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2ayt0r2018 Facebook e amizadt Facebook e amizade — Fernando da Mota Lima Femando da Mota Lima | Revista Sera? Posted on jan 22, 2016 Femando da Mota Lima ‘Alone in the desert - (autor desconhecido). O Facebook é uma das evidéncias definitivas da transigéo de um mundo baseado nas relagSes face a face, expresso cunhada pela sociologia e logo estendida a linguagem corrente, para as relagées virluais. Trocando isso nos meus mitidos, deixamos de nos encontrar, de nos ver e tocar materialmente para nos relacionar como signos verbais e imagéticos, ou ainda audiovisuais. Por isso 0 Facebook é a grande esquina global onde todos se cruzam, se veem e se falam sem sequer precisar levantar-se da cadeira. Basta agora um clique no mouse e logo todos nos conectamos, nos fazemos milagrosamente presentes, nao obstante ausentes, fechados cada um na sua ilha ou casulo. Todos os dias vejo e converso com pessoas que nunca encontro. Estou 86, cada vez mais s6, e todavia povoado, aturdido por vozes e imagens, textos e palavras que jé nao vivo como um estado de vivéncia alucinada, mas como o novo estado de normalidade e modo de ser inventado pela tecnologia digital. Aprendemos a prescindir do outro ea lavrar ainda mais fundo nosso egoismo e solidéo porque nos tornamos essa inefavel figura remota e imediata, ausente e presente, solidéria e indiferente, avida de vida e noticia e todavia aridamente entediada. A revolugao que nos refaz € tdo inusitada e contraditéria que corréi as categorias légicas mediante as quais a linguagem expressava a identidade e a contradigéo, as nogbes de espaco e tempo, de velocidade e duragao. Em suma, estamos todos aprendendo a ser outro a cada dia. As condigées do ser @ do tempo foram viradas de ponta cabega e nao sabemos ainda 0 que fazer deste admirdvel mundo novo, Embora deciare minha incompeténcia que tem algo de geracional para lidar com a tecnologia digital, lange de mim pintar 0 Facebook com tintas sujas e paletas tortas. Alias, se assim procedesse seria apenas contraditério de modo inconsequente. Pois ndo sou parte da rede, ndo me conecto quase diariamente para saber dos amigos, préximos € remotos, intimos ¢ estranhos? Apesar de ser um navegante bem seletivo e inconstante, tenho olhar atento para captar tudo que me parece interessante, inteligente, tudo que confere sentido e presenga as pessoas que amo — agora virtualmente, va ld, mas antes isso do que nada. Cadastrei-me no Facebook por sugestéio de um amigo. Além de ser incompetente para fazer essas coisas, ele me deu um conselho muito razoavel: como tenho um blog e quero ser lido, entdo deveria cadastrar-me para postar o link de tudo que publico no blog. Segui o conselho com uma intengéo, mas, como ¢ freqiiente, a realidade engendrou outras — ou outros efeitos, melhor direi. Bem pouca gente freqiienta meu blog, mas em compensagao acabei sabendo do paradeiro de amigos ha muito desaparecidos da minha vida, Passei a saber onde estéo, com quem esto, 0 que comem, 0 que opinam e tudo que expdem na vasta esquina global. Aprendi inclusive a me valer da ntplievstasera.ne 0.uol.com briacebook-e-amizade-femando-de-mota-imal wn 2artor2018 Facebook ¢ amizade -Femando da Mola Lima | Revisia Seré? hiper-exposigéo da rede para melhor evitar quem nao desejo, a melhor saber de quem quero, a rir com as postagens que me desatam o riso, a me comover com a beleza que irrompe na telinha numa multiplicidade de formas. Em suma, encurtando 0 caminho, pois ninguém mais tem paciéncia para ler mais de uma pagina, o Facebook é 0 quo jd disse: a grande vitrine ou esquina global do mundo revolucionado pela tecnologia digital. € ainda tribuna, antro de fofoca e narcisismo sem freios ou senso de conveniéncia, palco de afetos e insultos, de indignagao conformismo, & ainda 0 palco onde todos nos supomos artistas e portanto importantes. Aqui todos se concedem ‘uma importancia indevida, uma relevancia que ilude até os mais anénimos. Aqui, como tudo que é invengao humana, Planta-se tudo e tudo frutifica, até o que jd nasce podre. Hé gosto para tudo e desgosto idem, Por isso importa recortar, cada um a seu modo, o seu jardim e lavrar o que resulta em colheita coletiva e portanto incontrolavel. Quero dizer, cada um faz 0 que quer com o jardim alheio: ha quem distinga a flor e amorosamente a recolha para enriquecer seu préprio jardim, assim como hd quem a esmague ou simplesmente ignore. Somos assim ambivalentes ‘em tudo: no amor como na guerra, no condominio como no Facebook. Somos o bem ¢ o mal porque estes polos indissociaveis estao entranhados na nossa natureza. Concorre ainda para agravé-la o fato de que o bem nao raro produz o male vice-versa, Agora ninguém mais precisa visitar ninguém, pois a internet fundou definitivamente a aldeia global. Se vocé nao gosta, nao importa de que ou de quem, basta desconectar. Desconectei Ja que este texto nao é escrito para o mural do Facebook, entdo posso esticé+lo a vontade. Mas nao ao ponto de entediar 0 tipico leitor de blog ¢ revista eletrénica, que nesse contexto é apenas uma variante do feicebuqueiro (que v4 0 neologismo). Quero dizer, um leitor algo mais paciente, que nao larga 0 autor no meio de uma frase simplesmente porque este excedeu a medida de uma pagina, néo importando sua qualidade, Seguindo uma sugestdo de leitura de Fatima Duques, li uma crénica bem curta, mas certeira, de Ronaldo Monte, blogueiro mais experimentado do que eu. Ele critica com humor seco e preciso a diluigdo do conceito de amizade introduzida pelas redes sociais. E um fato que muito me incomoda. Embora tenha noutro texto deplorado essa nova nogao de amizade, 0 amigo de Facebook, aproprio-me das sugestées oportunas de Ronaldo para acrescentar & minha improvisada caracterizagao do Facebook um aspecto cuja omissao empobreceria ainda mais minhas ponderagées. Importaria lembrar que a depreciagao do conceito de amizade independe em certo grau da erosdo afetiva causada pelas redes sociais. Na realidade, ela esta entranhada na nossa mentalidade cultural, tendente ao desleixo € inconsequéncia das relagées afetivas. Nao é a toa que qualquer estranho, a propésito de tudo ou de nada, bate nas nossas costas ¢ efusivamente nos chama de amigo ou amigo. No Brasil, dentro ou fora das festas e bares, todo mundo amigo, todo mundo pulveriza na inconsequéncia das nossas relagdes este ser tao precioso e raro: 0 amigo. ‘Outra evidéncia consiste na leviandade com que nos prometemos visitas ¢ marcamos encontros sem que nunca umas e outros se tornem realidade. Sao coisas que dizemos por dizer com a inconsciéncia com que respiramos ou dormimos. Os estrangeiros que conheci ou acolhi no Brasil ficam desorientados quando se apercebem de que os convites ¢ supostas visitas sao apenas “para inglés ver’. Nada disso é para valer, assim como uma infinidade de coisas que prometemos ¢ juramos nao so para valer. Charles de Gaulle foi muito generoso quando disse a frase que ficou registrada na nossa histéria: Le Brésil n’est pas un pays sérieux. Antes que me corrijam, ja sei que de Gaulle nao disse esta frase, assim como sei que Fernando Henrique Cardoso nao disse: esquegam o que escrevi. Flaubert disse que era Madame Bovary, embora nao fosse. Ou era. Citar é uma coisa, apurar a veracidade da fonte & outra bem diferente, Fiquemos apenas com as citagdes. Ronaldo Monte tem raz4o quando pisa no pé do Facebook irritado com essa banalizacdo da amizade, que na rede se faz e desfaz com um simples clique no mouse. Mas volto a insistir neste ponto: somos um povo de amizades inconsistentes e fantasiosas. Somos amigos de carnaval, de festas que a troco de nada pipocam em qualquer terreiro ou esquina, Isso diz muito sobre a nossa futiidade © ha muito me educou para desconfiar do foguetério dos amigos que me cercam nas circunstancias convenientes ao egoismo, a leviandade, ao mero acaso das ntplievstasera.ne 0.uol.com briacebook-e-amizade-femando-de-mota-imal on 2artor2018 Facebook ¢ amizade -Femando da Mola Lima | Revisia Seré? circunstancias, Amigo 6 outra coisa e nao se faz no ruido momentaneo das festas e bares. Amigo é jéia rara que precisamos lavrar durante anos, sobretudo nas circunstancias adversas e até extremas, pois é quando a amizade de fato reponta nas linhas puras da sua raridade. © Facebook dissolveu 0 sentido real da amizade, que agora se faz ou refaz num simples clique, mas a cultura brasileira minou ha muito, entre festa e batuque, misturando e diluindo cores e afetos, o sentido ontolégico da amizade, Quem duvidar que procure um amigo na hora da necessidade, aquela que define quem & quem, quem é amigo ou simples parceiro de copo ¢ de passo camiavalesco. Se amizade nao se faz no Facebook, também nao se faz num pais onde todo mundo & amigo e amigo, onde as criangas aprendem desde os primeiros dias de escola a chamar a professora de tia ¢ tiazinha. Uma cultura que assim socializa suas criangas esta lavrando desde a origem 0 culto da amizade inconseqiiente ¢ confundindo amor e amizade com falso parentesco. Portanto, nao culpemos o Facebook por males entranhados na nossa cultura que tanto celebramos, como se essa manifestago de amizade fosse algo além da futiidade dos afetos. Quantos estrangeiros nao se enganam com esse foguetério, esses bragos abertos para a amizade que nao passa de festa? Quando a festa acaba e os bares se fecham, quando a escuridéo desce sobre nossas vidas, quase sempre descobrimos desamparados que nao ha e nunca houve nenhum amigo real 14COMMENTS Helga Hoffmann Sord? Serd mesmo que as pessoas que esto no Face (isto 6, as pessoas que se registraram ou abriram uma conta no Facebook) nao distinguem entre a ideia tradicional de amigo e a ideia de “amigo de Face"? Séo duas coisas diferentes: nem conhego a maioria dos meus amigos de Face. Quando alguém pede para ser meu amigo ou amiga, no Face, dou uma checada répida, e em principio aceito, Exceto, por exemplo, uns que nem em inglés se comunicavam, nem sei em que caracteres escreviam. Em mensagem em inglés respondi que nao adiantava eles fazerem parte da minha rede se ndo entendiam nada do que eu postava ¢ vice-versa. A resposta deles: NO ENGLISH. Eu continuo achando que “amigo de Face” é outra categoria, Em alguns poucos casos tenho amigos de Face que so também meus amigos/as pessoais. Mas 0 meu conceito de amizade nunca foi muito latinoamericano. Uma vez uma amiga mexicana, muito amiga mesmo, me pediu uma carta de recomendagao para um dado posto. Eu disse que ndo podia escrever tal carta porque no achava que © perfil dela era adequado para o posto. E velo o choque: nem para uma amiga? Expliquei que jamais recomendaria alguém se nao considerasse profissionalmente correta a recomendacao. Pois é, amiga de verdade nao sou de ninguém. Tenho variantes dessa histéria, de uma amiga que escreveu um livro ‘que achei muito ruim, & que queria que eu conseguisse para ola o Prefacio de um personagem importante na nossa vida politica, Depois de eu afirmar que o livro dela era errado, ela deixou de falar comigo. E antes ela era MUITO amiga mesmo, de verdade, de conversar intimidades, haver solidariedade, ela ficar hospedada na minha casa quando estava na minha cidade Do seu texto, belo ¢ bem escrito, mas muito triste, no consegui extrair muito bem qual é esse seu conceito de amizade. E como se vocé tivesse como ideal a amizade incondicional. Ora, a rigor, nem ‘amor de mae ¢ incondicional. Reply Fernando da Mota Lima ntplievstasera.ne 0.uol.com briacebook-e-amizade-femando-de-mota-imal 37

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