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A Espuma dos Dias

18 de outubro – Acho muita piada às notícias que diariamente nos chegam sobre os “grandes
avanços da humanidade”. Chego mesmo a concordar com elas. Apenas por instantes, devo
dizer. Rapidamente desço à realidade.

Outro dia um lunático (formado numa universidade portuguesa de vanguarda e docente numa
outra) defendia que obrigar as crianças a dar um beijo aos avós era um acto agressivo e
violento que, naturalmente, traumatiza os jovens seres. Eu concordo com o visionário. Se
queremos adultos sem traumas, é preciso repensar a educação tradicional e não impingir aos
pequenos ‘selvagens’ (no sentido romântico do termo) obrigações sociais de qualquer espécie.
Quem disse que o penico era o lugar apropriado para o serviço quando existem as plantas da
sala? Que sentido faz usar talheres quando existem mãos (e pés)? E, sobre a escola, não será a
gramática e a matemática uma violência sobre as cabeças pueris? Deixados à sua sorte,
seguindo os seus nobres instintos, as crianças encontrariam o seu caminho – e o seu próprio
penico. Se isso implicasse o fim da civilização e o regresso ao estado de natureza, paciência: a
civilização, bem vistas as coisas, deu-nos professores como o lunático.

Outra doida, mas no estrangeiro, sugeria que dar de mamar a crianças do sexo masculino
podia transformá-los, mais tarde, em violadores. Uma psicóloga australiana acaba de anunciar
que os pais devem aguardar por alguma forma de consentimento dos bebés para lhes mudar
as fraldas; de contrário, trata-se de uma forma de abuso sexual. Uma universidade proibiu as
palmas no fim das conferências a fim de não ofender os estudantes surdos ou “com problemas
cognitivos”.

Um candidato às presidenciais francesas, Jean-Luc Mélenchon, apareceu muito zangado à


frente dos polícias que iam revistar o seu escritório e gritou “La France c’est moi!”, enquanto
se atirava aos agentes judiciais. O episódio não foi muito comentado por cá, uma vez que
heróis como Mélenchon costumam estar acima da lei e de toda a suspeita. A massa anónima,
claro, ficou chocada – e reserva-lhe uma interessante votação nas próximas eleições. A Europa
das burocracias, que agora se interroga muito sobre “os populismos”, poderia começar por
analisar o fenómeno Mélenchon e sobre como as suas imagens contribuíram em poucas horas
para formar mais “populistas” desejosos de deixarem o seu manguito no boletim de voto.
Devo dizer que gritar, em pleno século XXI, “La France c’est moi!” é realmente uma delícia.

Não foi por acaso que numa ficha socio-demográfica distribuída às crianças do 5º ano, com
9/10 anos, numa escola pública, se pedia que dissessem por quem se sentiam atraídos:
meninos, meninas ou outros. Há um ano que no nosso país, arrancou um projecto-piloto do
ensino da Teoria da Ideologia de Género nas escolas, que pretendem tornar obrigatório. É
nesse projecto que se materializa o ensino de coisas tão estapafúrdias como, beijar os avós é
violência ou ninguém nasce menino ou menina porque é uma construção meramente social.
Surpreendido? Não esteja. Você está a ser formatado pela ideologia do momento.

Como disse, acho piada mas rapidamente desço à realidade. Depois murmuro “que
maravilha”, e sigo adiante. Vivemos tempos interessantes.
21 de outubro – A língua portuguesa é de tal forma maltratada que devemos dar atenção ao
livro “Por Amor à Língua”, de Manuel Monteiro (Objectiva). Aí se inventaria os nossos erros
mais comuns e denuncia a enorme capacidade destrutiva do linguajar de hoje – banalizado,
pobre, sem gosto nem regras, escrito sem orgulho nem brio sobretudo quando é ‘praticado’
por burocratas e “gente pública”. Além disso, dá exemplos desses erros crassos, pecados
veniais, expressões daninhas – e é uma ajuda preciosa para quem ama esta língua.

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