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Desmedida do valor
Crítica da pós-grande indústria
São Paulo
2005
^ï^yRijp laêmmfm
imrWii do Tmbalko
Sob a direção de Ruy Braga
Bibliografia: p. 139.
ISBN 85-7587-043-2
CDD 330.1
In tr o d u ç ã o , 9
P a c if ic a ç ã o do c o n f l it o de c l a s s e s ? , 19
T rabalh o im a te r ia l e f e t ic h is m o , 49
C r ít ic a à e c o n o m ia p o l ít ic a d o im a t e r ia l , 71
V alo r d esm ed id o e d e s r e g r a m e n to d o m u n d o ,
P ó s -g r a n d e in d ú s t r ia e n e o l ib e r a l is m o , 117
R e f e r ê n c ia s , 1 3 9
P r e f á c io
mo se ele é crítico e quer resistir o tempo todo a esse modo de pensar, livrar-
se dos preconceitos vulgares que se infiltram sorrateiros em seus neurônios,
os quais de modo algum estão submetidos a um controle central. O pensa
mento econômico hegemônico, sempre concentrado nos nexos aparentes,
censura qualquer conceito que lhe pareça uma essência objetiva e o trata,
quando chega a tolerá-lo, como mero recurso do entendimento subjetivo.
Nesse registro, a teoria do valor trabalho pode ser vista, por exemplo, como
uma conjectura que engendra proposições que não podem ser verificadas,
confirmadas ou falseadas1.
Sem dúvida é difícil galgar as escarpas abruptas dos caminhos da ciên
cia. Em seu atual estágio de compreensão, a teoria do valor trabalho é en
tendida como lei cega de regulação do modo de produção capitalista que
pressupõe tanto os movimentos do capital - e, assim, do trabalho morto e
do trabalho vivo, entre os diversos setores e empresas que compõem o sis
tema econômico - com o os movimentos aleatórios dos preços de mercado
das mercadorias sob os mandos contrários da oferta e da demanda. Os
quanta de trabalho abstrato, sob a forma dos preços de produção, funcio
nam, então, como centros de gravitação dos preços de mercado que osci
lam continuamente para cima ou para baixo de modo compensatório. Es
tes, por sua vez, embutem determinadas taxas de lucros de mercado, as
quais servem de sinalização para a alocação de capital nas diversas esferas
da produção. O resultado conjunto vem a ser lei de tendência à igualação
das taxas de lucro dos diversos capitais. Essa regulação, entretanto, só ope
ra de modo pleno, em sua forma pura, em condições de livre concorrência,
quando há igualmente plena mobilidade de capital e de trabalho. Isto re
quer, com o acentua Marx, pleno desen volvim en to dos m ercados,
inexistência de monopólios e de anomalias estruturais que costumam pre
ceder as grandes crises.
Na trajetória pessoal de compreensão da teoria do valor e do capital de
Marx, o livro de Isaak Rubin, A teoria marxista do valor (RUBIN, 1980), as-
1 Segundo Blaug, por exemplo, “os marxistas estão profundamente comprometidos com o essencialismo
filosófico para passar no corredor polonês do teste empírico [...] havendo desenvolvido um bom estoque de
estratagemas imunizadores que protegem o marxismo contra qualquer profecia que falha em se materializar”
(BLAUG, 1980, p. 259). As suposições de que o marxismo faz profecias e de que a sociedade humana pode
ler leis imperativas testáveis empiricamente - e não leis de tendência que se manifestam historicamente -
são, evidentemente, produtos de uma interpretação preconceituosa e pouco esclarecida.
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INTRODUÇÃO
sim como os trabalhos de Ruy Fausto, tiveram papéis marcantes. Ainda que
a leitura de O Capital já levasse a pensar de algum modo que o trabalho
abstrato vem a ser uma abstração real, só foi possível apreender esse con
ceito com certa clareza e precisão, distinguindo-o do trabalho em geral e de
sua representação subjetiva, assim com o a determinação do seu momento
histórico, depois de ler o texto “Abstração real e contradição: sobre o traba
lho abstrato e o valor” (FAUSTO, 1983, p. 89-138). A esse respeito, era preci
so compreender também que a própria teoria do valor decorre, em Marx,
da necessidade de fundar o valor e que, lógica e materialmente - pressu
posta a produção de mercadorias - isto só pode ser feito pelo trabalho. Caso
contrário, os preços de mercado apareceriam como determinados exclusi
vamente pela interação entre oferta e demanda, o que se configuraria como
aprovação de uma tautologia e não, verdadeiramente, com o elaboração de
uma teoria científica. Ademais, convinha compreender por que Marx afir
mara que o trabalho abstrato era a substância do valor, o que dera um sen
tido objetivo e metafísico ao conceito, já que este era o m odo de apreender
no discurso científico a própria metafísica do capitalismo real.
Apesar do grande esforço para entender tudo isso durante bons longos
anos de estudo, ainda assim pareceu - e foi escrito não faz tanto tempo
assim - que o valor trabalho deixara de ser plausível na compreensão do
modo de produção capitalista. Para esclarecer o problema é preciso exami
nar a questão da existência histórica do valor. E, novamente aqui, o texto de
Ruy Fausto acima referido foi decisivo, ainda que mais recentemente.
Em resumo, portanto, é preciso ficar com as considerações que se se
guem. Antes do capitalismo, o valor não existe como tal, porque ainda não
existiam as próprias condições de formação do tempo trabalho socialmen
te necessário na esfera da produção. Não tinham surgido ainda as condi
ções históricas que põem com o indiferentes entre si os tempos de traba
lhos individuais empregados na fabricação de produtos para o mercado, ou
seja, a produção orientada pelo capital industrial e submetida às condições
da livre concorrência. Assim, antes do capitalismo o “valor” 2apenas podia-
se formar ao nível das trocas por meio de uma síntese objetiva dos tempos
! Introduzem-se, nesse momento, aspas no termo valor para indicar que não se trata de valor plenamente
constituído.
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, ELEUTÉRIO PRADO-DESMEDIDA DO VALOR
Introduzem-se novamente, nesse m om ento do texto, as aspas no termo “valor” para indicar que se
trata agora de valor pressuposto ou valor antecedente ao preço de produção, ou ainda valor transformado
em preço de produção. Desse m om ento em diante, o termo valor será sem pre tom ado nesse sentido
fraco, ainda que não se vá em pregar mais o recurso das aspas para não sobrecarregar e m dem asia o
próprio texto.
13
INTRODUÇÃO
1Já está evidentemente em Marx a duplicidade entre a igualação da taxa de lucro e o prolongamento do
superlucro, ou seja, uma unidade contraditória de tendência e de contratendência inerente à concorrência
entre os capitais particulares. O que Lenin e os autores mencionados enxergam em sua época é o
agravamento das condições em que ocorre essa contradição com o advento do capitalismo monopolista,
14
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
o qual passa a reclam ar o fortalecim ento do Estado nacional, o apoio imperialista no exterior e a
lielicosidade que leva às guerras.
15
INTRODUÇÃO
l<>1 previsto por Marx nos Grundrisse, procura-se mostrar aí que o capilal
n^oru precisa apropriar-se não só do tempo de trabalho vivo, mas também
il.i inteligência coletiva, e que isto é crucial para a compreensão do capi
lalismo contemporâneo.
No capítulo 4, procura-se entender a relação existente entre a desmecli
<la do valor e o desregramento do mundo, o qual se configura de modo
cada vez mais evidente com o emergência possível e real de catástrofes eco
nômicas, sociais e ecológicas. Para fazê-lo, parte-se de uma avaliação críti
ca do modo de organização da empresa pós-grande industrial, estudando o
chamado “sistema de medição balanceado” (balanced scorecard) desen
volvido por Robert Kaplan e David Norton. Nesse capítulo busca-se chegar
ao entendimento da crise social que se configura no século XXI e que apa
rece por meio da separação dos mercados de força de trabalho entre um
mercado de força de trabalho que opera com a inteligência coletiva e um
inercado de força de trabalho precária que ainda opera nas malhas da pe
quena indústria marginal e da grande indústria, localizadas cada vez mais,
principalmente, no Terceiro Mundo.
No capítulo 5, trata-se da governança e da política do capital monopolista
na etapa neoliberal. Desse ponto de vista, o neoliberalismo e a mundialização
do capital não são pensados imediatamente com o resultados da domina
ção do capital financeiro, mas com o expressão da contradição entre o capi
tal e o trabalho na pós-grande indústria. De uma perspectiva histórica, o
liberalismo clássico representa o momento da forma e da aparência da re
lação de capital; o liberalismo social (e a social-democracia) representa o
momento do conteúdo e da essência dessa relação. Nesses dois casos pre
téritos, a contradição entre o trabalho e o capital é pressuposta - e oculta. Já
o neoliberalismo representa o momento da posição (ou do afloramento)
dessa contradição. Agora, é a própria contradição entre o trabalho e o capi
tal que se manifesta com o tal, ainda que de um modo distorcido, na super
fície da sociedade.
P a c if ic a ç ã o d o c o n f u t o de c la s s e s ?
Introdução
Como se sabe, a chamada Escola de Frankfurt buscou apresentar uma
teoria crítica do capitalismo apropriando-se de temas da herança marxista
tais como ideologia, reificação, alienação, dominação, sem se concentrar,
tal como Marx, nas leis de movimento do modo de produção capitalista,
deixando de enfocar as formas de subordinação do trabalho ao capital e
sem analisar os desenvolvimentos e os limites históricos da relação social
de capital. Situando suas investigações no plano do mundo da vida social e
cultural, Horkheimer, Adorno e outros procuraram apresentar uma teoria
da sociedade abrangente e interdisciplinar, materialista e dialética, que se
nutria de temas teológicos das tradições cristã e judaica tais como os da
redenção do homem e da natureza e da reconciliação dos homens entre si
e com a natureza (W1GGERSHAUS, 2002, p. 13-29).
Esse afastamento da temática econômica torna-se ainda mais expres
sivo na teoria sociológica de Habermas, autor considerado com o o princi
pal sucessor e herdeiro dos primeiros teóricos críticos. Se aqueles mestres
desenvolveram suas pesquisas sob as premissas, aí largamente implícitas,
do trabalho como categoria sociológica chave, este último, com o objetivo
de dar continuidade à crítica da modernização capitalista, passa a atribuir
centralidade à linguagem e à comunicação.
Tal com o Marx, Habermas m ove-se com base em um princípio
normativo interno ao objeto de estudo. Nesse sentido, o primeiro autor
toma o trabalho sem coerção com o norma, para mostrar que a subordina
ção do trabalho vivo ao trabalho morto é a lei do modo de produção capi
talista. Para tanto, faz uma apresentação crítica da relação social de capi
tal, em que este aparece com o um sujeito automático que se nutre do
trabalho enquanto trabalho abstrato medido pelo tempo. A valorização do
valor rebaixa o valor de uso e, assim, as condições de vida dos trabalha
dores, gerando um potencial de conflito que se traduz, no plano político,
com o luta de classes.
20
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
10 autor deste trabalho apresentou anteriormente uma visão favorável às teses de Habermas em detrimento
das teses de Marx (PRADO, 1996). No presente capítulo, reavalia-se e se reformula essa visão anterior em
face da agudização dos paradoxos do neoliberalismo e do pós-modernismo. Como já indicou na introdução,
o autor considera hoje que a crítica da teoria do valor trabalho então apresentada estava fundamentalmente
errada.
2
A teoria de Habermas é inspirada no período fordista e keynesiano da história do capitalismo monopolista
(1945-1975). Este, entretanto, é sucedido pelo período neoliberal (a partir de 1980). Nesse último, há uma
clara reversão do Estado de bem-estar social. Observa-se, então, que muitas atividades estatais são
mercantilizadas e privatizadas, a democracia torna-se publicitária, a tecnocracia econôm ica passa a orientar
ideologicamente os discursos políticos e as ações do Estado, etc. (THERBORN, 1999). Diante desse quadro,
a teoria de Habermas em palidece e torna-se algo ilusória no plano político.
21
PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?
bam as formas: ouro (com o dinheiro), preço, meio de produção, etc. As no
ções teóricas relativas ao mundo da vida (LtV) abrangem: trabalho concreto,
valor de uso, riqueza apropriável, interesse de classe, etc. Finalmente, as no
ções observacionais do mundo da vida (LoV) incluem: disponibilidade de
trabalho, necessidades sociais, consumo de bens, ações de contestação, etc.
Enquanto as categorias do sistema econômico constituem-se por abstrações
reais ou por referências anônimas (sem sujeito), as categorias do mundo da
vida são preenchidas por abstrações subjetivas ou por designações associa
das às pessoas, em princípio. Estas duas últimas são categorias da esfera da
ação humana e, por isso, pressupõem intencionalidade.
É evidente, pois, que Habermas transforma um discurso que une no
ções contraditórias entre si e que é constituído, por isso, por unidades de
sentido antitéticas, em uma dualidade de discursos conectados externa
mente por meio do que denomina de “regras de tradução”. Ele passa, pois,
de um discurso dialético para um discurso do entendimento. Desse modo,
onde Marx diz haver uma unidade de contrários (por exemplo, quando se
refere a trabalho concreto e trabalho abstrato) Habermas enxerga sempre
noções duais, contrárias, mas disjuntas, que expressam experiências diver
sas, mas relacionadas (o trabalho enquanto algo vivido pelos trabalhadores
e o trabalho enquanto norma interna reguladora do sistema). É por isso que
diz que a primeira dessas linguagens pressupõe uma atitude intersubjetiva
ou hermenêutica de quem a emprega, enquanto a segunda se origina de
uma atitude objetivante, característica de quem analisa cientificamente uma
dada realidade. A partir dessa mudança de terreno, Habermas (1987a, p.
476) infere que “a estrutura da teoria marxiana pode ser caracterizada pela
conexão que estabelece entre categorias da teoria de sistemas e categorias
da teoria da ação”.
Marx, como se sabe, começa pela mercadoria. Conforme essa leitura,
Habermas logo a define por uma conexão Tt, ou seja, como valor de uso e
valor. Em seqüência, estabelece uma correspondência Ce entre valor e va
lor de troca (forma do valor). Traduz, depois, por meio de uma conexão To,
a coisa que se apresenta agora como valor de troca em coisa útil a ser
consumida, por exemplo, por um trabalhador. Finalmente, a correspondên
cia Cv estabelece a relação da coisa útil a ser consumida com o valor de uso
em geral. A partir daquele começo, tem-se um momento crucial quando
Marx apresenta a força de trabalho também como mercadoria - uma mer-
23
PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?
eadoria especial cujo valor de uso consiste em gerar um valor maior do que
o próprio valor, ou seja, seu custo de reprodução.
Assim, a teoria do valor - e, por extensão, a teoria do valor que se valo
riza - que se encontra em O Capital consiste na apresentação das regras de
tradução Tt e nas regras de correspondência Ce. Essas regras são o modo
pelo qual as relações concretas de trabalho, travadas enquanto tais no âm
bito do mundo da vida dos trabalhadores, resultam em coisas produzidas -
mercadorias - e em relações entre essas mercadorias reguladas de um modo
sistêmico. Como se sabe, a norma interna ao sistema econômico que regu
la as relações de troca nessa teoria é dada pelo tempo de trabalho social
mente necessário para produzir as mercadorias (regra Tt); já as proporções
efetivas em que são trocadas dependem da transformação dos valores em
preços de produção e em preços de mercado (regras Ce).
Segundo Habermas, não se tem aqui, porém, apenas uma teoria eco
nômica, mas principalmente uma teoria crítica: a formação do valor com o
regulador sistêmico é ao mesmo tempo um processo de alienação dos
trabalhadores; a transformação do produto do trabalho na forma de mer
cadoria gera fetiches; a valorização do valor que puxa o crescimento da
produção, mas provoca crises, é ao mesmo tempo “uma dinâmica de ex
ploração que a o b jetiva çã o e a anoním ia tornam irre c o n h e c íve l”
(HABERMAS, 1987a, p. 478).
Ademais, acoplada com a teoria do valor, Marx apresenta também uma
teoria da luta de classe no que chama de modo de produção capitalista e
que responde, de certo modo, por uma reversão dos movimentos Tt e Ce,
antes mencionados. Se antes se ia do mundo da vida para o mundo do
sistema econômico, agora se vem deste último para o primeiro. No esque
ma apresentado, essa teoria é constituída, primeiro, por regras To que per
mitem traduzir enunciados sistêmicos sobre a acumulação de riqueza ma
terial e monetária, assim como sobre a repartição do valor adicionado como
renda, em enunciados sobre as condições de vida e de luta das pessoas,
famílias e classes sociais. Essa teoria é formada também por regras de cor
respondência Cc que permitem estabelecer relações entre essas condições
concretas de subsistência e atuação e os pressupostos abstratos, internos
ao mundo da vida, dos funcionamentos sistêmicos.
Conforme Habermas, também aqui se manifesta o caráter crítico do
marxismo. De modo similar ao que foi possível afirmar sobre teoria do valor,
24
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
aqui também não se tem apenas uma teoria sociológica, mas uma teoria de
intervenção na prática de luta em favor da vida e contra os imperativos
sistêmicos. Esta prática, em si mesma, constitui-se espontaneamente, até
certo ponto, num movimento de reversão da alienação dos trabalhadores,
de desobjetivação das relações sociais fetichizadas, de aclaramento da na
tureza da relação de capital. Essa teoria crítica pretende contribuir para esse
movimento de um modo revolucionário.
Eis, pois, como Habermas resume o que considera forte na teoria críti
ca de Marx:
Com efeito, tal como o jovem Hegel, Marx entende a unidade do sistema com o
mundo da vida segundo o modelo unitário de uma totalidade ética dilacerada,
cujos momentos, abstratamente separados, estão condenados a sucumbir. Sob
essa premissa, o processo de acumulação desprendido de qualquer orienta
ção por valores de uso tem de se apresentar como aparência - o sistema capi
talista não é outra coisa do que a forma fantasmagórica de relações de classe
que se tornaram anônimas e que se converteram em fetiche. [Para ele], a
autonomização sistêmica do processo de produção tem o caráter de um en
cantamento. (HABERMAS, 1987a, p. 479)
Marx [...] tem em mente um Estado futuro em que esteja dissolvida a aparência
objetiva que é o capital e em que o mundo da vida, atualmente prisioneiro dos
imperativos da lei do valor, possa readquirir a sua espontaneidade. Prevê, as
sim, que as forças do proletariado industrial, tão logo se disponham a se revol
tar com essa situação, formem, sob a liderança de uma vanguarda ilustrada
pela teoria, um movimento que se apodera do poder político com a intenção
de revolucionar a sociedade: junto com a propriedade privada dos meios de
produção, esse movimento destruirá os fundamentos institucionais dos meios
de controle por meio dos quais se diferenciou a economia capitalista, fazendo
com que o processo de crescimento econômico autonomizado retorne ao ho
rizonte do mundo da vida. (HABERMAS, 1987a, p. 481)
3Com o se sabe, Marx rejeitou explicitamente que a crítica desenvolvida em O Capital pudesse depender de
uma idéia externa de justiça. “Falar de justiça natural [...] é um contra-senso. [...] As formas jurídicas [...]
não podem, com o simples formas, determinar esse conteúdo [das transações]. Elas apenas o expressam.
Esse conteúdo é justo contanto que corresponda ao m odo de produção que lhe seja adequado. E injusto,
assim que o contradisser. A escravatura, na base do m odo de produção capitalista, é injusta; da mesma
maneira, a fraude na qualidade da mercadoria.” (MARX, 1983d, p. 256)
28
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
ela (lo valor, e as formas do poder; e quatro canais pelos quais o sistema
econômico e o sistema administrativo estatal submetem o mundo da vida
aos seus imperativos. Sem contestar o primado da dinâmica econômica na
determinação do vir a ser da sociedade atualmente existente, Habermas
(lí)87b, p. 485) considera necessário assumir teoricamente que “ tanto a
burocratização quanto a monetização, seja na esfera pública seja na esfera
privada, podem gerar efeitos de coisificação”.
Segundo o próprio Habermas, sua teoria social está construída sobre
um deslocam ento filosófico: a crítica da sociedade é transferida do
paradigma do sujeito para o da comunicação, e este deslocamento está na
raiz das polêmicas discursivas que enceta contra as outras teorias, sejam
elas convergentes, concorrentes ou mesmo opostas. Isto se observa em sua
crítica da teoria do valor de Marx: segundo ele, esta teoria está centrada
num modelo de ação que privilegia a atividade teleológica.
Marx não pode entender a metamorfose do trabalho concreto em abstrato4como
um caso especial de coisificação de relações sociais que devém por indução
sistêmica, porque ele parte do modelo do ator que atua teleologicamente e
que, ao perder a posse de seus produtos [na produção capitalista], vê-se tam
bém privado da possibilidade de desenvolver as potencialidades de seu ser. A
teoria do valor encontra-se desenvolvida por meio de categorias da teoria da
ação, de tal modo que obrigam a situar a gênese da coisificação abaixo do nível
da interação e a tratar a deformação das relações de interação [...] como se
fosse fenômeno derivado [...] da atividade objetiva de produzir5. [Ora, essa de
formação advém] da perda de seu próprio mundo experimentada pela ação
comunicativa que agora se transformou em [um processo anônimo regido por
um] meio de controle devido à própria exigência técnica imposta ao mundo da
vida. (HABERMAS, 1987a, p. 484)
Entretanto, a reprodução material da vida social não se reduz, nem sequer nos
casos-limite, a dimensões tão abarcáveis, que possam ser entendidas como
resultado pretendido de uma cooperação coletiva. Normalmente se efetuam
como cumprimento de funções latentes que estão além das orientações de
ação dos implicados. [...] Estas considerações, que se movem ainda dentro do
paradigma “mundo da vida”, sugerem uma mudança de método e de perspec
tiva conceituai, isto é, convidam a conceber o mundo da vida em termos
objetivantes, isto é, como sistema. [...] Em relação a esses “processos metabó-
31
PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?
em dois níveis conectados por uma relação de oposição, ou seja, por uma
relação entre essência e aparência.
Acompanham-se aqui as interpretações de Ruy Fausto6. Nessa perspec
tiva, o pensamento de Marx está centrado no conceito de uma relação subs-
tância-sujeito social que tem automovimento, desenvolve-se independen
temente da consciência dos agentes e que se manifesta sempre à consci
ência vulgar por meio da linguagem das mercadorias, de um modo fetichis
ta. Pois é este o modo pelo qual a essência se reflete na aparência, configu
rando objetos sociais animados ou quase-vivos. O conceito central para
compreender a opacidade característica do modo de produção capitalista
não é, pois, o de “reificação” , mas o de “fetichismo”, ainda que o conceito
de “reificação” esteja presente de m odo subsidiário. O pensamento de Marx
está, assim, centrado na apresentação de uma relação social que é uma
relação-sujeito, mas que se apresenta, de modo invertido, com o relação de
coisas, de tal modo que as formas sociais se identificam naturalmente como
as matérias que lhes servem de suporte (isto é o fetiche).
Assim, Marx não pode ser compreendido e criticado, de modo rigoroso
pelo menos, ignorando a dialética ou reconstruindo esta última como outra
coisa. Habermas apresenta o pensamento de Marx em O Capital como o
desenvolvimento paralelo de duas linguagens diferentes, uma característi
ca do mundo do sistema e a outra característica do mundo da vida, as quais
são relacionadas por meio de regras de tradução. Para ele, essas duas lin
guagens são meramente diferentes, com o se elas fossem, por exemplo, um
dialeto alemão metafísico e um inglês pragmático, respectivamente. Como
mostra Ruy Fausto a partir de referências do próprio Marx, há na dialética
marxiana uma duplicidade de linguagens, mas a relação entre elas é de
negação por redução. Há a linguagem da aparência que concerne aos valo
res de uso; há a linguagem da ciência que descobre os valores e os explica
como substância constituída socialmente pela redução objetiva do traba
lho concreto ao trabalho abstrato. Mas há, ainda, uma linguagem que en
globa essas duas e que é a linguagem das mercadorias. Esta última unifica
as anteriores, pois apresenta os valores (produto do trabalho abstrato) refle-
’ A partir da ontologia social de Lukács, Antunes (2002) desenvolveu um modo de contrapor as concepções de
Habermas e de Marx. Justamente por ficar na contraposição, não produz uma crítica efetiva de Habermas.
34
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
É óbvio que com tais considerações sequer tocamos a questão da qual partiu a
filosofia da práxis. Enquanto deixarmos de estimar a reprodução material do
mundo da vida, como ocorreu até aqui, sequer alcançaremos o antigo nível do
problema. Marx escolhera o “trabalho” como conceito fundamental porque pôde
observar como as estruturas da sociedade burguesa eram cada vez mais forte
mente marcadas pelo trabalho abstrato, isto é, pelo tipo de um trabalho assala
riado regulado pelo mercado, explorado de modo capitalista e organizado em
forma de empresas. Entretanto, essa tendência enfraqueceu-se nitidamente
nesse meio tempo. (HABERMAS, 2002, p. 483)
” Balakrishnan (2003, p. 120) assim se expressa sobre isso: “Em oposição à crítica da econom ia política que
se concentra na exploração e emancipação da força de trabalho reificada, a norma da comunicação não-
distorcida vem a ser o único horizonte realista para a melhoria das sociedades avançadas. Uma política
assim informada deve ficar nos limites postos pelas ordens burocrática e do dinheiro, pois qualquer tentativa
de superá-las por m eio de um movimento de autodeterminação possível não faria mais d o que cancelar as
conquistas da racionalização social. [...] O núcleo que se pode salvar da política de emancipação não é
mais do que um balanceamento civilizado entre dinheiro, poder e solidariedade.”
38
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
D
( ) termo pos-grande indústna” não é encontrado em Marx. Foi proposto por Ruy Fausto (2002) a partir de
uma interpretação criativa de textos dos Grundrisse, escritos pelo próprio Marx entre 1857-1858, com o
lnluilo de abarcar a forma contemporânea de subsunção do trabalho ao capital.
39
PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?
sos quanto Marx, Weber e Durkheim. Entretanto, ele deixou de ocupar essa
posição no pós-guerra, pois a partir dos anos 1950 o trabalho deixou de ser
uma categoria sociológica chave na compreensão do capitalismo. Offe jus
tifica essa tese por meio de uma argumentação que se eleva de três pólos: a
pesquisa sociológica, a orientação ética da vida pessoal e a própria consti
tuição do mundo do trabalho.
Em primeiro lugar, Offe procura mostrar que a própria pesquisa social
deixou de estar centrada no conceito de trabalho, a posição hierárquica no
mundo do trabalho deixou de ser considerada como determinante princi
pal das formas de comportamento social, a dinâmica social deixou de ser
pensada predominantemente a partir do conflito de classe. De modo notá
vel, as investigações orientadas para a compreensão da vida cotidiana e do
mundo da vida passaram a buscar seus elementos explicativos em inter
pretações adquiridas fora do trabalho. Por outro lado, em segundo lugar ele
observa que a ética do trabalho foi sendo cada vez mais abandonada como
orientação subjetiva dos comportamentos sociais: ao nível da integração
social o trabalho deixou de ser encarado como um dever, e ao nível da
integração sistêmica deixou de ser tratado como uma necessidade. Final
mente, a partir da observação trivial de que a inserção nos mercados de
trabalho e a participação nas atividades assalariadas tornaram-se cada vez
mais heterogêneas e diversificadas, Offe introduz a suspeita de que o traba
lho não possa mais ser pensado com o a determinação unificadora de uma
classe social, ou seja, da classe daqueles que não possuem meios de pro
dução: “sintomas de heterogeneidade crescente colocam em dúvida se o
trabalho assalariado dependente enquanto tal pode ainda ter um significa
do preciso e compartilhado pela população trabalhadora e seus interesses
e atitudes sociais e políticos” (OFFE, 1989, p. 176).
Sob o impacto desse argumento de base empírica que carrega em si o
pressuposto de que trabalho é meramente um gênero, a categoria trabalho
perde aquele caráter de fundamento teórico da relação social de capital e
se torna mera categoria estatística descritiva - tal com o ele mesmo asseve
ra. Assim, o trabalho não pode mais ser concebido com o algo que constitui
uma medida socialmente efetiva decorrente da redução objetiva de traba
lhos concretos e heterogêneos a trabalho simples, homogêneo e abstrato. A
dissolução do conceito de trabalho de Marx - que nunca se torna inteira-
40
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
10 Marx criticou essa distinção porque ela é fetichista. A produtividade do trabalho no m odo de produção
capitalista não pode ser pensada independentemente da relação de capital, tendo por referência o conteúdo
material do trabalho. Em conseqüência, Marx (1978b, p. 78) mostrou que ela chama a atenção para algo
pouco relevante para o entendimento desse m odo de produção, ou seja, para a questão de saber se o
resultado do trabalho é visto com o atividade (ou serviço) ou com o coisa (ou bem).
" O termo intelectual refere-se aqui ao em prego do intelecto, mesm o que seja de m odo bem rudimentar.
Offe chama esse trabalho de “reflexivo” e o caracteriza com o aquele que “processa e mantém o próprio
trabalho” , pois “no setor de serviços, a produção é fundamentada conceituai e organizacionalmente” (OFFE,
1989, p. 178-179).
41
PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?
seja, aquilo que Marx denomina de “intelecto geral” - são gerados princi
palmente fora do tempo de trabalho produtor de mercadorias, exigindo a
mobilização de atributos do homem como a capacidade de argumentação,
de reflexão e de comunicação, como o próprio tempo de trabalho requer
cada vez mais a intervenção da ciência e da tecnologia, tem-se um ponto
de partida sólido para compreender o declínio da “ética do trabalho”, a im
portância renovada do mundo da vida na determinação das características
da vida social e os reflexos disso tudo na pesquisa social.
Para o próprio autor de O Capital, pois, com base em um desenvolvi
mento lógico de sua própria teoria, num certo momento do desenvolvimen
to do capitalismo o próprio valor se tornaria inadequado como medida da
riqueza. Eis que é isto, precisamente, em face das evidências apresentadas
ao conhecimento empírico contemporâneo, o que parece ter-se tornado
realidade. Eis, também, que isto suscita imediatamente a seguinte questão
teórica: o valor trabalho, ou seja, o trabalho abstrato e socialmente necessá
rio, que é medido pelo tempo, teria sido negado historicamente? Para enca
minhar uma resposta a essa pergunta é preciso ter em mente que se está na
presença de um processo histórico de superação da contradição entre o
valor e o valor de uso.
Enquanto o modo de produção for capitalista continuará sendo verda
de que é o trabalho vivo que acrescenta um novo valor ao valor dos meios
de produção, e que é ele que transfere o valor destes meios de produção
para o valor da mercadoria produzida, conservando-o. É importante notar e
reforçar que, dada a natureza da relação de capital, esse valor continua na
dependência do tempo de trabalho, mas que isto ocorre de um modo cada
vez mais perturbado devido à transformação da produção em produção
inteligente por m eio da incorporação da tecnologia e da ciência. Na teoria
de Marx, a relação de capital é subordinação do trabalho vivo ao trabalho
morto, na forma de uma apropriação, como novo valor ou valor acrescido,
do trabalho excedente em relação ao trabalho necessário. Aqui não se tra
ta de trabalho vivo em geral, mas do trabalho vivo enquanto efetivação da
força de trabalho que, em razão da persistência histórica da propriedade
privada dos meios de produção, é ela mesma obrigada a assumir a forma
de capital variável. Enquanto persiste a produção capitalista, o tempo de
trabalho atua na determinação do valor (ainda que seja como regra desre
grada ou como regra corrompida) e o valor transformado em preço de pro-
PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?
trabalho alheio, sobre o qual se baseia a riqueza atual, torna-se uma base mise
rável, comparado com esse fundamento, recém-desenvolvido, criado pela pró
pria grande indústria. Tão logo o trabalho, em forma imediata, tenha deixado
de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa de ser - tem de
deixar de ser - sua medida; e o valor de troca [deixa de ser a medida] do valor
de uso. O mais-trabalho da massa deixa de ser condição para o desenvolvi
mento da riqueza social, assim como o não-trabalho de uns poucos deixa de
sê-lo para o desenvolvimento da potência geral do intelecto humano. Com isso
desmorona a produção baseada no valor de troca, e o processo de produção
material imediato despoja-se da forma de carecimento e antagonismo. Trata-
se agora de desenvolver livremente as individualidades, e não de reduzir o tem
po de trabalho necessário, tendo em vista criar mais-trabalho; a redução do
trabalho necessário da sociedade a um mínimo passa a corresponder à forma
ção artística, científica, etc., dos indivíduos, graças ao tempo que se tornou livre
e aos meios criados por todos, (apud ROSDOLSKY, 2001, p. 354-355)
Conclusão
Havendo apresentado a conexão oculta entre a teoria de Marx e a de
Habermas (conexão referida no texto de Offe, mas não de um modo que
faça justiça às contribuições de Marx), é o momento de discutir a afirmação
deste último autor segundo a qual a dialética marxiana, prisioneira da no
ção de totalidade ética de Hegel, leva necessariamente à idéia da supres
são dos processos sistêmicos e da absorção das relações econômicas e de
cidadania no mundo da vida. Antes de tudo, é preciso enfatizar que o mar
xismo de Marx não é um historicismo, não é uma teoria da história, mas
uma apresentação da história que pressupõe logicamente uma crítica do
capitalismo (FAUSTO, 1987). A dialética marxiana, com base nessa crítica,
anuncia a ruptura possível do modo de produção capitalista, mas diz pou
co, com o é bem sabido, tanto sobre o modo de transição do capitalismo
para o socialismo quanto sobre as características do próprio socialismo de
transição e do comunismo. Se há dúvidas e dificuldades sobre as configu
rações possíveis do novo modo de produção, a crítica não pode focar em
primeiro lugar a dialética com o tal, mas deve centrar-se nas pressuposições
da crítica do capitalismo presentes na dialética marxiana.
Não se pode ir adiante nessas questões, pois, sem examinar os pressu
postos da crítica do modo de produção capitalista. O pressuposto central,
com o se sabe, é que as relações sociais de produção que caracterizam esse
modo de produção, assim com o suas expressões jurídicas, formam uma
sociedade civil em que se descobre - não imediatamente - a exploração e,
por isso, o antagonismo e a luta de classes. Na verdade, a sociedade civil
capitalista está constituída, na aparência, por relações de contrato que ex
pressam a igualdade, a liberdade, a identidade dos contratantes e que re
querem a paz entre eles, apenas para que na sua essência prevaleça a desi
gualdade, a dominação, a contradição e a violência. Se esse modo de exis
tência social fosse apenas isto, ele não seria mais do que um estado bruto
de natureza regulado apenas pela luta pela sobrevivência, não uma socie-
46
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
12Note-se, entretanto, que mercado é uma instituição genérica que pode ser consistente com uma diversidade
bem grande de modos de produção. Tal com o caracterizado neste texto, trata-se do mercado no interior do
m odo de produção capitalista. Historicamente, m ercados existiram antes e existirão possivelmente depois
do capitalismo.
13 Relações essas cujo travamento depende de meios, os quais na sociedade atual dão formas às relações
sociais capitalistas, precisamente o dinheiro e as hierarquias de poder. Assim com o os sistemas não precisam
se basear nas relações sociais capitalistas, esses meios também podem diferir dos meios inerentes ao
capitalismo.
48
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
' O presente capítulo foi publicado originalmente, com o comentário, em Prado (2003). Em relação a essa
versão, alguns poucos aperfeiçoamentos foram aqui introduzidos.
50
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
2 *
Fica-se aqui com os sentidos dados por Hardt e Negri a esses dois termos. E sabido, por outro lado, que
Marx engloba-os no conceito de “materialidade social” .
51
TRABALHO IMATERIAL E FETICHISMO
ços (e não bens) e programa de computador e calça são bens (e não servi
ços). Entretanto, corte de cabelo é um produto material do trabalho, mas
música não o é; programa de computador, por outro lado, é um produto
imaterial do trabalho que existe, aliás, por meio de um suporte material
(um disco de plástico ou metal), enquanto calça é claramente um produto
material. Tudo isso torna já suspeito o uso da noção de trabalho imaterial
feito por Hardt e Negri.
As noções de bem e serviço classificam os valores de uso, mas não
contribuem para a compreensão do capitalismo com o tal. Como se sabe,
para tanto é preciso se ater à noção de mercadoria. Dito de outro modo, é
preciso considerar o produto do trabalho enquanto forma da riqueza no
modo de produção capitalista. Note-se, então, em primeiro lugar, que a na
tureza daquilo que é produzido, se vem a ser algo como calça e programa
de computador ou se vem a ser algo com o corte de cabelo e música, não
convém à determinação da mercadoria com o tal, pois mercadoria é ape
nas uma forma do produto do trabalho. Eis que, como forma, é até certo
ponto independente do conteúdo; entretanto, quando o produto do traba
lho não é separável do próprio trabalho (ou seja, quando se trata de servi
ço), há uma inadequação da matéria do valor de uso à forma mercadoria,
já que ela é atividade como tal e não existe, portanto, independentemente
da compra e da venda, tal como ocorre no outro caso.
A distinção entre trabalho que produz valores de uso materiais ou
imateriais pode ser importante para entender um problema que surge na
expressão da contradição interna à mercadoria entre valor e valor de uso
por meio da contradição externa a ela entre valor de uso e valor de troca. De
início, na exposição de Marx, o valor é um quantum de tempo de trabalho
abstrato; a forma do valor ou valor de troca estabelece uma relação de m e
dida entre valores de uso distintos. Essa relação, pois, está fundada no tem
po de trabalho. Assim, toda riqueza no modo de produção capitalista, ou
seja, toda mercadoria, tem de poder ser medida pelo tempo de trabalho
socialmente necessário à sua produção. Entretanto, se uma parte importan
te do trabalho social torna-se trabalho espiritual, intelectual, moral ou artís
tico, do processo de trabalho e do processo de produção resultam valores
de uso que não podem ser quantificados, para efeito de troca, apenas com
base no tempo de trabalho. Em conseqüência, os valores de troca passarão
52
ELEUTÉRIO PRAD O - DESMEDIDA D O VALOR
3Trata-se de uma referência à conhecida proposição de Claus Offe contida no texto “Trabalho: a categoria
sociológica chave?” (OFFE, 1989). A posição do trabalho com o atividade central é inerente ao capitalismo.
Ao se observar, principalmente nas sociedades capitalistas mais desenvolvidas, um deslocamento do foco
das preocupações do tempo de trabalho para o tempo de não-trabalho (que pode ser tempo livre), isto
anuncia, no nível das condições subjetivas, a necessidade e a possibilidade do socialismo.
4 •*
E verdade, entretanto, que Marx considerou a exploração capitalista dos serviços com o algo insignificante
em sua época: “Em suma: os trabalhos que só se desfrutam com o serviços não se transformam em produtos
separáveis dos trabalhadores - e, portanto, existentes independentem ente deles c om o mercadorias
autônomas. Ainda que se os possa explorar de maneira diretamente capitalista, constituem magnitudes
insignificantes se comparados com o volume da produção capitalista. Por isso, deve-se fazer caso omisso
desses trabalhos e tratá-los somente a propósito do trabalho assalariado, sobre a categoria de trabalho
assalariado que não é ao m esm o tempo trabalho produtivo.” (MARX, 1978b, p. 76). Ora, é exatamente isso
o que não se deve fazér ao se ter por referência o capitalismo contemporâneo.
53
TRABALHO IMATERIAL E FETICHISMO
que a matéria adequada para o trabalho cristaliza-se numa coisa que têm
i'xisténcia independente da própria laboração5.
Ora, tudo isto não faz mais sentido depois que o trabalho abstrato foi
definido como gênero: “ [...] com efeito, trabalho produtivo não é mais ‘o
que diretamente produz capital’, mas o que reproduz a sociedade - desse
ponto de vista, a separação do trabalho improdutivo está completamente
deslocada” (NEGRI, 1996, p. 157), ou seja, de algum modo toda e qualquer
atividade que reproduz o mundo social existente é produtiva. Para eles, tra
ta-se de determinar o caráter especificamente criador e criativo do trabalho
em geral, com base em uma renovação das análises de Marx que pretende
ter superado suas limitações com o objetivo de compreender o capitalismo
contemporâneo. Sua teoria do valor conteria “fraquezas, ambigüidades, fu
ros fenomenológicos e plasticidade limitada” por ter sido formulada no sé
culo XIX, tendo com o referência o período manufatureiro, durante a primei
ra revolução industrial. Como base nesse diagnóstico, os autores então su
gerem que rigorosamente o valor não pode ser pensado como medida. De
uma perspectiva pós-moderna, eles dizem, por isso, que há uma crise na lei
do valor, já que “ [...] hoje o valor não pode ser reduzido a uma medida
objetiva” (NEGRI, 1996, p. 151). A crítica procede com o se o valor não fosse
em Marx medida que tende constantemente à desmedida e que pode ser
negado dialeticamente na história!6
Ora, o que importa acentuar aqui é que tais autores tratam o trabalho
apenas como trabalho em geral (ou seja, trabalho concreto no mais amplo
grau de generalidade), caindo, assim, em concepções fetichistas.
O trecho citado é algo extenso, mas mostra de início duas coisas bem
simples: primeiro, Hardt e Negri periodizam a história da produção capita
lista com base numa caracterização do trabalho produtor de valores de uso
(trabalho que produz produtos naturais, trabalho que produz produtos in
dustriais e trabalho que produz serviços); segundo, o período recente é en
tendido como aquele em que domina a produção de serviços, ou seja, em
que o trabalho é dito imaterial. O que não aparece de imediato aí, entretan
to, é que essa caracterização visa apresentar a predominância de distintas
configurações de relações de poder na história da produção capitalista. E
isto é central para Hardt e Negri.
Logo, mesmo se a noção de trabalho imaterial for enganosa, mesmo se
a caracterização das épocas por meio do trabalho concreto for equívoca,
ainda assim é preciso examinar as estruturas de poder cristalizadas na or
ganização do trabalho. Aqui, ao invés disso, tratar-se-á de formas distintas
de subordinação do trabalho ao capital ao longo da história do capitalismo,
quais sejam a manufatura, a grande indústria e a pós-grande indústria.
Hardt e Negri, a partir de Foucault, recobrem esses dois modos de pro
dução com os conceitos de “sociedade disciplinar” e “sociedade do contro
le” , respectivamente. Sociedade disciplinar é
da qualidade conforme se altera o quantum, entretanto, a partir de certo ponto pode gerar uma medida
distorcida, imprópria e arbitrária, ou seja, uma regra desregrada. Assim, por exemplo, a área plana é uma
medida adequada da superfície de um lago se não há quase vento, mas ela se tornará largamente inadequada
em face de uma grande ventania.
57
TRABALHO IMATERIAL E FETICHISMO
[...] aquela na qual o comando social é construído mediante uma rede difusa
de dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos
e as práticas produtivas. Consegue-se pôr para funcionar essa sociedade e as
segurar obediência a suas regras e mecanismos de inclusão e/ou exclusão por
meio de instituições disciplinares (a prisão, a fábrica, o asilo, o hospital, a uni
versidade, a escola e assim por diante) que estruturam o terreno social e forne
cem explicações lógicas adequadas para a “razão” da disciplina. (HARDT; NEGRI,
2001, p. 42)
Ora, por mais interessante que seja toda essa caracterização, da qual
emergem duas formas sociais de estruturação do poder no capitalismo, ela
permanece externa ã produção. Ademais, ela não consegue mostrar os pro
cessos de gênese de tais formas, primeiro, de uma forma anterior para a
sociedade disciplinar e, depois, desta última para a sociedade do controle.
Conseqüentemente, essa caracterização também não permite prefigurar a
forma social que as substituirá historicamente. Hardt e Negri atribuem es
ses defeitos ao estruturalismo de Foucault, “um método que efetivamente
sacrifica a dinâmica do sistema, a temporalidade criativa de seus movimen
tos e a substância ontológica de reprodução cultural e política” (HARDT;
NEGRI, 2001, p. 47). Em conseqüência, para eles Foucault não consegue
apreender o movimento histórico das relações sociais no capitalismo. É por
isso que se atém à produção.
Antes disso, note-se que Foucault foi cobrado por fazer um tipo de críti
ca social, baseado na descoberta das injunções do poder, que não pode
justificar seus fundamentos normativos (HABERMAS, 2002, p. 387). Nessa
aporia não caem aparentemente Hardt e Negri, já que procuram permane
cer no horizonte da teoria do valor de Marx. O princípio normativo contido
nessa última, como se sabe, é interno ao próprio modo de produção capita-
58
ELEUTÉRJO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
lista, mas será possível perceber que o mesmo não ocorre com aquele im
plícito na reformulação de Hardt e Negri.
Para reenviar a análise de Foucault para a esfera da produção, esses
dois autores recorrem a marxistas italianos, conhecidos pelo nome de
operaístas, que pensaram o capitalismo atual a partir dos conceitos
“intelectualidade de massa” e “intelecto geral”. Como esse último conceito
se encontra nos Grundrisse de Marx, isto autoriza e requer uma volta ao
próprio Marx, com o objetivo de verificar se toda essa nova teoria mantém-
se intacta e se, assim, os mil platôs do Império permanecem sólidos, ou,
contrariamente, se eles ficam abalados. Se este último for o caso, terão es
ses dois autores direito ao reconhecimento como renovadores do pensa
mento crítico contemporâneo?
Antes disso, é preciso observar uma conseqüência importante dos de
senvolvimentos teóricos de Hardt e Negri:
1 Diz Fausto: “se é verdade que Marx não afirma que com a pós-grande indústria (e antes da revolução)
possa haver verdadeira libertação, ele supõe nesse estágio o fim da subordinação material do trabalho ao
capital. Entretanto, poder-se-ia perfeitam ente dizer que com as novas máquinas não desaparece a
subordinação material [...] Diria que pode haver uma espécie de subordinação intelectual (ou espiritual) do
trabalho ao capital.” (FAUSTO, 2002, p. 136)
«
63
TRABALHO IMATERIAL E FETICHISMO
8Em particular, o capital tem de passar a dominar e a controlar a produção dos conhecimentos científicos e
tecnológicos, seja por m eio da criação de departamentos de pesquisa nas próprias empresas, seja criando
empresas especializadas de pesquisa, seja subordinando de fora as universidades e centros de investigação,
formalmente independentes, por m eio do controle das verbas de pesquisa. Assim, também, as atividades
criadoras de subjetividade e geradoras de cultura são incorporadas à produção capitalista. Essa mudança
qualitativa é assim expressa por Bolaño: “ [...] agora, o que vive é um processo duplo de subsunção do
trabalho intelectual, inclusive o cultural e o artístico, e de intelectualização generalizada dos processos de
trabalho convencionais, d e m od o que as energias que o capital procura extrair do trabalhador são
fundamentalmente mentais e não mais essencialmente físicas” (BOLAÑO, 2002, p. 66).
64
ELEUTÉRIO PICADO - DESMEDIDA DO VALOR
O poder só pode adquirir comando efetivo sobre a vida total da população quan
do se torna função integral, vital, que todos os indivíduos abraçam e reativam
por sua própria vontade. Como disse Foucault, “a vida agora se tornou objeto
de poder”. A função mais elevada desse poder é envolver a vida totalmente, e
sua tarefa primordial é administrá-la. O biopoder, portanto, refere-se a uma situ
ação na qual o que está diretamente em jogo no poder é a produção e a repro
dução da própria vida. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 43)
65
TRABALHO IMATERIAL E FETICHISMO
Nesse último texto diz-se que o trabalho morto e o trabalho vivo tor
nam-se até certo ponto indistintos no período da pós-grande indústria, por
que ambos são agora portadores do intelecto geral que se tornou uma força
ativa no processo de produção. Ora, no trecho de Hardt e Negri anterior
mente citado, eles dizem algo bem diferente, ou seja, que não se pode mais
fazer distinção entre capital variável e capital constante, porque a criação
de valor seria obra exclusiva do poder cooperativo da força de trabalho,
independentemente do capital. Ocorre que o termo capital variável designa
a força de trabalho comprada pelo capitalista enquanto forma, ou seja, en
quanto uma das duas formas básicas do capital produtivo à disposição do
processo de produção capitalista. Igualmente, o termo “capital constante”
designa os meios de produção, não em si mesmos, mas somente também
enquanto forma, ou seja, enquanto a outra forma do capital produtivo,
antitética à primeira. A força de trabalho, ao contrário do que pensam Hardt
e Negri, não gera valor enquanto força de trabalho, mas apenas enquanto
forma do capital. Segundo Marx, o capitalista organiza a produção porque
comprou o uso da força de trabalho e, assim, transformou-a em capital va
riável; segundo Hardt e Negri, ocorre o contrário, ou seja, o capital é variável
porque o capitalista detém a “capacidade de orquestrar a produção” . Ora,
independentemente da relação social de capital, aquém e além do capita
lismo, a força de trabalho só pode gerar valores de uso. Dito de outro modo,
esses dois autores atribuem capacidade de produção de valor à força de
trabalho independentemente de suas determinações formais. Isto mostra
novamente o caráter fetichista das suas concepções.
É certo que nessas novas condições a produção da riqueza passa, para
Marx, a depender da ciência e da tecnologia mobilizadas durante o tempo
de trabalho:
grande indústria. Logo que o trabalho em forma imediata deixa de ser a grande
fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser a sua medida
c por isso o valor de troca [deve deixar de ser a medida] do valor de uso. (MARX
apud FAUSTO, 2002, p. 129)
9
Mesmo porque uma parte importante da produção capitalista mundial ocorre ainda sob as condições
características da grande indústria.
10Como se sabe, o capitalismo monopolista não suprime nem a concorrência nem a rivalidade entre os
capitais.
68
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
" Nas condições do capitalismo da pós-grande indústria pode ser dito, pois, que há um reforço da tendência
I >ara a invalidação da norma ou lei interna que regula a formação dos preços de mercado, já que se observa
um afastamento persistente em relação às condições de concorrência, não simplesmente porque a
(irfianização da produção é monopolista, mas porque se trata da monopolização de recursos intelectuais,
culturais, etc. Nessas circunstâncias, as empresas buscam garantir lucros, superlucros e rendas financeiras
com base na detenção de propriedade intelectual (patentes, marcas, designs, direitos autorais, direitos de
In lagem, etc.), informação privilegiada, propaganda e publicidade, etc. de m odo generalizado (PERELMAN,
2003). Os chamados bens públicos tornam-se passíveis de privatização.
69
TRABALHO IMATERIAL E FETICHISMO
12
Um outro exem plo é a própria democracia publicitária e m ercadológica que domina na esfera política e
que se apresenta com o a verdadeira democracia. Nesse sentido, também, o pós-modernismo cultural, com
sua ênfase na diferença, na heterogeneidade, na dissolução das metanarrativas, nos jogos de linguagem,
pode ser enxergado com o a ideologia do capital, no plano da cultura, na atual fase do capitalismo.
13É preciso não confundir o controle sistêmico total com o totalitarismo. A este último associam-se as seguintes
características: fusão da sociedade civil no Estado, dissolução da esfera privada, terror com o instrumento, iiso
da mentira na formação da vontade, o Estado assume a violência. Por outro lado, são características do conl role
sistêmico total: ampla mercantilização das relações sociais, privatização da esfera pública, com pelir.'» i
desenfreada, criação de desejos pela propaganda, o emprego da violência pelo Estado torna-se hipócrita.
14 É a percepção desse fato que leva um autor com o Melman a dizer que “o capitalismo está em processei
de transformação, caminhando para uma econ om ia baseada na dem ocracia no local de trabalho"
(MELMAN, 2001).
70
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
15
Em particular, Hardt e Negri prevêem uma espécie de dissolução dos Estados nacionais no que chamam
de “ Império” e que definem com o uma nova soberania global. Esta nova ordem, que viria para substituir o
imperialismo, estaria em processo de emergência. Na verdade, o que se vê emergir atualmente é o império
dos Estados Unidos, que hierarquiza os Estados nacionais e que põe o seu próprio Estado no topo, o que
pode ser encarado, talvez, c om o um estágio superior e final do imperialismo. Hardt e Negri com etem esse
erro por verem o Estado capitalista primariamente com o uma ordem jurídica e política de dominação, e não
com o algo que deve ser derivado das contradições entre a aparência e a essência do m odo de produção
capitalista (FAUSTO, 1987, p. 329). Na nova fase, o capitalismo afigura-se com o globalização dos mercados,
difusão da democracia, modernização reflexiva, pós-modernismo; na essência, ele é “ditadura” do capital
financeiro, formação publicitária da vontade, produção de conhecimento e cultura com o negócio, subsunção
lormal e intelectual do trabalho ao capital (ou pós-grande indústria).
C r ític a à econ om ia p o lític a d o im a te ria l1
Introdução
André Gorz publicou O imaterial - conhecimento, valore capital (GORZ,
2003), livro em que trata das transformações do capitalismo que se inicia
ram após o final da Segunda Guerra Mundial, mas que ocorreram, especial
mente, nas duas últimas décadas do século XX. Conforme diz, elas levaram
o sistema econômico atualmente existente a um novo estágio de desenvol
vimento, que ele classifica de pós-moderno. O ponto central de toda a sua
argumentação é que, em virtude de uma metamorfose do próprio trabalho,
o capitalismo perdeu sua medida reguladora interna. Se o valor era a norma
do modo de produção capitalista no século XIX, agora ele não tem mais
qualquer norma. Se os preços no século XIX eram regulados pelo valor, agora
os preços tornaram-se puramente relativos. E a causa dessa formidável
mudança, segundo ele, deve ser encontrada no fato de que o trabalho tor
nou-se “imaterial” .
Como Gorz compreende a questão da redução do trabalho complexo a
trabalho simples de um modo estranho ao de Marx, na seção que se segue
é apresentada uma crítica desse ponto, o qual, sem dúvida, é responsável
por algumas dificuldades de seu livro. Em seqüência, faz-se uma crítica do
conceito de “trabalho imaterial” e, especialmente, do conceito de “capital
humano” que Gorz emprega e endossa, pois eles retratam de um modo
agudo as conseqüências ideológicas de sua falta de compromisso com o o
modo de pensar o capitalismo estabelecido por Marx. Essas duas seções
representam os momentos negativos deste capítulo.
Entretanto, com o o problema posto pelo livro de Gorz é real e significa
tivo, outros momentos, agora positivos, vêm completá-los. Na terceira se
ção, com o intuito de bem compreender a mutação do capitalismo discuti
da por esse autor contemporâneo, é feito um retorno aos textos dos
Grundrisse. Procura-se, em primeiro lugar, recuperar as antecipações de Marx
Trabalho e medida
Gorz abre seu livro com um parágrafo que anuncia o problema enfrenta
do, qual seja, o da compreensão de uma mutação na produção capitalista
ocorrida nas décadas finais do século XX. O trecho remete claramente à tra
dição de pensamento crítico que vem de Marx, já que caracteriza o capitalis
mo como um modo de produção heterogêneo e complexo. Aparecem, entre
tanto, em seu texto categorias econômicas usualmente empregadas em es
critos sobre o momento atual da economia e da empresa capitalista, os quais
Marx classificaria como pertencendo à economia vulgar. Para discutir suas
idéias, é preciso apresentar esta abertura, que é bem representativa:
que ludo o que se segue tem por referencia a mercadoria, ou seja, um pro-
duto do trabalho que se torna social por meio da troca. Na verdade, a mer
cadoria é aqui a forma geral da relação social numa economia capitalista
desenvolvida. Como ponto de partida, é preciso considerar o contexto soci
al do marxismo clássico. Nessas condições, a própria existência da merca
doria já pressupõe que o produto do trabalho possa ser reproduzido social
mente com certa regularidade. Trata-se, portanto, da produção de valores
de uso reprodutíveis, manifestem-se eles com o coisas independentes do
trabalho (bens) ou apenas com o atividades (serviços).
A mercadoria é uma unidade de contrários: valor de uso e valor. O traba
lho produtor de mercadoria também é uma duplicidade antitética: concreto
e abstrato. O primeiro responde pelo valor de uso e o segundo é a substância
do valor. O trabalho concreto é o trabalho como o conhecemos na vida cotidi
ana. É atividade com um conjunto determinado de qualidades capaz de ge
rar um objeto de uso característico. Já trabalho abstrato é puro dispêndio de
força humana de trabalho e, como tal, é a substância do valor. Sua existência
depende de um processo social de redução que abstrai o conjunto das qua
lidades constitutivas do trabalho concreto, para que uma delas seja posta
como quantidade. O trabalho concreto é simples quanto tem poucas quali
dades diferenciais e é empregado em muitas atividades sem adaptações sig
nificativas. O trabalho simples é a manifestação concreta mais próxima do
trabalho abstrato. O trabalho concreto é complexo quando envolve um gran
de número de qualidades diferenciais, as quais o tornam apropriado ou à
produção de valores de uso bem característicos ou ao exercício de funções
bem demarcadas na produção de valores de uso.
Dito isso, torna-se necessário notar, então, que Gorz confunde as duas
dimensões inerentes ao trabalho no capitalismo: trabalho concreto e traba
lho abstrato. Para que isto apareça de um modo claro, entretanto, é preciso
seguir uma rodada de argumentos.
Marx conceitua o trabalho concreto, em sua generalidade, como “dis
pêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos, etc.” (MARX, 1983a, p.
51). Evidentemente, a partir disso é possível distinguir entre trabalho manual
e trabalho intelectual: o primeiro é atividade que materializa valores de uso
mediante o emprego, principalmente, das habilidades corporais do homem,
em especial de suas mãos. O segundo é ação que materializa bens e servio >s
que dependem principalmente das capacidades inerentes ao cérebro huma-
74
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA D O VALOR
2
Na verdade, Gorz está transpondo para o interior da teoria crítica formulações vulgares de autores com o
Rifkin: “Conceitos, idéias e imagens - e não as coisas - são os componentes verdadeiros do valor na nova
economia. A riqueza não se origina mais do capital físico, mas sim da imaginação e da criatividade humana."
(RIFKIN, 2000, p. 5)
76
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
prio trabalho3. Ainda que essa transformação tenha sido apreendida como
transformação do trabalho concreto, daí ele tira conseqüências para o de
senvolvimento do valor como medida. Isto fará com que ele caia - como será
visto - na chamada ilusão convencionalista, que consiste em identificar o
valor com o valor de troca. No mesmo parágrafo aparecem termos como “ca-
pital-conhecimento” e “capital humano”, e isto mostra que Gorz identifica a
forma da relação de capital com os conteúdos materiais que lhe dão suporte,
o que indica que ele cai também na ilusão fetichista. Para que isto fique claro,
o tema é discutido na próxima seção deste trabalho.
Nos parágrafos de seu livro que se seguem àquele aqui transcrito, Gorz
vale-se do próprio Marx para compreender historicamente essa mutação do
capitalismo. O esclarecimento da questão, pois, requer um retorno aos textos
do próprio Marx. A partir daí será, então, possível voltar à questão do valor
para reinterpretar aquilo que Gorz chama de “crise do valor” e para pôr em
questão o caráter do atual momento do desenvolvimento do capitalismo.
1 Entre os autores marxistas há uma enorm e resistência à aceitação de que houve uma mudança estrutural
no capitalismo nas décadas finais do século XX. Ver, por exemplo, Callinicos (1989), W ood (1998) e Brennan
(2003). Talvez isso se dê porque o próprio capitalismo, assim compreendido, pareça escapar das análises
contidas principalmente em O Capital.
77
CRÍTICA À ECONOMIA POLÍTICA DO IMATERIAL
mem negado (do homem suporte) e não do homem sujeito, o qual aind;i
não foi posto historicamente.
Mas isto não é tudo. A própria expressão “homem-suporte como con
teúdo do capital” , sem outras qualificações, seria bem problemática. Sabe-
se que Marx faz uma distinção entre o trabalhador e sua força de trabalho; o
primeiro é o proprietário privado da capacidade de trabalho e esta última
existe como potência inerente à corporeidade e à subjetividade do trabalha
dor. No modo de produção capitalista, o trabalhador vende o valor de uso
de sua força de trabalho para o capitalista e este o emprega, com o trabalho,
na produção de mercadorias. Nesse caso, a força de trabalho enquanto
virtualidade é trocada com o capital variável pertencente ao capitalista e,
nessa condição, torna-se propriedade dele. Diz Marx: “na base da produção
capitalista o próprio trabalhador, depois de seu ingresso no processo de pro
dução, constitui um ingrediente do capital produtivo posto em função e per
tencente ao capitalista” (MARX, 1983a, p. 24).
O conceito de capital humano adquire proeminência na prática e no
imaginário social quando a força de trabalho tecno-científica aparece histo
ricamente com o fonte importante da riqueza, quando o fetiche do sistema
de máquinas com o capital é gradativamente substituído pelo fetiche do tra
balhador produtor de valores de uso ditos imateriais com o capital. E assim,
ele encobre uma forma de subordinação, seja dos trabalhadores contrata
dos de forma permanente, seja dos trabalhadores temporários - cuja propor
ção na força de trabalho, aliás, tem aumentado com a desregulação desse
mercado nas últimas duas décadas. Seja como for, de um modo ou outro a
empresa capitalista hoje precisa subsumir intelectualmente - e de uma for
ma totalizadora - o trabalhador ao capital, exigindo dele, inclusive, uma
disposição permanente para o automelhoramento profissional.
Em certas empresas, por exemplo, o capitalista dispõe-se a fazer inves
timentos na constituição da força de trabalho contratada e que permanece
à disposição com o mão-de-obra qualificada. A empresa - forma jurídica do
capital particular - paga, por exemplo, o treinamento especializado, a parti
cipação em cursos, de uma parte maior ou menor da força de trabalho aí
empregada. Eis que, assim, essa força de trabalho melhorada em sua com
petência produtiva por iniciativa do capitalista institucional parece perten
cer-lhe não apenas como algo que ele emprega por certo período e que usa
CRÍ TICA À ECONOMIA POLÍTICA DO IMATERIAL
até certo ponto, mas como capital fixo da empresa4. O contrato de trabalho
entre o capitalista e o trabalhador parece tornar-se, ainda que aberto e su
jeito a um rompimento unilateral, de longo prazo.
Esse investimento, entretanto, não é algo que faz parte do capital cons
tante do capitalista; diferentemente, constitui uma modalidade de capital
variável. Ao invés do capitalista pagar um salário maior ao trabalhador, do
qual uma parte poderia ser despendida, eventualmente, em treinamento
especializado, é o próprio capitalista que se encarrega de gastá-la em seu
próprio nome na força de trabalho do trabalhador - não em nome do traba
lhador. O capitalista, procedendo desse modo, além de comprometer o tra
balhador com a empresa no longo prazo, obtém uma dupla vantagem adi
cional: primeiro, faz com que esse gasto pareça uma concessão e um bene
fício voluntário que ele dá àqueles que emprega e, segundo, ele orienta o
gasto destes últimos no seu próprio interesse de capitalista.
Nesse caso - e mesmo no caso em que a educação e o treinamento do
trabalhador são inteiramente feitos com recursos postos à disposição do Es
tado a força de trabalho se afigura “do ponto de vista do processo de produ
ção imediato” e, assim, também do capitalista aparentemente benemerente,
como capital fixo que pertence à empresa - não, entretanto, num sentido
forte. Pois, mesmo nesse caso, esse “capital fixo” é encarado como virtual
pelo empreendimento capitalista. Ele não é, e não pode ser, sua propriedade
integral; ademais, ele não pode também ser depreciado tal como o capital
fixo verdadeiro que pertence à empresa (com o o capital investido em máqui
na, por exemplo). Apenas pode ser incorporado ao valor da mercadoria por
meio da criação de valor novo, ou seja, passando da potência ao ato - de
força de trabalho a trabalho - num processo que, como se sabe, reproduz o
custo da força de trabalho e gera a mais-valia. Tem-se, assim, um “capital
fixo” que nada mais é do que uma transfiguração do capital variável.
A distinção entre capital fixo e circulante diz respeito aos diferentes
modos de rotação do capital adiantado. No contexto amplamente analisa
do pela Economia Clássica, o capitalista adianta capital para a compra de
Assim, essa expressão, com toda a carga de engano que carrega, é con
siderada adequada do ponto de vista dos interesses capitalistas, antes de
tudo porque ela transforma o trabalhador em figurante de capitalista. As
sim, com o o capitalista verdadeiro tem meios de produção tangíveis e in
tangíveis que recebem a forma de capital, o ser vivo trabalhador aparece
como alguém dotado de forças produtivas tangíveis (seu corpo) e intangí
veis (suas capacitações intelectuais), as quais, sob essa metástase expres
siva, podem aparecer agora, igualmente, como detentoras de capital. É cla
ro que a empresa capitalista típica, então, poderá ser encarada com o um
empreendimento coletivo no qual cooperam tipos diferentes de capitalis
tas: os trabalhadores, que são proprietários de capital humano, e os capita
listas, que são proprietários dos capitais materiais (ferramentas, máquinas,
equipamentos, instalações, etc.) e dos capitais imateriais da empresa (fór
mulas de produtos, tecnologias de processos, etc.).
Note-se que as expressões “capital material” e “capital imaterial” , em
pregadas de um modo acrítico por Gorz, são também fetichistas. Elas são
parentes próximos da expressão “capital físico” , largamente empregada
pela teoria neoclássica. Como é valor e, mais precisamente, valor que se
valoriza, não convém ao capital a distinção entre material e imaterial - na
verdade, ele é sempre objetividade social semovente que se apropria de
corpos para neles imprimir suas formas. Rigorosamente, pois, o capital
não pode ser identificado seja com os objetos econômicos tangíveis seja
com o os intangíveis, pois uns e outros se constituem apenas em conteú
dos do capital. Para fazer sem confusão a distinção visada por Gorz é pre
ciso simplesmente falar em meios de produção tangíveis ou materiais e
em meios de produção intangíveis ou imateriais. Lembrando que o capi
tal assume as formas básicas de capital produtivo, capital monetário e
capital-mercadoria, pode-se usar, também, uma expressão mais fortemente
dialética, em que não há reflexão do sujeito no predicado: o capita! produ
tivo, na forma de capital constante, pode ser (ou estar) m eio de produção
material ou tangível ou pode ser (ou estar) meio de produção imaterial ou
intangível5.
Mutação e produtividade
Desmedida do valor
valor de uso - pois valor e valor de uso, com o se sabe, são contraditórios. O
termo “valor desmedido” parece, por isso, melhor,
De qualquer modo, se o “valor” deixa de ser um quantum de tempo de
trabalho abstrato, é porque sofreu um abalo significativo. Sua existência, en
tretanto, não pode ser contestada no interior da lógica de O Capital. Continua
a existir, portanto, uma avaliação, e esta, mesmo sendo qualitativa, requer
necessariamente expressão na forma quantitativa, a saber, na forma preço. A
medida interna do modo de produção capitalista torna-se desmedida, sem
que haja restauração da medida - possibilidade que está contemplada na
Lógica de Hegel. Frente à lógica do próprio sistema econômico como um
todo, então, as proporções que regulam as relações sociais de produção ca
pitalistas e que aparecem em sua superfície como proporções em que se
trocam as mercadorias, tornam-se até certo ponto arbitrárias. Em conseqü
ência, os preços ganham um elemento convencional - possibilidade esta,
aliás, que não pode ser considerada estranha à lógica de O Capital6.
Também não deve surpreender que uma avaliação qualitativa possa
ser traduzida de modo quantitativo. Passando do plano do inconsciente so
cial para o plano da mediação consciente ou subconsciente, vê-se que isto
ocorre freqüentemente. O sucesso de um corredor de maratona, por exem
plo, expressa-se precisamente no tempo que ele leva para percorrer os 42.195
metros dessa prova; já a habilidade e a beleza da exibição de uma ginasta
olímpica é representada por meio de uma convenção adotada pelos jura
dos esportivos, numa escala cardinal de pontos. No primeiro caso, a medi
da se dá em termos estritamente quantitativos; no segundo, entretanto, a
qualidade é transformada em quantidade por uma operação que envolve
regras de conversão tacitamente aceitas - ou, eventualmente, impostas por
quem tem mais poder.
De acordo com Marx, o valor é uma norma reguladora das relações soci
ais no m odo de produção capitalista porque, nesse sistema altamente com
plexo e que opera de m odo descentralizado, elas se dão por m eio das trocas,
de m odo independente da consciência dos agentes que se tomam, por isso
mesmo, seus suportes. Nesse sistema, o produto do trabalho assume neces
sariamente a forma mercadoria e, sob essa forma, tem necessariamente de
ser valorado, seja por m eio do valor simplesmente ou do valor desmedido.
Na grande indústria, o valor resolve-se em tempo de trabalho socialmente
necessário. Entretanto, na pós-grande indústria, com o já se disse, o tempo de
trabalho direto empregado na produção perde importância na produção da
riqueza. Por um lado, o tempo de trabalho concreto gasto na produção perde
expressão com o fonte da força produtiva. Por outro, em conseqüência, o tempo
de trabalho em si m esm o deixa de ser a fonte exclusiva do valor, de tal m odo
que o valor deixa de ser estritamente um quantum de trabalho socialmente
necessário m edido pelo tempo.
Porém, não se trata de dizer que a ciência e a tecnologia em si mesmas,
independentem ente do trabalho, são agora as produtoras do valor. Quem
produz valor é ainda o trabalho, mas este agora, enquanto trabalho concre
to, transformou-se em trabalho criativo, inteligente, cognoscitivo, etc., ou
seja, atividade produtiva que exige a m obilização de conhecimentos, os
quais, por sua vez, são partes da força produtiva social - do intelecto coleti
vo da sociedade. Em conseqüência, dada a relativa irrelevância do tempo
de trabalho e a proem inência da qualidade desse tempo, a ciência e a
tecnologia tornam-se produtoras de “valor” por m eio de trabalho. Assim,
m esm o se o tem po de trabalho socialm ente necessário é suprimido com o
m edida da riqueza capitalista, esta tem ainda de ser medida. O valor des
m edido continua dependente de um processo social de redução - mas este
não é mais uma operação puramente quantitativa.
Valore regulação
quados à forma mercadoria, tal com o ocorre quando eles vêm a ser coi
sas - pois coisas são objetos cuja existência material é apartada do pró
prio trabalho. Eis que o fetiche da mercadoria consiste precisamente no
fato de que o caráter social do trabalho figura com o característica natural
nos produtos do trabalho.
Note-se, entretanto, em segundo lugar, que em toda a fase da grande
indústria, seja ela competitiva ou monopolista, o modo de produção capita
lista dedicou-se principalmente à produção de coisas, ou melhor, de coisas-
mercadorias. Já no período monopolista, as empresas que se transforma
vam em corporações gigantes descobriram que a ampliação em grande
escala da produção requeria não apenas uma certa homogeneização dos
produtos, a produção em massa, mas também a recriação constante das
necessidades por meio da propaganda, do marketing e da indústria cultu
ral. Assim, criou-se historicamente, com o uma necessidade imperiosa, todo
um modo de produzir que foi denominado, de modo mais descritivo do que
teórico, “de massa” ou “fordista”. Neste, as necessidades, as quais anterior
mente vinham-se originando num mundo da vida social e cultural reprodu
zido de modo autônomo, e que eram premissas não-econômicas da produ
ção capitalista, passaram elas mesmas a serem criadas em função do cres
cimento da própria produção capitalista. As necessidades de consumo fo
ram, então, funcionalizadas pela acumulação de capital.
Tudo isso sofre uma nova mudança na pós-grande indústria. Não ape
nas amplia-se notavelmente a produção de serviços sob o mando da repro
dução de capital, mas também a própria fabricação de coisas é transforma
da gradativamente em algo próximo da prestação de serviços. E isto ocorre
justamente porque a produção de massa é substituída mais e mais pela
produção aparentemente personalizada, que apela aos gostos e desejos de
indivíduos postos objetivamente com o pessoas despersonalizadas, mera
mente contemplativas e manipuláveis. Por criação e recriação geram-se cada
vez mais necessidades imaginárias de indivíduos cada vez mais narcisistas,
de tal modo que as próprias coisas se transfiguram em imagens e represen
tações de que as próprias coisas enquanto tais são apenas suportes. É as
sim que a produção capitalista em estágio avançado repõe o fetiche da
mercadoria, fazendo com que o caráter social do trabalho deixe de se apre
sentar como naturalidade de coisas para passar a figurar como artificialidade
93
CRÍTICA À ECONOMIA POLITICA DO IMATERIAL
7O que constitui o fetiche é a aparente autonomia das coisas e dos eventos frente à consciência alienada d< >
“agente” econôm ico. Essa autonomia decorre do processo social cego, mas ela aparece porque rcl.K/irn
sociais assumem seja uma forma natural seja uma form a naturalizada.
94
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
Conclusão
Ainda que por um caminho que se afasta do legado de Marx, certas
conclusões de Gorz mostram-se bem corretas. Seu ponto principal é que “o
capitalismo chamado de cognitivo” - e por isso deve-se entender que este
modo de produção já entrou numa fase em que o conhecimento se torna
mais e mais o principal conteúdo do capital - “é já a crise do capitalismo”
(GORZ, 2003, p. 53). A economia baseada no trabalho conceituai e no co
nhecimento científico e tecnológico avançado é incongruente com a rela
ção de capital.
Como se sabe, a justificação histórica do modo de produção capitalis
ta, ou seja, do sistema baseado na coerção do trabalho vivo pelo trabalho
morto, é o aumento da produtividade e a acumulação de riqueza. Suas con
dições básicas são a propriedade privada dos meios de produção e o traba
lho assalariado. Ora, isto atinge seu apogeu na grande indústria. Pois - em
pregando o termo que Marx não empregou -, na pós-grande indústria, “o
mais-trabalho da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da
riqueza social, assim como o não-trabalho de uns poucos [deixa de sê-lo]
para o desenvolvimento da potência geral do intelecto humano” (MARX,
1973, p. 705). O que se torna, então, uma necessidade histórica é a abolição
da relação de capital e do trabalho assalariado, ou seja, o advento de um
novo modo de produção no qual possa ocorrer o pleno desenvolvimento
das capacidades científicas e artísticas de todos os homens. Isto requer a
eliminação da penúria em que vive grande parte da massa de trabalhado
res e o fim do antagonismo de classe, de tal modo que a produção da rique
za possa estar baseada na cooperação voluntária e espontânea de traba
lhadores livremente associados.
V alo r d esm ed id o e
DESREGRAMENTO DO MUNDO
Este artigo tem dois pontos de partida que parecem tão distintos o
distantes quanto o planeta Mercúrio (que é quente) e o planeta Plutão
(que é gélido).
O primeiro deles encontra-se num livro de uso muito difundido em es
cala mundial no ensino de administração de empresas, A estratégia em ação,
de Robert Kaplan e David Norton (1997). Trata-se de um circunspeto manu
al que busca ensinar com o se deve organizar e gerenciar uma empresa ca
pitalista num mundo caracterizado pelo predomínio das tecnologias da in
formação e da comunicação. Segundo eles: “O ambiente da era da infor
mação, tanto para as organizações do setor de produção quanto para as do
setor de serviços, exige novas capacidades para assegurar o sucesso com
petitivo. A capacidade de mobilização e exploração dos ativos intangíveis
ou invisíveis tornou-se muito mais decisiva do que investir e gerenciar ati
vos físicos tangíveis.” (KAPLAN; NORTON, 1997, p. 3)
Dito de outro modo, nas novas empresas avançadas tecnologicamente
os meios de produção cruciais deixam de ser principalmente as máquinas
e os sistemas de máquinas que operam mediante coerência mecânica para
passar a consistir de sistemas ativos de organização do conhecimento que
funcionam segundo a lógica cibernética. Eis que isto exige, segundo cons
tatam os autores, uma mudança substantiva no modo de avaliar o desem
penho da empresa:
Por ineio dessas citações, são apresentadas duas visões sobre a que.s-
tão da medida das atividades econômicas num certo estágio de desenvolvi
mento do capitalismo e da empresa capitalista. De início, é. preciso exai i iii iá-
las em separado.
lho utilizado do que daforça dos agentes que são postos em movimento duran
te o tempo de trabalho, cuja poderosa efetividade (powerful effectiveness) , ix >i
sua vez, não tem mais nenhuma relação como o tempo de trabalho imediato
que custa a sua produção, mas depende antes da situação geral da ciência, do
progresso da tecnologia ou da utilização da ciência na produção. [...] [Então,] o
roubo de tempo de tempo de trabalho alheio sobre o qual repousa a riqueza
atual aparece como base miserável diante dessa base que se desenvolve pela
primeira vez criada pela própria grande indústria. (MARX, 1973, p. 705)
2 Ou seja, aquilo que resulta da combinação de muitos trabalhos particulares e que é superior à mera soma
desses trabalhos particulares.
' Como já foi dito em outro lugar, isto não significa que a ciência cria valor, mas sim que a criação de valor
pelo trabalho é qualitativa, pois passa a depender das qualidades desse trabalho, as quais não podem mais
ser reduzidas para constituir a medida “ tempo de trabalho abstrato” .
r 103
VALOR DESMEDIDO E DESREGRAMENTO DO MUNDO
4Isto não significa, entretanto, que “a lógica da contradição toma o valor trabalho uma categoria evaneso-ui«-
o que abre apenas o espaço para dizer que “na investigação dos preços, a inspiração deve partir de Koyi i<"
104
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA D O VALOR
cuja forma de pensar a economia monetária da produção permitiu-lhe teorizá-los a partir do salário nominal,
dos contratos [...] e do custo de reposição do capital (preço de oferta), todos referidos ao dinheiro” (BRAGA,
1996, p. 97-99).
105
VALOR DESMEDIDO E DESREGRAMENTO DO MUNDO
5A ló gic a mecânica raciocina sempre c o m a relação de causa e efeito, pressupondo um mundo formai le i
por regularidades regidas por forças deterministas e que se expressam em leis simples e uniformes. A
lógica cibernética raciocina com base na relação d e recursão, pressupondo um mundo formado pm
interações heterogêneas de elem entos heterogêneos das quais resultam propriedades emergentes,
com plexas e incertas.
106
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
bre a força produtiva do trabalho para aumentar sua própria potência. Com
inspiração no próprio Marx pode-se dizer que essa retroação “pode ser vista
como produção de capital fixo, sendo este capital fixo o próprio homem”
(MARX, 1973, p. 712). Em conseqüência, a aplicação da ciência na produ
ção não pode aparecer mais, de modo bem distinto, com o força produtiva
do capital separada da força produtiva do trabalho. Ao contrário, à medida
que o trabalhador deixa de ser um apêndice orgânico do sistema fabril e
passa a atuar com o “criador de sistemas” e “solucionador de problemas”,
tem de ocorrer um reconhecimento explícito de que a força produtiva do
capital tende a depender crucialmente da força produtiva do trabalho. A
primeira, constituída de modo genérico como ciência-capital (ciência que
se tornou forma de capital e que recebeu a forma jurídica do direito de
propriedade intelectual), aparece na literatura vulgar de administração de
empresa e de economia política, de modo fetichista, como “capital intelec
tual da empresa”. Já a força produtiva do trabalhador, em cuja cabeça acu-
mulam-se partes do conhecimento social, é chamada nessa literatura, tam
bém de modo mistificado, de “capital humano”.
Na sociedade atual, aquilo que compõe o conhecimento científico e
tecnológico pode existir socialmente como puro saber livremente disponível
ou como propriedade privada. Nesse segundo caso, ele se transforma em
saber objetivado em meios de produção ou em meios de consumo, ou pode
ainda subsistir como conhecimento diretamente fixado como propriedade
intelectual. No modo de produção capitalista, o conhecimento científico e
tecnológico tem necessariamente de se acumular no capital fixo, já que o
capital fixo é o instrumento por excelência da subordinação dos trabalhado
res e, assim, meio imprescindível de redução do trabalho necessário e de
expansão do trabalho excedente. É como capital fixo, diz Marx, que o capital
produtivo assume o caráter de fim em si mesmo. Na fase da grande indústria,
a geração e a disponibilidade de conhecimentos científicos e tecnológicos na
forma livre, prontos para serem empregados na construção de sistemas de
máquinas cada vez mais poderosos e na organização planejada dos colossos
fabris, é, pois, instrumental para a criação de tempo de trabalho excedente,
ou seja, para o progresso da própria subordinação da força de trabalho ou
progressiva redução do trabalho necessário em favor do aumento da mais-
valia. Ora, na pós-grande indústria, como foi visto, ao mesmo tempo em que
() tempo de trabalho perde centralidade na produção da riqueza, a ciência e a
107
.1
VAI >l< I HiSMEDlDO E DESREGRAMENTO DO MUNDO
■
» ■ m
108
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
6 Sobre isso Rifkin diz: “na nova era, os mercados estão cedendo lugar para as redes de empresas e n
propriedade está sendo firmemente substituída pelo acesso” (RIFKIN, 2001, p. 4). Tal com o Proudhonanlcv.
de Marx, ele não compreende, depois de Marx, que na troca mercantil se transaciona apenas a propriedade
do valor de uso, pois se mantém a propriedade do valor, e que no empréstimo de mercadoria com o capil.il
transfere-se o valor de uso, mas igualmente mantém-se a propriedade do valor da mercadoria. Quem troca
10 reais de banana por 10 reais de laranja, continua sempre com 10 reais; quem empresta 10 reais cm
banana, seja para o com ércio seja para o consumo, continua possuidor dos m esm os 10 reais, os quais, aliás,
quer transformar, após um certo período de tempo, em 12 reais, por exemplo. O mesm o erro é com etido p< >i
Oliveira quando diz: “agora [...] o consumidor não pode fazer o uso que lhe aprouver com aquilo que compre >u.
Há, de fato, uma modificação na propriedade capitalista” (OLIVEIRA, 2004, p. 74-75).
7Pode-se falar, com o Chesnais (2003), em regime de acumulação com dominância financeira, mas é precisi >
ter em mente que o m odo de expansão do capital aqui referido é intrínseco à própria fase histórica <l<>
advento da pós-grande indústria, m esm o que ela não possa existir sem a ação política e institucional da
classe dominante.
lio
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
Chesnais fala aqui de “ ‘queima’ das fronteiras entre ‘lucro’ e ‘renda’ na formação do lucro de exploração
(lucro operacional) dos grupos” (CHESNAIS, 1997, p. 30).
111
VALOR DESMEDIDO E DESREGRAMENTO DO MUNDO
Desregramento do mundo
Em resumo, a força produtiva decisiva na pós-grande indústria é a inte
ligência coletiva mantida e reproduzida pelos gerentes, técnicos e trabalha
dores em suas próprias cabeças, em suas interações, em suas ações como
homens práticos, assim com o ativando os sistemas de informação empre
sariais. As máquinas em sentido amplo continuam evidentemente existiu
do, mas se tornam instrumentos de atuação no mundo social e natural des
se saber científico e tecnológico geral e coletivo. Como o modo de produ
ção é ainda capitalista e está, por isso, baseado na propriedade privada dos
meios de produção e no trabalho assalariado, sobrevêm a exigência de que
partes importantes desse conhecimento coletivo sejam monopolizados con i<>
meio de produção, na forma da propriedade intelectual, por meio de paten
tes, direitos autorais, etc. (TEBECHRANI NETO, 2004). Em conseqüência,
por meio de verdadeiros cercamentos, porções estratégicas do conhecimen
to científico e tecnológico são impedidas de se reproduzirem livremente,
assumindo então a forma de capital fixo da empresa. Os trabalhadores dos
empreendimentos capitalistas que se podem classificar como pós-grande
industriais, guardadas as diferenças que não podem deixar de existir na
hierarquia inerente ao corpo de trabalho sob o modo de produção capitalis
ta, ganham invariavelmente - uns mais, outros menos - a dimensão de
trabalhadores intelectuais.
Mas as empresas pós-grande industriais são encontradas especialmen
te no núcleo tecnologicamente avançado do modo de produção capitalista
que hoje, como se sabe, estende seus tentáculos em escala global, mas
está instalado principalmente nos países do Primeiro Mundo. Para exami
nar as conseqüências dessa transformação assimétrica das forças produli
vas é preciso, num primeiro passo, começar pelas mais gerais, que afetam
a sociedade com o um todo. Em seqüência, é necessário verificar com o elas
incidem sobre os próprios trabalhadores desse núcleo. Finalmente, é preei
so averiguar com o recaem sobre os trabalhadores em geral, especialmente
112
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
que regulam o modo de seu emprego, o que faz dele um atributo de carálei
político. Mesmo a defesa nacional, por exemplo, caso clássico de bem <le
uso não-exclusivo, sob certas circunstâncias pode favorecer a uns e não .1
outros dentro do território de uma nação. Decorre daí que quase não li/t
bens inerentemente públicos ou, dito de outro modo, bens que não poss;mi
ser privatizados por meio de legislação que provém de decisões políticas.
Ora, a pós-grande indústria exige de modo inerente, tal como já se viu, <>
cercamento de uma espécie de valor de uso claramente não-disputável, o
conhecimento, para fazer dele mercadoria que atua como capital. A trai is
formação, em mercadoria, de saberes científicos e tecnológicos impõe uma
lógica de privatização na sociedade que se torna abrangente e devastado
ra: o genoma, o próprio do corpo humano, os produtos da alma, tudo tem
de se tornar objeto de propriedade privada. Privatizar sempre que possível,
não é o primeiro mandamento do neoliberalismo?
A pós-grande indústria requer, pois, o monopólio de recursos essenci
ais para a reprodução da sociedade contemporânea, tais como, por exem
pio, os programas de computador, as fórmulas para a fabricação de rciué
dios, as tecnologias para a produção de sementes, etc. É evidente que
esses recursos tendem a se concentrar no controle de algumas poucas
corporações gigantes e multinacionais, cujo poder tende a ultrapassai,
então, o da grande maioria dos Estados nacionais. Em conseqüência, esse
poder privado desmedido não pode ser mantido sem o apoio dos Estados
nacionais das potências imperialistas. Note-se que o recrudescimento do
imperialismo no final do século XX e no princípio do século XXI tem como
uma de suas motivações principais garantir os direitos de propriedade iu
telectual9por todo o planeta.
Focando estritamente o mundo da “era da informação” , é evidente que
ele carrega em si muitas contradições. Para começar, é possível lembrai
que ele, rigorosamente, tem poucos beneficiários inequívocos: os proprie
5 Diz Shiva, sem se afastar, aliás, da linguagem econôm ica padrão: “Os direitos de propriedade intclcctii.il
são essencialmente distorções de mercado, monopólios e subsídios sancionados por governos. 1’ociii
barreiras territoriais em tecnologias e em invenções de tal m odo que as firmas possam capturar lucros nuilx
altos. No longo prazo, um sistema rígido de propriedade intelectual pode resultar em discriminações ilr
preço e práticas de distorção de mercado tais com o pooling, vendas casadas, licenças cruzadas e reslilçom
de licenciamento.” (SHIVA, 2001, p. 5)
1 14
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
10Depois de estimar que por volta do ano 2000 cerca de metade da população econôm ica ativa da Europa
estaria já nessa condição de ocupação, Ulrich Beck, reconhecendo que o mundo está diante de uma
“econom ia política da insegurança” , pergunta-se “se a democracia será possível depois da sociedade d< >
pleno em prego” . Sem mencionar a necessidade de qualquer mudança nas relações de propriedade, sugere
então que “aquilo que parece o colapso final deve, na verdade, ser convertido num período fundador de
novas idéias e modelos, um período que abrirá o caminho para a sociedade, o Estado e a econom ia do
século XXI” (BECK, 2000, p. 5). Ele apresenta, assim, diante de uma devastação, uma ideologia-utopia eliela
de esperanças vazias para os próximos anos.
1 16
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
" Davis (2004) descreve, nesse sentido, o mundo atual e futuro com o um “planeta de favelas” ,
P ó s -g ra n d e in d ú stria e n e o lib e ra lis m o 1
Introdução
Faz-se normalmente nos dias de hoje uma conexão estreita entre
neoliberalismo e mundialização do capitalismo (a qual é também chama
da, de modo superficial, de globalização). Por mundialização, entende-se
comumente a reconstrução, a unificação do mercado mundial sob a égide
do capital internacional e financeiro; por neoliberalismo, compreende-se o
pensamento político, assim com o a prática de governança e de rees
truturação do Estado, originado do predomínio do capital financeiro em rela
ção ao capital produtivo, em nível global. Essa visão será aqui criticada até
certo ponto. Para apresentá-la de modo sintético, será feito uso aqui de uma
condensação de idéias que se encontra no livro Economia marxista do ca
pitalismo, de Gerard Duménil e Dominique Lévy (2003). Por mundialização,
tais autores entendem uma continuidade e uma ruptura no processo histó
rico de desenvolvimento capitalista:
1Uma versão deste capítulo foi publicada no número 25 da Revista de Economia Política (PRADO, 2005, p. 11 -
27) .[favor informar título da versão, cidade de publicação, paginação do artigo e mês/ano da publicai,aci,
para inclusão na lista de referências][pendência perm anece] Pós-grande indústria e Neoliberalismo, SAo
Paulo, janeiro-março de 2005, p. 11-27.
1 18
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
dos ganhos dos credores e dos acionistas; o recuo das intervenções estatais
em matéria de desenvolvimento ou proteção social; o crescimento espetacu
lar das instituições financeiras; a criação de novas relações entre os setores
não-financeiros e financeiros com vantagens para estes últimos; uma nova
atitude favorável às fusões e aquisições; uma grande desregulamentação fi
nanceira; um reforço do poder e da autonomia dos bancos centrais cuja ação
se concentra na estabilidade dos preços; a determinação de drenar para o
centro os recursos da periferia. O neoliberalismo dá novas formas à
mundialização, notadamente aquelas da dívida do Terceiro Mundo e estragos
causados pela livre mobilidade dos capitais. A característica principal da fase
atual é sua extensão gradual ao conjunto do planeta, sua própria mundialização.
(DUMÉNIL; LÉVY, 2003, p. 29)
É preciso notar que toda essa caracterização, a qual não deixa de ter
seu interesse para o entendimento da questão, concentra-se em apontar
rupturas nas formas fenomenais do capitalismo contemporâneo. Ora, assu-
me-se aqui que as indagações sobre a natureza da mundialização e do
neoliberalismo só podem ser esclarecidas investigando as mudanças que
estão ocorrendo na base do modo de produção capitalista, ou seja, na for
ma de subsunção do trabalho ao capital, ou ainda, dizendo de outro modo,
na disciplina do capital. Não se procura pensar os fenômenos contemporâ
neos a partir de uma análise da repartição da renda e da riqueza, o que, em
última análise, remete às lutas de classes, de modo imediato. Diferente
mente, procura-se pensá-los a partir de seus fundamentos econômicos es
truturais. A questão do modo histórico pelo qual o neoliberalismo se impõe
e se espalha no mundo deve ser enfrentada apenas num segundo momen
to - o que, aliás, não é feito neste texto.
O capitalismo, como já foi dito, está saindo da etapa de grande indús
tria para passar para a fase da pós-grande indústria e a matéria privilegiada
da relação de capital - este, lembrando, só existe por meio de suas formas
- está se modificando. Se antes a matéria por excelência do capital era o
sistema de máquinas, agora é o que Marx denominava de inteligência cole
tiva (general intellect), ou seja, uma força produtiva social inerentemente
desterritorializada que pode estar, em princípio, em todos os lugares ao
mesmo tempo. Se antes o capital produtivo aparecia, sobretudo, com o ati
vo físico (máquina, fábrica, etc.), agora ele se configura de modo especial
como ativo intangível (informação, conhecimento, etc.). São diversas as
conseqüências dessa transformação do modo de produção: dentre essas,
1 19
PÓS-GRANDE INDÚSTRIA E NEOLIBERALISMO
2 Perry Anderson nota que os defensores da propriedade privada, no passado, evitaram “propor uma ideologia
expressamente capitalista”, mas que, diferentemente, com a chegada do neoliberalismo, “pela primeira v<•/.
na história, o capitalismo se proclama com o tal, numa ideologia que anuncia a chegada de um ponto final
no desenvolvimento social, uma construção de uma ordem ideal baseada em mercados livres, além da qual
qualquer aperfeiçoamento substancia! seria inimaginável” (ANDERSON, 2003, p. 84 e p. 87). Ele nada diz,
entretanto, sobre as condições materiais históricas que tornaram essa ideologia possível.
3 Wallerstein identifica também essa primeira mudança, mas não com o negação; em conseqüência, ele
apenas poderá enxergar o neoliberalismo, erroneamente, com o um retorno: “O que é importante perc< ■!>< i
é que esse ‘contra-ataque’ é uma reversão de estratégia pelas classes privilegiadas, ou ainda um retorno à
estratégia do pré-1848, na qual se administrava o descontentamento dos trabalhadores conjugando indiferença
e repressão. Após 1848, até 1968, as classes privilegiadas tentaram apaziguar a classe trabalhadora alravcS
da instituição do Estado liberal em com binação com doses de concessões econômicas. A estratégia 1« >1
politicamente vitoriosa. Elas apenas reverteram essa estratégia quando acon ta tornou-se muito alia, o que
apenas ocorreu recentemente." (apud BEYNON, 2003)
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
' Conforme Dobb (1983, p. 15), o período histórico da manufatura vai de meados do século XVI ao último
quartel do século XVIII, quando então se inicia o período histórico da grande indústria. O período da grande
indústria, com o já se argumentou, termina na década de 70 do século XX, quando então se inicia o período
da pós-grande indústria.
J O período de formação do liberalismo clássico vai de meados do século XVIII a m eados do século XIX
(fisiocracia e econom ia clássica; Quesnay e Adam Smith são os grandes nomes). O período do liberalismo
social vai do final do século XIX até os 30 anos posteriores à Segunda Guerra Mundial (marcado por nomes
com o John Stuart Mill, Alfred Marshall e John M. Keynes). A partir de então tem-se o período do neoliberalismo
(em que avultam os nomes de F. A. Hayek e L. Von Mises). A predominância dessas ideologias tem, entretanto,
uma história muito complicada. Ver, por exemplo, Polanyi (1980) e Yergin e Stanislaw (2002).
121
PÓS-GRANDE INDÚSTRIA E NEOLIBERALISMO
8Coriat distingue, nesse aspecto, as indústrias de processo contínuo em que os trabalhadores, agora polivantos,
atuam de fato com o supervisores e controladores externos do processo de produção, das indústrias de
produção em série, utilizadoras intensivas de robôs, em que os trabalhadores continuam submetidos ao
ritmo de produção. Nesse caso, ele diz que os trabalhadores atuam com o acompanhantes próximos do
processo de produção. Isto mostra que as novas forças produtivas, pelo menos dentro da disciplina do
capital, apresentam pouco potencial de liberação. Ver Coriat (1988, p. 111-116).
126
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
los iguais, mas dava suporte a um sistema caracterizado, seja no nível naci( >-
nal seja no nível internacional, por uma desigualdade gritante. O liberalis
mo, entretanto, não enxergava aí contradição alguma: ele via apenas dife
renças entre indivíduos que espelhavam e estimulavam a livre competição.
Tais diferenças são, pois, o resultado necessário de um processo social pro
gressivo baseado na livre iniciativa das pessoas. Daí - com o também apon
ta Wallerstein - que tenha sempre posto ênfase no processo. A economia
de mercado origina uma sociedade dinâmica, que no curto prazo premia
uns - ou seja, aqueles que trabalham mais, poupam mais, têm mais com
petência, etc. - em relação a outros e no longo prazo premia a todos porqi ie
a grande maioria melhora. Por isso o liberalismo costuma afirmar o aperfei
çoamento racional do sistema por meio da engenharia social, que opera
aos poucos, corrige as distorções e abre novas oportunidades, gerando, pelo
menos com o tendência, uma sociedade justa.
Porém, isto não está mais no horizonte; ademais, a negação dessa pre
missa assinala a negação do próprio liberalismo enquanto tal. Para compre
ender essa e outras antinomias tão características do capitalismo é preciso
começar por compreender o liberalismo em geral e, em particular, em sua
forma clássica.
A contradição do pensamento liberal está enraizada no próprio capitalis
mo. Assim como o Estado9, esse pensamento político deve ser derivado da
contradição entre a aparência e a essência desse modo de produção. Dito de
outro modo, ele decorre da contradição entre a circulação mercantil, superfí
cie em que os homens aparecem como indivíduos, iguais possuidores de
propriedade, livres e racionais, e a sua essência, em que esses homens são
membros de classes sociais, inerentemente desiguais e que atuam como
suportes de relações sociais que se reproduzem cega e infinitamente. Na apa
rência da circulação, trabalhadores e capitalistas trocam equivalentes, mas
abaixo dessa superfície encontra-se o contrário; a reprodução reiterada da
relação social de produção mostra o fundo do sistema, ou seja, que o traba
lho morto se nutre do trabalho vivo e que aquela relação era verdadeiramei i
te uma relação entre desiguais, uma relação por meio da qual a classe dos
10Ninguém melhor do que Polanyi criticou a idéia de que o capitalismo prescinde da intervenção estalai. "A
história econômica mostra que a emergência de mercados nacionais não foi, de forma alguma, o resullac l<m la
emancipação gradual e espontânea da esfera econômica do controle governamental. Pelo contrário, o merr, nl<>
foi a conseqüência de uma intervenção consciente, e às vezes violenta, por parte do governo que impA* à
sociedade a organização do mercado, por finalidades não-econômicas.” (POLANYI, 1980, p. 244)
130
ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
Enfim, o neoliberalismo
" Essa historia é contada com o urna grande conquista, do ponto de vista neoliberal, por Yergin e Stanislaw
(YERGIN; STANISLAW, 2002).
I 33
PÓS-GRANDE INDÚSTRIA E NEOLIBERALISMO
12 Uma citação do presidente do Banco Mundial, James D. Wolfensohn, é bem ilustrativa. Segundo rl<\
“longe de fornecer evidência para a defesa de um Estado mínimo, as experiências bem-sucedidas de
desenvolvimento mostraram que este requer um Estado efetivo, que possa ter um papel facililadoi,
catalítico, encorajador e com plementador das atividades dos indivíduos e dos negócios privados” (apud
HILDYARD, 1997, p. 5).
134
ELEUTÉR10 PRADO - DESMEDIDA DO VALOR
Note-se, em adição, por um lado, que agora não há mais adequação entre
a matéria que dá suporte à forma do capital, ou seja, o conhecimento, e esta
mesma forma, e que, por outro lado, a força de trabalho que mobiliza o conhe
cimento e que faz com que a produção não pare, que empenha para tanto a
própria subjetividade no processo de produção, não é mais perfeitamente apro
priada à exploração do capital. É por isso mesmo que a dominação do capital,
longe de se abrandar, tem de se tornar intransigente e totalizadora, estenden
do-se não apenas sobre o tempo de trabalho, mas também para fora desse
tempo, para a vida do trabalhador como um todo. Este último tem, então, de se
tomar um trabalhador de corpo e alma da empresa capitalista. Mas, desse modo,
o capital, que agora perdeu grande parte de sua aparência como força produti
va material, revela sua essência, pois se afigura como uma forma de sugar a
riqueza gerada pela atividade social - uma atividade que une indissoluvelmen
te o trabalho social com o saber sobre os processos de produção, saber este
que se transforma mais e mais de instrumento de apropriação da natureza em
capacidade de reorganização compreensiva da natureza.
O neoliberalismo é uma forma política em que a unidade social é im
posta por uma ideologia abrangente (educação, alinhamento “voluntário”,
propaganda, espetáculo, etc.) sempre que possível, mas pela força (admi
nistração do medo, vigilância do grande irmão, ações militares, terror de
Estado, etc.) sempre que necessário.
Conforme o neoliberalismo, o Estado dever atuar, sem qualquer vergo
nha, como agente que promove os interesses capitalistas. Representa a op
ção conservadora diante do esgotamento histórico tanto do liberalismo so
cial quanto dos socialismos centrados na ação do Estado. É a ideologia que
defende o sistema capitalista quando a relação de capital se tornou poten
cialmente supérflua e quando a autogestão dos processos de produção pelos
próprios trabalhadores começa a se mostrar uma opção efetiva, mais pro
dutiva inclusive do que a opção gerencial, e que permite um maior grau de
auto-realização. A pós-grande indústria, diz Fausto (2002), pode ser caracte
rizada como “negação” do capitalismo no interior do capitalismo13. Já um
13 Um livro que apreende com argúcia a mudança recente do capitalismo, ainda que com as limitações do
entendimento (no sentido de Hegel), é Império, de Hardt e Negri (2000). Em conseqüência, a crítica deles não
vai suficientemente longe porque, no fundo, apreendem a mercadoria só com o valor de uso e o trabalho só
com o trabalho concreto, conforme se discutiu no capítulo “Trabalho imaterial e fetichismo’’, deste livro.
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PÓS-GRANDE INDÚSTRIA E NEOLIBERALISMO
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