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Curso de Bíblia

Por José Haical Haddad

Capítulo 1

GÊNESIS
A Criação

1. A ORIGEM
O homem é sempre atormentado pela consciência que tem da inexorável
morte; morte, que é o término da existência, a revelar-lhe a vida; vida a
pulular em vários matizes e formas a revelar-lhe um ordenamento;
ordenamento inteligente a revelar-lhe a Criação; Criação a revelar-lhe o
Criador - DEUS:
"Sua realidade invisível - seu eterno poder e sua divindade -
tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das
criaturas..." (Rm 1,20).

A ORIGEM é um desafio à inteligência e a existência é um mistério ainda


não desvendado. O homem quer conhecer a origem de tudo e a finalidade
da existência. Vê que na natureza tudo é cíclico: o dia começa, atinge o seu
clímax e termina, para reiniciar de novo em outro dia, sucessivamente;
igualmente, as fases da lua; também, as estações do ano a anunciar em
cada primavera o reiniciar e a continuidade existencial: novos frutos, novas
ninhadas e novos seres. Tudo recomeça. Tudo lhe inspira um começo novo
e um fim a vista. Tudo lhe inspira um recomeço após a morte e sente o
anseio pela vida eterna. Assim como tudo termina, tudo deve ter um
começo. E então o procura, o começo de tudo e a própria origem. Tem a
esperança de que o conhecimento da origem de tudo venha a lhe revelar
para que existe: só quem sabe de onde vem sabe aonde vai, e a que se
destina. Busca então localizar as minúcias tanto físicas como cronológicas
da sua origem obscura. Também os contornos e detalhes que desconhece
da sua criação, origem e formação. Não só de si mesmo, mas de tudo o
mais que existe e o cerca. Mas, até hoje, só pôde conhecer alguns traços
ainda indecifráveis e complexos de seu pequenos e esparso percurso
histórico, e focalizado nas sucessões cronológicas da sua existência, que
se manifestam aqui e acolá, fossilizados e dispersos no mundo por onde
passa. A origem propriamente dita, real, permanece-lhe um mistério, um
enigma, não conseguindo atingi-la. No âmago de toda a dinâmica
existencial o homem é o mistério do homem: não sabe de onde veio e não
sabe aonde vai; e, não sabendo disto, nada sabe de si mesmo, nem
mesmo o que é.

Ao narrador bíblico, ao hagiógrafo, não existiu tal mistério insondável e nem


lhe preocuparam muitos detalhes e complexidades: para ele a origem e o
fim de tudo é DEUS, O CRIADOR DE TUDO O QUE EXISTE:
"No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia
e vaga, as trevas cobriam o abismo. O Espírito de Deus pairava
sobre as águas" (Gn 1,1-2).

Seus conhecimentos, "sua ciência", eram delimitados por aquilo, e somente


por aquilo que lhe informavam os sentidos nus. Não possuía telescópios
nem microscópios, desconhecia qualquer fenômeno físico, químico ou
bacteriológico, bem como desconhecia por completo toda e qualquer
conquista científica. E, com os parcos recursos de que dispunha, traçou a
linha de sua concepção humana da Obra de Deus, culturalmente
condicionada ao seu tempo. Nascia assim a primeira "teoria científica" da
origem de tudo que o envolvia, profundamente mesclada com a concepção
religiosa e doutrinária, condicionada à sua época e mentalidade. Por causa
disso torna-se sumamente injusto avaliar a sua teoria ou o seu
desenvolvimento com base nas conquistas modernas, exigindo dele
conhecimentos que não possuía. É indispensável um deslocar à sua cultura
para melhor compreendê-lo, separando-se ainda a verdade religiosa aí
mesclada por revelação e inspiração de Deus, já que ninguém presenciou a
Obra da Criação. Narra tudo com simplicidade e sem se deixar prender e
perder por mitos, superstições, fantasias ou lendas, apesar de estar tudo
paradoxalmente mesclado nela. Então, quando diz que "Deus criou o céu e
a terra", diz que "Deus criou tudo o que existe", já que era tudo o que
conhecia, todo o seu universo, o qual se resumia ao que seus sentidos lhe
informavam. Não conhecia nem poderia conhecer as galáxias ou outros
astros do sistema solar ou do universo astronômico.

2. A CRIAÇÃO
Para ele nada do que existe, existe sem Deus; no princípio, tudo foi criado
por Deus e caminha inexoravelmente conforme os desígnios de Deus, sem
mistérios e sem complexidades, com a simplicidade inspirada por uma fé
profunda. Diz apenas e vigorosamente que tudo começou a partir do
impulso propulsor e ordenador da Palavra de Deus, mostrando-O assim
onipotente, destacado da Criação, não se confundindo com Ela:
"Deus disse: ‘Haja luz’ e houve luz" (Gn 1,3).
Deus começou a criar afastando as trevas e criando a luz, para poder ver a
obra em andamento e aparecer como estava ela sendo feita, em virtude da
sua concepção rudimentar e ainda antropomórfica. Quando amanhece,
parece-nos à primeira vista que a "luz do sol" precede a "luz do dia", como
se distinguissem. Sabemos que não, a "luz do dia" é a "luz do sol", mas ao
narrador, que não o sabia, havia a distinção tal como se percebe a olhos
nus, sem instrumentos, e sem o menor conhecimento científico. Não sabia
ele, nem poderia saber, que a luz do sol leva aproximadamente oito minutos
para atingir a terra, em virtude do que a ele pareciam coexistir ambas,
distintas e separadas. Por isso, na sua concepção, Deus a cria antes de
criar o sol, qual seja, melhor dizendo, independentemente da criação dele.
Criou "a luz" erradicando "as trevas" (1,2), facilitando assim a explosão da
vida e do calor desenvolvida pelo "Espírito de Deus" (1,2). Daí então, a
Criação se desdobra vertiginosamente, em seqüência culturalmente lógica
para o narrador e em ordem sistemática delimitada em espaços uniformes
de tempo, "em dias", conforme Deus pronunciava "Sua Palavra" ("...e Deus
disse...", "...e Deus chamou"...):

"Deus chamou à luz ‘dia’ e às trevas ‘noite’. Houve uma tarde e


uma manhã: primeiro dia" (Gn 1,5).

O mundo de então era concebido como um grande volume cheio de água,


onde tudo já se encontrava confusamente disposto, que Deus vai formando
e ordenando, tal como se fora um "feto numa placenta":

"Deus disse: ‘Haja um firmamento no meio das águas e assim se


fez. Deus fez o firmamento, que separou as águas que estão sob o
firmamento das águas que estão acima do firmamento, e Deus
chamou ao firmamento ‘céu’. Houve uma tarde e uma manhã:
segundo dia" (Gn 1,6-8).

Desconhecendo as leis físicas da evaporação da água, da formação das


chuvas, e vendo-as cair, supunha que tanto havia águas no céu como nos
mares, tal como se "vê" a olho nu, único instrumento disponível:

"Deus disse: ‘Que as águas que estão sob o céu se reunam numa
só massa e que apareça o continente’, e assim se fez. Deus
chamou ao continente ‘terra’ e à massa das águas ‘mares’, e Deus
viu que isso era bom" (Gn 1,9-10).

Delimitou Deus a terra e desse modo separou-a dos mares. Estavam assim
preparados os ambientes para a criação, geração e propagação dos
vegetais, ervas e frutos, com o que se daria a erradicação da aridez da
terra virgem:
"Deus disse: ‘Que a terra verdeje de verdura: ervas que dêem
semente e árvores frutíferas que dêem sobre a terra, segundo a
sua espécie, frutos contendo a sua semente’, e assim se fez. A
terra produziu verdura: ervas que dão semente segundo a sua
espécie, árvores que dão, segundo sua espécie, frutos contendo
sua semente, e Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e
uma manhã: terceiro dia" (Gn 1,11-13).

A vegetação, as ervas e as árvores que cobrem a superfície da terra não


são imanentismos dela, mas gerados dela e nela pela Palavra de Deus,
fonte de tudo o que existe, nada tendo vindo à existência sem que Ele
chamasse:

"Deus disse: ‘Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar


o dia e a noite; que eles sirvam de sinais, tanto para as festas
quanto para os dias e anos; que sejam luzeiros no firmamento do
céu para iluminar a terra’, e assim se fez. Deus fez os dois luzeiros
maiores: o grande luzeiro para governar o dia e o pequeno luzeiro
para governar a noite, e as estrelas. Deus os colocou no
firmamento do céu para iluminar a terra, para governarem o dia e
a noite, para separarem a luz e as trevas, e Deus viu que isso era
bom. Houve uma tarde e uma manhã: quarto dia" (Gn 1,14-19).

Aquela luz já criada é depositada em receptáculos apropriados a sua


distribuição durante a noite e durante o dia. Não são os luzeiros seres
absolutos a ponto de se tornarem até mesmo em objetos de adoração por
outros povos, eis que são criaturas advindas da Criação de Deus.
Receberam de Deus a missão de comando e direção da luz, principalmente
para as funções fundamentais da vida, indispensáveis à existência:

"Deus disse: ‘Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que


as aves voem acima da terra, diante do firmamento do céu’, e
assim se fez. Deus criou as grandes serpentes do mar e todos os
seres vivos que rastejam e que fervilham nas águas segundo sua
espécie, e Deus viu que isso era bom" (Gn 1,20-21).

Não bastava criar os seres vivos. Era preciso dotá-los de aptidão para a
propagação e perpetuação da espécie. Deus então os fecunda, tornando-os
férteis, capazes de se reproduzirem. É a bênção:

"Deus os abençoou e disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei


a água dos mares, e que as aves se multipliquem sobre a terra’.
Houve uma tarde e uma manhã: quinto dia" (Gn 1,22-23).

Quando Deus abençoa, fecunda, e é de Deus que os seres recebem a vida


e a fecundidade, não da natureza ou do mundo: as vegetações, as ervas e
as árvores frutíferas tiveram por fonte criadora o próprio Deus. Ele lhes
injeta a faculdade de viver e procriar como aptidão imanente a cada uma e
a toda espécie viva, estendendo a bênção à própria terra e ao demais seres
vivos:

"Deus disse: ‘Que a terra produza seres vivos segundo a sua


espécie: animais domésticos, répteis e feras segundo sua espécie’,
e assim se fez. Deus fez as feras segundo sua espécie, os animais
domésticos segundo sua espécie e todos os répteis do solo
segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom" (Gn 1,24-25).

E, a Criação prossegue inexorável, aperfeiçoando-se sempre mais e mais,


em cada novo estádio ou etapa, em cada dia, três obras por dia,
caminhando em direção a sua obra prima: a Criação do Homem, o ápice
dela, com o que será ultimada e coroada. É de se notar que vários indícios
evidenciam a forma poética dessa narração, quais sejam, dentre eles, a
repetição sistemática de várias expressões, tais como "Deus disse", "Deus
viu que era bom", "Houve tarde e manhã: ...dia", os números com sua
significação peculiar na criação em seis dias, nas três obras por dia, no
sétimo dia, e a forma ritmada de todo o contexto. Não houve testemunhas
nem a escrita havia sido inventada ainda. Daí compreender-se que essa
narração, para se manter viva na memória, era assim composta em versos,
em virtude de ser declamada sistematicamente, método ainda usado no
Oriente para a retenção e divulgação de acontecimentos importantes. Todo
o Velho Testamento está repleta de outras poesias, como forma de
celebração de fatos destacados na História da Salvação (Gn 49; Ex 15; Nm
23; 24; Dt 32; 33; Jz 5; 1 Sm 2,1-10; Os Salmos; etc.); e, no Novo
Testamento destacam-se dentre muitos trechos dos rituais cristãos dos
primórdios, o Magnificat de Maria (Lc 1,46-55), o Benedictus (Lc 1,67-79)
etc..

Em toda a narração transparece a onipotência e onisciência de Deus, nada


criando ao acaso, mas inteligentemente e obedecendo a uma ordem
determinada e coerentemente disposta com vistas a um fim deliberado: A
Criação do Homem
.

3. O HOMEM
No relato bíblico da Criação registram-se as operações da Palavra de Deus
enquanto criava. O "Disse Deus" evidencia o impulso inicial criador e a
expressão "E Deus viu que era bom" caracteriza cada novo estágio
completo, criado. No segundo dia tal expressão não aparece, eis que
aquela operação só será completada no princípio do terceiro dia, ocasião
em que se completará o mecanismo das águas e a delimitação com a terra
seca, circunscrevendo-a.
Depreende-se da própria narrativa que tudo aquilo que Deus faz é perfeito,
principalmente por ser de sua própria natureza e essência fazer o que faz
perfeito. Descabe, portanto, a expressão "viu que era bom"
sistematicamente repetida à perfeição da obra que Deus cria, ainda mais
quando ela não aparece quando da criação do Homem, sua Obra-Prima:

"Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa


semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves
do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis
que rastejam sobre a terra" (Gn 1,26).

Aí está: Deus cria o Homem "à sua imagem e semelhança" e como tal
tendo poder sobre toda a Criação:

"Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o


criou, homem e mulher os criou. Deus os abençoou e lhes disse:
‘Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a;
dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais
que rastejam sobre a terra’. Deus disse: ‘Eu vos dou todas as
ervas que dêem semente, que estão sobre toda a superfície da
terra, e todas as árvores que dão frutos que dêem semente: isso
será vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, a
tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou
como alimento toda a verdura das plantas’, e assim se fez. Deus
viu tudo o que tinha feito: e era muito bom. Houve uma tarde e
um manhã: sexto dia" (Gn 1,27-31).

Num só lance o narrador finaliza o último dia de Criação, o sexto dia. Nele
criou Deus "os animais domésticos, répteis e feras segundo a sua espécie"
e "Deus viu que era bom". Porém, após criar o Homem não diz o mesmo,
"não viu que era bom"; mas, após cuidar da alimentação do que foi criado
nesse último dia, "Deus viu tudo o que tinha feito: e tudo era muito
bom". Só se pode concluir daí que Deus verificava se tudo "era bom" para
o Homem, para quem Deus tudo criava. Um comparação facilitará a
compreensão: é tal como sucede a um profissional, ao selecionar material e
ferramentas para fazer uma mesa de madeira. Ao selecioná-los, um a um,
vai dizendo de si para si mesmo ser bom o que separa, bom para a
finalidade que busca, - a construção da mesa de madeira: separa o martelo
e ao separá-lo "vê que isso era bom"; separa os pregos e ao fazê-lo "vê
que eram bons"; separa a madeira para os pés e "vê que era boa"; separa
as tábuas do tampo e da mesma forma "vê que eram boas"; tudo o que
separou era bom para a mesa que queria construir; e, ao concluí-la mira
toda a mesa pronta e "vê que ficou muito boa". É essa a imagem que se
irradia de toda a narração em análise.
A expressão "e Deus viu que era bom" (1,4.10.12.18.21.25 e 31) traduz
que tudo foi criado para o homem, a ele amoldado e entregue servindo-lhe
até mesmo de alimento, cumprindo-lhe seguir o planejamento em função
ordenadora, sempre em vista da finalidade de tudo e de cada coisa criada.
O Homem é um auxiliar de Deus, um consorte com função executiva, feito
para conviver com Deus, sua Imagem, sucedendo-O e secundando-O. Veio
de Deus, REFLETE DEUS, devendo com Ele conviver e compartilhar, qual
seja, vivendo por, com e para Deus. Por ser Imagem de Deus pode
conhecê-lO, bem como as Suas leis.

Visivelmente Deus trata o homem desde a sua criação com carinho todo
especial, expresso pelo ato de amoldá-lo Ele mesmo com as Suas
Própria Mãos, com arte e afeto especiais, como um oleiro molda
amorosamente no barro o objeto que cria:

"Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo,


insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou
um ser vivente" (Gn 2,7).

O Homem recebe de Deus o "hálito de vida e torna-se um ser vivente",


trazendo em si a vida advinda do íntimo de Deus: o Homem tem Vida
Divina em sua natureza de barro, em sua matéria. O Homem é a Matéria
Divinizada. Nasceu diretamente de Deus, é Imagem de Deus, "reflete
Deus", tal como uma imagem reflete aquilo que representa, tal como o
reflexo de um espelho. O Homem, neste estágio da Criação, se identifica a
Deus pelo domínio sobre ela e reflete a Santidade de Deus por sua
integridade pessoal, por isso a "semelhança" e a "imagem".

Para o hagiógrafo, sem Deus o Homem nada é. Não passa de um viajante


que trafega sem direção, sem caminho certo, um navegante que navega
sem rumo. Sem Deus o Homem não encontra o seu trajeto, não parte nem
chega. Perde-se em sua realidade existencial, sem finalidade, desligado de
si mesmo por não se encontrar em Deus, de onde veio, para os fins e
desígnios que lhe foram traçados por Ele. Ocupa um lugar privilegiado no
quadro existencial da Criação e sem Deus fica deslocado
gravitacionalmente, não girando em torno do eixo certo. Só em Deus pode
se encontrar e se orientar, por ter vindo diretamente dEle. Também, ao
narrador não ficou encoberto que na natureza criada existem leis
ordenadoras das coisas e dos seres criados. Porém, necessitam elas da
ação inteligente e catalisadora do Homem para melhor se ordenarem ao
seu fim específico e desdobrarem melhor as suas possibilidades ou
potencialidades naturais. A Obra da Criação traz em si mesma o seu próprio
ordenamento com a fixação de leis próprias, eficazes, imanentes. Mas,
centralizam-se no Homem, cujo desenvolvimento supõe a aptidão de
ocupar o seu lugar no quadro vivo. É que tudo tem uma função peculiar,
obedece determinações específicas e satisfaz até mesmo um conjunto
sistemático e dinâmico. Tudo é segundo a finalidade material e orgânica,
total e parcial, de toda a construção impressa, ordenada e governada por
Deus. O Homem iria conduzir tudo a uma eficácia ideal, mediando entre as
coisas, as criaturas, e Deus. O Homem que é matéria e ao mesmo tempo
sopro de Deus seria o encontro de ambos. A expressão divina da matéria,
eis o Homem, "imagem e semelhança de Deus" e, também, "barro", "pó". O
Homem é a divinização da matéria criada, a expressão máxima da Criação,
sem o quê, a Criação para nada serviria, sem nenhuma finalidade. É no
Homem que a própria natureza das coisas se encontra consigo mesma e se
realiza em plenitude material.

Criação que é uma dádiva de Deus, um transbordar do amor em ato divino.


Ato criador, dom que se irradia em matizes infindos; uma dinâmica que faz
acontecer, desenvolver e ser a vida pululante e bela; uma realidade que se
fundamenta na intimidade de Deus e explode no Homem a "submeter e
dominar" (Gn 1,28) a terra e a todos os seres criados, a tudo ordenando
conforme as leis que lhe são próprias. Leis que descobre como emulsão
das próprias coisas e seres criados. É do Homem o universo todo, assim
Deus o destinou. Não apenas isso. Estabeleceu também um modo
particular de convívio, um relacionamento específico, especial, chamando-o
a uma vida mais íntima e partilhada familiarmente.

4. DEUS E O HOMEM
Desde a origem estabeleceu Deus um distinto e profundo relacionamento, e
singular convívio, com o Homem. Manifesta-se desde então ora como
estreita colaboração mútua ora como profunda comunhão de vidas e
intimidade bem familiar. Em qualquer caso, porém, ocupa o Homem uma
posição ímpar de colaborador e coordenador da Obra de Deus, pelo que se
pode dizer ser ele o catalisador da Criação. É que apesar da perfeição que
coroa cada ato criativo particular ou conjunto de Deus, há sempre presente
uma demanda nas coisas criadas, a exigir um ordenador comum e
inteligente - O HOMEM, "imagem e semelhança de deus" (Gn 1,26). É o
caso da mescla em que se nos apresenta a natureza: tudo misturado e
esparso, gêneros e espécies, a compor determinado ambiente. Cabe ao
Homem separar, ordenar e semear conforme o consumo, separando,
ordenando e semeando por gênero e espécie, função essa bem destacada
na ocasião:
"No tempo em que Iahweh Deus fez a terra e o céu, não havia
ainda nenhum arbusto dos campos sobre a terra e nenhuma erva
dos campos tinha ainda crescido, porque Iahweh Deus não tinha
feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o solo"
(Gn 2,4-6).

Deus tudo criara com aptidão imanente para germinar e propagar-se. Além
disso, oferecia a chuva, cabendo ao Homem o cultivo do solo. Estabeleceu-
se então entre ambos, Deus e o Homem, verdadeiro consórcio de tarefas,
um "co-múnus", uma comunhão num primeiro relacionamento: Deus
propiciava a chuva, e o Homem oferecia o seu trabalho. Ao Homem cabia
cultivar o solo, eis um dos motivos imediatos da sua Criação, e ainda o
deslocamento dele para outra situação em nova dimensão ou novo estado
de vinculação relacional com Deus:

"Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo,


insuflou em sua narinas um hálito de vida e o homem se tornou
um ser vivente." / "Iahweh Deus plantou um Jardim em Éden, no
oriente, e aí colocou o homem que modelara... Iahweh Deus tomou
o homem e o colocou no Jardim do Éden para o cultivar e guardar"
(Gn 2,7-8.15).

É uma maneira diferente de dizer a mesma coisa já dita com outras


palavras: Ao "insuflar em suas narinas o hálito de vida" Deus cria o Homem
"a sua imagem e semelhança" e ao "colocá-lo no Jardim que Ele mesmo
plantara" modifica a sua situação e o distingue dos outros seres já criados.
Criando o Homem para cultivar o solo, não havia a necessidade de lhe
preparar um local especial para aí o colocar, a não ser que se pretenda
evidenciar a existência de um relacionamento especial preparado pelo
próprio Criador. E, tendo sido preparado e ordenado pelo próprio Deus, só
pode ser uma maior aproximação de ambos, Deus e o Homem, o que traz
para o último uma profunda modificação em seu estado, elevando-o a um
relacionamento sobrenatural. Pode-se vislumbrar sem esforço a existência
de dois campos de relacionamento entre Deus e o Homem, quais sejam:

 o primeiro é aquele em que Deus fornece a chuva e o homem


fornece seu trabalho no cultivo da terra (Gn 2,5-6); e,
 o segundo, onde Ele mesmo planta um "jardim" e nele
"coloca" o Homem para dele "cuidar" (Gn 2,7-15).

Há fundamental diferença entre ambos, eis que no último aprofunda-se a


vinculação entre Deus e o Homem, colocado num jardim especialmente
preparado, com a finalidade de "cultivá-lo e guardá-lo" (Gn 2,15). É como
se fossem dois mundos que se destinavam ao cultivo do homem. Neste
último Deus "passeava à brisa do dia" (Gn 3,8), caracterizando-se com
essa sua "presença física" a elevação do estado do Homem a uma
verdadeira comunhão de vidas entre ambos, fruto de ato exclusivo de Deus.
O Homem de então participa da Criação pelo trabalho e da vida divina pela
comunhão sobrenatural com Deus. Estabelece-se assim, desde o início, um
convívio mais dependente e íntimo, uma profunda familiaridade. Essa
comunhão de vidas foi e é ainda o ápice de toda a Criação, percebendo-se
já o grande privilégio conferido ao Homem, tratado e considerado em
ambas as dimensões como o único centro gravitacional da atenção
generosa, amorosa e objetiva de Deus. Por causa disso é que Adão "dá o
nome" a todas as criaturas (Gn 2,20), eis que nomear biblicamente significa
ser dono:
"... chamei-te pelo teu nome: meu tu és" (Is 43,1).

Desde essa integração e relacionamento comum apresentaram-se os


vários elementos indissociáveis e que compõem a natureza humana e se
destinam à consecução de um desenrolar antecipadamente elaborado,
planejado e estabelecido, apesar de profundamente livre. Uma espécie de
plano geral, tal como uma obra "inteligente e pensada", elaborado pelo
próprio Deus, no qual o Homem se torna participante ativo e consciente.
Goza então da glória e da felicidade de uma vida em estreita comunhão,
intimidade e familiaridade pessoais com o Criador. Estabelece Deus com o
Homem, pessoa a pessoa, um "consórcio de tarefas" (Gn 2,5-6) e uma
"comunhão de vidas" (Gn 2,7-15).

A partir de então Deus sempre quer manter viva e dinâmica essa


intimidade, familiaridade e comunhão de amor com o Homem, sua Criação
predileta, a quem destinou toda a Criação:

"Deus abençoou-os e lhes disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos,


enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as
aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra" (Gn
1,28).

Recebe o Homem diretamente de Deus toda a Criação. O tom imperativo


da entrega denota toda uma dinâmica em que se fundará a atividade
humana e a íntima relação entre Deus e toda a humanidade. È a linha de
toda a História. Este desígnio de Deus é o mesmo até hoje, e será o
mesmo até o fim dos tempos, na culminação de toda a Obra. Nada, nem
mesmo qualquer ato humano, pode alterar ou perturbar a realização dos
Planos de Deus, em si; pode perturbar apenas o recebimento dos
benefícios, retardando-os apenas quanto ao próprio Homem e à Criação,
na História: A Criação é um ato irreversível de Deus.

5. O MAL
Há um fato contraditório que aparece inesperadamente na História da
Criação e retrata uma presença contumaz em toda a História Humana, bem
como na vida particular ou social de cada um: é a presença do mal. Da
mesma forma que a consciência da morte revela a vida, a consciência do
mal revela o bem. Busca o homem ansiosamente conhecer e compreender
a causa, a natureza e a finalidade do mal. Infrutiferamente, porém. Busca e
quer erradicá-lo, ao encontro de um bem total. Para isso precisa conhecer o
bem e o mal, estabelecendo as suas causas, suas naturezas e seus fins. O
mal é a expressão do sofrimento, da dor e da morte, em contraste com o
bem significado na felicidade, na paz e na vida. O mal é a ineficácia do
bem, o desordenamento da Criação e sua conseqüente esterilidade. É a
volta ao estado anterior à ação criadora de Deus, é o deserto, o caos:
"... - ele é Deus, o que formou a terra e a fez, ele a estabeleceu;
não a criou como um deserto, antes formou-a para ser habitada"
(Is 45,18).

Para o hagiógrafo, da mesma forma que com a origem, o problema é


simples e teve como fonte a atitude do Homem em face ao seu
relacionamento com Deus. Relacionamento elevado à intimidade,
familiaridade e comunhão que em determinado momento sujeitou o Homem
à dependência de um preceito. Melhor seria dizer o "aviso" de que
determinada forma de comportamento teria como conseqüência o advento
da "morte". Foi no instante em que Deus dotou o Homem do "livre-
arbítrio" e o instituiu. Mostrou-lhe uma situação e deixou-a a sua livre
opção, mostrando-lhe o que lhe adviria caso não a observasse. Deus criou
um ser livre, não um robô. Por inexistir um tom imperativo positivo vê-se
que não se trata de uma ordem, e o "podes" bem como o uso de uma
negativa amenizam e facilitam por demais a opção, como se fosse dito que
"a morte vai vigorar se você a facultar":

"Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do


conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em
que dela comeres terás que morrer" (Gn 2,16-17).

Analisando melhor o trecho vê-se que não se trata de uma "árvore do bem
e do mal", mas de uma "árvore do CONHECIMENTO do bem e do mal".
O "podes" denota a plena liberdade de escolha do Homem; também, a
"árvore" caracteriza uma "fonte", a origem onde se forma o fruto, qual seja,
a "conseqüência" anunciada: A MORTE. Depositava-se só e
exclusivamente nas mãos do Homem a possibilidade da existência da
morte, com todas as suas conseqüências. E, o que é a morte e o que ela
representa? Para nós, que já vivemos no seu império, a experiência nos
dita que é o fim de uma existência física. Mas, qual seria o significado dela
para aquele primeiro Homem, considerando-se o aspecto geral antes e
depois da sua presença na Criação? Para aquele primeiro Homem que a
desconhecia, como lhe teria soado, ou como lhe fora explicada, já que sem
conhecimento prévio inexiste a responsabilidade pessoal? Como lhe seria a
Criação sem ela? Voltando-se abstratamente àquele tempo vejamos como
se dariam os fatos sem a morte. Ora, inexistindo a morte ninguém morreria.
Ninguém perderia a vida por doença, por causas fortuitas, de fome ou por
qualquer outra causa. Não haveria a necessidade da luta pela
sobrevivência, a disputa, as contendas, o ciúme, a inveja e outros males
não apareceriam, bem como a infelicidade humana de tudo isso decorrente,
e o sofrimento.
Percebe-se num relance que a morte é a convergência de todos os males,
e ao homem foi dada a oportunidade de acolhê-la ou rechaçá-la. Só se
pode dizer que violou o aviso e a trouxe, introduziu-a na Criação que a
desconhecia. Somente onde há a possibilidade de escolha consciente
aparece a liberdade e somente onde há a liberdade pode haver um
relacionamento de duas ou mais pessoas, em íntima comunhão de vidas e
de tarefas. O Homem é "imagem e semelhança de Deus", não um
teleguiado seu, donde ser necessariamente responsável e consciente de
seus atos. E, para a eficácia dessa responsabilidade e consciência, deveria
ter tido o mais amplo e pleno conhecimento de tudo, e de todas as
conseqüências de sua livre escolha.
A simbologia de toda a narração nada mais revela que tudo isso, bem como
essa opção livre a qual somente se percebe num vislumbre, quase intuitivo,
o que evidencia a inteligência sagaz do narrador, procurando traduzir para
seus semelhantes fatos que não foram presenciados por ninguém. A
começar pelo nome dela: a "árvore do conhecimento do bem e do mal", que
traduz numa conotação especial o esforço e a habilidade com que impede
qualquer vinculação de Deus com a existência do mal. Coloca-a como a
fonte ("árvore") de uma experiência sensível, que passará a ser de seu
"conhecimento", a "morte". Principalmente porque ali no Paraíso o Homem
só "conhecia" o BEM, e ao fazer ingressar no mundo a "morte",
"conheceria" a diferença entre aquele bem de que gozava e o mal que
adviria da morte, agora já possível. É a figura do "conhecer" bíblico, fruto de
uma percepção sensível em si mesmo. Assim exprime que Deus não é o
autor do mal, mas apenas e tão somente do bem.

Deus dispusera ali também no Éden a "árvore da vida", de que foi o


Homem afastado ao optar pela "do conhecimento do bem e do mal", que
lhe seria um dom perene (Gn 3,22). O Homem, por algum motivo que foge
ao nosso alcance, preferiu o caminho da dor, do sofrimento e da morte ao
da Vida Eterna, assim de imediato e num relance. "Conhecemos" o
resultado dessa infeliz opção, cuja triste iniciativa é atribuída à mulher, EVA.
A causa vem colorida com a expressão tentadora de que "sereis como
deuses" (Gn 3,5):

"A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos,


que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: ‘Então Deus
disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do Jardim’? A
mulher respondeu à serpente: ‘Nós podemos comer do fruto das
árvores do Jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do
Jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, a fim de
não morrer’. A serpente disse então à mulher: ‘Não, não morrereis!
Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se
abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal" (Gn
3,1-5).
Alguns detalhes dessa narrativa merecem uma análise mais elucidativa, por
causa da farta simbologia empregada. Em primeiro lugar, em virtude da
responsabilidade do Homem pela "guarda" do jardim, a serpente, por ser "o
mais astuto dos animais do campo", não poderia estar ali. Não se pode
culpar apenas a serpente pela queda, eis que a sua responsabilidade se
prende ao fato de dar asas à inclinação humana já alojada no íntimo de
Eva. Vê-se isso da facilidade de íntimo colóquio entre ela e a mulher, bem
como da resposta que esta lhe dá em seguida, já bem reforçada com a
expressão que grifamos "nele não tocareis", que não constou do aviso ou
conselho de Deus. Deus não lhes dissera que "não a tocassem"! Eva
demonstra então seu anseio mais íntimo, qual seja, a inclinação já atuante
no seu "coração" de provar o fruto, a que resistira até aquele momento. A
astúcia da serpente está em ter percebido a tentação a que ela estava se
sujeitando e estimulado a prática do ato vedado com uma alternativa falsa,
uma mentira, de que adviria a grande recompensa de "sereis como
deuses"! Tanto é assim que imediatamente os efeitos da indução aparecem
em Eva:

"A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e
que era, esta árvore, desejável para adquirir discernimento.
Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o a seu marido também, e ele
comeu" (Gn 3,6).

A conseqüência do ato não tardou, infiltrando-se a morte como um dos


elementos integrantes do mundo criado, por ato de livre opção e
responsabilidade do Homem. Todos os demais imperativos impostos (Gn
1,28; 3,16.18-19) até mesmo à própria natureza (Gn 3,17-18), não traziam
em si mesmos conseqüências advindas de sua violação ou
descumprimento como aqui. Interessante que nenhum deles depende da
vontade humana para se formarem, ou se cumprirem, ou se manifestarem,
ou se concretizarem; e, apesar da rebeldia ocorrida permaneceram ainda
integrados à natureza do Homem, cumprindo a sua função. O Homem
rompeu com Deus; mas, Deus se manteve o mesmo, não rompendo seus
desígnios para o Homem, e, apesar de todas as funções humanas sofrerem
a deformação advinda da perda do centro gravitacional, pelo mau uso da
liberdade que lhes dera, nem por isso a retira. O Homem continua sendo
objeto de cuidados de Deus:

"Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e


os vestiu" (Gn 3,21).

Deus nada modifica! Toda a estrutura fundamental da Criação permaneceu


em si intocável, se bem que as maldições subseqüentes à serpente e à
terra acarretam sério descontrole e desequilíbrio advindos do rompimento
pelo Homem. Quando o narrador declina as maldições nada mais faz que
significar uma imensa limitação ao controle absoluto do Homem (Gn 3,14-
19). A esse ato de rompimento do Homem com os desígnios de Deus é que
se denomina PECADO ORIGINAL, por ter sido a "árvore", a "fonte", a
"origem" de todos os males e de todos os outros pecados, ou causa
principal. Percebe-se facilmente que todo o desequilíbrio da natureza e até
mesmo as diferenças climáticas têm a sua "origem" e a sua causa naquele
"pecado". Também por ele toda a natureza humana, trazendo sérias
conseqüências como a guerra, o terrorismo, o assalto, as rixas, as
bebedeiras, o sexualismo desordenado, as doenças etc.. Por causa da
maldição da terra, até mesmo as diferenças climáticas, chovendo
copiosamente em algumas regiões e não chovendo de forma alguma em
outras, todo e qualquer desequilíbrio é fruto do primeiro ato livremente
praticado pelo Homem, o ato de rompimento com Deus, dando assim livre
curso à morte. Para que ela atuasse era necessário que isso acontecesse,
e aconteceu.

6. O PLANO DE DEUS, COMO FICA?

Aquele desígnio de Deus em estabelecer com o Homem uma vida íntima e


em comunhão plena não se arrefece, mas, sofre o Homem desde então as
conseqüências de um terrível retardamento e enormes dificuldades, antes
inexistentes. O desejo sobrenatural de Deus de viver em íntima e
consorciada comunhão de vidas com o Homem não sofreu alteração.
Manifesta-se sobremaneira na visão sobrenatural da queda havida e antes
dela na própria estrutura do Paraíso. O Éden, em sua simplicidade
estrutural, é a expressão dessa íntima relação buscada, projetando-se pela
presença de Deus nele:
"Eles ouviram o passo de Iahweh Deus que passeava no jardim, à
brisa do dia" (Gn 3,8),

Deus "passeava" no Paraíso que fora entregue a sua criatura predileta,


como um Pai passeia familiarmente no jardim da casa de seu filho
primogênito. O Homem que fora colocado no Jardim do Éden, plantado pelo
mesmo Deus, com isso significando a íntima familiaridade a que fora
destinado e elevado, é dele expulso, significando assim a perda de toda a
familiaridade e de tudo, com a restituição ao estado anterior:

"E Iahweh Deus o expulsou do jardim do Éden para cultivar o solo


de onde fora tirado" (Gn 3,23).

Apesar de desde então ter sido desprovido da Vida em familiaridade com


Deus, da Vida em Graça, Deus não destruiu o "jardim", e "os querubins e a
chama fulgurante" ali dispostos se destinaram exclusivamente "a guardar o
caminho da árvore da vida" (Gn 3,24), para que o homem "não viva para
sempre" (Gn 3,22). Assim afastado perde o acesso imediato à vida eterna,
mas não fica privado dela para sempre tal como fora destinado, pois não
fora destruído o local onde estava. Fora dele nasceriam todos os
descendentes de Adão e Eva, o que evidencia "a conseqüência
propriamente dita do Pecado Original", nascendo todos os seres humanos a
partir de então desprovidos da intimidade e familiaridade com Deus, da
"Vida em Graça", correspondente ao privilégio perdido por uma escolha e
culpa exclusiva do próprio Homem.

O que não se pode pretender é que com essa Queda teria havido o
rompimento de toda e qualquer relação entre Deus e o Homem, selando-se
a sorte humana no que vem nas maldições advindas:

"Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que


eu te proibira de comer, maldito é o solo por causa de ti! Com
sofrimento dele te nutrirás todos os dias de tua vida. Ele produzirá
para ti espinhos e cardos e comerás a erva dos campos. Com o
suor de teu rosto comerás o teu pão até que retornes ao solo, pois
dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás" (GN 3,17-19).

A atitude do Homem, além do rompimento de sua intimidade com o Criador,


causa também o desequilíbrio e a desarmonia de toda a Criação, em cuja
maldição se exprime a que ficou reduzida daí em diante. Não poderia ser
amaldiçoado o Homem já abençoado anteriormente, mas o seu ato vai
causar a esterilidade de toda a Criação, impedindo que a terra
correspondesse ao que dela deveria advir, não houvesse acontecido o
pecado. Torna o seu trabalho infrutífero, cansativo e penoso, negando-lhe a
terra aquilo que produziria inexistindo a maldição. Colhe daí em diante o
que plantou com o seu ato.

Porém, não ficaria o Homem definitivamente privado da possibilidade de


Vida Sobrenatural a que fora elevado, qual seja, a Vida em Íntima
Comunhão e Familiaridade com Deus. O Criador não muda os seus
desígnios e não teria razão de ser nem poderia ser outro o sentido de suas
palavras à serpente, anunciando-lhe a sua derrota final:

"Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a


descendência dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o
calcanhar" (Gn 3,15).

Nessas palavras está o germe de toda a dinâmica salvífica a que fica


condicionada a situação do Homem, que por si só não poderá reencontrar o
caminho de volta, nem restabelecer o relacionamento rompido, bem como a
Criação toda. Deus não muda, não se altera, nem se deixa abalar por um
ato humano. Caso o ato humano tivesse o condão de alterar o Desígnio de
Deus, ou se o Criador tivesse mudado ou modificado seu relacionamento
com o Homem, esse Protoevangelho não poderia ter sido proferido. Deus
continua cuidando do Homem:

"Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e


os vestiu" (Gn 3,21).

"Iahweh Deus ... os vestiu", como a indicar que não modificara seus
planos para a sua criatura predileta, e assim agasalhados e protegidos pelo
próprio Deus, são reconduzidos ao antigo consórcio de tarefas, agora num
mundo cheio do mal que nele semearam:

"E Iahweh Deus o expulsou o Jardim do Éden, para cultivar o solo


de onde fora tirado" (Gn 3,23).

7. O SÁBADO

O escritor bíblico ao idealizar os acontecimentos do passado mesclou-os


com a cultura de então, levando para a origem ou para a Criação as
instituições vigentes no seu tempo, ai localizando-as, tal como que
justificando-as. É o caso do SÁBADO, como é conhecido o sétimo dia da
semana. Com base no que já vimos podemos compreender o significado
dado originariamente a ele, e qual o seu sentido religioso:
"Assim foram terminados o céu e a terra e todo o seu exército. E
no sétimo dia Deus deu por terminada a obra por ele feita; e no
sétimo dia CESSOU DE TODA A OBRA QUE HAVIA FEITO; e, por
isso, DEUS ABENÇOOU O SÉTIMO DIA E O SANTIFICOU, porque
nele cessou de toda a obra que, ele, CRIANDO, tinha feito. Esta é a
geração do céu e da terra na sua CRIAÇÃO" (Gn 2,1-4).

A palavra "cessar" em hebraico pronuncia-se mais ou menos "shabat", de


onde nos veio o nome e a pronúncia do sétimo dia da semana, do sábado,
tal como é conhecido. Nesse trecho não se trata da instituição do respeito
ao sábado, mas de explicar a sua distinção entre os outros dias, a ponto de
se lhe vedar nele todo e qualquer trabalho. Não se trata de um "repouso de
Deus", propriamente falando, Deus não precisa de repouso algum (Jo
5,17), mas do dia em que termina a Criação e lhe dá o acabamento
final, "abençoando-a". E, quando Deus abençoa, fecunda e "energiza"
para que cumpra a sua finalidade, conforme os Seu Desígnios, tal como
abençoara os animais e o homem ao criá-los. Não se trata de fecundar e
"energizar" um dia tornando-o fértil para a "reprodução de outros dias", mas
de imprimir na Obra da Criação as leis que lhe são peculiares,
fecundando-a e "energizando-a" para que prossiga de conformidade com
seus desígnios, abençoando-a toda. Deus CESSA DE CRIAR, apenas, tal
como o próprio Jesus nos revela:
"...: meu pai trabalha sempre e eu também trabalho" (Jo 5,17).

Deus nada criou sem motivo e sem meta a atingir, muito menos para
destruir. Daí porque Deus santificou o sétimo dia, qual seja, num sentido
bíblico, "separou", distinguiu. Aparece então com toda a clareza a
irreversibilidade e inexorabilidade da criação:

"Enquanto durar a terra, semeadura e colheita, frio e calor, verão


e inverno, dia e noite não há de faltar" (Gn 8,22).

8. O PROTOEVANGELHO

O chamado protoevangelho traz nele embutido claramente a maldição da


serpente, formando um só corpo e devem ser analisados em conjunto:

"Porque fizeste isso sê maldita entre todos os animais e entre


todas as feras do campo. Caminharás sobre teu ventre e comerás
poeira todos os dias de tua vida. Porei hos-tilidade entre ti e a
mulher e entre a tua descendência e a descendência dela: ela te
esmagará a cabeça e atacá-la-ás no calcanhar” (Gn 3,14-15).

Alguns outros trechos (Is 25,12c; 26,5s; Sl 91/90,13 etc.) distintos mostram
que aí se encontra bem caracterizada a condição de ser a serpente uma
contumaz e conhecida inimiga de Deus, destacan-do-se:

“Diante dele o homem do deserto se curvará e seus inimigos


lamberão o pó...” (Sl 72/71,9)

“Que lambam o pó como a serpente, como os animais que


rastejam terra” (Mq 7,17).

É clara a referência que se faz aos inimigos vencidos e traduzem o


tratamento que se lhes dirigiam, identificando-se ao início do
protoevangelho, onde consta o que a serpente colherá com sua atitude. Isto
é, além de inimiga teria ela agora outra conseqüência a suportar: a
hostilidade da mulher e da descendência dela, contrastando com aquele
“diálogo amistoso” com que a seduziu no Paraíso. O diabo de agora em
diante deverá temê-la por causa do desate final aí previsto: “ela te
esmagará a cabeça e tu atacá-la-ás no calcanhar”. Não se trata de uma
ameaça apenas futura, mas de um fato que pertence a História de ora em
diante, qual seja, a luta entre o diabo e a mulher. A maldição é proferida
pelo próprio Iahweh e como tal se identifica à outras palavras dele
existentes, tendo necessidade de se identificar a algumas características
para ser reconhecida:
“Talvez perguntes em teu coração: ‘Como vamos saber se tal
palavra não é uma palavra de Iahweh?’ Se o profeta fala em nome
de Iahweh, mas a palavra não se cumpre, não se realiza, trata-se
então de uma palavra que Iahweh não disse” (Dt 18,21-22).

A principal característica da Palavra de Deus é a de que se realiza


inexoravelmente, qual seja, a partir de seu pronunciamento, se cumpre. Por
isso a Profecia é reconhecida imediatamente, como advinda de Deus. Há
que ter um primeiro lance, ou uma realização imperfeita imediata e, com ou
sem intermediários, um final definitivo a se esgotar, realizar-se e a se
cumprir em Cristo:

“Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-
los, mas dar-lhes pleno cumprimento...” (Mt 5,17).

O protoevangelho é “uma palavra que Iahweh disse” devendo apresentar


por isso a mesma característica em sua realização, qual seja aquela
ocorrência sempre presente na História, pelo que é sempre reconhecível. A
sua primeira realização se dá com a única mulher presente no momento da
maldição, Eva.

Corporifica-se com o nascimento de Set (Gn 4,25) a quem ela mesma dá o


nome, nomeia (Gn 4,25b), e “dar o nome” tem um significado peculiar de se
assumir todo o destino, ou especifica a missão ou condição dela (Gn 2,20;
4,25; 17,5; Is 43,1; 2Rs 24,17; 2Cro 36,4; Mt 1,21; Lc 1,31 etc.). Quando
Eva dá o nome a Set assume a sua posição no campo de luta com o diabo,
começada pela descendência do mal com Caim (Gn 4,17-24). Já se
manifesta a “hostilidade entre a descendência da serpente e a da mulher”
(Gn 3,15), com a primeira vitória da mulher: Enós, o filho de Set e
descendente dela (neto), é “o primeiro a invocar o nome de Iahweh” (Gn
4,26):

“...seca-se a erva, murcha-se a flor, mas a palavra de Deus


subsiste para sempre” (Is 40,8).

Essa atuação perene da palavra de Deus na História aparece também


quando as escrituras re-gistram que todas as mulheres ligadas à Aliança
destinada à redenção humana eram estéreis. Só se engravidavam por uma
ação especial de Deus que as tonava férteis a começar pela mulher de
Abraão, Sara (Gn 18,14); a mulher de Isaac, Rebeca (Gn 25,21); bem como
as mulheres de Jacó, Lia (Gn 29,31) e Raquel (Gn 30,22). Até que, na
“Nova Aliança”, também fertiliza Isabel, a mãe de João Batista (Lc
1,7.13.24.36), “...na velhice... ...aquela que chamavam estéril”, quando se
dá a inaugura-ção da Fecundidade Messiânica e Maria, a mãe de Jesus,
“uma virgem concebe e dá à luz” (Mt 1,23). Resume-se assim o percurso e
o ponto culminante da vitória da mulher sobre a serpente, fecundada por
Deus, com vistas no retorno do Homem ao Paraíso a que fora destinado.

Deus não destruiu o jardim, nem alterou seu desígnio de que o Homem o
habite, e na qualidade de Autor da Salvação, mantém a mesma disposição
de ânimo que teve ao criar o Jardim do Éden. E, por meio do Espírito
Santo, fecunda a “virgem que concebe e dá à luz” ao “Filho do Altíssimo”
(Lc 1,32), para se cumprir o seu Santo Desígnio de levar o homem à
comunhão, intimidade e familiaridade com Ele. Assim, tudo aquilo que
estava significado no Jardim de Deus está no conteúdo do Protoevangelho,
“em germe e figura”, já que na “Árvore da Vida no meio do Jardim” estavam
identificados como pertinen-tes indestacáveis à Obra da Criação tanto a
Encarnação do Verbo, de que é essência, como o meio para a humanação
do Filho, Maria, desde então preservada em plenitude como a mãe do
verbo feito carne, naturalmente adequada a tal missão com todos os dons.

Deus não é um ser criado que esteja sujeito à ação de outrem, fruto de
movimento e condicio-namento a um futuro desconhecido ou incerto e
dependente do acaso. Seus desígnios se cumprem inexoravelmente. A
Criação é um fato irreversível e não seria um ato humano que perturbaria
qualquer pretensão divina, por mínima que fosse. É que o Homem não tem
poder nenhum suficiente para que seus atos venham a alterar ou
comprometer a vontade de Deus. Uma fragilidade assim não se coaduna
com a onipotência e a onisciência de Deus. Assim, esse Jardim de Deus, tal
como preparado para o Homem, aguardaria a redenção “na plenitude dos
tempos” (Gl 4,4) pela Encarnação do Filho. Jesus não é um remendo
improvisado por Deus em virtude de ter havido um comprometimento de
Sua Vontade pelo Pecado Original. Essa Encarnação já era dos desígnios
de Deus e seria como que o prêmio de Vida Eterna caso aceito pelo
Homem, a mesma plenitude (Jo 10,10) a que o reconduz o Messias. O
Pecado Original atingiu tão somente a Criação, mas o Plano de Deus
continua em pleno vigor. O Homem é que sofre uma transformação tal que
lhe retarda e condiciona o gozo da Vida Eterna.

9. AS CONSEQÜÊNCIAS IMEDIATAS DO PECADO

É muito perigoso em Bíblia o precipitar das conclusões sem um exame da


maneira de se expressar, com coerência e de acordo com a mentalidade já
manifestada anteriormente. Não é possível uma palavra ter sido usada em
sentidos diferentes num mesmo contexto, a não ser que ela tenha mesmo
essa propriedade de dualidade de significações. Observa-se a existência de
um novo consórcio de tarefas ou co-munus, agora entre o homem e a
mulher, quando Deus diz:
“Iahweh Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer
uma auxiliar que lhe seja igual” (Gn 2,18).

Salta aos olhos a necessidade de muito cuidado no exame desse trecho,


eis que, naquele Jardim, em vida familiar e íntima com Deus, é um absurdo
sentir solidão. Quando se está em íntima comunhão com Deus não se pode
estar “só”, “solitário”. Por isso, aqui é o mesmo diapasão da afirmativa já
analisada anteriormente de que “Deus viu que era bom” (Gn
1,4.10.12.18.21.25.31), ocorrida durante a narrativa inicial, coordenando-a
como um refrão. Vimos então que o sentido era de que aquilo que se criava
era bom para o Homem, na finalidade que lhe foi dada e impressa por Deus
na Criação. Assim o Homem sozinho, sem uma auxiliar que lhe fosse igual,
não atingiria nunca aquele ideal que lhe fora designado por Deus. No
Jardim recém-plantado tudo se desenvolveria no seu sentido natural, qual
seja, viveria a família humana advinda do casal em comunhão plena com
Deus, na glória e felicidade eternas, coordenada e conjuntamente com toda
a Criação:

“O homem deu nomes a todos os animais,... mas... não encontrou


a auxiliar que lhe fosse igual. Então Iahweh Deus..., da costela que
retirara do homem... modelou uma mulher e a trouxe ao homem.
Então o homem exclamou: ‘Esta sim, é osso de meus os-sos e
carne de minha carne...’ Por isso um homem deixa seu pai e sua
mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne. Ora, os
dois estavam nus, o homem e sua mu-lher, e não se
envergonhavam” (Gn 2,20-25).

Novamente se torna imperioso o uso do bom-senso para se compreender


essa “procura de uma ‘que lhe fosse igual’ entre os animais” que foram
entregues a Adão. Não se pode pretender que se tratasse apenas de “uma
esposa”, uma fêmea, para a mãe de seus filhos! Não! A atividade
programada por Deus ao Homem não se limitava a isso. A ele cabia
“dominar e cultivar a terra e possuí-la, e submetê-la, dominar sobre os
animais de toda a espécie” (Gn 1,28; 2,5). Era-lhe indispensável uma
“auxiliar” à altura, com as mesmas aptidões naturais para complementar
sua atividade. Foi um ser assim que Adão “não encontrou” entre os animais,
e Deus lhe preparou a Mulher, “que lhe era igual”, pois “não lhe era bom
ficar só” para se conseguir o objetivo traçado por Deus.

Com a Queda Original, rompida a comunhão com Deus, dissolve-se a


unidade gravitacional de todo o sistema, manifestam-se várias desordens.
Começam a se exprimir no relacionamento do casal com o próprio Deus e
entre si mesmo, em atitudes agressivas mútuas e com a própria unidade
total, que perdendo a convergência dinâmica e harmônica em direção ao
Criador por mediação humana, torna-se divergente, sem sentido e
completamente difusa, passa a reinar a confusão total. O Homem e a
Mulher não sabem mais o que fazer, se escondem, um do outro e do
próprio Deus:

“Eles ouviram os passos de Iahweh Deus que passeava no jardim


à brisa do dia e o homem e a mulher se esconderam da presença
de Iahweh Deus, entre as árvores do jardim. Iahweh Deus chamou
o homem: ‘Onde estás?’, disse Ele. ‘Ouvi teu passo no jardim’,
respondeu o homem; ‘tive medo porque estou nu, e me escondi’.
Ele reto-mou: ‘E quem te revelou que estavas nu? Comeste, então,
da árvore que te proibi de comer!’ O homem respondeu: ‘A mulher
que puseste junto de mim me deu da árvo-re, e eu comi!’ Iahweh
Deus disse à mulher: ‘Que fizeste?’ E a mulher respondeu: ‘A
serpente me seduziu e eu comi” (Gn 3,8-13).

Instala-se a insegurança e a desarmonia. Primeiro, o medo, levando-os a


se esconderem, em virtude da nudez que passaram a sentir, denotando a
insegurança da perda da comunhão com Deus e o profundo sentimento de
culpa advindos. A seguir, inquiridos, o Homem acusa a Deus e a Mulher: “A
mulher que puseste...”, isto é “a culpa é tua e da mulher”: “tua por tê-la
posto junto de mim e dela por me ter seduzido”; por sua vez, a mulher
acusa exclusivamente a serpente. A esta nem é dada a oportunidade de
defesa, não é interrogada nem dá explicações e desaparece do cenário
terrivelmente amaldiçoada, denotando-se assim uma situação de inimizade
já existente e devendo ainda perdurar e prosseguir. A luta com ela apenas
começava e as maldições que lhe foram dirigidas se assemelham às
condições de tratamento dado ao inimigo quando derrotado [cfr. Sl 72(71),9;
Mq 7,17; Is 25,12], como se viu.

O consórcio Homem-Mulher continua vigorando mesmo após a expulsão do


Paraíso, eis que os Planos de Deus são irreversíveis e um ato humano,
mesmo o pecado, não os pode comprometer. Porém, agora, passaram à
condição de mortais, seja pelo fato de que “és pó e ao pó tornarás” (Gn
3,19), seja pela presença das “dores de parto” (Gn 3,16), seja “no império
da força a vigorar entre marido e mulher” (Gn 3,16b), seja pelo “sofrimento
advindo do trabalho humano” (Gn 3,17-19b), todos estes fatos e muitos
outros advindos como conseqüências imediatas do Pecado Original. Na
verdade toda a Criação perde o seu eixo central ou gravitacional e perde o
equilíbrio natural (Gn 3,17a), desnorteando-se completamente, caindo, tal
como no-lo diz São Paulo, numa espécie de gestação, até que se “cumpra”
a salvação advinda com a Encarnação do Verbo:

“...a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de


Deus. De fato, a cri-ação foi submetida à vaidade - não por seu
querer, mas por vontade daquele que a sub-meteu - na esperança
de ela também ser libertada da escravidão da corrupção para en-
trar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que a
criação inteira geme e sofre as dores do parto até o presente” (Rm
8,19-22).

Outras conseqüências passam a se manifestar, principalmente no


predomínio do instinto carnal, próprio do animal que é o Homem,
desaparecida a vida sobrenatural a que fora elevado e não o quisera: são
as conseqüências mediatas do pecado.

10. AS CONSEQÜÊNCIAS MEDIATAS DO PECADO

O afastamento do primeiro casal de seu centro gravitacional trouxe,


diretamente e até mesmo sem nenhuma intervenção, as conseqüências
anteriormente descritas. Além delas, trouxe outras advindas de
modificações ocorridas no equilíbrio da natureza do próprio Homem.
Tratando-se de conseqüências de conseqüências podem ser denominadas
de mediatas. No momento em que as descrevermos procuraremos
demonstrar essa ocorrência, pois só são dedutíveis a partir das condições
peculiares de cada narrativa, repletas dos fatos culturais do tempo em que
foram escritas, reproduzin-do as mais das vezes costumes por demais
desconhecidos de nossa época.

Após a expulsão do Paraíso, o narrador narra como que o início da


propagação da espécie destacando no episódio de Caim e Abel os baixos
instintos agora dominantes na natureza humana, usando para tal o mesmo
gabarito cultural, o modo de narrar e a linguagem de seu tempo:

“Quando Deus criou o homem, fê-lo à imagem de Deus. ...Adão...


gerou um filho à sua imagem e semelhança...” (Gn 5,1-3).

O hagiógrafo está dizendo na sua maneira culturalmente condicionada que


o Filho de Adão não poderia mais totalmente “refletir” Deus, por estar
contaminado em sua natureza, agora desfigurada pelo advindo
desequilíbrio causado pelo desligamento de Deus. Ele não mais partilhava
a presença de Deus, tal como no Éden e não mais trazia aquele equilíbrio
original que o tornava “imagem e semelhança de Deus”. Era agora nada
mais que “imagem e semelhança de Adão”, fruto do pecado, não mais
aquela imagem perfeita que era anteriormente. Era a “imagem do homem
decaído” que se transmitiria de ora em diante portadora de todos os efeitos
do rompimento sobrenatural com Deus. Várias situações e acontecimentos
vão se manifestar de então em diante. Não se trata de uma ordem
cronológica de acontecimentos ocorridos, mas de uma ordem lógica, fruto
da cultura religiosa de então.
10.1 CAIM E ABEL

A primeira que o narrador nos oferece é na família, no episódio de dois


irmãos, Caim e Abel, onde o primeiro mata o segundo. Ora, agora, neste
exato momento, por todo o mundo irmãos estão matando irmãos. Não seria
necessário mostrar isso, com tantos detalhes, não fora a presença de um
fato novo advindo, que é a causa principal dessa conseqüência. É a inveja
e os seus iguais impulsos conhecidos como ciúme e despeito, bem ainda a
competição ou qualquer outro antagonismo entre os membros de uma
família, todos ensejadores da rivalidade ou do ódio que a destroi ou a
compromete e ainda vai explodir no meio social.

A desarmonia conseqüente entre o Homem e Deus e entre o Homem e a


Mulher vai agora explodir em outra, a desarmonia entre os irmãos,
ocasionada por uma emoção agora pertinente ao contexto psicológico do
ser humano. Rompidas a unidade, a familiaridade e a intimidade com o
Criador, tornam-se impossíveis a unidade, a concórdia e a paz na família. A
harmonia da Obra da Criação tem por fonte a intimidade de Deus com o
Homem, que explode na coesão e identificação mútua na unidade dinâmica
do conjunto daí formado, tal como fora criado. Rompida essa unidade com
Deus, cai-se no domínio do instinto de sobrevivência e desencadeia-se a
necessidade da luta em busca do sentimento de segurança perdida. Abel,
preferido por Deus, significou para Caim essa insegurança, e eliminá-lo
torna-se uma questão de vida ou morte, a própria sobrevivência:

“..., Caim apresentou produtos do solo em oferenda a Iahweh;


Abel, por sua vez, tam-bém ofereceu dos primogênitos e da
gordura de seu rebanho. Ora, Iahweh agradou-se de Abel e de sua
oferenda. Mas não se agradou de Caim e de sua oferenda, e Caim
ficou muito irritado e com o rosto abatido. E Iahweh disse a Caim:
‘Por que estás irado e por que andas cabisbaixo? Se fizeres o bem,
há motivo para erguê-la, mas se não procederes bem, eis que o
pecado está à espreita em tua porta; as suas ganas es-tão
voltadas para ti, mas tu podes dominá-lo” (Gn 4,3-7).

Quando fora escrita esta narrativa transferiu-se para o início dos tempos a
necessidade de se cumprirem todas as formalidades rituais então em uso.
Tal como com o sábado, aqui também com o sacrifício e suas normas,
observando-se facilmente algumas das regras que lhe são pertinentes,
quais sejam:

 a distinção das oferendas: “Abel oferece dos primogênitos do


rebanho e os mais gordos e Caim dos produtos do solo”; e,
 a identificação e vinculação da vítima com a pessoa do ofertante:
“Deus agradou-se de Abel e de sua oferenda e não se agradou de
Caim e de sua oferenda”.

Para nós não tem nenhum sentido se estabelecer qualquer diferença entre
uma e outra das oferendas, nada as distinguindo em si. Porém, para os
antigos israelitas, Caim, o filho primogênito, deveria oferecer as primícias
do campo em sacrifício (Dt 26,2). Não o fez, enquanto Abel ofereceu “dos
primogênitos e dos mais gordos” (Ex 22,28s; Dt 15,19), cumprindo as
exigências religiosas do ritual. Por isso “Deus agradou-se de Abel e de sua
oferenda e não se agradou de Caim e de sua oferenda”. Tudo indica que a
narrativa foi adaptada ao tempo em que os israelitas haviam deixado a vida
nômade e se tornado sedentários. Por isso Caim se dedicara ao cultivo da
terra e Abel ao pastoreio (Gn 4,2). Está o narrador fazendo apologia das
exigências rituais do sacrifício, bem como narrando o desenvolvimento do
mal, até mesmo a responsabilidade do Homem por seus atos, caracte-
rizada pela expressão “e tu podes dominá-lo” (Gn 4,7).
Essa busca de segurança que a unidade reflete ainda é intuitiva e
instintivamente buscada pelo Homem, formando os grupos sociais onde se
abriga e, naquele tempo em que se registrou por escrito o acontecimento,
tomara a forma de tribos patriarcais. Por não compreender o regime social
de uma tribo de então é que parece à primeira vista que Caim não fora
castigado por Deus, pelo homicídio que praticara. Não é assim, porém; na
realidade cultural de então, recebe Caim o maior castigo a que poder-se-ia
condenar uma pessoa, excluindo-o do clã, deixando-o exposto à toda
espécie de infortúni-os, hostilidades e, entre estranhos de outras tribos ,
sem a segurança e proteção da própria, bem como de seu Deus tribal:

“Agora, és maldito e expulso do solo fértil que abriu a boca para


receber de tua mão o sangue de teu irmão. Ainda que cultives o
solo, ele não te dará mais seu produto: serás um fugitivo errante
sobre a terra.” Então Caim disse a Iahweh: ‘Mi-nha culpa é muito
pesada para suportá-la. Vê! Hoje tu me banes do solo fértil, te-rei
de ocultar-me longe de tua face e serei errante e fugitivo sobre a
terra: mas o primeiro que me encontrar me matará” (Gn 4,11-14).

O grifado evidencia a gravidade do castigo imposto, principalmente o


“gemido” de Caim, lamentando seu afastamento da tribo, tendo de “ocultar-
se longe de tua face e serei errante e fugitivo sobre a terra” e o perigo a que
estaria exposto já que “o primeiro que me encontrar me matará”, tudo isso
por estar desguarnecido, fora da cobertura da tribo. É evidente a intenção
do narrador em mostrar o começo e o crescimento da luta do bem e do mal,
a começar na descendência da mulher, em consonância com a maldição
“redentora” proferida contra a serpente:
“Porei inimizade entre ti e a mulher, entre tua descendência e a
descendência dela. Ela te esmagará a cabeça, e tu lhe ferirás o
calcanhar” (Gn 3,15).

Ora, biblicamente, a serpente é o símbolo do mal e a personificação do


diabo, autor e fautor da morte, por sua maldade natural (Sb 2,23-24). Era
então o começo da luta entre as duas descendências, a do mal significada
em Caim e a do bem significada em Set, o filho que fora dado à Eva “em
lugar de Abel, morto por Caim” (Gn 4,25). Anunciava-se que o Homem não
estaria para sempre nem total-mente entregue nas mãos do diabo,
abandonado por Deus. Iniciava-se uma luta que culminaria inexoravelmente
com a derrota do mal (com a mulher a “esmagar-lhe a cabeça”).

Mostra inicialmente o narrador o começo e o avanço do mal: Caim, o


primeiro filho da primeira mulher comete o primeiro homicídio e mata o
primeiro justo, Abel (Hb 11,4; 12,24; Mt 23,35): a partir de então ‘o justo é e
será sempre a vítima do pecado’. Daí em diante a hostilidade entre a
descendência da mulher e a descendência do diabo tem a conotação de
uma luta entre o bem e o mal. O mal é representado pela descendência de
Caim e o bem é representado pelo filho que veio para a mulher em lugar de
Abel - Set. Ambos vieram de uma mesma mulher, Eva. Com Caim o mal
progride ao extremo (Gn 4,17-23); com Set o bem começa a frutificar,
sendo o filho dele Enós, “o primeiro a invocar o nome de Iahweh” (Gn 4,25-
26). Com Caim começam a se construir cidades, ‘fontes do mal’ (Gn 13,12-
13). Ainda hoje os simples camponeses temem os habitantes da cidade,
muitas vezes espertos e golpistas. Aparece na mesma linhagem a primeira
poligamia (Gn 4,19.23) e o desenvolvimento dos homicídios, até mesmo de
crianças (Gn 4,23), crescendo cada vez mais a violência, tudo exigindo e
clamando por vingança (Gn 4,24). Surge ainda a arte (Gn 4,21), volta-se ao
nomadismo (Gn 4,20) e aparece a técnica (Gn 4,22), atividades até hoje
muitas das vezes comprometidas pela maledicência popular com a
libertinagem, imoralidade e o banditismo.

Transparece no relato e começando com Eva (Gn 4,1.25) uma fase da


história em que as mulheres davam o nome aos filhos (Gn 21,6; 29,31-
30,24; 35,18) principalmente as descendentes dela, e o fazem com
referência a alguma circunstância ou com algum significado. Ora, dar nome
é assumir a propriedade e o destino, já o vimos, quando Adão nomeou
todos os seres criados ao assenhorear-se deles (Gn 2,19-20). A mulher, ao
dar nome a Set, o pai de Enós, (“quem primeiro invocou o nome de Iahweh”
- Gn 4,25-26) assume assim o seu lugar e de certa forma inaugura a luta
que se instituiu contra o diabo, para a redenção humana, que culminará
com a vitória de Jesus Cristo, a “descendência da mulher” - Maria.

10.2 O DILÚVIO
Para o Homem moderno a Bíblia perdeu o crédito por causa de suas
descrições não muito verosímeis, como é o caso do Dilúvio. É
simplesmente impossível aceitar que um volume de água de chuva, caindo
durante quarenta dias, seja suficiente para cobrir toda a superfície terrestre
acima dos “mais altos montes” (Gn 7,19). Mas, para o Homem antigo não
havia tal dificuldade, eis que a sua concepção física do universo permitia-
lhe isso facilmente. Primeiro porque o mundo todo era o que ele atingia com
o seu olhar, o horizonte; e, segundo porque concebia o mundo como tendo
água em cima e em baixo do firmamento celeste, pois “romperam-se as
fontes do grande abismo e abriram-se as cataratas do céu” (Gn 7,11).

Assim, o máximo que se poderia atualmente aceitar é o fato do dilúvio não


ter passado de uma grande inundação, que aos olhos do passado cobriu
todo o mundo criado. O que se pretende realçar com essa comparação,
mostrando a diferença entre o fenômeno ocorrido naquela realidade e a sua
interpretação pelo narrador, é que os fenômenos tais ainda ocorrentes na
natureza e seus similares (enchentes, furacões, tremores de terra e outros
cataclismos) cada vez mais apavoram o ser humano. Leva-o imediatamente
a pensar em “castigo de Deus”, em virtude da sua pequenez e fragilidade
ante a dimensão catastrófica do fenômeno. Até mesmo nos dias de hoje, e
por mais “civilizado” que seja, qualquer homem sente a presença de algo
bem maior que ele e, apesar de todos os seus avanços técnicos,
incontrolável. Lembra-se então intuitivamente de Deus, assim percebido
como no controle, disposição e direção de toda a natureza do Universo.
Ocorreu uma grande inundação no mundo antigo e o narrador bíblico
busca-lhe uma explicação razoável, conforme sua formação cultural, não
excluin-do Deus, a Obra da Criação e a sua consciência do Pecado
Original. Foi um acontecimento terrível num passado remoto até mesmo
dele, cuja narração oral lhe chegou dos antepassados seus. É como que
parte da história de sua própria tribo, em que Noé seria um deles, tal como
se enunciava que “Noé entrou na arca com seus filhos, sua mulher e suas
noras” (Gn 7,1.7.13), bem como um casal de cada animal, ave ou réptil,
bem como separando “de todos animais puros sete pares, dos animais
impuros um par” (Gn 7,2.8.9.14.15...). Novamente aqui o narrador projeta
no passado rituais do sacrifício usados no seu tempo, acreditando existirem
desde a Criação; por isso também “animais puros e impuros” (Lv 11),
obedecendo normas sacrificiais e de alimentação.

Não se perca de vista nunca que a harmonia de “toda” a Criação tem por
fonte a intimidade e familiaridade do Homem com Deus, e se manifesta na
unidade de todo o conjunto. Daí por que, pensando nas conseqüências do
Pecado Original e localizando num passado ainda lembrado, o
acontecimento do Dilúvio, é ele apresentado como exemplo do crescimento
do mal atingindo também a sua natureza terrestre. Mostra também que todo
o gênero humano, da mesma forma, vai se corrom-pendo, associando-se
cada vez mais com o mal significado na união carnal dos descendentes de
Set com os descendentes criminosos de Caim:
“... os filhos de Deus viram de Deus viram que as filhas dos
homens eram belas e toma-ram como mulheres todas as que mais
lhes agradavam” (Gn 6,2).

Novamente se projeta no passado o costume de não se misturar pelo


casamento membros de tribos desconhecidas, pelo perigo que
representavam ao clã (Gn 24,3-4; 26,34-35; Nm 36,6-9), principalmente
pela intromissão de diferentes deuses bem como de costumes
condenáveis. Para o narrador estabeleceu-se daí uma verdadeira confusão
entre o bem e o mal, que não mais se distinguem para o Homem, e essa
presença do mal, conseqüência da desarmonia original na própria natureza,
mesclado e indestacável de toda a ação humana, continua indesejável para
Deus:

“Iahweh disse: ‘Meu espírito não permanecerá para sempre no


homem, porque é carne e os seus dias serão de cento e vinte
anos” (Gn 6,3).

Esse trecho aqui disposto faz crer que se trata de uma redução da idade
elevada dos Patriarcas, relatada quando da genealogia de Adão (Gn 5),
onde atingiam até mesmo quase mil anos. Não é bem assim, porém, já que
de Noé, o principal protagonista do Dilúvio, se diz, após essa aparente
restrição, que viveu trezentos e cinqüenta anos (Gn 9,28). Também Abraão,
Isaac e Jacó tiveram respectiva-mente cento e setenta e cinco (Gn 25,7),
cento e oitenta (Gn 35,28-29) e cento e quarenta e sete anos (Gn 47,28),
idades maiores que a limitação aparente aqui imposta. Essa maneira
incomum de relatar idades é para nós muito misteriosa, e não se encontra
uma explicação satisfatória se bem que o sentido religioso dos números é
muito usado pelos antigos, a que se denominou numerologia. Na realidade
existem algumas particularidades interessantes quanto a esses números,
destacando-se:

 Henoc é o que viveu menor tempo e gerou Matusalém, o que mais


viveu. Justificam-se ambas as condições pelo fato de que “andou
com Deus”, contrastando com a pouca vida material de “apenas”
trezentos e sessenta e cinco anos (Gn 5,21-27), número de anos que
tem o mesmo número de designação que o de dias de um ano solar;
e, apesar disso, teve vida mais fecunda gerando Matusalém, o que
mais viveu;

 Lamec, o pai de Noé, registra a idade total de setecentos e setenta e


sete anos, ge-rando um filho com a idade de cento e oitenta e dois
anos, vivendo mais quinhentos e noventa e cinco anos até a morte.
Todos esses anos da vida de Lamec são divisí-veis por sete, o
número religioso por excelência, igualando-se ao de dias da Criação,
e Noé é o Patriarca do Dilúvio, que é apresentado como uma Nova
Criação dentro da Criação propriamente dita;

 Após o Dilúvio continuam as menções de idades avançadas de


outros “patriarcas” (Gn 11,10-32). Há uma indicação clara de que os
clãs diminuíram, ou houve uma modificação cultural na sua estrutura,
influindo na contagem da idade total.

Também:

 a idade de Abraão corresponde a: 7 x 5 x 5 = 175 anos;


 a idade de Isaac corresponde a : 5 x 6 x 6 = 180 anos; e,
 a idade de Jacó corresponde a : 3 x 7 x 7 = 147 anos.

Melhor é considerar que no tempo antigo havia uma profunda relação


cultural entre a fecundi-dade de procriação e a bênção de Deus,
representados pelo número de descendentes. Daí porque, pela redação da
genealogia de cada um deles, a partir do nome do primogênito seguido da
expressão que se repete em todos, “o tempo que viveu (...) após o
nascimento de (...) foi de (...) anos, e gerou filhos e filhas”, reiniciando a
seguir com a genealogia do seu primogênito, seguindo o mesmo diapasão,
logicamente se pode deduzir que a idade então apresentada como sendo
do Patriarca nada mais é que a soma das idades de todos os seus
descendentes e membros, e sua mulher, até a sua morte, formando o seu
clã. Muitas explicações existem e não se deve preocupar com isso. Basta
que se entenda a inexistência de qualquer relação entre essas idades e a
menção dos cento e vinte anos no trecho em exame, mesmo por que não
se pode aceitar idades tão elevadas, principalmente no mundo antigo onde
faltavam os mais elementares recursos para a sobrevivência num ambiente
profundamente hostil. Apesar de tudo isso, o melhor mesmo é que tais
longevidades tinham um significado cultural ainda misterioso para nós, e o
versículo transcrito traduz o fato da perda, com a morte, da “vida divina”
que Deus insuflara no Homem (Gn 2,7), bem como, pelo Pecado Original, a
perda da “vida eterna” a que o destinara no Éden (Gn 2,9 / 3,22).

É como que um recordar de Deus, a se manifestar em cada catástrofe ou


cataclismo que ocorra e atinja o Homem decaído. A corrupção carnal se
generaliza a partir da quebra daquela unidade total com Deus causada pelo
Pecado. A cisão se manifesta cada vez mais completa, a começar na vida
familiar até a natureza, e o pecado, por sua vez, atinge a sua força máxima.
Tudo se corrompe, até mesmo os descendentes de Set, a linhagem dos
bons, tudo descentraliza-se, tudo partiu o vínculo com Deus. Rompido o elo
Homem-Deus tudo descentraliza-se, e desequilibrou-se, não mais se
encontran-do, transparecendo como quê uma repulsa a Deus, outra das
conseqüências do Pecado Original:
“E disse Iahweh: ‘Farei desaparecer da face da terra o homem que
criei; e com o ho-mem também os animais, os répteis e as aves do
céu; porque estou arrependido de tê-los criado” (Gn 6,7).

Ora, Deus não se arrepende nunca, não é alguém que não sabe o que faz.
Não se pode deduzir daí que o narrador esteja se referindo a uma surpresa
ocasionada em Deus, a ponto de se lhe exigir uma providência séria. O que
o narrador manifesta é que Deus, tal como no Jardim do Éden, não se
identifica ao pecado, nem à corrupção geral que se alastrava cada vez
mais:

“Iahweh viu que a maldade do homem era grande sobre a terra, e


que era continua-mente mau todo o desígnio de seu coração.
Iahweh arrependeu-se de ter criado o ho-mem sobre a terra e se
afligiu em seu coração, ...” (Gn 6,5-6).

Os cento e vinte anos marcados não passam portanto de um prazo


simbólico, cujo sentido não é mencionado em virtude de ser conhecido
culturalmente pelos demais membros do grupo a que se dirigia a narrativa,
e se referia ao tempo determinado por Deus para o Dilúvio, “eliminando
toda a carne”. Esse prazo centenário também realça como Deus é lento
para manifestar a sua ira, pois “Deus não fez a morte, nem se alegra que
pereçam os vivos” (Sb 1,13) e “criou o homem para a imortalida-de, e o fez
imagem da sua própria natureza” (Sb 2,23). É que Deus não criou o mundo
para a corrupção que agora se apresentara, e o Dilúvio que se descortinava
nada mais era que outra conse-qüência do Pecado Original, aquilo que se
costuma designar como “ira de Deus”. É a repulsa dEle que também se
manifesta na natureza criada, apesar de corrompida, como um protesto
(Rm 8,20-22), assemelhando-se a um verdadeiro “arrependimento de
Deus”:

“Deus não é homem, para que minta, nem filho de Adão para que
se arrependa. Por acaso ele diz e não o faz, fala e não realiza?”
(Nm 23,19).

A não ser assim há de se estabelecer uma enorme contradição da narrativa


com o gesto carinhoso de Deus, que “fez para o homem e sua mulher
túnicas de pele e os vestiu” (Gn 3,21), condoendo-se da situação deles (Gn
3,22) ao expulsá-los do Jardim (Gn 3,23). Não é possível que somente
agora Deus iria demonstrar um arrependimento tão tardio, a não ser que
tudo não passe de uma conclusão do próprio narrador em face da
enormidade do cataclismo ocorrido. Tanto é assim que fica claro não
possuir o pecado força suficiente para comprometer ou destruir todo o bem
ainda ali se manifestando e se destacando nitidamente:
“Noé achou graça aos olhos de Iahweh, ...Noé era um homem
justo, íntegro entre seus contemporâneos, e andava com Deus”
(Gn 6,8-9). / “Iahweh disse a Noé: ‘... és o único justo que vejo
diante de mim no meio desta geração” (Gn 7,1).

Na linhagem de Set, da qual veio Noé, se encontra ainda um justo, aquele


que andava com Deus, tal como Henoc (Gn 5,24). Ressurge assim, do
abismo de mal que germinara e crescia por demais, a mão de Deus, ainda
em ação na própria Criação corrompida, em busca do Homem para
reconduzi-lo à vida. Mostra-nos o narrador essa atitude do Criador,
protegendo o Homem e, no meio de tanta convulsão, livrando-o de um dos
frutos do rompimento inaugural da harmonia de Sua Obra, coerentemente
com aquele ato de “vestir o casal com as túnicas de peles” (Gn 3,21). No
quadro de desequilíbrio geral em que se debate a natureza decaída
aparece uma esperança amparada pela mão de Deus: o “justo” que adveio
da linhagem de Eva, a Mulher, descendente de Set, a quem Eva “deu o
nome” (Gn 4,25), começando a “pisar a cabeça da serpente”. Em cada
fenômeno da natureza, que traduza a corrupção a que fora reduzida pelo
mal, se refletirá, pela presença de um justo, a vitória preanunciada no
Protoevangelho. Deus é fiel e verdadeiro (Rm 3,4), imutável, e com Noé
mantém ainda, além do consórcio de tarefas (Gn 2,5), bem vivo ainda o
mesmo apelo à intimidade, familiarida-de e comunhão de vidas para o que
foram convidados, em Adão e Eva, todos os Homens.

Não se tratava de uma destruição total da Criação, eis que tivesse Deus
essa intenção, ficaria sem sentido a Arca onde entraram Noé, “teus filhos,
tua mulher e as mulheres de teus filhos” (Gn 6,18), além de “tudo o que
vive, de tudo o que é carne. ... dois de cada espécie, um macho e uma
fêmea, para os conservares em vida contigo” (Gn 6,19-21). Essa a grande
contradição aparente da narrativa que mais se agiganta quando se recolhe
“sete casais de animais puros e um de impuros” (Gn 7,2). A se considerar a
“impureza” como tal seria essa a oportunidade ideal para se acabar com os
“animais impuros”, não os salvando como se fez. Outra conclusão não pode
existir, que a narrativa tem uma conotação subjacente, outra finalidade
paralela, não se limitando apenas a demonstrar o efeito do Pecado Original
também nos desequilíbrios e cataclismos da própria natureza:

“Eu não amaldiçoarei nunca mais a terra por causa do homem,


porque os desígnios do coração do homem são maus desde a sua
infância...” (Gn 8,21).

Essa a grande mensagem do Dilúvio: a fonte do mal está no coração do


Homem e não na Criação, essa é outra conseqüência do primeiro pecado.
Mesmo destruindo tudo, e recriando-se tudo de novo, não se resolve o
problema do mal no mundo se ele não for erradicado do coração humano,
essa é uma lição que se pode tirar da narrativa do Dilúvio! Não se pode
perder de vista a condição cultural do narrador já que os seus
conhecimentos da natureza física eram-lhe muito limitados. Realmente ali
aconteceu um grande cataclismo, outros povos antigos o narram. Mas, o
nosso hagiógrafo o coloca como um ato de repulsa de Deus ao pecado que
então se praticava, numa interpretação culturalmente condicionada dele,
além de pretender que se tenha atingido o mundo todo. Traduz a “ira de
Deus” que consiste no abandono a que a própria criatura, por si mesma, se
entrega às forças do mal, e no que mais e mais se afunda. Pareceu-lhe
como uma Nova Criação:

“Deus abençoou Noé e seus filhos, e lhes disse: ‘Sede fecundos,


multiplicai, enchei a terra” (Gn 9,1).

Esta frase é como que um retorno ao ato inicial da Criação e toda a


narrativa nada mais é que, no próprio relato da presença do desequilíbrio
na natureza, o prosseguimento da luta que o bem de Deus trava com o mal
do diabo. E anuncia a vitória com a colocação do Homem na Arca,
protegen-do-o durante todo o percurso e conduzindo-o à terra firme,
culminando com uma Bênção, ratificando a Obra num recomeço total de
uma Nova Criação. É para, pelo e por meio do Justo a Criação, refletindo
sempre os desígnios de Deus para o Homem. Assim, vem o Dilúvio
espelhar em forma de uma “pacificação de Deus” que não tem o desejo de
destruir o mundo, nem o Homem: os atos de Deus são irreversíveis. Retrata
também que apesar do pecado e desenlace havidos não há guerra entre
Deus e o Homem. Tal como um guerreiro depõe seu arco após a guerra,
Deus coloca o seu arco nas nuvens anunciando a paz:

“Eis o sinal da Aliança que instituo entre mim e vós e todos os


seres vivos que estão convosco para todas as gerações futuras:
porei o meu arco na nuvem e ele se tornará um sinal da aliança
entre mim e a terra” (Gn 9,12-13).

O arco da guerra entre Deus e o Homem foi deposto e para sempre passa
a escorar, com a sua parte curva, todas as comportas que mantêm no
firmamento as “águas que estão em cima” (Gn 1,6-7). O arco funcionava na
cultura de então como uma espécie de vigorosa viga semi circular que
mantinha para sempre “fechadas as comportas que contêm as águas do
firmamento” (Gn 7,11; 8,2...), passando a ser considerado como um
memorial da aliança universal ali contraída:

“Quando o arco estiver na nuvem, eu o verei e me lembrarei da


aliança eterna que há entre Deus e os seres vivos, com toda a
carne que existe sobre a terra” (Gn 9,16).

Novamente o narrador mistura aqui instituições existentes em seu tempo e


coloca nessa pré-história bíblica o ritual do sacrifício, como se já existente e
em uso pelo “justo”, para ser compreendi-do pelos seus contemporâneos.
Assim, quando fala em animais puros refere-se a uma disposição advinda
da Lei de Moisés (mosaica) ou do Código do Sinai (Lv 11), faz a apologia
das instituições religiosas em uso e cuja observância entende ser desde
então condição de efic

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