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Io.

Encontro de Historiadores do Instituto Villa-Lobos

Pequenas reflexões sobre a História e ensino de História da Música.

Por Luiz Otávio R. C. Braga

Se não há um conceito fechado sobre o que seja a História, as grandes guinadas que

ela tem dado enquanto disciplina pelo menos permitem apontar o que ela não deve ser mais

ou o que não deve ser, sem que isso implique necessariamente que não seja salvaguardado

o que de produtivo se constituiu ao longo das práticas e sem dúvida permitiu a permanente

repaginação do campo histórico. De todo modo pode-se compreender a história - o

historiador como a sua mais alta patente – nos seus atributos de registro do passado; ela se

arroga a autoridade maior da fala sobre os fatos, homens, mulheres e datações de outras

temporalidades e dando-se o direito de decidir sobre o que deve ser lembrado e celebrado

(Pesavento, 2004:7).

Aquilo que virá a ser chamada de “história nova” a partir da década de 1970, nasceu

em grande parte de um basta contra a escola positivista do século XIX. Se é verdade que os

historiadores positivistas fundam a crítica dos documentos de arquivo, é com a escola nova

que o campo do documento histórico é ampliado; não seriam somente os textos, mas

passam a compor o corpo documental

escritos de todos os tipos, documentos figurados, produtos de escavações


arqueológicas, documentos orais, etc. Uma estatística,, uma curva de preços,
uma fotografia, um filme (...) um pólen fóssil, uma ferramenta, um ex-voto
são, para história nova, documento de primeira ordem (Goff, 1998:28-29)
Podemos considerar como a “tradição” da Escola Nova aquela dos fundadores da

revista Annales d’histoire économique et sociale, em 1929. Os Annales pretendiam em

primeiro lugar tirar a história do marasmo da rotina e de seu confinamento em barreiras

estritamente disciplinares; em segundo lugar, afirmar duas direções inovadoras, adjetivos

que constam no próprio título da revista, tornando-se a história “econômica” e “social”.

Econômica porquanto domínio abandonado pela história tradicional e cuja importância

cada vez mais na vida das nações era indubitável; por outro lado a vagueza do termo

“social” permitia falar de tudo. De 1924 a 1929 a luta da revista foi contra a história política

por ser

por um lado uma história-narrativa e, por outro, uma história de


acontecimentos, uma história factual, teatro de aparências que mascara o
verdadeiro jogo da história, que se desenrola nos bastidores e nas estruturas
ocultas em que é preciso ir detecta-lo, analisa-lo, explica-lo (idem, 31)

De modo geral os Annales recusam a história superficial e simplista que se detém na

superfície dos acontecimentos e investe tudo num fator e recusa identicamente a fraqueza

de uma análise que, perdendo-se na “multiplicidade de motivos”, não distingue entre

motivo e causa. A crítica da noção de “fato histórico” pode ser resumida no seguinte: não

existe realidade histórica acabada que se ofereça por si própria ao historiador. O objeto

histórico não está dado, o passado histórico não está dado; em verdade ele não existe. Para

Marc Bloch o trabalho do historiador é aquele do cientista, pela construção científica do

documento cuja análise deve possibilitar a reconstituição ou a explicação do passado. Dessa

forma, o objeto não está dado. É criado pelo historiador, construído “com ajuda de

hipóteses e conjecturas (...)” (idem, p. 32).


Assim, a problematização da História ou história-problema, que também deve a

Bloch a recusa do “ídolo das origens” bem como o estar atento às relações entre passado e

presente, ou seja, compreender o presente pelo passado, mas também compreender o

passado pelo presente, daí a necessidade de um método regressivo.

Depois da segunda guerra mundial a grande contribuição dos mestres ligados aos

Annales é a implementação institucional de uma história que se transmite pelo ensino,

pesquisa e discussão interdisciplinar (VI seção da École Pratique des Hautes Études). Nesse

sentido O mediterrâneo e o mundo mediterrânico no tempo de Filipe II, de Fernand

Braudel é apontada como a brande obra da Escola Nova.

A História Nova, hoje, “foi definida pelo aparecimento de novos problemas, de

novos métodos que renovaram domínios tradicionais da história (...) e, principalmente pelo

aparecimento no campo da história de novos objetos, em geral reservados até então, à

Antropologia” (idem, p. 44). Muitas foram as perspectivas traçadas pelos pioneiros da

escola nova sendo a mais fecunda a idéia de longa duração, princípio segundo o qual a

história caminharia mais ou menos depressa, todavia as suas forças profundas só atuariam e

se deixariam apreender no tempo longo, sendo a história no curto prazo incapaz de

apreender e explicar as mudanças (p. 45).

No Brasil durante a década de 1980 a historiografia brasileira pode-se dizer que se

movia por uma orientação marxista e em menor escala, ao longo dessa década, se inspirava

na escola dos Annales, frisando-se que é somente na virada dos 90 que a maneira positivista

de fazer história passa a ser verdadeiramente questionada entre nós conjuntamente com o

materialismo histórico de explicação da história e a própria corrente dos Annales – é que

nos chegava o que na Europa estava sendo visto como a crise dos paradigmas (Pesavento,

2004:9-17). Do ponto de vista de uma crítica aos Annales, essa corrente, privilegiando o
social e o econômico da realidade, mesmo sendo crítica do marxismo, relegou a cultura a

uma terceira instância. Em resumo a crise dos paradigmas resultou naquilo que ficou

conhecido como História Cultural tendo-se

deixado de lado as concepções marxistas, que entendiam a cultura como


integrante da superestrutura, como mero reflexo da infraestrutura, ou mesmo
da cultura como manifestação superior do espírito humano e, portanto,
como domínio das elites (...) concepções que opunham a cultura erudita à
cultura popular, esta ingenuamente concebida como reduto do autêntico.
(idem, p. 15)

Nesse sentido a cultura é pensada como um

conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para


explicar o mundo (...) é uma forma de expressão e tradução da realidade que
se faz de forma simbólica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos às
palavras, às coisas, às ações e aos atores sociais se apresentam de forma
cifrada, portando já um significado uma apreciação valorativa (ibidem)

História e Dialogismo

As obras devem ser lidas procurando-se nelas as referências de diálogos que

as impregnam, mormente a multiplicidade de estilos e expressividades que as historiam

porquanto em regra retomam a mesma temática ou temáticas afins e assim “pontuam

explicitamente a presença da história da arte nas suas produções (Bittencourt, 1998: 92). É

bem verdade que nem todas as obras possuem dimensões de diálogos facilmente

detectáveis como por exemplo reconhecer em Crônica da casa assassinada de A . C.

Jobim a Bachiana no. 5 de Villa-Lobos. Mas estão lá e fazem parte da aventura da leitura e

compreensão individual do leitor. Com isso queremos dizer que


Uma obra (...) sintetiza uma série de diálogos que foram travados
entre seu autor (um sujeito específico) e sua época, e sujeitos
produtores de outras obras e outras culturas anteriores a ele e num
tempo futuro que vai além do que ele – o criador – poderia imaginar
(idem, p. 94).

Essas idéias são reflexos da obra do russo Mikhail Bakhtin, a partir de seus estudos

no campo da Lingüística, Literatura e Filologia. Segundo tal, o valor de toda obra é

construído a partir da multiplicidade de comentários, interpretações, reescritas, e das

referências que a ela foram feitas em época distintas. Ressoam através de uma grande

temporalidade. (Bittencourt, ibidem).

Em Bakhtin a presença do Outro é fundamental já que as produções “nascem do

pensamento do outro que manifesta sua vontade, sua expressão, seus signos” e o autor

permeia o todo da obra, não podendo ser encontrado em nenhum elemento separado do

todo, e menos ainda no conteúdo da obra se este estiver separado do todo. Dessa maneira, o

autor “se encontra no momento inseparável em que o conteúdo e a forma se fundem e

percebemo-lhe a presença acima de tudo na forma (Bakhtin, p.403). Ainda com relação ao

autor vale dizer que este não cria a realidade; ele cria imagens bem como o sistema de

imagens de uma obra. E compreender uma obra significa então ter em vista a presença de

duas consciências: a do autor e a de quem toma conhecimento da presença do autor na obra.

Resumidamente, compreender uma obra, conforme Bakhtin, significa

Compreender uma diversidade de formas e de aspectos (...) : compreender a


linguagem dos signos (sistema de signos); compreender a obra numa
linguagem conhecida e já compreendida (estilos da língua, estilo de textos,
estilos de pintura, estilos de música...); e compreender o enunciado.
O enunciado de uma obra é o sentido, a razão para que foi criada. O enunciado a

torna particular, a individualiza e portanto a torna não reproduzível. Remete a obra

diretamente a sua história sendo inseparável do autor porque “expressa a individualidade de

quem fala, seu estilo e a sua construção composicional” (Bittencourt, p. 97). Compreender

o enunciado de uma obra musical, por conseguinte, significa, entre tantos, perceber as suas

relações com outros enunciados de outras obras. Isto significa compreender no enunciado

do autor uma heterogeneidade de enunciados do outro.

Essa heterogeneidade se justifica porquanto cada enunciado é simultaneamente

dado e criado. Um problema para o ensino de história da arte, por exemplo, estaria na

atitude de se preocupar apenas com o enunciado já previamente dado na obra sem que se

desenvolva esforço para identificar o criado. Parte também crucial na compreensão do

enunciado está na emissão de uma resposta por aquele que interpreta, pelo leitor, sendo essa

resposta um novo enunciado e esse diálogo autor/leitor constitui um acontecimento na vida

da obra. Esse processo culmina num encontro de duas obras: aquela concluída e a outra,

que está sendo elaborada pelo sujeito que toma conhecimento dela. Porque há uma

completa interdependência entre a obra (o contexto em que foi elaborada) e o novo

contexto que a envolve (Bittencourt,1998: 99).

Algumas conseqüências metodológicas já podem ser tiradas do que foi até aqui

exposto e embasam o conceito de dialogismo de Bakhtin: há o diálogo com o outro através

das suas obras. Esse dialogismo implica em que à sua cultura, tomada como o dado

expresso na materialidade das formas e dos conteúdos, soma-se a sua fala original e

específica, o criado; deve haver o esforço, a busca por localizar e escutar as vozes dos

outros sujeitos e que se acham embutidas nas obras, “numa tentativa de aproximação com o

enunciado, com as respostas, com a intencionalidade construídas pelo autor”;


reconhecimento da “historicidade do conhecimento, demarcando as fronteiras entre o

conhecimento anterior (os enunciados já construídos por outros estudiosos sobre o tema e

pelas manifestações culturais recorrentes de muitos tempos) e o novo conhecimento (...);

problematizar a obra e seus múltiplos contextos, para romper as fronteiras em relação ao

comentário (...)”; do ponto de vista dos documentos, estes são obras humanas, “não sendo

possível lê-los ou compreende-los como simples objetos ou coisas que exemplificam

contextos”, porque os documentos foram alimentados por diálogos múltiplos em várias

temporalidades.

Bakhtin afirma que a obra não é somente conteúdo; ela é fundamentalmente “a

forma como o autor reconstrói o conteúdo e o seu enunciado (novo contexto), impingindo-

lhe os múltiplos diálogos travados com outros autores, com sua época e outras épocas e,

principalmente, a sua originalidade” (Bittencourt, 1998: 100-103). Assim posto, os estudos

históricos podem muito bem ser propostos em sala de aula sob a perspectiva bakhtiniana,

porque é uma das maneiras de oportunizar aos estudantes o conhecimento de contextos

históricos complexos fugindo das explicações causais e simplistas e mais, fugindo da

concepção de tempo histórico linear uma vez que o desvendar dos diálogos os

impulsionam, a partir do tempo presente, para um fluxo de temporalidades bastante

complexa. Nesse sentido a melhor didática e estratégia de ensino não podem abrir mão da

pesquisa científica a ser desenvolvida no espaço da sala de aula.

Referências bibliográficas utilizadas neste trabalho


Bittencourt, Circe. O saber histórico na sala de aula. S. Paulo: 1998, ed. Contexto
Pesavento, Sandra Jathay. História & História Cultural. Belo Horizonte: 2004, ed.
Autêntica
Goff, Jacques Lê. A História Nova. S. Paulo: 1998. Ed. Martins Fontes.
Burke, Peter. A escola dos Annales. S. Paulo: 1990. ed. Unesp

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