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O presente artigo propõe uma análise do debate sobre a influência que o en-
tendimento do papel da liberdade pode exercer sobre a organização social e política.
A proposta é partir do ponto de vista de Isaiah Berlin, em Dois conceitos de liberdade,
ensaio em que o filósofo distingue as noções de liberdade negativa e positiva, para
fazer uma defesa sob um ponto de vista empírico, perspicaz e historicamente atento
do liberalismo político. A primeira parte do texto procura explicitar a distinção entre
os conceitos de liberdade fornecidos por Berlin ; a segunda faz uma leitura da teoria
da justiça, especialmente seus princípios, buscando analisar o sentido da liberdade em
John Rawls; a terceira parte trata de algumas críticas elaboradas por Jürgen Habermas
à teoria da justiça, passando por suas ideias a respeito da democracia procedimental e
pela evolução do pensamento de Rawls, exposta em Political liberalism, sempre tendo
como referência o ensaio de Berlin. E, por fim, a última parte busca refletir sobre as
questões levantadas a partir das ideias de liberdade, democracia e liberalismo político.
Palavras-chave: Conceitos de liberdade. Democracia. Liberalismo político. Teoria
da justiça.
1 Introdução
É inquestionável a relevância de Uma teoria da justiça para o desenrolar do
debate sobre questões relacionadas à justiça, à democracia e ao liberalismo políti-
*
Artigo recebido em: 06/04/2011.
Artigo aceito em: 27/06/2011.
1
Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília – UniCeub.
Doutorando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo. Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação do UniCeub e Assessor de
Ministro do Supremo Tribunal Federal.
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co, dentre outras. Com a publicação deste trabalho, John Rawls impulsionou rele-
vante parcela da atividade acadêmica a rediscutir questões que pareciam adorme-
cidas. Artigos e livros publicados analisaram sua teoria da justiça nos mais diversos
aspectos; críticas substanciosas foram elaboradas e rendem importantes debates.
Dentre as mais destacadas está a apresentada por Habermas objeto de resposta
por parte de Rawls podendo-se dizer que proporcionou uma renovação do debate.
professores exercerem esse poder fatal, por outro, verifica que somente outros pro-
fessores ou pensadores é que poderão desarmá-los.2
Escrito em 1958, o texto não esconde sua preocupação com a guerra aberta
que estava sendo travada entre dois sistemas de ideias e expõe aquela que seria para
o autor a questão central da política: questão da obediência e da coerção. Afirma,
dessa forma, que com base nas respostas à pergunta dos limites permissíveis de
coerção, foram construídas duas importantes visões de mundo.
2
BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: ______. Estudos sobre a humanidade:
uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 227.
3
BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: ______. Estudos sobre a humanidade:
uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 228.
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fazer ou ser, sem a interferência de outras pessoas?”. E o sentido positivo restaria claro
a partir da resposta à pergunta: “O que ou quem é a fonte de controle ou interferência
capaz de determinar que alguém faça, ou seja, uma coisa em vez de outra?”.
Seguindo esse raciocínio, Berlin afirma com base em John Stuart Mill4 que
a coação poderá se justificar mesmo que para a defesa da liberdade de um só ho-
mem, ou seja, a restrição da liberdade só pode encontrar fundamento na própria
liberdade. Essa defesa consiste, portanto, na meta negativa de evitar a interferência,
a marca da alta civilização parece ser o desejo de não ser coagido. Ainda com Mill,
Berlin ainda expõe que a concepção negativa da liberdade em sua forma clássica
está no reconhecimento de que a não-interferência, que é o oposto da coerção, é
um bem em si mesmo, embora não seja o único bem.
4
MILL, John Stuart. A Liberdade. In: ______. A Liberdade; Utilitarismo. Tradução de
Eunice Ostrensky. São Paulo: M. Fontes, 2000. p. 5-174. Introdução de Isaiah Berlin.
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Berlin segue e afirma que é preciso garantir um âmbito mínimo de proteção à li-
berdade individual que represente limitação à ação dos poderes estatais, bem como dos
outros homens, de forma que a ninguém seja permitido ultrapassar certas fronteiras
de liberdade. Constata, todavia, que a democracia não está comprometida logicamente
com essa liberdade no sentido negativo e historicamente tem falhado em protegê-la.
O exercício da liberdade positiva por parte de uns pode, portanto, ser noci-
va à liberdade, no sentido negativo de outros tantos. Assim, enquanto os liberais,
adeptos da liberdade negativa, opõem-se à autoridade como tal, os partidários da
liberdade positiva a querem colocada em suas próprias mãos.8
5
As expressões em itálico foram muitas vezes criticadas por aqueles que analisaram o texto
de Berlin, todavia, optou-se por mantê-las em virtude de sua larga utilização.
6
CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Disponível em:
<http://www.fflch.usp.br/dh/heros/antigosmodernos/seculoxix/constant/liberdadeantigos.
html>. Acesso em: 20 nov. 2010.
7
As principais declarações surgiram no final do século XVIII e proclamaram a liberdade em
ambos o sentidos, por exemplo: a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (1776) e a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), ambas antecederam às respectivas
constituições pós-revolucionárias: a norte-americana é de 1787 e a francesa era de 1791.
8
BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade, In: ______. Estudos sobre a humanidade:
uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 266-67.
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A liberdade essencial para Berlin, então, é esta que só se pode garantir median-
te a ausência de qualquer tipo de coerção, não importando de onde ela possa partir.
A coerção ocorre quando as ações de uma pessoa não se destinam a servir a seus
próprios objetivos, mas aos de outrem.9 A essência da coerção é, segundo Aron acerta-
damente infere de Hayek, “[...] a ameaça de impor uma sanção a quem não se submete
a nossa vontade, de forma que a definição de coerção confirma a concepção negativa
de liberdade, que consiste na esfera de decisão e ação reservada a cada indivíduo”10.
9
HAYEK, Friedrich A. The constitution of liberty. Chicago: The University of Chicago Press,
1978. p. 133.
10
ARON, Raymond. Estudos políticos. Brasília: Universidade de Brasília, 1985. p. 226-27.
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nal, situação inicial que incorpora algumas restrições de conduta aos participantes,
tendo em mira conduzir a um acordo sobre os princípios da justiça11.
A ideia de contrato social proposta por Rawls pressupõe que se pense a so-
ciedade como um conjunto de indivíduos, os quais estariam, nessa situação inicial,
sob o véu da ignorância. Assim, desde o começo de sua teoria, ele se mostra um de-
fensor da liberdade em igualdade de circunstâncias, uma vez que o véu impede que
todos os que estão na posição inicial tenham informações detalhadas sobre a socie-
dade. Nessa situação, teriam apenas informações gerais e, portanto, saberiam que
fatalmente o passar do tempo os fariam ocupar distintas posições sociais, as quais
seriam desiguais, e que teriam capacidades e habilidades distintas e desiguais, ou
seja, saberiam da inevitável desigualdade, mas não seriam beneficiados por ela,
o que lhes garantiria a posição equitativa. Nessas circunstâncias, os participantes
dessa situação hipotética teriam de decidir quais os princípios que estruturariam a
sociedade de forma a melhor atender a seus interesses.12
11
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 12. ed. São Paulo: M. Fontes, 1997. p. 5.
12
ABREU, Luiz Eduardo de Lacerda. Qual o sentido de Rawls para nós? Revista de
Informação Legislativa. Brasília, ano 43, n. 172, p. 151, out./dez. 2006.
13
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: M. Fontes, 1997. p. 19-21.
14
ABREU, Luiz Eduardo de Lacerda. Qual o sentido de Rawls para nós? Revista de
Informação Legislativa. Brasília, ano 43, n. 172, p. 153-54, out./dez. 2006.
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RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: M. Fontes, 1997. p. 333-34.
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RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: M. Fontes, 1997. p. 251-52.
16
BELLAMY, Richard. Liberalismo e sociedade moderna. São Paulo: UNESP, 1994. p. 450.
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Aqui, mais uma vez, parece-nos que Rawls aproxima-se de Berlin. À me-
dida que reconhece o fato do pluralismo, abandona a justificação da teoria por
meio de doutrinas abrangentes e cinge-se ao político, Rawls aproxima-se muito
das posições de Berlin, que repudia a todo instante doutrinas abrangentes, resgata
experiências políticas históricas para trabalhar com dados empiricamente constru-
ídos e, desde então, percebe a força do pluralismo:
O pluralismo, com a dose de liberdade “negativa” que
acarreta, parece-me um ideal mais verdadeiro e mais
humano do que as metas daqueles que buscam nas
grandes estruturas disciplinadas e autoritárias o ideal do
autodomínio “positivo” por parte de classes, povos ou de
toda a humanidade. É mais verdadeiro, pois pelo menos
reconhece o fato de que as metas humanas são muitas, nem
todas comensuráveis, e em perpétua rivalidade umas com
as outras. 19
18
ABREU, Luiz Eduardo de Lacerda. Qual o sentido de Rawls para nós? Revista de
Informação Legislativa. Brasília, ano 43, n. 172, p. 156-58, out./dez. 2006.
19
BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: ______. Estudos sobre a humanidade:
uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 272.
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gundo Rawls, e entra no rol de assuntos disponíveis.20 Com esse reparo, Rawls faz
desaparecer o paradoxo referido acima, caracterizado pela convivência do princí-
pio de diferença com a preponderância da liberdade em sentido negativo, ou, pelo
menos, consegue mitigá-lo de maneira relevante.
É nesse sentido que Habermas afirma que Rawls não conseguiu atingir seu
objetivo de pôr as liberdades dos modernos em harmonia com as liberdades dos
antigos, visto que este dá uma forma à autonomia política que ganha existência
RAWLS, John. Political liberalism. New York: Columbia University Press, 2005. p. 227-30.
20
apenas virtual.22 Habermas critica, portanto, Rawls por não ter logrado dar uma
explicação melhor do equilíbrio reflexivo necessário à estabilidade constitucional,
ao consenso sobreposto, a partir da ideia de razoabilidade, cuja aceitação ou acei-
tabilidade (Habermas levanta a diferenciação entre os termos e aduz que Rawls não
se define sobre o tema) impõem problemas de ordem normativa.
22
HABERMAS, Jurgen. A reconciliação por meio do uso público da razão. In: ______. A
inclusão do outro: estudos de teoria política. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 67
et seq.
23
RAWLS, John. Resposta a Habermas. Educação & Sociedade, São Paulo, ano 17, n. 57
especial, p. 622-629, dez. 1996.
24
HABERMAS, Jurgen. A reconciliação por meio do uso público da razão. In: ______. A
inclusão do outro: estudos de teoria política. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 123.
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Diante desse cenário, surge Axel Honneth, que analisa a proposta de Haber-
mas em contexto de alternativas à concepção liberal de política. Contrapõe à de-
mocracia procedimental de Habermas, o Republicanismo, porém, insatisfeito com
tais alternativas resgata uma espécie de democracia como combinação de delibera-
ção racional e comunidade democrática, desenvolvida por John Dewey.26 Não é o
objetivo tratar dessa concepção de democracia, razão por que apenas se delineará
seus traços conformadores com o propósito servir de comparação às teses de Rawls
e Habermas, sob a luz de Constant e Berlin.
25
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Republicanismo e Liberalismo: da relação entre
constitucionalismo e democracia no marco das tradições do pensamento político moderno.
Disponível em: <http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/ano2_2/Republicanismo%20
e%20Liberalismo.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2010.
26
HONNETH, Axel. Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria
democrática hoje. In: SOUZA, Jessé (Org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria
democrática contemporânea. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. p. 67.
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5 Conclusão
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HONNETH, Axel. Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria
democrática hoje. In: SOUZA, Jessé (Org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria
democrática contemporânea. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. p. 89-91.
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O fato é que a partir de diversas críticas, respondidas por Rawls, por cerca
de vinte anos, em Political liberalism, o autor reformula consideravelmente seus
entendimentos, apresentando os princípios que agora circunscreveriam-se à con-
cepção do político, abandonando as doutrinas abrangentes e refundando a noção
de equilíbrio reflexivo na noção de pluralismo razoável. O reconhecimento do plu-
ralismo e a concepção de razoabilidade, no que toca à discussão de questões polí-
ticas, dão a tônica do liberalismo político do autor, que reclassifica o princípio de
diferença, excluindo-o de seus elementos constitucionais essenciais.
Abstract
This paper presents an analysis of the philosophical debate about how to
accommodate the nowadays apparently contradictory values of liberty, democracy
28
RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: M. Fontes, 2003, p. 4.
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and justice in contemporary societies, and the usefulness of the tools proposed by
the ideology of political liberalism to overcome some of the problems stemming
from those relations. The analysis departs from the classic essay on the two concepts
of liberty, by Isaiah Berlin and then moves on to the Rawls v. Habermas debate and
the different alternatives proposed by each of them to the political conundrums
referred to at the beginning of the text.
Referências
ABREU, Luiz Eduardo de Lacerda. Qual o sentido de Rawls para nós? Revista de
Informação Legislativa. Brasília, ano 43, n. 172, out./dez. 2006.
RAWLS, John. Political liberalism. New York: Columbia University Press, 2005.
RAWLS, John. Resposta a Habermas. Educação & Sociedade, São Paulo, ano 17, n.
57 especial, dez. 1996.
RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação.. São Paulo: M. Fontes,
2003.