [Höhe und Tiefe welche die menschliche
Stimme hat]. O 4 pés soa uma oitava acima da voz humana. O 2 pés, por sua vez, uma
oitava ainda mais aguda [feiner], por toda a extensão do teclado. Assim também, o
16 pés soa uma oitava abaixo da voz humana e o 32 pés, duas oitavas - e este é, até
agora, o som mais grave que existe no mundo. A mistura ou conjunto de filas [Fach],
por sua vez, é um conjunto [assemblage] de muitos pequenos tubos acionados ao
mesmo tempo por uma só tecla que, se ouvidos separadamente, fariam uma grande
confusão [Charivari]4. Por exemplo: como aqui no belo órgão Cathrine5, tocado pelo
famoso mestre Senhor Reinicke 6, na tecla DO, soam 10 tubinhos [Pfeiffchen], sendo
um o próprio do, outro o mi, outro o sol, o quarto o do, o quinto o mi, o sexto o sol, o
sétimo o do, o oitavo o mi, o nono o sol e o décimo o do, assim por diante, em todas as
notas do acorde. Quanto mais filas tiver a mistura [Mixtur] ou a mistura aguda
[Scharff], tanto mais tubos e sons haverá para cada tecla. Dos tubos fechados
[Gedacte] uns são feitos de zinco, outros de madeira. São cobertos na parte superior
ou abafados - daí o nome. Os jogos de principais, os de flautas e as misturas não
desafinam com facilidade e se forem sólidos e de boa qualidade não deveriam desafinar
nunca; apenas as lingüetas, estas precisam ser afinadas constantemente, principalmente
quando há mudanças climáticas. Com relação ao someiro de molas [Spring-Laden], às
réguas de registro [Schleuff-Laden] e outros termos técnicos [Terminos Organicos],
estes dizem respeito mais ao mundo dos organeiros que dos organistas, mas não faz mal
nenhum a estes se aprofundarem um pouco no assunto. Porém, considerando que,
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sobretudo o Syntagma Musicum de M. Praetorius7 oferece amplo e satisfatório


ensinamento sobre o assunto, seria ofensivo para um cavalheiro [galanthomme] se
neste contexto eu tumultuasse a sua cabeça, despejando de uma só vez sobre ela toda
essa tralha de organeiro [Orgel-Macher-Krahm]. Entretanto, ainda que
rapidamente, é importante saber que existem órgãos com 2, 3 e 4 teclados; que estes
têm uma pedaleira correspondente a um quinto teclado, tocada com os pés, que tem o
âmbito de 2 oitavas e um tom, isto é, 26 teclas ou 25 intervalos cromáticos, ao passo
que os teclados têm – ou deveriam ter - a extensão de 4 oitavas, ou seja, 48 intervalos
ou 46 teclas [sic]8; que, se o órgão tiver 2 teclados, o superior é denominado teclado
principal [das Werk] e o inferior, por estarem os tubos normalmente às costas do
organista, é denominado positivo de costas (ou antifonal) [das Rückpositiv]; que,
quando há um terceiro teclado, aquele que está mais acima é chamado, pelas mesmas
razões, positivo de peito [die Brust] - o do meio chama-se então teclado principal e
o inferior positivo de costas; que quando se acrescenta um quarto teclado, o de cima é
denominado superior [Ober-Werck], enquanto os outros mantêm a denominação já
mencionada (esta ordem não é tão absoluta, que não possa ser invertida ou mudada, seja
por conveniência do organeiro, ou pelas condições do local); que em alguns órgãos,
para que os registros produzam som, os manúbrios (ou alavancas de registro)
precisam ser puxados, ao passo que em outros, como no da Katharinenkirche, eles são
empurrados; que sob os registros há válvulas [ventile], sem as quais nem puxando nem
empurrando o ar entra no someiro [Laden]; que nos órgãos encontram-se címbalos ou
estrelas de címbalos [Cimbel-Sterne] que são sininhos, escolhidos de acordo com a
harmonia, ou especialmente projetados, que são muito adequados às festividades e
solenidades, cujo ruído [Gesäusel] tem um efeito muito particular; que existem
tremuladores [Tremulanten] através dos quais o som bate e vibra no mecanismo
[Werk] assim como às vezes o faz a voz, quando tem que sustentar uma nota sem trilo;
que, finalmente, se uma tecla ficar presa,ou se a cancela (ou canal) [Lädchen] do qual
o ar é conduzido ao tubo não se fechar imediatamente quando a tecla é largada, diz-se
que o órgão uiva [es heulet] , e quantas coisas mais. Se tocar órgao exige um método
próprio, com o que certos organistas se fazem tão importantes como se o mundo só se
preservasse por meio dessa velha ladainha, do mesmo modo tocar cravo exige, em
contrapartida, um talento todo especial. E nunca se ouviu um cravista perfeito e músico
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hábil maltratar [Stümpern] tanto o órgão como certos organistas respeitáveis,
piedosos e invejosos (o fazem) com o cravo. O querido órgão ainda nunca fez um
músico, só a música, esta sim, já fez muitos organistas. Se um destes invejosos um dia se
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mete a acompanhar uma ária na presença de pessoas que entendam do assunto, estas
quase perdem as calças de susto, se não sairem correndo da igreja antes que isto
aconteça. É isso aí. [so will ihnen das Hertz fast in die Hosen sincken, oder sie
lauffen auch ehe es so weit kommt lieber gar zum Tempel hinaus. Basta.]10
Helena Jank
Cravista
Professora do Departamento de Música, cursos de Cravo e Música Barroca e
da Pós-gradução em Música, Instituto de Artes da UNICAMP

Eduardo Ostergren
Regente
Professor do Departamento de Música, cursos de Regência e História da Música e
da Pós-graduação em Música , Instituto de Artes da UNICAMP

Revisão:
Telma Guise-Püschel
Organista e Regente, Bergholz-Rehbrücke e Potsdam, Alemanha
1
Johann Mattheson (1681-1764) – foi o mais importante teórico musical do período barroco. Viveu em Hamburgo (Alemanha),
onde atuou inicialmente como organista e cantor. Teve seus anos mais produtivos entre 1715 e 1740. A crescente surdez levou-o a
renunciar, em 1728, ao cargo de diretor de música na catedral de Hamburgo. Seu tratado Das neueröffnete Orchestre destaca-se
pela originalidade com que apresenta as mais variadas reflexões sobre aspectos da música, no contexto filosófico, social e cultural
de sua época.
2
A primeira parte refere-se à estrutura da música (designatoria); a segunda parte, à composição (compositoria); a terceira, ao gosto
musical (judicatória).
3
Clavier – nos textos barrocos, esta palavra é usada tanto para designar o teclado propriamente dito, quanto para denominar
qualquer instrumento de teclado. No original, o texto menciona Orgel oder Clavier. As duas palavras poderiam se referir ao
mesmo instrumento. Entretanto, o texto que segue deixa claro que Mattheson compara o órgão a outro instrumento de teclado e no
final usa o termo Clavicymbel, que é referência inequívoca ao cravo.
4
O termo "charivari" origina-se na França do século XIV, e significa o bater desordenado de potes, panelas, sinetas e outros
instrumentos barulhentos. Acontecia em situações incomuns como, por exemplo, em casamentos "desparelhados", ou seja: quando
entre os noivos havia grande diferença de idade ou desnível social. Também era comum em momentos de desagravo político.
5
Órgão da Katharinenkirche, em Hamburgo, do séc. XVI, e até o séc. XVIII reformado várias vezes por diversos orgeneiros, dentre
os quais pelos famosos mestres H. Scherer e F. Stellwagen.
6
Johann Adam Reincken [tb. Reinken ou Reinike] (1623-1722) – organista na Kathrinenkirche, em Hamburg, de 1663 a 1703.
7
Michael Praetorius (1571?-1621) - Seu Syntagma Musicum (Würtemberg-1615) está entre os mais importantes tratados
musicais da época.
8
Chamou-nos a atenção esta desproporção entre intervalos e teclas. Aqui se trata de teclados com oitava curta, ou oitava
quebrada. De qualquer maneira, não fica claro a que instrumento Mattheson se refere, uma vez que mesmo no órgão da
Katherinenkirche, em Hamburg, que ele menciona mais de uma vez como exemplo, o âmbito dos manuais ou do pedal não condiz
com os números acima citados.
9
O verbo stümpern é derivado do substantivo Stümper que, em linguagem corriqueira, significa: ignorante – remendão - que faz as
coisas mal feitas – grosseiro – desajeitado.
10
Este final reflete bem a riqueza de contrastes que caracteriza a dinâmica da linguagem do barroco. A tendência à racionalização
e sistematização do pensamento, proposta por Descartes, é constantemente desafiada pelo desejo de humanização ao pensamento
iluminista. Na linguagem barroca, a aristocracia convive o tempo todo com a tendência burguesa a valorizar o dia a dia, tornar o
conhecimento acessível ao homem comum. Assim, não há problema algum quando um teórico de alta escolaridade como
Mattheson encerra um parágrafo com uma expressão absolutamente vulgar, como esta, que se traduziria literalmente por : o
coração lhes cai nas calças... O final: Basta ... também reflete dois aspectos interessantes: a já mencionada informalidade
burguesa e a influência sempre presente das culturas francesa e italiana (neste caso italiana) sobre todas as manifestações culturais
na Europa.

BIBLIOGRAFIA

BLUME, Friedrich (ed.). Die Musik in Geschichte und Gegenwart. Bärenreiter-Verlag, Kassel, Basel, London, e DTV,
München, 1989.
BORBA, Tomás e GARCIA, Fernando Lopes. Dicionário de Música. Lisboa, Edições Cosmos, 1963.
FLEMING, William. Arts & Ideas, 9. edição. Orlando/ Fl, Harcourt Brace College Publishers, 1995.
LAUKVIK, Jon. Orgelschule zur Historischen Aufführungspraxis. Carus-Verlag, Stuttgart, e BärenreiterVerlag, Kassel,
1990.
MATTHESON, Johann. Das Neu-Eröffnete Orchestre. Hamburg, bey Benjamin Schillers Witwe im
Thum, 1713.
SADIE, Stanley (ed.). The new Grove Dictionary of Music & Musicians. London, Macmillan Publishers
Limited, 1980.
SEGGERMANN, Günther. Die Orgeln in Hamburg, Christians Verlag, Hamburg, 1997.
SINZIG, Frei Pedro, O.F.M. Pelo mundo do som: Dicionário Musica, 2ª edição. São Paulo, Kosmos,
1978.

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