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Capítulo 1
GÊNESIS
A Criação
1. A ORIGEM
O homem é sempre atormentado pela consciência que tem da inexorável
morte; morte, que é o término da existência, a revelar-lhe a vida; vida a
pulular em vários matizes e formas a revelar-lhe um ordenamento;
ordenamento inteligente a revelar-lhe a Criação; Criação a revelar-lhe o
Criador - DEUS:
"Sua realidade invisível - seu eterno poder e sua divindade -
tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das
criaturas..." (Rm 1,20).
2. A CRIAÇÃO
Para ele nada do que existe, existe sem Deus; no princípio, tudo foi criado
por Deus e caminha inexoravelmente conforme os desígnios de Deus, sem
mistérios e sem complexidades, com a simplicidade inspirada por uma fé
profunda. Diz apenas e vigorosamente que tudo começou a partir do
impulso propulsor e ordenador da Palavra de Deus, mostrando-O assim
onipotente, destacado da Criação, não se confundindo com Ela:
"Deus disse: ‘Haja luz’ e houve luz" (Gn 1,3).
Deus começou a criar afastando as trevas e criando a luz, para poder ver a
obra em andamento e aparecer como estava ela sendo feita, em virtude da
sua concepção rudimentar e ainda antropomórfica. Quando amanhece,
parece-nos à primeira vista que a "luz do sol" precede a "luz do dia", como
se distinguissem. Sabemos que não, a "luz do dia" é a "luz do sol", mas ao
narrador, que não o sabia, havia a distinção tal como se percebe a olhos
nus, sem instrumentos, e sem o menor conhecimento científico. Não sabia
ele, nem poderia saber, que a luz do sol leva aproximadamente oito minutos
para atingir a terra, em virtude do que a ele pareciam coexistir ambas,
distintas e separadas. Por isso, na sua concepção, Deus a cria antes de
criar o sol, qual seja, melhor dizendo, independentemente da criação dele.
Criou "a luz" erradicando "as trevas" (1,2), facilitando assim a explosão da
vida e do calor desenvolvida pelo "Espírito de Deus" (1,2). Daí então, a
Criação se desdobra vertiginosamente, em seqüência culturalmente lógica
para o narrador e em ordem sistemática delimitada em espaços uniformes
de tempo, "em dias", conforme Deus pronunciava "Sua Palavra" ("...e Deus
disse...", "...e Deus chamou"...):
"Deus disse: ‘Que as águas que estão sob o céu se reunam numa
só massa e que apareça o continente’, e assim se fez. Deus
chamou ao continente ‘terra’ e à massa das águas ‘mares’, e Deus
viu que isso era bom" (Gn 1,9-10).
Delimitou Deus a terra e desse modo separou-a dos mares. Estavam assim
preparados os ambientes para a criação, geração e propagação dos
vegetais, ervas e frutos, com o que se daria a erradicação da aridez da
terra virgem:
"Deus disse: ‘Que a terra verdeje de verdura: ervas que dêem
semente e árvores frutíferas que dêem sobre a terra, segundo a
sua espécie, frutos contendo a sua semente’, e assim se fez. A
terra produziu verdura: ervas que dão semente segundo a sua
espécie, árvores que dão, segundo sua espécie, frutos contendo
sua semente, e Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e
uma manhã: terceiro dia" (Gn 1,11-13).
Não bastava criar os seres vivos. Era preciso dotá-los de aptidão para a
propagação e perpetuação da espécie. Deus então os fecunda, tornando-os
férteis, capazes de se reproduzirem. É a bênção:
3. O HOMEM
No relato bíblico da Criação registram-se as operações da Palavra de Deus
enquanto criava. O "Disse Deus" evidencia o impulso inicial criador e a
expressão "E Deus viu que era bom" caracteriza cada novo estágio
completo, criado. No segundo dia tal expressão não aparece, eis que
aquela operação só será completada no princípio do terceiro dia, ocasião
em que se completará o mecanismo das águas e a delimitação com a terra
seca, circunscrevendo-a.
Depreende-se da própria narrativa que tudo aquilo que Deus faz é perfeito,
principalmente por ser de sua própria natureza e essência fazer o que faz
perfeito. Descabe, portanto, a expressão "viu que era bom"
sistematicamente repetida à perfeição da obra que Deus cria, ainda mais
quando ela não aparece quando da criação do Homem, sua Obra-Prima:
Aí está: Deus cria o Homem "à sua imagem e semelhança" e como tal
tendo poder sobre toda a Criação:
Num só lance o narrador finaliza o último dia de Criação, o sexto dia. Nele
criou Deus "os animais domésticos, répteis e feras segundo a sua espécie"
e "Deus viu que era bom". Porém, após criar o Homem não diz o mesmo,
"não viu que era bom"; mas, após cuidar da alimentação do que foi criado
nesse último dia, "Deus viu tudo o que tinha feito: e tudo era muito
bom". Só se pode concluir daí que Deus verificava se tudo "era bom" para
o Homem, para quem Deus tudo criava. Um comparação facilitará a
compreensão: é tal como sucede a um profissional, ao selecionar material e
ferramentas para fazer uma mesa de madeira. Ao selecioná-los, um a um,
vai dizendo de si para si mesmo ser bom o que separa, bom para a
finalidade que busca, - a construção da mesa de madeira: separa o martelo
e ao separá-lo "vê que isso era bom"; separa os pregos e ao fazê-lo "vê
que eram bons"; separa a madeira para os pés e "vê que era boa"; separa
as tábuas do tampo e da mesma forma "vê que eram boas"; tudo o que
separou era bom para a mesa que queria construir; e, ao concluí-la mira
toda a mesa pronta e "vê que ficou muito boa". É essa a imagem que se
irradia de toda a narração em análise.
A expressão "e Deus viu que era bom" (1,4.10.12.18.21.25 e 31) traduz
que tudo foi criado para o homem, a ele amoldado e entregue servindo-lhe
até mesmo de alimento, cumprindo-lhe seguir o planejamento em função
ordenadora, sempre em vista da finalidade de tudo e de cada coisa criada.
O Homem é um auxiliar de Deus, um consorte com função executiva, feito
para conviver com Deus, sua Imagem, sucedendo-O e secundando-O. Veio
de Deus, REFLETE DEUS, devendo com Ele conviver e compartilhar, qual
seja, vivendo por, com e para Deus. Por ser Imagem de Deus pode
conhecê-lO, bem como as Suas leis.
Visivelmente Deus trata o homem desde a sua criação com carinho todo
especial, expresso pelo ato de amoldá-lo Ele mesmo com as Suas
Própria Mãos, com arte e afeto especiais, como um oleiro molda
amorosamente no barro o objeto que cria:
4. DEUS E O HOMEM
Desde a origem estabeleceu Deus um distinto e profundo relacionamento, e
singular convívio, com o Homem. Manifesta-se desde então ora como
estreita colaboração mútua ora como profunda comunhão de vidas e
intimidade bem familiar. Em qualquer caso, porém, ocupa o Homem uma
posição ímpar de colaborador e coordenador da Obra de Deus, pelo que se
pode dizer ser ele o catalisador da Criação. É que apesar da perfeição que
coroa cada ato criativo particular ou conjunto de Deus, há sempre presente
uma demanda nas coisas criadas, a exigir um ordenador comum e
inteligente - O HOMEM, "imagem e semelhança de deus" (Gn 1,26). É o
caso da mescla em que se nos apresenta a natureza: tudo misturado e
esparso, gêneros e espécies, a compor determinado ambiente. Cabe ao
Homem separar, ordenar e semear conforme o consumo, separando,
ordenando e semeando por gênero e espécie, função essa bem destacada
na ocasião:
"No tempo em que Iahweh Deus fez a terra e o céu, não havia
ainda nenhum arbusto dos campos sobre a terra e nenhuma erva
dos campos tinha ainda crescido, porque Iahweh Deus não tinha
feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o solo"
(Gn 2,4-6).
Deus tudo criara com aptidão imanente para germinar e propagar-se. Além
disso, oferecia a chuva, cabendo ao Homem o cultivo do solo. Estabeleceu-
se então entre ambos, Deus e o Homem, verdadeiro consórcio de tarefas,
um "co-múnus", uma comunhão num primeiro relacionamento: Deus
propiciava a chuva, e o Homem oferecia o seu trabalho. Ao Homem cabia
cultivar o solo, eis um dos motivos imediatos da sua Criação, e ainda o
deslocamento dele para outra situação em nova dimensão ou novo estado
de vinculação relacional com Deus:
5. O MAL
Há um fato contraditório que aparece inesperadamente na História da
Criação e retrata uma presença contumaz em toda a História Humana, bem
como na vida particular ou social de cada um: é a presença do mal. Da
mesma forma que a consciência da morte revela a vida, a consciência do
mal revela o bem. Busca o homem ansiosamente conhecer e compreender
a causa, a natureza e a finalidade do mal. Infrutiferamente, porém. Busca e
quer erradicá-lo, ao encontro de um bem total. Para isso precisa conhecer o
bem e o mal, estabelecendo as suas causas, suas naturezas e seus fins. O
mal é a expressão do sofrimento, da dor e da morte, em contraste com o
bem significado na felicidade, na paz e na vida. O mal é a ineficácia do
bem, o desordenamento da Criação e sua conseqüente esterilidade. É a
volta ao estado anterior à ação criadora de Deus, é o deserto, o caos:
"... - ele é Deus, o que formou a terra e a fez, ele a estabeleceu;
não a criou como um deserto, antes formou-a para ser habitada"
(Is 45,18).
Analisando melhor o trecho vê-se que não se trata de uma "árvore do bem
e do mal", mas de uma "árvore do CONHECIMENTO do bem e do mal".
O "podes" denota a plena liberdade de escolha do Homem; também, a
"árvore" caracteriza uma "fonte", a origem onde se forma o fruto, qual seja,
a "conseqüência" anunciada: A MORTE. Depositava-se só e
exclusivamente nas mãos do Homem a possibilidade da existência da
morte, com todas as suas conseqüências. E, o que é a morte e o que ela
representa? Para nós, que já vivemos no seu império, a experiência nos
dita que é o fim de uma existência física. Mas, qual seria o significado dela
para aquele primeiro Homem, considerando-se o aspecto geral antes e
depois da sua presença na Criação? Para aquele primeiro Homem que a
desconhecia, como lhe teria soado, ou como lhe fora explicada, já que sem
conhecimento prévio inexiste a responsabilidade pessoal? Como lhe seria a
Criação sem ela? Voltando-se abstratamente àquele tempo vejamos como
se dariam os fatos sem a morte. Ora, inexistindo a morte ninguém morreria.
Ninguém perderia a vida por doença, por causas fortuitas, de fome ou por
qualquer outra causa. Não haveria a necessidade da luta pela
sobrevivência, a disputa, as contendas, o ciúme, a inveja e outros males
não apareceriam, bem como a infelicidade humana de tudo isso decorrente,
e o sofrimento.
Percebe-se num relance que a morte é a convergência de todos os males,
e ao homem foi dada a oportunidade de acolhê-la ou rechaçá-la. Só se
pode dizer que violou o aviso e a trouxe, introduziu-a na Criação que a
desconhecia. Somente onde há a possibilidade de escolha consciente
aparece a liberdade e somente onde há a liberdade pode haver um
relacionamento de duas ou mais pessoas, em íntima comunhão de vidas e
de tarefas. O Homem é "imagem e semelhança de Deus", não um
teleguiado seu, donde ser necessariamente responsável e consciente de
seus atos. E, para a eficácia dessa responsabilidade e consciência, deveria
ter tido o mais amplo e pleno conhecimento de tudo, e de todas as
conseqüências de sua livre escolha.
A simbologia de toda a narração nada mais revela que tudo isso, bem como
essa opção livre a qual somente se percebe num vislumbre, quase intuitivo,
o que evidencia a inteligência sagaz do narrador, procurando traduzir para
seus semelhantes fatos que não foram presenciados por ninguém. A
começar pelo nome dela: a "árvore do conhecimento do bem e do mal", que
traduz numa conotação especial o esforço e a habilidade com que impede
qualquer vinculação de Deus com a existência do mal. Coloca-a como a
fonte ("árvore") de uma experiência sensível, que passará a ser de seu
"conhecimento", a "morte". Principalmente porque ali no Paraíso o Homem
só "conhecia" o BEM, e ao fazer ingressar no mundo a "morte",
"conheceria" a diferença entre aquele bem de que gozava e o mal que
adviria da morte, agora já possível. É a figura do "conhecer" bíblico, fruto de
uma percepção sensível em si mesmo. Assim exprime que Deus não é o
autor do mal, mas apenas e tão somente do bem.
"A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e
que era, esta árvore, desejável para adquirir discernimento.
Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o a seu marido também, e ele
comeu" (Gn 3,6).
O que não se pode pretender é que com essa Queda teria havido o
rompimento de toda e qualquer relação entre Deus e o Homem, selando-se
a sorte humana no que vem nas maldições advindas:
"Iahweh Deus ... os vestiu", como a indicar que não modificara seus
planos para a sua criatura predileta, e assim agasalhados e protegidos pelo
próprio Deus, são reconduzidos ao antigo consórcio de tarefas, agora num
mundo cheio do mal que nele semearam:
7. O SÁBADO
Deus nada criou sem motivo e sem meta a atingir, muito menos para
destruir. Daí porque Deus santificou o sétimo dia, qual seja, num sentido
bíblico, "separou", distinguiu. Aparece então com toda a clareza a
irreversibilidade e inexorabilidade da criação:
8. O PROTOEVANGELHO
Alguns outros trechos (Is 25,12c; 26,5s; Sl 91/90,13 etc.) distintos mostram
que aí se encontra bem caracterizada a condição de ser a serpente uma
contumaz e conhecida inimiga de Deus, destacan-do-se:
“Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-
los, mas dar-lhes pleno cumprimento...” (Mt 5,17).
Deus não destruiu o jardim, nem alterou seu desígnio de que o Homem o
habite, e na qualidade de Autor da Salvação, mantém a mesma disposição
de ânimo que teve ao criar o Jardim do Éden. E, por meio do Espírito
Santo, fecunda a “virgem que concebe e dá à luz” ao “Filho do Altíssimo”
(Lc 1,32), para se cumprir o seu Santo Desígnio de levar o homem à
comunhão, intimidade e familiaridade com Ele. Assim, tudo aquilo que
estava significado no Jardim de Deus está no conteúdo do Protoevangelho,
“em germe e figura”, já que na “Árvore da Vida no meio do Jardim” estavam
identificados como pertinen-tes indestacáveis à Obra da Criação tanto a
Encarnação do Verbo, de que é essência, como o meio para a humanação
do Filho, Maria, desde então preservada em plenitude como a mãe do
verbo feito carne, naturalmente adequada a tal missão com todos os dons.
Deus não é um ser criado que esteja sujeito à ação de outrem, fruto de
movimento e condicio-namento a um futuro desconhecido ou incerto e
dependente do acaso. Seus desígnios se cumprem inexoravelmente. A
Criação é um fato irreversível e não seria um ato humano que perturbaria
qualquer pretensão divina, por mínima que fosse. É que o Homem não tem
poder nenhum suficiente para que seus atos venham a alterar ou
comprometer a vontade de Deus. Uma fragilidade assim não se coaduna
com a onipotência e a onisciência de Deus. Assim, esse Jardim de Deus, tal
como preparado para o Homem, aguardaria a redenção “na plenitude dos
tempos” (Gl 4,4) pela Encarnação do Filho. Jesus não é um remendo
improvisado por Deus em virtude de ter havido um comprometimento de
Sua Vontade pelo Pecado Original. Essa Encarnação já era dos desígnios
de Deus e seria como que o prêmio de Vida Eterna caso aceito pelo
Homem, a mesma plenitude (Jo 10,10) a que o reconduz o Messias. O
Pecado Original atingiu tão somente a Criação, mas o Plano de Deus
continua em pleno vigor. O Homem é que sofre uma transformação tal que
lhe retarda e condiciona o gozo da Vida Eterna.
Quando fora escrita esta narrativa transferiu-se para o início dos tempos a
necessidade de se cumprirem todas as formalidades rituais então em uso.
Tal como com o sábado, aqui também com o sacrifício e suas normas,
observando-se facilmente algumas das regras que lhe são pertinentes,
quais sejam:
Para nós não tem nenhum sentido se estabelecer qualquer diferença entre
uma e outra das oferendas, nada as distinguindo em si. Porém, para os
antigos israelitas, Caim, o filho primogênito, deveria oferecer as primícias
do campo em sacrifício (Dt 26,2). Não o fez, enquanto Abel ofereceu “dos
primogênitos e dos mais gordos” (Ex 22,28s; Dt 15,19), cumprindo as
exigências religiosas do ritual. Por isso “Deus agradou-se de Abel e de sua
oferenda e não se agradou de Caim e de sua oferenda”. Tudo indica que a
narrativa foi adaptada ao tempo em que os israelitas haviam deixado a vida
nômade e se tornado sedentários. Por isso Caim se dedicara ao cultivo da
terra e Abel ao pastoreio (Gn 4,2). Está o narrador fazendo apologia das
exigências rituais do sacrifício, bem como narrando o desenvolvimento do
mal, até mesmo a responsabilidade do Homem por seus atos, caracte-
rizada pela expressão “e tu podes dominá-lo” (Gn 4,7).
Essa busca de segurança que a unidade reflete ainda é intuitiva e
instintivamente buscada pelo Homem, formando os grupos sociais onde se
abriga e, naquele tempo em que se registrou por escrito o acontecimento,
tomara a forma de tribos patriarcais. Por não compreender o regime social
de uma tribo de então é que parece à primeira vista que Caim não fora
castigado por Deus, pelo homicídio que praticara. Não é assim, porém; na
realidade cultural de então, recebe Caim o maior castigo a que poder-se-ia
condenar uma pessoa, excluindo-o do clã, deixando-o exposto à toda
espécie de infortúni-os, hostilidades e, entre estranhos de outras tribos ,
sem a segurança e proteção da própria, bem como de seu Deus tribal:
10.2 O DILÚVIO
Para o Homem moderno a Bíblia perdeu o crédito por causa de suas
descrições não muito verosímeis, como é o caso do Dilúvio. É
simplesmente impossível aceitar que um volume de água de chuva, caindo
durante quarenta dias, seja suficiente para cobrir toda a superfície terrestre
acima dos “mais altos montes” (Gn 7,19). Mas, para o Homem antigo não
havia tal dificuldade, eis que a sua concepção física do universo permitia-
lhe isso facilmente. Primeiro porque o mundo todo era o que ele atingia com
o seu olhar, o horizonte; e, segundo porque concebia o mundo como tendo
água em cima e em baixo do firmamento celeste, pois “romperam-se as
fontes do grande abismo e abriram-se as cataratas do céu” (Gn 7,11).
Não se perca de vista nunca que a harmonia de “toda” a Criação tem por
fonte a intimidade e familiaridade do Homem com Deus, e se manifesta na
unidade de todo o conjunto. Daí por que, pensando nas conseqüências do
Pecado Original e localizando num passado ainda lembrado, o
acontecimento do Dilúvio, é ele apresentado como exemplo do crescimento
do mal atingindo também a sua natureza terrestre. Mostra também que todo
o gênero humano, da mesma forma, vai se corrom-pendo, associando-se
cada vez mais com o mal significado na união carnal dos descendentes de
Set com os descendentes criminosos de Caim:
“... os filhos de Deus viram de Deus viram que as filhas dos
homens eram belas e toma-ram como mulheres todas as que mais
lhes agradavam” (Gn 6,2).
Esse trecho aqui disposto faz crer que se trata de uma redução da idade
elevada dos Patriarcas, relatada quando da genealogia de Adão (Gn 5),
onde atingiam até mesmo quase mil anos. Não é bem assim, porém, já que
de Noé, o principal protagonista do Dilúvio, se diz, após essa aparente
restrição, que viveu trezentos e cinqüenta anos (Gn 9,28). Também Abraão,
Isaac e Jacó tiveram respectiva-mente cento e setenta e cinco (Gn 25,7),
cento e oitenta (Gn 35,28-29) e cento e quarenta e sete anos (Gn 47,28),
idades maiores que a limitação aparente aqui imposta. Essa maneira
incomum de relatar idades é para nós muito misteriosa, e não se encontra
uma explicação satisfatória se bem que o sentido religioso dos números é
muito usado pelos antigos, a que se denominou numerologia. Na realidade
existem algumas particularidades interessantes quanto a esses números,
destacando-se:
Também:
Ora, Deus não se arrepende nunca, não é alguém que não sabe o que faz.
Não se pode deduzir daí que o narrador esteja se referindo a uma surpresa
ocasionada em Deus, a ponto de se lhe exigir uma providência séria. O que
o narrador manifesta é que Deus, tal como no Jardim do Éden, não se
identifica ao pecado, nem à corrupção geral que se alastrava cada vez
mais:
“Deus não é homem, para que minta, nem filho de Adão para que
se arrependa. Por acaso ele diz e não o faz, fala e não realiza?”
(Nm 23,19).
Não se tratava de uma destruição total da Criação, eis que tivesse Deus
essa intenção, ficaria sem sentido a Arca onde entraram Noé, “teus filhos,
tua mulher e as mulheres de teus filhos” (Gn 6,18), além de “tudo o que
vive, de tudo o que é carne. ... dois de cada espécie, um macho e uma
fêmea, para os conservares em vida contigo” (Gn 6,19-21). Essa a grande
contradição aparente da narrativa que mais se agiganta quando se recolhe
“sete casais de animais puros e um de impuros” (Gn 7,2). A se considerar a
“impureza” como tal seria essa a oportunidade ideal para se acabar com os
“animais impuros”, não os salvando como se fez. Outra conclusão não pode
existir, que a narrativa tem uma conotação subjacente, outra finalidade
paralela, não se limitando apenas a demonstrar o efeito do Pecado Original
também nos desequilíbrios e cataclismos da própria natureza:
O arco da guerra entre Deus e o Homem foi deposto e para sempre passa
a escorar, com a sua parte curva, todas as comportas que mantêm no
firmamento as “águas que estão em cima” (Gn 1,6-7). O arco funcionava na
cultura de então como uma espécie de vigorosa viga semi circular que
mantinha para sempre “fechadas as comportas que contêm as águas do
firmamento” (Gn 7,11; 8,2...), passando a ser considerado como um
memorial da aliança universal ali contraída: