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A Revista Cinearte e o projeto de modernização cultural pelo cinema 3
surando determinadas imagens e citando ou- fins educativos para que os brasileiros que
tras como ideais para a representação do não sabiam ler e escrever conhecessem o
Brasil na tela. Segundo Shvarzman, desde país. Em 1933, quando faleceu, a Cinearte
os anos de 1920, jovens jornalistas cariocas publicou um artigo em sua homenagem,
como Adhemar Gonzaga na revista Parato- no qual apresentou Mário Behring como o
dos e Cinearte, e Pedro Lima na revista Se- primeiro intelectual brasileiro a tratar o ci-
lecta, procuravam incentivar a produção de nema com arte e pensamento e a ter realizado
filmes nacionais e a melhoria das salas de a primeira crítica séria de cinema no Brasil.
exibição através da “Campanha pelo Cinema É descrito também como o primeiro a pugnar
Brasileiro”. Ao estimular a produção na- pelo cinema educativo no país2 .
cional, definiam também como deveriam ser Além dos editoriais de Behring, ou-
as salas de cinema e os filmes ali veiculados, tras seções da Cinearte foram dedicadas
delimitavam quais “as imagens do Brasil que à questão do uso do cinema na edu-
esses filmes deveriam veicular: moderniza- cação. Sergio Barreto Filho, em 1929,
ção, urbanização, juventude e riqueza, evi- tornou-se responsável pela seção “Cinema
tando o típico, o exótico e, sobretudo, a po- de Amadores” que anteriormente era deno-
breza e a presença de negros” (Shvarzman, minada “Um pouco de Técnica”. Nessa
2005). seção, os amadores podiam ter conheci-
Também integrante deste circuito de críti- mento da técnica cinematográfica, dos novos
cos de cinema, Mário Behring se diferen- equipamentos e trocar experiências com ou-
ciava por ser cético com relação à consoli- tros cineastas amadores. Barreto era consi-
dação do cinema nacional. Segundo Paulo derado um grande conhecedor da técnica
Emílio (1974), Behring era mais culto que cinematográfica e funcionava como uma es-
a média do público de cinema da época, mas pécie de instrutor de como fazer um filme,
como todos da sua geração, ele se interessava educava para o cinema e também fazia co-
pelos filmes de enredo estrangeiros. Entre- mentários a respeito de como os filmes
tanto irá defender o uso pedagógico do ci- poderiam servir para a educação do povo
nema nos editorias da Cinearte, quando os brasileiro de uma forma geral. Em 1931,
escreveu no lugar de Adhemar Gonzaga que ele assume também a coluna “Cinema E-
estava em viagem nos Estados Unidos, nos ducativo”, que tinha por objetivo publicar ar-
anos de 1927, 1929 e 1932. Behring já tigos de educadores ao redor do mundo, foi
tinha desenvolvido várias outras atividades, inaugurada em 30 de setembro de 1931 com
entre elas, como diretor e colaborador da re- a transcrição de algumas palavras dos edu-
vista Kosmos (1904-1909) e da revista Para cadores Jonathas Serrano e Francisco Venân-
Todos...(1919- 1924). Em 1903 passa a cio Filho a respeito do uso do cinema na e-
ser funcionário, na seção de manuscritos, ducação.
da Biblioteca Nacional e, em 1924, assume Em 1938 as colunas de Barreto Filho pas-
a direção geral da Biblioteca, tendo per- sam a ser assinadas por Jurandyr Passos
manecido neste cargo até 1932. Com relação 2
Revista Cinearte, Rio de Janeiro, v.8, n.370, 01
à produção de filmes nacionais, Behring de- de julho de 1933.
fendia a produção dos documentários com
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parte tem de ser confeccionados no país, o como parte integrante do projeto de recons-
que contribuirá certamente, como fator pre- trução do Estado. Essa elite, na qual pode-
cioso, para o desenvolvimento e progresso da mos incluir o grupo da Cinearte e os edu-
cinematografia nacional”.5 cadores da Escola Nova, não solicitou sim-
Ele e os membros da Cinearte partici- plesmente, “a mão protetora do Estado; ao
pavam da crença de que a educação re- contrário, mostrou-se disposta a auxiliá-lo na
solveria grande parte dos problemas do país construção da sociedade em bases racionais.
e, sobretudo, apostaram no auxílio do Es- Participando das funções públicas ou não,
tado para desenvolver a tão sonhada indús- manteve uma linguagem que é a do poder”
tria cinematográfica brasileira. A década de (Pecaut, p.22, 1990).
1930 assistiu à formação de uma legislação A Revista Cinearte empreendeu uma
protecionista com relação à atividade cine- longa campanha pela implementação do ci-
matográfica. Isso favoreceu a fundação de nema educativo nas escolas brasileiras e se
companhias cinematográficas, como a Brasil auto proclamava a porta-voz dessas ideias
Vita Filme de Carmem Santos e Humberto no Brasil. Nas suas páginas são feitas co-
Mauro. No entanto, a partir do Estado Novo, branças ao governo brasileiro, para desen-
com a criação dos cinejornais, o Estado foi volver ações que promovessem a produção
tomando cada vez mais para si a tarefa de de filmes pedagógicos e a circulação destes
produzir seus próprios filmes por meio dos filmes, seja pela instalação de projetores nas
organismos oficiais, tendo frustrado a ex- escolas ou pela obrigatoriedade do comple-
pectativa dos produtores nacionais que espe- mento nacional nas salas de exibição. Na
ravam se beneficiar com os filmes de propa- revista são reportadas as medidas governa-
ganda do novo governo. mentais que foram sendo realizadas, entre
O encontro entre educadores e os “homens elas: a nacionalização do serviço de censura
de cinema” nesse período estava em con- e a criação da Taxa Cinematográfica (De-
sonância com um projeto de modernização creto n.21.240 de 04/04/1932), a criação do
da sociedade brasileira pela educação. Ape- Departamento de Propaganda e Difusão Cul-
sar dos subsídios obtidos para o cinema na- tural (Decreto n.24.651 de 10/071934) e a
cional, estes homens de cinema adotaram o criação do Instituto Nacional de Cinema E-
cinema como veículo de educação, não ex- ducativo (Lei n.374 de 13/01/1937). Todas
clusivamente pelo interesse em conquistar as essas medidas são recebidas com entusiasmo
benesses do Estado, obtendo verbas públicas pelo grupo da Cinearte, entretanto, meses de-
para a produção de filmes, mas porque tam- pois de cada lei implementada, são feitas co-
bém acreditavam que, como integrantes de branças para que essas medidas fossem de
uma elite ilustrada, podiam de fato colaborar fato efetivadas.
para transformar o povo brasileiro. Segundo
Herschmann e Pereira (1994), os intelectuais
inseriram-se no Estado como elite dirigente,
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Revista Cinearte, Rio de Janeiro, v.05, n.247, p.3,
19 de novembro de 1930.
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entre educação e instrução fazia parte das nas pelos filmes instrutivos, destinados às
premissas do ideário positivista de Roquette- escolas, mas também pelos filmes “posa-
Pinto. Auguste Comte, o fundador da so- dos”. Estes, segundo ele, atingiam um maior
ciologia positivista, teve também um per- número de pessoas e atuavam de forma di-
curso como educador popular, como parte reta na emoção do público. Essa atuação
das atividades desenvolvidas na Associação na emoção ia de encontro, mais uma vez,
Politécnica para Instrução Popular, por volta aos seus preceitos positivistas, para os quais
de 1840, em Paris. Lecionava Astronomia, a educação de determinados povos em um
em cursos realizados especialmente para os patamar inferior da evolução social, ainda
operários, com a justificativa de que tal dis- pertencentes ao estágio da infância da hu-
ciplina poderia ajudá-los a compreender que manidade, seria alcançada não pela força,
o Universo tem uma ordem natural indepen- mas pelo convencimento.
dente das ações humanas, assim como a so- Esta visão mais abrangente de cinema e-
ciedade que segue também uma ordem natu- ducativo era compartilhada pela Revista Ci-
ral, sem que os indivíduos devessem causar nearte, que, ao falar de cinema educativo,
qualquer desestabilização. Nesta Associação incluía também, por exemplo, os filmes de
conheceu o Coronel Racourt, também pro- turismo e de propaganda, enfim, documen-
fessor, que tinha por objetivo não apenas ins- tários de uma forma geral e não apenas
truir, mas educar seus alunos. Educar sig- os produzidos especialmente para fins es-
nificava ir além da transmissão das “noções colares. Esses documentários eram vistos
científicas” e ensinar a distinguir entre “o como uma forma de proporcionar um co-
bom e o mau emprego das sensações”, o nhecimento geral do Brasil para os próprios
que significava dar uma educação moral para brasileiros, de educar para o trabalho, dar
que estes operários pudessem se adaptar às lições de saúde, como também de civismo.
novas condições sociais existentes (Benoit, O cinema proporcionaria dessa forma, pelo
1999, p.369). A sociedade moderna e in- filme natural, escolar, ou de propaganda,
dustrial havia criado condições de trabalho uma educação sobre o país, como o co-
diferenciadas e o povo precisava estudar as nhecimento do interior, das cidades, de suas
novas técnicas advindas do desenvolvimento belezas, de suas forças produtivas. E orien-
das idéias científicas. Os cientistas, portanto, taria socialmente em questões de higiene e
tinham um papel fundamental nesse projeto cuidados médicos, despertando ainda o sen-
de regeneração social de Auguste Comte. timento patriótico.
Roquette-Pinto, portanto, ao conceber a No Brasil, os territórios desconhecidos es-
educação popular a partir destes princípios tavam próximos geograficamente, o sertão
positivistas, acreditava que um projeto e- estava a poucos quilômetros das capitais,
ducacional abarcaria diversos outros aspec- eram regiões desconhecidas de grande parte
tos além dos conhecimentos escolares. Para da população habitadas por homens e mu-
chegar a esse fim, vários instrumentos pode- lheres que eram considerados incultos e dis-
riam ser utilizados, principalmente os meios tantes da “civilização” moderna. O sertão
de comunicação de massa. No caso do ci- era uma fonte permanente de preocupações
nema, a educação poderia se dar não ape- intelectuais e políticas; foi, antes de tudo,
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cinema nacional também tinha muito que Estado Novo. São Paulo: Annablume
aprender na visão da Cinearte. Edit./FAPESP.
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