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A Revista Cinearte e o projeto de modernização

cultural pelo cinema


Rosana Elisa Catelli∗

Índice 1 A Revista Cinearte


entre 1926 e 1942, no Rio
1 A Revista Cinearte
2 Educação e Propaganda na Cinearte
1
6 P UBLICADA
de Janeiro, Cinearte era um espaço de
troca de ideias e experiências em torno do
Referências Bibliográficas 11
cinema, expunha a posição de intelectuais,
de artistas e da crítica de cinema a respeito da
produção internacional e nacional de filmes
Resumo e sobre a necessidade de implementação de
uma indústria cinematográfica no Brasil. A
Esse artigo faz uma análise das con- Cinearte também apresentava em suas pági-
cepções de cinema e educação contidas na nas vários enfoques a respeito da relação en-
revista Cinearte, publicação brasileira, espe- tre cinema e educação: o cinema nas esco-
cializada em cinema, da primeira metade do las, o papel do cinema de “enredo” na e-
século XX. Educadores vinculados ao movi- ducação, o filme “natural” e a educação, as
mento da Escola Nova e críticos de cine- ações governamentais referentes ao cinema
ma escreveram nessa revista, sobre a ne- educativo, o cinema educativo na Europa e
cessidade de promover a educação do povo nos Estados Unidos, a educação do público
brasileiro, tendo o cinema como um dos au- de cinema, o cinema e a ciência, a educação
xiliares nesse processo. do fazer cinema1 .
Palavras-chave: Cinema brasileiro, Ci- Publicava notícias que vinham dos Es-
nearte, Crítica de cinema. tados Unidos e da Europa sobre as novi-

Formada em Ciências Sociais e Doutora em dades na produção de filmes educativos,
Multimeios pela UNICAMP. Atualmente é pós transcrevia artigos de revistas de cinema in-
doutoranda no Departamento de Cinema do Insti- ternacionais sobre o tema, assim como re-
tuto de Artes da UNICAMP. É membro de CEPECI-
1
DOC (Centro de Pesquisa em Cinema Documen- Esse artigo faz parte de uma pesquisa de
tário) da UNICAMP. rosanacatelli@gmail. doutorado realizada sobre o Instituto Nacional de Ci-
com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/ nema Educativo, no Instituto de Artes da UNICAMP.
6846043466577187. A tese foi defendida em 2007, com o título Dos “Na-
turais” ao documentário: cinema educativo e a edu-
cação do cinema, entre 1920 e 1930.
2 Rosana Elisa Catelli

produzia notícias a respeito de ações go- as seções dedicadas ao cinema brasileiro,


vernamentais que estavam sendo desenvolvi- que tiveram nomes diferenciados durante o
das a fim de se instaurar o cinema educa- período em que a revista foi publicada: “Fil-
tivo no Brasil. Relatava ainda as ativi- magem Brasileira”, “Cinema Brasileiro”,
dades das comissões oficiais que se for- “Cinema do Brasil”. Nessas colunas são
maram para analisar o uso do cinema nas publicadas matérias sobre estrelas do cinema
escolas. Os educadores brasileiros perten- nacional, sobre os filmes que estão sendo
centes ao movimento da Escola Nova, que produzidos, entrevistas com diretores e téc-
defendiam a produção de filmes educativos, nicos, artigos sobre a política estatal para
também são notícia nas suas páginas, prin- o cinema brasileiro e sobre a problemática
cipalmente, as declarações dos professores da indústria cinematográfica nacional (Lu-
Francisco Venâncio Filho e Jonathas Serrano cas, 2005).
(ver Lucas, 2005). A revista Cinearte teve como editores, ini-
Nas primeiras décadas do século XX sur- cialmente, Adhemar Gonzaga (1901–1978)
giram várias revistas sobre cinema, publi- e Mário Berhing (1876-1933). Adhemar
cadas no Rio de Janeiro, entre elas: A Fita Gonzaga havia sido crítico de cinema nas
(1913), Revista dos Cinemas (1917), Pal- revistas Palcos e Telas (1920) e Para to-
cos e Telas (1918), Cine Revista (1919), dos... (1922-1924), defensor da produção de
Paratodos (1919), A Tela e Artes e Artis- filmes “posados” empreendeu diversas cam-
tas (1920), Telas e Ribaltas e Scena Muda panhas em prol do cinema nacional, viajou
(1921) e Foto-Film (1922). Essas revistas várias vezes para os Estados Unidos (1927,
desempenharam um papel importante na di- 1929, 1932, 1935, 1956 e 1975), a fim de
fusão das ideias sobre cinema, no contato en- entender como funcionava a estrutura cine-
tre técnicos e produtores, na divulgação dos matográfica de Hollywood; foi diretor de
filmes para o público e nas ações em geral vários filmes e fundou, em 1930, a empresa
de estímulo à produção cinematográfica na- cinematográfica Cinédia. Produziu cinejor-
cional. Até os anos de 1920, na produção nais, filmes de curta e longa metragem e di-
de filmes no Brasil predominavam os do- rigiu filmes como: Barro Humano (1929) e
cumentários, chamados de “naturais” ou de Alô, Alô, Carnaval (1935) (Ramos & Mi-
“cavação”, que se caracterizavam por apre- randa, 2000). Como ele mesmo afirmou
sentarem cenas de fazendas, da natureza, ou nas suas memórias, seu objetivo com a re-
serem encomendas de governantes locais. vista Cinearte era “formar mentalidades ci-
A partir de 1930 a revista Cinearte ganha nematográficas”. Formar o público, dire-
importância devido ao sucesso de seus tores e técnicos de filmes do cinema na-
primeiros números, que além das resenhas cional e promover a indústria cinematográ-
de filmes e comentários sobre as produções, fica, sobretudo para a confecção dos filmes
continha um caráter combativo na questão de “enredo”.
da consolidação de um cinema nacional e Esses primeiros críticos de cinema no
na defesa da produção de filmes de “enredo” Brasil atuaram como fomentadores da pro-
realizados em estúdios brasileiros. São per- dução nacional e como idealizadores de
manentes, nos dezesseis anos da revista, uma “estética” para o cinema nacional, cen-

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surando determinadas imagens e citando ou- fins educativos para que os brasileiros que
tras como ideais para a representação do não sabiam ler e escrever conhecessem o
Brasil na tela. Segundo Shvarzman, desde país. Em 1933, quando faleceu, a Cinearte
os anos de 1920, jovens jornalistas cariocas publicou um artigo em sua homenagem,
como Adhemar Gonzaga na revista Parato- no qual apresentou Mário Behring como o
dos e Cinearte, e Pedro Lima na revista Se- primeiro intelectual brasileiro a tratar o ci-
lecta, procuravam incentivar a produção de nema com arte e pensamento e a ter realizado
filmes nacionais e a melhoria das salas de a primeira crítica séria de cinema no Brasil.
exibição através da “Campanha pelo Cinema É descrito também como o primeiro a pugnar
Brasileiro”. Ao estimular a produção na- pelo cinema educativo no país2 .
cional, definiam também como deveriam ser Além dos editoriais de Behring, ou-
as salas de cinema e os filmes ali veiculados, tras seções da Cinearte foram dedicadas
delimitavam quais “as imagens do Brasil que à questão do uso do cinema na edu-
esses filmes deveriam veicular: moderniza- cação. Sergio Barreto Filho, em 1929,
ção, urbanização, juventude e riqueza, evi- tornou-se responsável pela seção “Cinema
tando o típico, o exótico e, sobretudo, a po- de Amadores” que anteriormente era deno-
breza e a presença de negros” (Shvarzman, minada “Um pouco de Técnica”. Nessa
2005). seção, os amadores podiam ter conheci-
Também integrante deste circuito de críti- mento da técnica cinematográfica, dos novos
cos de cinema, Mário Behring se diferen- equipamentos e trocar experiências com ou-
ciava por ser cético com relação à consoli- tros cineastas amadores. Barreto era consi-
dação do cinema nacional. Segundo Paulo derado um grande conhecedor da técnica
Emílio (1974), Behring era mais culto que cinematográfica e funcionava como uma es-
a média do público de cinema da época, mas pécie de instrutor de como fazer um filme,
como todos da sua geração, ele se interessava educava para o cinema e também fazia co-
pelos filmes de enredo estrangeiros. Entre- mentários a respeito de como os filmes
tanto irá defender o uso pedagógico do ci- poderiam servir para a educação do povo
nema nos editorias da Cinearte, quando os brasileiro de uma forma geral. Em 1931,
escreveu no lugar de Adhemar Gonzaga que ele assume também a coluna “Cinema E-
estava em viagem nos Estados Unidos, nos ducativo”, que tinha por objetivo publicar ar-
anos de 1927, 1929 e 1932. Behring já tigos de educadores ao redor do mundo, foi
tinha desenvolvido várias outras atividades, inaugurada em 30 de setembro de 1931 com
entre elas, como diretor e colaborador da re- a transcrição de algumas palavras dos edu-
vista Kosmos (1904-1909) e da revista Para cadores Jonathas Serrano e Francisco Venân-
Todos...(1919- 1924). Em 1903 passa a cio Filho a respeito do uso do cinema na e-
ser funcionário, na seção de manuscritos, ducação.
da Biblioteca Nacional e, em 1924, assume Em 1938 as colunas de Barreto Filho pas-
a direção geral da Biblioteca, tendo per- sam a ser assinadas por Jurandyr Passos
manecido neste cargo até 1932. Com relação 2
Revista Cinearte, Rio de Janeiro, v.8, n.370, 01
à produção de filmes nacionais, Behring de- de julho de 1933.
fendia a produção dos documentários com

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4 Rosana Elisa Catelli

Noronha. Ele inaugura sua participação em como colaborador de outros jor-


“Cinema Educativo”, em 1 de fevereiro de nais e revistas, durante cerca de
1938, com a citação de um jornalista da re- cinco anos. Formado em Direito,
vista Panorama: “não é de meu objetivo es- abandonou a imprensa e, como
tudar se o filme é de fato um meio edu- promotor público encafurnou-se,
cativo; considero esta pergunta resolvida e pelo interior do Estado de São
suficientemente demonstrada3 ”. Prossegue Paulo.
seu texto descrevendo as funções e as ações Deste então, nunca mais as seções
do Instituto Nacional de Cinema Educa- dos diários ouviram falar dele.
tivo (INCE), órgão para o qual trabalhou Agora, porém, como já noti-
na década de 1940, como chefe da seção ciamos, seu nome surge num
de adaptação do Serviço de Técnica Cine- cabeçalho de um livro, “Cinema
matográfica. No INCE dirigiu também al- contra Cinema”, que ele qualifica
guns filmes educativos como A doença de de um esboço do cinema educativo
Chagas (1948), A medida do Tempo (1964), no Brasil4 .
O monumento (1965) e Uma alegria Sel-
vagem (1966) (Ramos & Miranda, 2000). A partir de 1930, os produtores nacionais
Entre 1927 e 1930, Joaquim Canuto aliam-se ao governo Vargas com a espe-
Mendes de Almeida será um dos articulis- rança de que o Estado viesse a dar mais
tas da Cinearte. Em 1931, já estava afas- subsídios ao cinema nacional. De fato, as
tado das atividades do jornalismo e do ci- primeiras medidas do governo iriam ben-
nema. O número de dezembro da revista faz eficiar os produtores pela diminuição das
uma matéria sobre o livro de Canuto, “Ci- tarifas alfandegárias sobre a importação de
nema contra Cinema: bases gerais para um filmes. A contrapartida deveria ser a parti-
esboço de organização do cinema educativo cipação da produção nacional de filmes no
no Brasil”, de 1931 e apresenta o autor da aprimoramento educacional e moral do povo
seguinte forma: brasileiro (Almeida, 1999). Ademar Gon-
zaga, sempre atuante nas lutas pela cine-
Joaquim Canuto Mendes de matografia nacional, será um dos membros
Almeida, afastou-se, há tempos, da Revista Cinearte a atuar diretamente em
das lidas do cinema. Escritor de algumas comissões estatais.
umas tantas fitas, dirigiu, também, Quando Francisco Campos é nomeado
“Fogo de Palha”, do Cine-Clube, para a pasta de Instrução Pública, em 1930, a
e foi com os seus pontos de vista, revista Cinearte manifesta o seu apoio, com
um infatigável batalhador em a crença de que a partir daquele momento
prol do cinema brasileiro como ir-se-ia cuidar a sério do problema educa-
cronista do “Diário da Noite” cional do país e da produção cinematográ-
e do “Diário de São Paulo” e fica. Cinearte acreditava que iria “multi-
3 plicar os filmes pedagógicos que em grande
Revista Cinearte, Rio de Janeiro, v.13, n.480,
p.12, 50, 01 de fevereiro de 1938. 4
Revista Cinerte, Rio de Janeiro, v.6, n.305, p.10,
30 de dezembro de 1931.

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parte tem de ser confeccionados no país, o como parte integrante do projeto de recons-
que contribuirá certamente, como fator pre- trução do Estado. Essa elite, na qual pode-
cioso, para o desenvolvimento e progresso da mos incluir o grupo da Cinearte e os edu-
cinematografia nacional”.5 cadores da Escola Nova, não solicitou sim-
Ele e os membros da Cinearte partici- plesmente, “a mão protetora do Estado; ao
pavam da crença de que a educação re- contrário, mostrou-se disposta a auxiliá-lo na
solveria grande parte dos problemas do país construção da sociedade em bases racionais.
e, sobretudo, apostaram no auxílio do Es- Participando das funções públicas ou não,
tado para desenvolver a tão sonhada indús- manteve uma linguagem que é a do poder”
tria cinematográfica brasileira. A década de (Pecaut, p.22, 1990).
1930 assistiu à formação de uma legislação A Revista Cinearte empreendeu uma
protecionista com relação à atividade cine- longa campanha pela implementação do ci-
matográfica. Isso favoreceu a fundação de nema educativo nas escolas brasileiras e se
companhias cinematográficas, como a Brasil auto proclamava a porta-voz dessas ideias
Vita Filme de Carmem Santos e Humberto no Brasil. Nas suas páginas são feitas co-
Mauro. No entanto, a partir do Estado Novo, branças ao governo brasileiro, para desen-
com a criação dos cinejornais, o Estado foi volver ações que promovessem a produção
tomando cada vez mais para si a tarefa de de filmes pedagógicos e a circulação destes
produzir seus próprios filmes por meio dos filmes, seja pela instalação de projetores nas
organismos oficiais, tendo frustrado a ex- escolas ou pela obrigatoriedade do comple-
pectativa dos produtores nacionais que espe- mento nacional nas salas de exibição. Na
ravam se beneficiar com os filmes de propa- revista são reportadas as medidas governa-
ganda do novo governo. mentais que foram sendo realizadas, entre
O encontro entre educadores e os “homens elas: a nacionalização do serviço de censura
de cinema” nesse período estava em con- e a criação da Taxa Cinematográfica (De-
sonância com um projeto de modernização creto n.21.240 de 04/04/1932), a criação do
da sociedade brasileira pela educação. Ape- Departamento de Propaganda e Difusão Cul-
sar dos subsídios obtidos para o cinema na- tural (Decreto n.24.651 de 10/071934) e a
cional, estes homens de cinema adotaram o criação do Instituto Nacional de Cinema E-
cinema como veículo de educação, não ex- ducativo (Lei n.374 de 13/01/1937). Todas
clusivamente pelo interesse em conquistar as essas medidas são recebidas com entusiasmo
benesses do Estado, obtendo verbas públicas pelo grupo da Cinearte, entretanto, meses de-
para a produção de filmes, mas porque tam- pois de cada lei implementada, são feitas co-
bém acreditavam que, como integrantes de branças para que essas medidas fossem de
uma elite ilustrada, podiam de fato colaborar fato efetivadas.
para transformar o povo brasileiro. Segundo
Herschmann e Pereira (1994), os intelectuais
inseriram-se no Estado como elite dirigente,
5
Revista Cinearte, Rio de Janeiro, v.05, n.247, p.3,
19 de novembro de 1930.

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6 Rosana Elisa Catelli

2 Educação e Propaganda na brasileira. Nas páginas da Cinearte, a edu-


Cinearte cação aparece como o meio mais eficaz de
fazer o Brasil se mover para frente, de al-
Carmem Santos, atriz e cineasta, e Adhemar cançar o progresso, eliminar o atraso. Seria
Gonzaga serão autores de vários artigos pu- também a fórmula capaz de criar cidadãos,
blicados na imprensa do período, afirmando capazes de participar da vida política, já
a capacidade do cinema para educar a popu- que os problemas políticos não poderiam ser
lação brasileira. Carmem Santos, em artigo solucionados com eleitores analfabetos. O
publicado em A Cena Muda, de 1 de março cinema era visto como um grande propa-
de 1932, afirma que gador de conhecimentos, que poderia levar
para longas distâncias a palavra de especia-
O cinema é o livro do futuro. listas, seria o veículo de lições ambulantes,
Ganha-se mais vendo um filme com a vantagem de levar a imagem e não
do que lendo uma biblioteca. E apenas a palavra.
nem todos têm tempo para ler. E A educação parecia ser a única saída para
as bibliotecas não só estão fora livrar a população brasileira da miséria e
do alcance fácil do povo como da ignorância em que se encontrava grande
a aquisição de livros se torna parte do país. O esforço da Cinearte será o
proibitiva às classes pobres. Com de mostrar como o cinema nacional pode-
dez tostões pode uma criatura, ria ser o grande aliado nessa empreitada.
que se deseje instruir, ver dois E aí, a relação entre educação e cinema
a três filmes educativos sobre as- aparece de forma ampla, não apenas nos
suntos diversos (...) Os intelec- filmes educativos destinados aos bancos es-
tuais brasileiros precisam conhecer colares. Cinema de enredo, filmes naturais,
a linguagem cinematográfica e es- filmes instrutivos, filmes educativos, cine-
crever cinema para o povo6 . jornais, filmes científicos, filmes de propa-
ganda, enfim, todas as modalidades de ci-
Mas o que vinha a ser educação para nema serviriam ao propósito maior da edu-
Cinearte? O que pensavam esses “homens cação. Quando Cinearte refere-se ao cinema
de cinema” a respeito da educação? Por educativo está concebendo um cinema capaz
que cinema e educação? Como o cinema de educar o povo brasileiro, mas não apenas
poderia contribuir para a educação do povo por filmes produzidos com fins escolares, os
brasileiro? Em consonância com o diag- chamados filmes “instrutivos”, mas também
nóstico que educadores e políticos faziam pelos chamados filmes populares, de caráter
da realidade nacional do período, a Re- educativo, que seriam veiculados nas salas
vista Cinearte apontava o cinema como a comerciais de cinema.
grande arma contra o analfabetismo, os pro- Em 1932, A Cinearte publica uma matéria
blemas de higiene e ignorância da população a respeito do primeiro relatório dos traba-
6
A Scena Muda, Rio de Janeiro, v.11, n.571, p.8- lhos da Comissão de Censura Cinematográ-
9, 32, 01 de março de 1932. fica, criada pelo Decreto 21.240 de 1932.
Nesta matéria ressalta-se o grande número

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de filmes de caráter educativo que passaram certa confusão entre Cinema E-


pelos censores. Esta comissão analisou 309 ducativo e Cinema Instrutivo. É
filmes nesse primeiro relatório, sendo 84 dra- certo que os dois andam sempre
mas, 40 comédias, 54 jornais, 43 filmes edu- juntos e muitas vezes é difícil ou
cativos, 8 filmes naturais, 11 filmes em série, impossível dizer onde acaba um
53 desenhos animados, 15 shorts e revistas, e começa outro, distinção que a-
2 traillers. O autor da matéria ressalta que, liás não tem de fato grande im-
do total de filmes, alguns foram deslocados portância na maioria das vezes.
para a categoria de filmes educativos, como No entanto, é curioso notar que
alguns jornais e um drama. Ainda aponta que o chamado Cinema Educativo em
dos 43 filmes educativos, 2 eram alemães, 1 geral, não passa de simples Ci-
francês e os outros todos norte-americanos7 . nema de Instrução. Por que o ver-
Estas informações contribuem para perce- dadeiro educativo é outro, o grande
bermos as tentativas de definir o que viria cinema de espetáculo, o cinema
a ser o filme educativo e os deslocamentos de vida integral. São pois muito
de determinados gêneros para essa catego- grandes as responsabilidades do
ria. Provavelmente a maioria dos 43 filmes cinema, de grande de espetáculo.
apontados como educativos eram constituí- (...)
dos de documentários de caráter mais esco- Arquivando e divulgando como
lar, filmes de divulgação de conhecimentos nenhuma outra arte o que há de
sociais e das ciências naturais. Mas os outros bom e de mau, tem uma função
gêneros não eram descartados como filmes dinâmica de constante agitador de
que poderiam servir à educação. Sendo almas, influindo diretamente nas
assim, o filme “posado”, definido como o decisões dos fracos e sugestio-
gênero “drama”, poderia também estar a nando os fortes8 .
serviço da educação, como defendiam vários
integrantes do cinema educativo, inclusive Para Roquette-Pinto, o conceito de e-
Roquette-Pinto que foi fundador do Instituto ducação incluía a ideia de orientação so-
Nacional de Cinema Educativo. cial, o que seria mais amplo do que a ins-
Em 1944, o cineasta mineiro Humberto trução, que significava, para ele, simples-
Mauro, na sua coluna “Figuras e Gestos” da mente a transmissão de conhecimentos ou
Revista Cena Muda, responde à pergunta so- informação. Não era apenas de conheci-
bre a diferença entre o Cinema Instrutivo e o mento que a população brasileira necessi-
Cinema Educativo utilizando as palavras de tava. O povo brasileiro precisava de algo
Roquette-Pinto sobre a questão: mais do que instrução, urgia ser orientado
em termos sociais, higiênicos, médicos e
Não é raro encontrar, mesmo no morais. Poderia haver muitos instruídos,
conceito de pessoas esclarecidas, mas estes, contudo eram “deseducados” so-
7
cialmente (Ribas, 1999). Esta diferenciação
Revista Cinearte, Rio de Janeiro, v.7, n.346, 12
8
de outubro de 1932. A Scena Muda, Rio de Janeiro, v.24, n.15, p.30,
11 de abril de 1944.

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8 Rosana Elisa Catelli

entre educação e instrução fazia parte das nas pelos filmes instrutivos, destinados às
premissas do ideário positivista de Roquette- escolas, mas também pelos filmes “posa-
Pinto. Auguste Comte, o fundador da so- dos”. Estes, segundo ele, atingiam um maior
ciologia positivista, teve também um per- número de pessoas e atuavam de forma di-
curso como educador popular, como parte reta na emoção do público. Essa atuação
das atividades desenvolvidas na Associação na emoção ia de encontro, mais uma vez,
Politécnica para Instrução Popular, por volta aos seus preceitos positivistas, para os quais
de 1840, em Paris. Lecionava Astronomia, a educação de determinados povos em um
em cursos realizados especialmente para os patamar inferior da evolução social, ainda
operários, com a justificativa de que tal dis- pertencentes ao estágio da infância da hu-
ciplina poderia ajudá-los a compreender que manidade, seria alcançada não pela força,
o Universo tem uma ordem natural indepen- mas pelo convencimento.
dente das ações humanas, assim como a so- Esta visão mais abrangente de cinema e-
ciedade que segue também uma ordem natu- ducativo era compartilhada pela Revista Ci-
ral, sem que os indivíduos devessem causar nearte, que, ao falar de cinema educativo,
qualquer desestabilização. Nesta Associação incluía também, por exemplo, os filmes de
conheceu o Coronel Racourt, também pro- turismo e de propaganda, enfim, documen-
fessor, que tinha por objetivo não apenas ins- tários de uma forma geral e não apenas
truir, mas educar seus alunos. Educar sig- os produzidos especialmente para fins es-
nificava ir além da transmissão das “noções colares. Esses documentários eram vistos
científicas” e ensinar a distinguir entre “o como uma forma de proporcionar um co-
bom e o mau emprego das sensações”, o nhecimento geral do Brasil para os próprios
que significava dar uma educação moral para brasileiros, de educar para o trabalho, dar
que estes operários pudessem se adaptar às lições de saúde, como também de civismo.
novas condições sociais existentes (Benoit, O cinema proporcionaria dessa forma, pelo
1999, p.369). A sociedade moderna e in- filme natural, escolar, ou de propaganda,
dustrial havia criado condições de trabalho uma educação sobre o país, como o co-
diferenciadas e o povo precisava estudar as nhecimento do interior, das cidades, de suas
novas técnicas advindas do desenvolvimento belezas, de suas forças produtivas. E orien-
das idéias científicas. Os cientistas, portanto, taria socialmente em questões de higiene e
tinham um papel fundamental nesse projeto cuidados médicos, despertando ainda o sen-
de regeneração social de Auguste Comte. timento patriótico.
Roquette-Pinto, portanto, ao conceber a No Brasil, os territórios desconhecidos es-
educação popular a partir destes princípios tavam próximos geograficamente, o sertão
positivistas, acreditava que um projeto e- estava a poucos quilômetros das capitais,
ducacional abarcaria diversos outros aspec- eram regiões desconhecidas de grande parte
tos além dos conhecimentos escolares. Para da população habitadas por homens e mu-
chegar a esse fim, vários instrumentos pode- lheres que eram considerados incultos e dis-
riam ser utilizados, principalmente os meios tantes da “civilização” moderna. O sertão
de comunicação de massa. No caso do ci- era uma fonte permanente de preocupações
nema, a educação poderia se dar não ape- intelectuais e políticas; foi, antes de tudo,

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“imagem fabricada, invenção dos homens quenas personagens de interesse


cultos que, das varandas costeiras, olhavam ainda menor, mas a reprodução de
para o interior” (Peixoto, 1999). O cinema grandiosos trechos naturais de as-
nacional tinha, como nenhum outro meio, a pectos das nossas maiores cidades
capacidade de produzir as imagens do inte- do flagrante do nosso progresso
rior do Brasil. Adquiriu esta missão e a de agrário e industrial, habilmente in-
civilizar seu próprio país, já que as imagens cluídos, num enredo empolgante,
poderiam também educar a população inte- que focalize com inteligência o
riorana carente de ensinamentos de higiene, meio nacional e o caráter do nosso
saúde, técnicas de trabalho, etc. povo9 .
Os filmes tinham, então, a missão de fazer
circular determinadas imagens do país, a O cinema poderia então apresentar para
fim de promover uma unidade, modernizar aqueles que viviam nas grandes cidades o
e divulgar as diferentes porções do território próprio país, ensinando ao público citadino
nacional, considerado descontínuo, partido a verdadeira realidade nacional, já que o
e heterogêneo cultural e socialmente. O sertão também era visto como o local da
Brasil precisava de publicidade, não apenas genuína brasilidade, onde estariam os origi-
a publicidade para o exterior, mas principal- nais habitantes da nação. A coluna Cinema
mente para os próprios brasileiros. Como Brasileiro da Revista Cinearte cita um artigo
afirmou Ismail Xavier (1978), a Revista Ci- publicado no Jornal do Comércio, do Rio,
nearte tinha orgulho de sua competência de Victor Vianna, autor de análises sobre o
publicitária e acreditava na potencialidade espaço rural brasileiro na década de 1920, a
desse tipo de divulgação. Por este meio, os respeito dos complementos cinematográficos
brasileiros podiam ser convencidos de sua nacionais:
unidade social e cultural, ou seja, podiam re-
conhecer como pertencentes a uma nação. O As companhias cinematográficas
cinema poderia cultivar um determinado o- nacionais estão prestando um ex-
lhar para o Brasil, selecionando as melhores celente serviço, reproduzindo ce-
imagens, que melhor representassem uma nas do interior do país. O público
sociedade moderna e civilizada. Daí a im- elegante das grandes cidades não
portância da propaganda do Brasil, para den- compreende às vezes o valor dessa
tro e para fora do país, bastante enfatizada documentação. O preparo da fari-
nas páginas da Revista Cinearte, nha, a extração de babassú, a co-
lheita de algodão e outras cenas
Não há, atualmente, propaganda do trabalho indígena mostram na
mais hábil, eficaz, incisiva e deci- nitidez do screen, que a vida dos
siva que a feita pelo filme em mi- bravos patrícios que se entregam
lhares de salas de exibição. Não, a estes misteres é, sob o ponto
naturalmente, o reclame forçado e 9
Revista Cinearte. Rio de Janeiro, v.4, n.149, p.38,
insípido de pequenos fatos de in- 2 de janeiro de 1929.
teresse muito particular e de pe-

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10 Rosana Elisa Catelli

de vista sociológico, incontestavel- por territórios ainda isolados. Esses inventos


mente colonial. transformaram a ciência e o progresso téc-
Nos Salões elegantes dos cine- nico em sinônimos de civilização moderna.
mas caros, ostenta-se a diferença. No Brasil esses aparatos técnicos foram vis-
Homens e senhoras de vestimentas tos como solução para “civilizar” o interior
caras, lavados e perfumados, con- do país ou o sertão como eram chamados
templam na tela os andrajos dos estes territórios ainda pouco desbravados,
patrícios que são a força produtora considerados “atrasados” material e cultural-
intrínseca da nossa nacionalidade mente. “A República parecia ter pressa em
(...)10 . transportar o pensamento de seus cidadãos
de um lado a outro do seu território, colo-
O autor descreve o público elegante que cando em comunicação estados-irmãos que,
frequentava os cinemas e que desconhecia até então, tinham ficado à parte da nação
a vida dos trabalhadores rurais brasileiros, brasileira em função da distância e, também,
parte da força produtiva da nação. O ci- do “atraso” técnico que os separava” (Ma-
nema revelava, então, o contraste entre os ciel, 1998, p.53).
dois mundos: o do trabalhador rural repre- A inserção do povo brasileiro num novo
sentado na tela e o público dos salões da ca- patamar cultural garantia não apenas uma
pital. Estes intelectuais, cineastas e jornalis- mudança social, mas, sobretudo, a formação
tas, que escreviam nas páginas da revista Ci- de um público de cinema, de novas menta-
nearte, perceberam a importância do cinema lidades aptas a linguagem cinematográfica.
como sustentação simbólica para um projeto A educação no cinema podia então fomentar
de modernização da sociedade brasileira que o próprio cinema. Por um lado, a nova
passava pela educação das massas. Como tecnologia das imagens em movimento era
afirma Schvarzman, nos anos de 1920, o ci- agente desse processo educacional e quando
nema é concebido “como um artifício, uma vista sob essa ótica, vários adjetivos podiam
‘arma’ moderna, portadora e transmissora da ser acrescentados à palavra cinema, que en-
modernidade” (Schvarzman, 2004, p.18). fatizavam o seu potencial de transformação
O século XIX foi o século das grandes social: “cinema-utilidade, cinema-benfeitor,
descobertas, dos inventos técnicos e da mo- cinema-transformador, cinema-progresso,
derna engenharia. Invenções como o au- cinema-civilização, cinema-cultura”.11 Mas,
tomóvel de Daimler e Benz, o telefone de por outro lado, o cinema também devia
Graham Bell e Gray, a telegrafia de Branly e passar por um processo de educação, o
o cinematógrafo de Lumière garantiram para “mau” cinema devia se transformar em
o século XX maior velocidade, diminuição “bom” cinema, o cinema nacional tinha que
das distâncias e a valorização da imagem aperfeiçoar sua técnica, o cinema de enredo
visual. Grandes inventos estavam concen- precisava de melhores roteiros, necessitava
trados na área de comunicação que permi- de uma melhor escolha dos temas, enfim, o
tiam a passagem dos fluxos de informação
11
Revista Cinearte, Rio de Janeiro, v.7, n.308, p.3,
10
Revista Cinearte, Rio de Janeiro, v.10, n.427, 20 de junho de 1932.
p.21-22, 15 de novembro de 1935.

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A Revista Cinearte e o projeto de modernização cultural pelo cinema 11

cinema nacional também tinha muito que Estado Novo. São Paulo: Annablume
aprender na visão da Cinearte. Edit./FAPESP.

Ora, o ponto de vista de “Cinearte” Benoit, L. (2006). Augusto Comte: fundador


em matéria de instrução prende-se da física social. São Paulo: Moderna.
ao desenvolvimento entre nós da
Catelli, R. (2007). Dos “Naturais” ao do-
cinematografia.
cumentários: cinema educativo e a e-
Nós queremos fazer ressaltar a ducação do cinema, entre 1920 e 1930.
importância do filme como auxi- Campinas: Tese de Doutorado, UNI-
liar pedagógico e, promovendo a CAMP.
sua adoção ativar a realização no
Brasil de um novo ramo da indús- Herschmann, M. & Pereira, C. (orgs.)
tria cinematográfica que será por- (1994). A invenção do Brasil moderno:
ventura, tais as circunstâncias, de- medicina, educação e engenharia nos
senvolvimento de fulminante rapi- anos de 1920 – 1930. Rio de Janeiro:
dez.12 Rocco.

Sendo assim, a educação que aparece na Lucas, T. (2005). Cinearte: o cine-


Cinearte refere-se também ao próprio ci- ma brasileiro em revista (1926-1942).
nema, ensinar a linguagem cinematográfica, Niterói: Dissertação de mestrado, Uni-
a utilização dos equipamentos, o recorte das versidade Federal Fluminense.
cenas e educar o gosto do público para o Pécaut, D. (1990). Os intelectuais e a
“bom” cinema. política no Brasil: entre o povo e a
Comparado aos outros meios de comu- nação. São Paulo: Ed. Ática.
nicação, o cinema nas páginas da Cinearte
justificava-se como veículo de educação Peixoto, F. (1999). Resenha: A pátria geo-
por sua maior capacidade de abrangência gráfica: sertão e litoral no pensamento
e entretenimento. Ele aparece como mais social brasileiro. Rio de Janeiro: Mana,
poderoso que os livros, já que grande parte v.5, n.1, abril.
da população era analfabeta e não tinha
acesso à cultura letrada, era mais convin- Maciel, L. (1998) A nação por um fio: cami-
cente que o rádio, pois podia proporcionar nhos, práticas e imagens da “Comissão
também a educação do olhar. Rondon”. São Paulo: EDUC.

Ramos, F. & Miranda, L. (orgs.) (2000). En-


Referências Bibliográficas ciclopédia do cinema brasileiro. São
Paulo: Ed. SENAC SP.
Almeida, C. (1999a). O cinema como “agi-
tador de almas”: Argila, uma cena do Roquette–Pinto, E. (1938). “Cinema
12 Educativo”. Conferência realizada
Revista Cinearte, Rio de Janeiro, v.6, n.296, p.3,
28 de outubro de 1931. no Instituto de Estudos Brasileiros,

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12 Rosana Elisa Catelli

27/7/1938, Separata da Revista Estudos


Brasileiros, n.1, julho-agosto, p.14.

Schvarzman, S. (2004). Humberto Mauro e


as imagens do Brasil. São Paulo: Edi-
tora da UNESP.

Xavier, I. (1978). Sétima arte, um culto mo-


derno. São Paulo: Ed. Perspectiva.

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