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Alain Badiou
poder absoluto do pai sobre os filhos, da separação oficial entre o pequeno número
comunicação.
O ponto mais impressionante talvez seja que essa saída do mundo da tradição, esse
formas de organização milenares, tenha criado uma crise subjectiva cujas causas e
novo mundo.
formas de concorrência e fazer com que os vencedores concentrem nas suas mãos
os 10% que possuem quase tudo não desejam, de forma alguma, ser confundidos
com aqueles que nada têm. Por sua vez, um grande número dos que partilham entre
si os magros 14% que restam, nutrem um desejo feroz de conservar o que têm. É
esse o motivo pelo qual conferem o seu apoio racista e nacionalista às inúmeras
barreiras repressivas contra a terrível «ameaça» que sentem dos 50% que nada têm.
vazias. A verdade é que aquilo a que chamamos Ocidente está cheio de gente que,
sem a qual o oásis democrático não teria chance alguma de sobrevivência. Ainda
que longe de ser os 99%, mesmo que apenas simbolicamente, os jovens corajosos
de Wall Street não representavam, mesmo o grupo original, mais do que um
massa real dos que realmente não têm quase nada, se ela traçar dessa forma uma
diagonal política entre os que fazem parte dos 14%, incluindo os intelectuais, e os
Esse trajecto político é praticável, uma vez que já foi tentado nos anos sessenta e
formalismo mundializado do capitalismo- não poderá ser outra coisa senão aquilo
que acabamos de descrever, a saber, que uma minúscula oligarquia dite a sua lei
Mas o que se passa então ao nível social e subjectivo? Desde 1848, Marx forneceu
uma descrição fulminante, no sentido em que é tão verdadeira hoje como à sua
época. Citemos algumas linhas desse velho texto, que conserva incrivelmente a
sua juventude: «Por todo o lado, ela [a burguesia] conquistou o poder, espezinhou
num simples valor de troca. [...] A burguesia despojou da sua auréola todas as
actividades que até então passavam por veneráveis, e que considerávamos com um
O que Marx descreve aqui é o facto de essa saída da tradição, na sua versão
nas ideologias, nas morais religiosas instaladas, com recurso a estruturas de ordem
entrelaçados. Assim sendo, uma mulher nobre seria inferior ao seu marido, mas
duque, mas os seus servos dever-se-iam inclinar perante si; do mesmo modo, uma
mulher squaw não seria quase nada aos olhos de um guerreiro da sua tribo, mas
quase tudo quando comparada a um prisioneiro de outra tribo, para quem, por
Igreja católica era consideravelmente negligenciado face ao seu bispo, mas podia
homem livre dependia absolutamente do seu pai, mas poderia ter como escravo
da tradição, tal como foi realizada pelo capitalismo, enquanto sistema geral de
produção, não propôs, para dizer a verdade, nenhuma simbolização activa nova,
a que Marx chamava «as águas geladas do cálculo egoísta». Daí resulta uma crise
sua desorientação.
Face a essa crise que, sob cobertura de uma liberdade neutra, não propõe como
referente universal outra coisa que não seja o dinheiro, querem fazer-nos crer que
não existem senão duas vias: seja, por um lado, a afirmação da inexistência, da
A meu ver, estas duas vias constituem impasses extremamente perigosos, e a sua
guerras sem fim. Esse é o problema das falsas contradições, que impedem o jogo
Este diferendo serve sobretudo aos interesses de uns e de outros, por muito violento
que aparentemente seja o seu conflito. Auxiliado pelo controlo dos meios de
nova: a invenção, numa luta de duas frentes – contra a ruina do simbólico nas águas
fazendo prevalecer regras comuns, essas mesmas derivadas de uma total partilha
dos recursos.
democrática, com os seus ridículos ritos eleitorais, não era mais do que a tela
ocultante de uma total vassalagem das políticas, exercida pelos interesses
«cretinismo parlamentar».
Nota da tradução
A tradução para português foi realizada por João Paupério, em vésperas de mais uma reacção
fascizante, face à tragédia que se precipita na mais que provável eleição de Jair Bolsonaro.
O texto original de Alain Badiou foi publicado no jornal Libération a 13 de Abril de 2015,
podendo ser consultado na sua versão francesa em:
http://www.liberation.fr/france/2015/04/13/la-crise-vraie-et-fausse-contradiction-du-
monde-contemporain_1240409.
Alain Badiou
Ficha Técnica
Data de publicação: 24.10.2018
Etiqueta: Pensamento \ Crítica