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CURITIBA
2010
JORGE PAULO LAMUR
CURITIBA
2010
RESUMO
This paper aims to analyze, according to a historiographic perspective, the changes occurred
in musical thoughts and aesthetics in two distinctive moments in work of composer Claude
Debussy (1862-1918), stated in the years of transition from the end of nineteenth century until
the development of the First Great War. Claude Debussy's work was chosen because he is
considered by many researchers as one of the keystones in the aesthetic transition that would
came to consolidate the modern music developed through the twentieth century. However,
looking at Debussy's musical production during the years of the War, an outbreak of a
conservative position for french nationalism - which goes to encounter to the perspective
artistically innovator showed before by the composer - can be observed. Therefore, through
this analisys it is possible to see the importance that historic and social context acquired in
work of the composer and, simultaneosly, observe the artistic creation as medium of a
discourse that aims to interfere in the conflicts of the time period and the surroundings in
which it was made, discussing the statute of art, and, in this case, of music, as historic source.
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 06
2 DO FIN-DE-SIÈCLE À GRANDE GUERRA 09
2.1 A construção do cenário ....................................................................................... 09
2.2 A arte e a força da tradição .................................................................................. 13
2.3 Sociedade e indivíduo .......................................................................................... 18
3 MÚSICA, HISTÓRIA E ARTE 23
3.1 A música e a expressão dos sentimentos ............................................................. 23
3.2 As sensações e o conteúdo musical ..................................................................... 25
3.3 Claude Debussy e a música moderna ................................................................... 28
3.4 O nacionalismo e o retorno à tradição .................................................................. 32
4 VANGUARDA E TRADIÇÃO: ANÁLISE DAS OBRAS MUSICAIS DE
38
DEBUSSY
4.1 Prélude à l’Après-midi d’un Faune ...................................................................... 41
4.2 Berceuse Heróïque e En Blanc Et Noir ................................................................ 48
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 54
FONTES 56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 57
ANEXO 59
6
1 INTRODUÇÃO
1
GRIFFITHS, Paul. A música moderna. Uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998. p. 7
2
Ibid., p. 13.
7
composições nos últimos anos de vida. Nos anos precedentes à conjuntura de tensão ocorrida
na Europa com a Primeira Guerra Mundial, a produção artística de Debussy passou a
apresentar cada vez mais características que podem enquadrá-lo enquanto um defensor do
nacionalismo da França, em contraposição a muitas de suas afirmações em favor da busca por
uma liberdade de criação artística que tivesse lugar independentemente de raízes culturais ou
nacionais.
Partindo desta problemática, almejou-se construir neste trabalho monográfico uma
análise historiográfica e musical a respeito de determinadas características estéticas de obras
selecionadas de Claude Debussy, entrecruzando as idéias expostas pelo compositor nestas
peças com o conteúdo de seus escritos e entrevistas, ao mesmo tempo em que se fez presente
uma reflexão sobre a importância do contexto histórico e social na concepção destas obras.
Assim, em uma perspectiva que se embasa em modelos teórico-metodológicos da
história cultural – quando a utilização dos mais diversificados traços e elementos produzidos
culturalmente pelo homem podem fornecer vestígios de um passado, e estes podem ser
analisados e interpretados à luz de um olhar historiográfico que dialoga com o conhecimento
construído pelas mais variadas ciências e disciplinas, como as ciências sociais, a música ou a
filosofia, por exemplo3 –, esta pesquisa procurou identificar primeiramente o papel do
compositor Claude Debussy na transição do Romantismo para o Modernismo na música a
partir de concepções inovadoras presentes na estética de sua obra. Em contrapartida, a análise
desenvolvida nesta monografia intentou também compreender o fortalecimento de uma
posição nacionalista que marcou o trabalho de seus últimos anos de vida, e que pode ser
identificada por meio de um retorno estilístico ao conservadorismo e à tradição musical
francesa do século XVII e XVIII, em um direcionamento musical contrário ao início de sua
carreira.
Para tanto, foram utilizados como fontes para o estudo historiográfico textos do
próprio Claude Debussy, redigidos entre os anos de 1901 e 1911 como ensaios e críticas
musicais para publicações francesas, e entrevistas dadas à imprensa pelo compositor entre os
anos de 1902 e 1914, compiladas para publicação em 1989 sob o título Monsieur Croche e
outros ensaios sobre música; e as partituras das composições Prélude à l’Après-midi d’un
Faune (1894), Berceuse Heróïque (1914) e En Blanc et Noir (1915), abrangendo exemplos de
sua estética musical através da peça tida por muitos estudiosos como o início do modernismo,
e de duas obras dos anos em que a influência marcada da Primeira Guerra Mundial alterou seu
3
BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2008. p. 170.
8
4
Ibid., p. 32.
9
5
HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios. 1875 – 1914. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 19.
6
RÉMOND, René. O século XIX. 1815 a 1914. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 13.
7
Ibid., p. 192.
8
Ibid., p. 25.
10
operário. Na medida em que estes movimentos ganhavam espaço dentro de novos contextos
sociais, alteravam-se e influenciavam as sociedades em que estavam inseridos.
Avançando um pouco dentro do recorte adotado para a pesquisa e focando a
conjuntura dos primeiros anos do século XX, alguns autores da historiografia nos afirmam
que o começo desta época histórica se estabelece no ano de 1914, tendo como um marco
importante o início da Primeira Guerra Mundial9.
Tomando esta perspectiva como referência, o começo deste período se dá a partir de
uma fase de grande prosperidade vivenciada pela Europa desde cerca de 1870, quando a
chamada belle époque e o desenvolvimento do capitalismo trouxeram para as elites de
grandes cidades como Paris, Viena e Londres, nestes anos já tidas como verdadeiras
metrópoles, uma situação de conforto até então ainda não experimentada nas últimas décadas
do século anterior.
Como uma continuidade do que começara a ser desenvolvido ao longo do século XIX,
a ciência e a técnica exacerbaram inovações sobre as comunicações, o entretenimento e o
transporte, com o advento de máquinas e dispositivos que, cada vez mais, contribuíram para
diminuir as distâncias e as dificuldades de comunicação características de séculos passados.
Ao mesmo tempo, nesta virada de século, as disputas territoriais imperialistas entre as
potências econômicas e políticas que se destacaram no século XIX, e a distribuição desigual
entre colônias e metrópoles dos aspectos associados ao progresso criaram um clima de
instabilidade constante, que aumentava as discordâncias entre as diferentes nações, que nestes
anos se fortaleciam10.
Esta conjuntura permeada por tensões e divergências políticas e ideológicas
proporcionava desde os últimos anos do XIX a sensação de um conflito iminente, que crescia
entre os países europeus alimentando-se da insatisfação gerada por questões delicadas como a
partilha dos territórios da África e Ásia, a busca capitalista acirrada por novos mercados e
novas fontes de matérias-primas, e pelas iniciativas imperialistas e nacionalistas que
embasavam muitas das conquistas feitas pela Europa. Assim, a escolha de 1914 como a
inauguração de um novo século se deu em função de ser este o momento em que todo o
conflito latente explodiu em uma conjuntura de guerra que, por toda a proporção assumida,
passou a ser denominada como a Grande Guerra11.
Direta ou indiretamente, esta guerra atingiu inúmeras nações e modificou seus
9
HOBSBAWM, E. Op. cit., p. 20.
10
RÉMOND, R. Op. cit., p. 180.
11
RÉMOND, René. O século XX. 1914 aos nossos dias. São Paulo: Cultrix, 1986. p. 15.
11
territórios, alterou regimes de governo, colocou costumes e tradições em xeque e, até mesmo,
quebrantou estados de espírito devido à violência empregada e ao uso da tecnologia e da
indústria deliberadamente para fins destrutivos12. Desde meados de 1900, as relações entre os
países europeus eram caracterizadas pelo que pode ser denominado como um estado de “paz
armada”, uma espécie de corrida armamentista que se fundamentava em uma legislação cada
vez mais pautada na militarização de determinadas sociedades.
Assim, o direcionamento crescente de verbas estatais para questões bélicas ou o
aumento do tempo de serviço militar, em associação com os sentimentos suscitados pelos
nacionalismos que se fortaleciam e pelas inovações da indústria da guerra, permeavam de
tensões uma situação já marcada por grandes rivalidades. O século XIX foi palco de
revoluções e conflitos de grandes proporções, mas de certa maneira o alcance das guerras
ocorridas até então era algo limitado a poucos territórios; na guerra iniciada em agosto de
1914, as cinco maiores potências da Europa na época – a saber: Alemanha, Áustria, Rússia,
França e Grã-Bretanha – se encontravam em situação de conflito13.
Em relação aos séculos anteriores, os acontecimentos da Primeira Guerra revelaram
aspectos que a singularizaram e, mesmo durante o seu desenrolar, classificaram-na como um
evento sem precedentes. Sua duração, extensão geográfica, e principalmente, a mobilização
de recursos, contingentes e as formas de combate empregadas neste conflito promoveram um
rompimento com aquilo que se pode chamar de uma cultura bélica forjada em guerras
anteriores14.
No que diz respeito à maneira de combater, por exemplo, a Primeira Guerra Mundial
mostrou-se como uma guerra de posições, priorizando a tomada de territórios, e isto levou a
uma mobilização de efetivos que atingiu rapidamente a cifra dos milhões de combatentes,
apresentando-se sem comparações anteriores. Todo este contingente humano necessitava de
materiais e equipamentos para combater, principalmente se levarmos em conta a duração que
a Guerra assumiu – o que, por sua vez, gerava a necessidade de mobilizar uma indústria bélica
que se apresentou como algo novo se comparado aos combates anteriores. O emprego de uma
mão-de-obra que não fosse composta por homens capazes de combater levou aos bastidores
do conflito a presença feminina, com a utilização em larga escala de trabalhadoras em fábricas
que produziam armas, veículos e munições15.
Toda esta estrutura que se formava obrigou os Estados nacionais a adotarem um novo
12
Ibid., p. 47.
13
Ibid., p. 19-22.
14
Ibid., p. 19.
15
Ibid., p. 39.
12
16
Ibid., p. 26.
17
Ibid., p. 27.
18
Ibid., p. 35-36.
13
O próprio ritmo da vida nesta virada de século apresentou uma mudança notável de
andamento com todas as inovações da técnica trazidas pela modernidade, industrialização, e
pelo crescente processo de urbanização em centros como Paris ou Londres. Essencialmente a
partir da segunda metade do XIX, por meio de uma estimulação sensorial, intelectual e física
mais rápida e intensa, o ambiente urbano passou a exercer influências diretas e operar
alterações sobre a percepção e a forma de encarar o mundo para indivíduos deste tempo. Isto,
muitas vezes, foi traduzido através das formas de arte e entretenimento que são frutos destes
anos, como a fotografia e o cinema21.
Estas características não se manifestaram, contudo, apenas nas formas de expressão
até então recentes, mas se mostraram presentes também na linguagem artística
tradicionalmente aceita como tal: questionamentos e inovações estéticas podem ser
observados nos mais diferentes campos, como a pintura, a arquitetura, a produção escultural e
19
Ibid., p. 19.
20
HOBSBAWM, E. Op. cit., p. 316.
21
BERMAN, Marshal. Tudo que é sólida desmancha no ar: A aventura da modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986. p. 141.
14
22
RÉMOND, René. O século XIX..., p. 150.
23
MAYER, Arno J. A Força da Tradição. A persistência do Antigo Regime (1848 – 1914). Trad. de
Denise Bottmann. São Paulo: Schwarcz, 1981. p. 187.
15
24
Ibid., p. 188.
25
Ibid., p. 189-190.
26
Ibid., p. 191-193.
27
Ibid., p. 197.
16
Talvez o melhor exemplo disto a ser lembrado seja a Ringstrasse: construída em Viena
na segunda metade do XIX e tida como um símbolo de toda a efervescência cultural e artística
da época, esta rua apresenta diversas construções públicas em estilo gótico, barroco e
renascentista, e é definida por Arno Mayer como “um reflexo microscópico da paixão da
burguesia pelo empréstimo histórico que incessantemente ajudava a relegitimar a antiga
ordem a que estava subordinada” 28.
A respeito da música no período, entre os anos de 1848 e 1914 o gênero operístico
tornou-se cada vez mais imponente e difundido fora dos círculos cortesãos. Neste âmbito, o
compositor Richard Wagner encontrou lugar enquanto um dos nomes mais representativos do
romantismo alemão, integrando as chamadas grandes artes – arquitetura, pintura, teatro,
poesia, música e dança – em uma totalidade harmônica “qualitativamente mais grandiosa e
diversa de seus elementos constitutivos”29.
Sua criação artística apresentou grandes inovações em relação às obras de tempos
anteriores, lançando bases que influenciaram diretamente compositores importantes que
vieram a surgir. Em contrapartida, a obra wagneriana pode ser vista como um instrumento da
persistência da antiga ordem social não somente na Alemanha, mas em toda a Europa: ao
mesmo tempo em que reforçava a idéia da nacionalidade alemã que se consolidava, sua
estética prezava também pelos valores arraigados do Antigo Regime, tornando-se uma espécie
de ideal musical a ser seguido dentro da alta cultura aceita pelos círculos aristocráticos
europeus do século XIX. Neste mesmo contexto, obras que marcaram rupturas estilísticas em
relação aos conceitos musicais anteriores, como A Sagração da Primavera de Igor Stravinsky,
ou o Prélude à l’Aprés-midi d’un Faune de Debussy, acabaram sendo friamente recebidos
pela maioria da audiência européia30.
Um outro ponto fundamental de apoio à antiga ordem era encontrado na Igreja. Ainda
que a Europa viesse sofrendo um longo processo de descristianização e secularização em sua
sociedade, entre as camadas mais populares das vilas e cidades e entre os camponeses das
aldeias esta descristianização não tomara tão rapidamente proporções de longo alcance. O
mesmo ocorria em relação às camadas da aristocracia, que não abandonaram por completo a
Igreja, e também podia ser verificado em relação aos trabalhadores que estavam inscritos em
28
Ibid., p. 195.
29
Ibid., p. 208.
30
Ibid., p. 211.
17
partidos e sindicatos socialistas: em sua maioria, estes indivíduos ainda buscavam receber os
sacramentos, casar-se e serem sepultados sob a fé de seus pais31.
Por conta disto, as igrejas ainda mantinham papéis importantes em relação ao
cumprimento de funções burocráticas cotidianas à sociedade, não somente no que se referia
essencialmente à esfera religiosa e sacramental, como batismos, matrimônios e funerais, mas
também relacionadas ao trabalho e educação destas comunidades, administrando e dirigindo
orfanatos, escolas, asilos e demais instituições desta natureza. Em partes por conta deste
processo de secularização mencionado, a postura adotada pela Igreja passara a mostrar um
interesse particular em expandir e proteger seu papel educacional nestas sociedades em
crescimento, buscando junto aos governos a manutenção de seus antigos privilégios e funções
em troca de subsídios e créditos adicionais32.
Com a virada do século e a crescente preocupação das forças conservadoras em
relação ao socialismo e aos novos movimentos políticos que tomavam forma, passou a ocorrer
um aumento do apoio público às igrejas, e esta espécie de cumplicidade entre as forças do
Antigo Regime e a Igreja acentuara a intolerância em relação às expressões artísticas
modernistas em ambas as esferas. É neste sentido que iniciativas religiosas passaram a
estabelecer o modernismo como uma forma de heresia a ser suprimida, e ações do pontificado
foram levadas a cabo na intenção de ressacralizar valores cristãos e reafirmar a verdade literal
contida nas Escrituras, posto que mesmo entre clérigos e teólogos crescia o advento de uma
nova visão crítica objetivando conciliar a doutrina e prática católica com o pensamento
científico que pouco a pouco aflorava33.
As instituições de ensino superior, em relação ao desenvolvimento deste pensamento
científico e ao contrário do que se costuma supor, atuavam muitas vezes enquanto defensoras
dos valores já estabelecidos do Antigo Regime. Enquanto representantes da alta cultura, estas
instituições assumiam para si o papel de mediadoras da sociedade tradicional em sua
adaptação ao futuro e à modernidade, sendo veículos encarregados da reprodução da
concepção de mundo e do pensamento erudito por meio do ensino clássico. Ao longo do
século XIX as disciplinas como o conhecimento do latim e o estudo de textos clássicos
assumiram um espaço cada vez maior no curriculum de ensino das escolas, na intenção de
31
Ibid., p. 238.
32
Ibid., p. 239.
33
Ibid., p. 240-242.
18
fornecer às elites o substrato cultural necessário para a participação em uma classe superior
que dirigiria a cultura oficial e estatal34.
Por conta disto, a incorporação de novas disciplinas neste curriculum educacional,
bem como a integração de novos elementos sociais no grupo discente destas instituições era
algo muitas vezes evitado, mantendo as escolas superiores fechadas a estas iniciativas. Ao
mesmo tempo, a necessidade de um grau universitário formava uma espécie de pré-requisito
absoluto para o ingresso ou o avanço nos estratos sociais superiores, o que garantia o
estabelecimento de idéias e valores conservadores e hierárquicos legados do Antigo Regime à
sociedade européia na transição do século XIX ao século XX35.
34
Ibid., p. 246-248.
35
Ibid., p. 249-251.
36
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. Trad. de Paulo Henriques
Britto. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. p. 71.
19
43
WILLIAMS, R. Op. cit., p. 215.
44
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno
urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 13-15.
45
WILLIAMS, R. Op. cit., p. 215.
46
SINGER, B. Op. cit., p. 121-127.
21
centros urbanos. Os próprios melodramas teatrais do período passaram a procurar cada vez
mais o sentimento de choque sensorial sobre os espectadores, seja por meio do suspense em
seus roteiros, seja através de cenas que evocavam grandes reviravoltas e tragédias no enredo,
como incêndios, naufrágios ou explosões47.
Por mais exagerado que isto nos pareça, a intensidade buscada nestas formas de
entretenimento correspondia à nova estrutura apresentada na vida diária das pessoas,
fragmentada em pequenas impressões justapostas em seqüência, caracterizando a atmosfera
das metrópoles que se formavam. Nas palavras de Ben Singer, “o organismo mudou de
marcha, sincronizando-se ao mundo acelerado”, e ocasionando uma necessidade cada vez
maior de novos estímulos que refletissem as tensões da vida moderna48.
O século XIX se mostrou por excelência o período de fortalecimento do sentimento de
nacionalidade e da formação dos Estados nacionais como os conhecemos hoje. As ideologias
nacionalistas, que mobilizaram diversas lutas pela unidade territorial na Europa e pela
afirmação de valores e tradições, constituíram, assim, um dos pilares do conflito levado a
cabo com a Primeira Guerra Mundial em 1914.
Ernest Renan, escrevendo no último quartel do XIX a respeito das nações e do
nacionalismo, afirmava que a existência de um passado em comum, repleto de
acontecimentos associados à origem do povo e de sofrimentos que fortaleceriam uma ação em
prol do bem comum, se fazia como elemento mais importante na constituição do sentimento
nacional – superando, inclusive, os aspectos legais que organizavam uma sociedade, sua
identidade lingüística, ou suas delimitações de fronteiras49.
Da mesma maneira, Josef Stalin, escrevendo sobre este mesmo tema já no turbilhão do
início do século XX, reforçava neste processo de formação do sentimento nacional a
necessidade de uma identificação que se daria principalmente pela diferenciação de uma certa
cultura em relação a culturas adjacentes50. Esta identificação ocorria pela história de um povo,
pelas suas conquistas em prol de uma coletividade, e pelas tradições que se formavam em
torno dele – o que, cabe dizer, é construído posteriormente nos registros da história,
legitimando e justificando práticas e unidades culturais51.
As artes agiriam como um elemento de extrema importância nesta construção e,
principalmente, na propagação deste conhecimento a respeito de um passado em comum para
47
Ibid., p. 137.
48
Ibid., p. 139.
49
RENAN, Ernest. Qu’est-ce qu’une nation? Paris: Calmann-Levy, 1882. p. 28.
50
STALIN, Josef. The Nation. In: Marxism and the Natural Question, de The Essential Stalin: Major
Theorical Writings 1905 – 1952. Londres: Croom Helm, 1973. p. 57-61.
51
JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo: Contexto, 2009. p. 25.
22
a sociedade. A música, tal como a literatura, talvez seja uma das manifestações artísticas que
mais pode contribuir para a formação de uma herança de identidade cultural: é bastante
conhecida a atuação de compositores que, ao longo do século XIX, escreveram peças
musicais, concertos e óperas sobre temas mitológicos ou sobre um passado glorioso que deu
origem a determinado povo. Destes, talvez o exemplo mais caro seja a já citada figura de
Richard Wagner, compositor alemão que compôs diversas obras tratando sobre a formação da
nacionalidade alemã, e que além de seu valor artístico, carregavam em si um poderoso
elemento de formação da identidade e da unidade cultural da Alemanha.
É neste contexto histórico e social das últimas décadas do século XIX e dos primeiros
anos do século XX que se enquadra o objeto de análise desta pesquisa. Nascido na França do
ano de 1862, o compositor Claude-Achille Debussy tornou-se um dos principais nomes da
produção musical francesa, lançando bases que revolucionariam a maneira de compor e, até
mesmo, de apreciar a música de seu tempo.
Sendo muitas vezes associado a um dos pilares do modernismo na estética musical, a
produção artística de Debussy que toma forma nos anos imediatamente anteriores à
conjuntura de tensão que ocorre na Europa com a Primeira Guerra Mundial apresenta
características que podem enquadrá-lo enquanto um defensor da perspectiva nacionalista da
França, em contraposição a muitos elementos defendidos por ele, presentes em suas
composições do século XIX, e que afirmam a importância da busca por uma liberdade na
criação artística que independa de raízes culturais ou nacionais.
Assim, a intenção presente nos próximos capítulos desta pesquisa é direcionar o olhar
a estes diferentes momentos e à obra elaborada por Debussy em duas etapas distintas de sua
vida, identificando suas características e analisando-as de acordo com o contexto histórico e
social de sua época.
23
Muitas vezes, em conversas despretensiosas sobre música, podemos já ter ouvido dizer
que esta exprime os sentimentos através de notas organizadas em ritmo, melodia e harmonia.
Este ponto de vista, que ainda nos dias de hoje se manifesta no senso comum, é algo que foi
lapidado ao longo da história de uma tradição musical e formou, outrora, a principal base
teórica de toda uma corrente de pensamento sobre o conteúdo e a estética da música. Esta
associação entre a música e a expressão dos sentimentos é algo que pode ser encontrado em
tratados sobre arte escritos desde o século XV, e possivelmente chegou até os autores destas
obras por meio de tradições e heranças culturais ainda mais antigas, que podem ter circulado
ao longo dos séculos, sofrido mudanças e cristalizado opiniões dentro e fora das academias.
A literatura de séculos passados, como nos aponta Mário Videira em sua obra O
Romantismo e o belo musical, já estabeleceu como o papel das artes a representação e a
imitação da natureza52. A música, que neste contexto era considerada uma forma menor de
arte se comparada à poesia, pintura ou ao teatro, por exemplo, tinha como seu objetivo a
imitação dos sentimentos e das paixões do homem, e era geralmente classificada em duas
categorias distintas: as formas musicais que exprimiam os sons animados e que continham em
si os próprios sentimentos – nesta categoria enquadrava-se a música vocal, executada e
relacionada aos cultos religiosos e à ópera e associada à expressão de um texto ou poesia
musicados; e as formas musicais que imitavam os sons da natureza, de execução puramente
instrumental e desligada dos sentimentos, muitas vezes vistas somente como “ruídos
agradáveis” destinados ao divertimento ou ao exercício dos instrumentistas, e inferiores
artística e hierarquicamente à música vocal. Nesta lógica, a música instrumental adquiria
legitimidade enquanto arte na medida em que atuava como um apoio à ação dramática,
apresentando-se como uma pintura dos sentimentos expressos em uma ópera ou em um culto
religioso, e seu objetivo maior tornava-se o ato de levar o espectador à emoção53.
Ao longo do século XVIII, as idéias florescidas no âmbito da filosofia da arte e da
estética relacionaram pouco a pouco as formas de arte – e dentre estas, a música – à esfera da
razão, baseadas em concepções cartesianas que valorizavam a expressão artística por meio de
52
VIDEIRA, Mário. O Romantismo e o belo musical. São Paulo: Unesp, 2006. p. 27.
53
Ibid., p. 31.
24
“(...) é quase o tom mais belo de todos, porque ele não somente (...) mistura uma
considerável seriedade com uma graça animada, mas conduz consigo uma
extraordinária formosura e cortesia; Dó maior possui uma qualidade
consideravelmente rude e audaciosa; Fá maior é capaz de exprimir os mais belos
sentimentos do mundo, seja a generosidade, a constância, o amor ou o que mais
56
esteja nesse registro de virtude.” .
Em meados do século XIX, a circulação destas idéias e teorias sobre estética musical
determinava que o objetivo principal da música enquanto arte não era mais a imitação das
paixões do homem, mas sim o efeito real que esta causava sobre os sentimentos dos ouvintes;
desta maneira, o próprio conteúdo da música, sua essência e matéria-prima, passou a ser visto
como a representação dos próprios sentimentos humanos através dos sons57. Durante quase
todo o século XIX a opinião de críticos, apreciadores e músicos tomou esta perspectiva como
o alicerce de novos tratados científicos e filosóficos, consolidando grande parte do
conhecimento a respeito do campo musical que chegou até o século XX, e pode ser
encontrado no senso comum ainda hoje.
54
Ibid., p. 26.
55
Johann Mattheson foi um importante teórico musical do século XVIII, autor de obras que
fundamentaram algumas das principais idéias do barroco musical na Alemanha.
56
MATTHESON, J. Apud VIDEIRA, M. Op. cit., p 59.
57
Ibid., p. 63.
25
Este ponto de vista a respeito de expressão dos sentimentos na música, contudo, sofreu
ao longo do tempo diversas reinterpretações e adquiriu diferentes significados, de acordo com
a proposição e aceitação de novas idéias e paradigmas no campo da filosofia da arte e da
estética. A partir da estética própria do Romantismo, estabelecida no final do século XVIII e
consolidada como uma forte influência na obra de diversos compositores do século XIX, por
exemplo, começou a ganhar espaço a opinião de que a representação dos afetos não se daria
mais de maneira objetiva e racional sobre a audiência, mediante o estímulo dos ouvintes a
estados emocionais premeditados, mas traduziria emoções subjetivas, pessoais, originadas no
compositor e levadas ao público por meio de sua própria comoção ao criar uma obra musical,
como se pode perceber nos escritos de Carl Phillipe Emmanuel Bach58:
“Um músico comove aos outros somente se ele mesmo está comovido. É
indispensável que ele prove todos os estados de ânimo que ele quer suscitar nos
seus ouvintes, porque de tal modo os fará compreender os seus sentimentos e os
fará participar de suas emoções”59.
Em sua obra, Eduard Hanslick defende a necessidade de uma revisão nos conceitos da
estética musical de seu tempo, que estabeleciam a existência de uma “essência poética”
comum a todas as artes, lado a lado com a importância do efeito de uma obra de arte sobre o
sujeito que a aprecia. No ponto de vista de Hanslick, a importância maior da investigação
58
Carl Phillipe Emmanuel Bach, filho de Johann Sebastian Bach, foi um importante músico e compositor
alemão do final do século XVIII, tendo sua obra classificada no período transitório entre a estética barroca e o
classicismo.
59
BACH, C. P. E. Apud VIDEIRA, M. Op. cit., p. 63.
26
sobre o belo, a essência existente em uma obra de arte, deve recair diretamente sobre o objeto
artístico, e não sobre o observador que o contempla60.
Este argumento conceitual característico do século XIX combatido por Hanslick
mostrava-se como arbitrário na associação entre música e sentimento, posto que esta
concepção identificava na finalidade da música a necessidade de suscitar sentimentos, e mais
ainda, sentimentos belos. Na perspectiva de Hanslick, há uma clara distinção entre o que se
define enquanto sentimento nas artes e o que se deve entender por sensação: esta age
enquanto a percepção de uma qualidade sensível, como um som ou uma cor; o sentimento,
por outro lado, é definido por ele como a conscientização de uma incitação ou inibição do
estado anímico, um bem-estar ou mal-estar61.
A crítica musical e os escritos a respeito da filosofia das artes e da música do século
XIX afirmavam que as verdadeiras idéias a serem representadas por uma obra musical eram
sentimentos, e neste processo os sons e sua relação por meio do ritmo, melodia e harmonia
seriam somente o material ou o meio pelo qual o compositor representaria o amor, a tristeza, a
coragem ou a devoção, por exemplo.
Nesta discussão sobre a apreciação de uma obra de arte, Hanslick defende que o
conteúdo representado em uma obra atinge antes de tudo os sentidos do observador,
proporcionando, assim, sensações ao espectador que ouve uma sinfonia, por exemplo – mas
estas não necessariamente relacionam-se imediatamente com os sentimentos deste ouvinte. Os
sentimentos, em seu ponto de vista, dependem necessariamente de pressupostos físicos e
mentais, sendo condicionados por representações e juízos particulares e relacionam-se,
portanto, às faculdades intelectuais e racionais do ser humano. A música, desta maneira, teria
apenas o poder de evocar sensações, atribuídas subjetivamente aos sentimentos pelo ouvinte,
baseando-se em suas próprias lembranças ou em sua interpretação do conteúdo musical ao
qual está em contato62.
Assim, estabelecendo que não são os sentimentos o conteúdo representado pela
música, mas sim idéias puramente musicais que partem do compositor através de melodias,
Hanslick nos aponta que em relação aos sentimentos a música poderia representar apenas sua
dinâmica, seu movimento ou sua intensidade – porém, a definição de quais seriam estes
sentimentos se daria exclusivamente por meio de elementos simbólicos que formariam
60
HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Um contributo para a revisão da estética dos sons. Tradução de
Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1994. p. 14.
61
Ibid., p. 15.
62
Ibid., p. 24.
27
63
Ibid., p. 28.
64
Ibid., p. 24.
65
Ibid., p. 100.
28
respeito da arte dos sons, em uma perspectiva que tenta sugerir uma certa objetividade ao ato
de compor e retira de suas influências aspectos sociais, históricos e pessoais, que ficam
alheios à obra de arte. Estas influências, por sua vez, podem manifestar-se no intérprete de
uma peça musical, que a vivencia e transmite o sentimento presente em sua execução ao
coração dos ouvintes, mas se faz ausente da obra de arte em si ou de todo seu processo de
criação66.
Entretanto, é justamente nestes aspectos citados por Hanslick que residem muitas das
inovações presentes na estética musical de algumas obras de Claude Debussy, e que abrem
caminho para uma linguagem musical que caracterizaria aquilo que viria a ser chamado de
“música moderna” ao longo do século XX.
Trilhando um caminho contrário ao que era proposto pela estética romântica da música
do século XIX – que tem como seu maior referencial a figura e as composições de Richard
Wagner67, a busca pela construção de uma identidade nacional e o zelo pelos valores
cultivados ao longo do Antigo Regime –, Claude Debussy adotou uma linha pessoal na
concepção de suas obras que, muitas vezes, chocou-se com o padrão das formas de
composição até então consagradas.
Paul Griffiths, estudioso e crítico musical contemporâneo, estabelece em uma de suas
análises a frase inicial escrita para flauta na obra Prélude à l’Après-midi d’un Faune como o
primeiro passo do que viria a dar origem à música moderna do século XX, quando a quebra
da estrutura tonal inauguraria possibilidades inimagináveis dentro dos padrões tradicionais de
composição que vigoravam desde o século XVII e davam coerência a quase todas as formas
de música ocidental68.
Esta obra de Debussy, embora ainda não apresente características que possam
enquadrá-la como uma composição atonal, lançou mão de modelos estéticos e criativos que
exerceram forte influência em compositores contemporâneos de seu autor, libertando-se do
sistema de tonalidades diatônicas maiores e menores: nos dois compassos iniciais da
66
Ibid., pp. 62 e 63.
67
A estética inaugurada pelas obras de Wagner foi um dos principais elementos a consolidar a perspectiva
de que o conteúdo da música seria a expressão direta dos sentimentos. A obra Do belo musical, de Eduard
Hanslick, foi escrita em oposição à própria figura de Richard Wagner, que defendia a associação mencionada
entre sentimentos e música.
68
GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 7.
29
composição, por exemplo, Debussy criou uma sensação de dúvida a respeito da tonalidade em
que a melodia estaria sendo executada ao utilizar-se de notas localizadas fora da gama de sons
que permitiria identificar com precisão uma determinada escala ou tonalidade69.
Da mesma maneira, a lógica tradicional da composição musical estabelecida nos
modelos anteriores apresentou algumas inovações nesta obra de Debussy: ao invés de propor
um tema bem delimitado que seria desenvolvido ao longo da peça, o que constitui uma
característica marcada da estética romântica e mesmo das formas musicais clássicas de
séculos anteriores, o compositor lançou algumas idéias musicais que, por vezes, aparecem
vacilantes e incertas até o momento em que se afirmam como um motivo característico,
desdobrando-se dentro da composição. Esta forma de escrita utilizada por Debussy em seu
Prélude, ao invés de proporcionar o desenvolvimento progressivo de uma idéia principal
dentro da obra, suscita antes uma forte sensação de improviso e espontaneidade musical que
em tudo se diferenciou das características do chamado Romantismo tardio na música70.
Paul Griffiths acrescenta que esta espontaneidade sugerida pela forma musical do
Prélude decorre muito das mudanças de andamento e das formas rítmicas irregulares
utilizadas por Debussy nesta obra, tornando-a mais livre em sua medida de tempo e
distanciando-se do modelo tradicional de regularidade e homogeneidade do ritmo, onde a
atenção do ouvinte concentrava-se principalmente na harmonia e na forma melódica, e os
andamentos eram apresentados de modo a caracterizar o ímpeto da composição em direção ao
seu clímax e conclusão71.
Um outro ponto característico das composições de Claude Debussy que pode ser
exemplificado através do Prélude diz respeito à orquestração utilizada: seus temas para
determinados instrumentos dentro das peças foram construídos de maneira a realçar nuances
particulares daquele registro sonoro, dando à sua música um aspecto de delicadeza e
personalidade que, segundo Griffiths, era algo raro de ser encontrado nas formas de
composição anteriores. Ao ouvirmos uma transposição das composições de Debussy para
outras formações ou instrumentos, é possível notarmos que determinadas frases musicais,
como o citado motivo da flauta escrito para o início do Prélude à l’Après-midi d’un Faune,
perdem parte de sua substância em relação à idéia original. Esta característica faz com que a
orquestração de suas peças demarque de maneira peculiar tanto as idéias a serem apresentadas
melódica e harmonicamente, quanto a estrutura musical construída ao longo do
69
Idem.
70
Ibid., p. 9.
71
Idem.
30
72
Idem.
73
DEBUSSY, C. Apud GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 10.
31
Um tema recorrente nas opiniões declaradas por Debussy em suas publicações sobre
música dizia respeito à influência da tradição austro-germânica sobre as composições
francesas. Este modelo estético, segundo Claude Debussy, pautava-se em uma escrita
repetitiva e excessivamente atada às regras estabelecidas ao longo do tempo, inovando pouco
e, de certa maneira, homogeneizando as criações musicais da época, desfavorecendo
justamente a postura criativa mais livre e sonoramente fluida que se pode observar em
algumas de suas composições. Em seus termos, Debussy afirma que
“Para quem sabe ver com emoção, é a mais bela lição de desenvolvimento escrita
nesse livro que os músicos não visitam o suficiente, quero dizer: a Natureza... eles
olham nos livros através dos mestres, remexendo piedosamente naquela velha
poeira sonora; é bom, mas talvez a arte esteja mais adiante!”77.
A crítica ao culto que se formara ao redor da obra de Richard Wagner, um dos maiores
expoentes da tradição germânica do romantismo na música, também se mostrou um assunto
comumente abordado por Claude Debussy em suas declarações. Mesmo assumindo ser, nos
anos de sua mocidade, um grande apreciador de Wagner e um defensor de sua genialidade
74
GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 11-12.
75
DEBUSSY, Claude. Monsieur Croche e outros ensaios sobre música. Tradução de Raquel
Ramalhete. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 282.
76
DEBUSSY, C. Op. cit., p. 62.
77
Ibid., p. 153-154.
32
musical, Debussy aponta justamente esta admiração quase religiosa que se formara sobre a
obra wagneriana como um grande problema criativo para os compositores franceses de então.
Para ele, esta “Arte-Religião” contribuía principalmente para alienar e reter a imaginação do
público, afastando a música das grandes multidões e mantendo-a restrita a pequenos círculos
aristocráticos que rejeitavam inovações e negavam o incentivo ao repertório moderno que
surgia timidamente. Sua iconoclastia wagneriana assumiu a constatação de que a criação de
uma nova linguagem musical freqüentemente significava postar-se diante de críticas acirradas
que não se dirigiam somente às obras, mas também a seus compositores:
“(...) é preciso confessar que esse gênero de música exige uma alquimia particular
à qual tem-se que oferecer em holocausto nossa cara tranqüilidade!... É duro de
manter e absolutamente improdutivo. Adeus! os bons direitos autorais, o tão
lisonjeiro aperto de mão diretorial. Já não se é senão uma espécie de sábio
particular e nossos confrades nos olham com aquela condescendência que o
sucesso torna cheia de desprezo.”78
Como visto, muitas das idéias e inovações estéticas presentes nas obras de Debussy se
mostram em grande consonância com a crítica à escola wagneriana e com as teorias propostas
por Eduard Hanslick em sua obra Do belo musical. Ainda assim, ao definir o conteúdo da
música de maneira objetiva apenas como a expressão sonora, desvinculando da criação de
uma obra musical os sentimentos pessoais do compositor e as influências sociais e históricas
sobre o ambiente que este se encontra e sobre o curso de sua vida, Hanslick deixou de fora de
sua análise aspectos importantíssimos: como visto, a criação de uma obra de arte constitui, de
forma consciente ou mesmo inconscientemente, a elaboração e veiculação de um discurso a
respeito de um tema.
Com a música isto não se dá de forma diferente: estes discursos veiculados pela arte,
embora não criem o tema sobre o qual estão discorrendo, apropriam-se deste e lhe dão todos
os significados que tem, que são interpretados pelo sujeito que os observa de acordo com o
contexto em que está inserido. Um conhecido exemplo a respeito disto pode ser encontrado
nas óperas de Richard Wagner e na proposta que se enxerga por trás do roteiro e da história
78
Ibid., p. 155.
33
ali presente, que buscam fixar um ideal nacionalista ao narrar as origens míticas da formação
do povo alemão79.
Podemos tomar como outro exemplo da importância destes fatores sociais e históricos
na criação de uma obra de arte algumas das composições elaboradas por Claude Debussy nos
últimos anos de sua vida, quando a França, envolvida no contexto da Primeira Guerra
Mundial, encontrava-se em uma situação de conflito que alimentava ainda mais a rivalidade já
existente entre franceses e alemães.
O primeiro capítulo desta dissertação, ao expor a formação dos sentimentos nacionais
como um elemento constituinte da história do século XIX europeu, menciona o importante
papel das artes e da música na construção e na propagação de um passado em comum na
história de determinada sociedade80; neste contexto, Claude Debussy, durante a primeira
década do século XX e, principalmente, nos anos que antecederam a Primeira Guerra
Mundial, dedicou à parte de suas obras uma perspectiva de cunho nacionalista, valorizando
aspectos da tradição francesa e reforçando valores de sua nacionalidade em contraposição a
traços de outras culturas – e, sobretudo, da cultura alemã.
A relação turbulenta que existia nesta época entre a França e a Alemanha é algo
bastante conhecido, e já foi tema de diversos estudos historiográficos que remontam a
importância que conflitos e acontecimentos do passado, como a guerra franco-prussiana e a
querela em torno do território da Alsácia e Lorena, por exemplo, legaram para a formação de
um sentimento de rivalidade entre estes dois povos. Este sentimento, por outro lado,
extrapolava os limites da política e economia, e se fazia presente também em aspectos
culturais e em manifestações artísticas, tendo espaço na literatura, nas artes plásticas e
também na música: tomando como exemplo a obra de Debussy, encontramos em seus escritos
destes anos diversas críticas à musicalidade alemã, sua maneira de composição, suas técnicas
e as formas usualmente adotadas por seus compositores, que em sua visão apresentavam-se
antiquadas e engessadas em relação ao que a música de sua época deveria significar. Da
mesma forma, muitas destas críticas são direcionadas especificamente à figura de Richard
Wagner, à tradição criada com sua obra, e principalmente, ao culto que se formou em torno de
sua estética e de sua música81.
A situação de Claude Debussy no ano de 1914, pouco antes do decreto de guerra da
Alemanha à França, como se pode observar através do que está registrado em sua
79
MAYER, A. J. Op. cit., p. 216.
80
Ibid., p. 197.
81
DEBUSSY, C. Op. cit., p. 62.
34
correspondência pessoal e nas crônicas e entrevistas dadas por ele na época, era marcada por
um crescente esgotamento físico e emocional: desde o ano de 1909 que Debussy lutava contra
um câncer intestinal que o debilitava, e após cerca de 5 anos nesta situação sua saúde já se
mostrava bastante minada. Somado a isto, sua situação financeira não apresentava um bom
quadro, e suas obras, muitas vezes, enfrentavam a rejeição por parte da crítica e do público.
Assim, estes anos da carreira musical do compositor foram marcados por situações de altos e
baixos em relação à sua vontade de compor, oscilando entre ímpetos de criatividade e
momentos de extremo desânimo82.
Parte deste sentimento, talvez, possa ter sua raiz na forma como as obras de Debussy
foram tratadas na França no começo da década de 1910: nestes anos, a maioria dos críticos de
renome e apreciadores de arte franceses passava por uma fase de grande valorização da arte
feita em países estrangeiros – o que desencadeava uma postura de rejeição à produção cultural
francesa83.
A imprensa da época, que contava com a participação de Claude Debussy desde o ano
de 1901 por meio de suas publicações em periódicos especializados em música, não hesitava
em atribuir aos pontos de vista do compositor um sentido de oposição pessoal à criação de
Wagner, e uma busca por diferenciação e identidade próprios, que muitas vezes eram
respondidos por Debussy com críticas em relação à importância excessiva dada na França
para as culturas estrangeiras. Em resposta, por exemplo, a uma pergunta sobre a influência de
Wagner na cultura francesa e a necessidade de desvencilhamento disto, feita em entrevista ao
compositor no ano de 1909, Debussy afirma que procurou tornar-se
85
BENEDETTI, D. V. L. Op. cit., p. 23.
86
DEBUSSY, Op. cit., p. 265.
87
BENEDETTI, D. V. L. Op. cit., p. 25.
36
tradição por vezes esquecida como uma forma de sentimento de prestígio que, em muitos
casos, se associa a uma idéia de "missão" específica de um povo. Citando suas palavras,
88
WEBER, Max. The Nation. In: From Max Weber: essays in sociology. Routledge & Kegan Paul:
Londres, 1948. p. 175.
37
89
DEBUSSY, C. Apud BENEDETTI, D. V. L. Op. cit., 56.
38
90
BARRAUD, Henry. Para compreender as músicas de hoje. São Paulo: Perspectiva, 1975. p. 15.
91
Ibid., p. 11.
39
século XVII e denominado sistema tonal. A aurora do século XX, entretanto, juntamente com
o alvorecer de um novo século trouxe também a perspectiva de uma nova música, que em seu
cerne contém a desagregação do próprio sistema tonal92.
Como já mencionado no capítulo anterior, o conteúdo de uma obra de arte constitui a
veiculação de um discurso a respeito de um tema. Com a música isto não se dá de forma
diferente, posto que além dos elementos sonoros presentes, se encontram também em uma
obra conceitos e idéias veiculados pelo compositor e que expressam suas opiniões e sua visão
particular sobre determinado assunto. A música, enquanto forma de arte, constitui apenas um
dentre uma grande série de discursos a respeito do tema abordado em seu conteúdo, e
configura com isto uma dentre várias visões de mundo que dão a este tema os significados
que tem93. Um bom exemplo a respeito desta veiculação de discursos e que será exposto ao
longo deste capítulo é a posição nacionalista assumida por Claude Debussy, difundida em
suas obras musicais quando o cenário da Primeira Guerra Mundial tomou forma e acirrou as
rivalidades entre França e Alemanha.
A criação de uma obra de arte nunca se dá de maneira aleatória; ao contrário, esta se
faz enquanto produto de uma determinada época e cultura, e se embasa em escolhas
particulares e intervenções pessoais que necessariamente carregam as marcas do sujeito e do
meio que a produziu. Citando as palavras de Henry Barraud,
92
Ibid., p. 12.
93
JENKINS, K. Op. cit., p. 23.
94
BARRAUD, H. Op. cit., p. 11.
40
É partindo deste ponto de vista que serão apresentadas neste capítulo final da pesquisa
breves análises sobre algumas composições musicais de Claude Debussy. Mais do que
servirem como uma mera ilustração de sua obra, a intenção ao abordar de maneira reflexiva
estas composições é utilizá-las como fontes para o estudo historiográfico do recorte espaço-
temporal adotado na pesquisa, do debate que se propagava no meio artístico e musical na
virada do século XIX até as primeiras décadas do século XX, e das idéias propagadas por
Debussy em dois momentos distintos de sua vida: a perspectiva iconoclasta presente em
grande parte das obras de sua juventude, que lançaram as bases da música do século seguinte
ao atacarem algumas das estruturas tradicionais da criação e composição musical; e seu viés
conservador que atuou em prol do fortalecimento do sentimento nacional francês, em uma
conjuntura de crise própria dos anos da Primeira Guerra Mundial, presente nas obras criadas
no final de sua vida.
A análise que terá lugar aqui será elaborada por meio de duas propostas diferentes: a
primeira delas abordará a obra Prélude à l’Après-midi d’un Faune, preocupando-se
principalmente com sua estrutura musical e com as idéias apresentadas pelo compositor em
relação ao conteúdo sonoro da obra, em contraposição aos cânones da composição vigentes
desde o século XVII que estabeleciam regras rígidas sobre as relações tonais, rítmicas e
harmônicas, bem como em relação à orquestração, coloração e timbres dos instrumentos,
dentre outros aspectos. Nesta direção, a primeira proposta de análise enfatizará o viés
inovador atribuído a Debussy por meio das mudanças musicais existentes nesta peça, tomadas
por muitos estudiosos como o primeiro passo da música moderna própria do século XX em
contraste com os elementos da estética romântica que dominou grande parte da produção
musical do século XIX.
A segunda proposta de análise, por sua vez, dará atenção às obras Berceuse Heróïque
e En Blanc et Noir, duas composições elaboradas por Debussy nos últimos anos de sua vida,
quando o quadro de conflito enfrentado pela França no contexto da Primeira Guerra Mundial
fez com que aflorassem em sua estética elementos de exaltação da nacionalidade francesa. Na
perspectiva de Debussy, este engrandecimento da cultura da França se daria exclusivamente
por meio de uma produção nacional embasada na obra de compositores do século XVII e
XVIII, consolidada em um contexto anterior ao predomínio da estética romântica na música.
Assim, esta proposta irá observar o retorno a alguns elementos tradicionais da composição
através das obras de Debussy, não se preocupando tanto com a estrutura musical das peças
analisadas, como feito na primeira análise, mas sim com as intenções ideológicas nelas
contidas.
41
95
MARTÍNEZ GIRÓN, Maria José. Debussy: influencias plásticas y literarias en Prélude à l’Aprés-midi
d’um Faune. REVISTA GAROZA, n. 9, p. 106, setembro de 2009. Disponível em:
<http://webs.ono.com/garoza/G9-MartinezGiron.pdf>.
96
CALVOCORESSI, M. D. Claude Debussy. THE MUSICAL TIMES, vol. 49, n. 780, p. 81, 01 de
fevereiro de 1908. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/904900>.
97
BROWN, Matthew. Tonality and form in Debussy’s “Prélude à l’Aprés-midi d’un Faune”. MUSIC
THEORY SPECTRUM, vol. 15, n. 2, p. 127, 1993. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/745811>.
42
98
Ibid., p. 130.
99
A nomenclatura técnica oferece diversas definições do que configura um “motivo” dentro de uma
estrutura musical. Para as pretensões analíticas deste trabalho, o termo motivo será entendido como um
fragmento musical que fornece material para construir trechos de uma melodia, frases completas, ou mesmo o
tema que perpassa toda a composição. Por conta disto, um motivo pode se apresentar de forma harmônica,
melódica e rítmica, ou abrangendo-as simultaneamente.
43
Em sua obra A música moderna, Paul Griffiths nos afirma que o Prélude ainda não
pode ser classificado como uma composição atonal; porém, um dos traços que renderam a
esta peça a fama de ter sido o ponto de partida da música moderna é a liberdade apresentada
em relação ao sistema de tonalidades maiores e menores que fundamentava a tradição da
música desde o século XVII100.
Partindo desta perspectiva analítica, um primeiro ponto que destacamos é a
impossibilidade de buscar uma explicação tonal que englobe as quatro seções da peça como
um todo; de igual forma, buscar esta explicação tonal direcionando o olhar para cada uma das
partes da peça separadamente também não se faz possível: Debussy escreveu cada trecho
exposto acima de maneira que este não se desenvolva sobre uma única tonalidade, mas
apresente elementos que descaracterizam a convenção tonal dos modos maior ou menor101.
O trecho A, por exemplo, apresenta uma armadura de clave com quatro acidentes
sustenidos, definindo que a música será executada na tonalidade de Dó sustenido menor. As
frases dos quatro compassos iniciais escritas para a flauta, que apresentam o motivo principal
da peça, entretanto, não se enquadram nesta tonalidade e em nenhuma outra que possa ser
previamente determinada, causando já de início uma sensação de ambigüidade e incerteza.
A imagem da pauta nos mostra a razão pela qual a tonalidade nos quatro primeiros
compassos está indeterminada: a presença da nota Sol implica em uma mudança harmônica
neste trecho, posto que esta nota não pertence à tonalidade de Dó sustenido menor indicada
pela armadura102. Além disto, a tercina imediatamente anterior ao aparecimento da nota Sol,
destacada por meio de um ponto de aumento, age suspendendo o som de forma etérea ao
mesmo tempo em que coloca um dos tempos fortes do compasso sobre a nota fora da
tonalidade do trecho. A duração maior da nota Sol em relação às demais notas que compõem
a frase, portanto, reforça a importância que este elemento estranho à tonalidade adquire na
composição, enfatizando a quebra de um paradigma musical.
Da mesma forma, as relações harmônicas entre tensão e repouso estabelecidas com o
modelo tradicional de composição impulsionam a conclusão desta frase inicial para a nota Lá
100
GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 7.
101
BROWN, M. Op. cit., p. 131.
102
Ibid., p. 134.
44
sustenido, que de acordo com a armadura de clave, também não pertence à tonalidade em que
a música deveria ser executada103.
O recurso que permite valorizar em determinado trecho uma nota que se encontra fora
da escala utilizada denomina-se hipercromatismo, e deriva em muito da estética romântica na
música e da obra de Richard Wagner, criticada por Claude Debussy. A inovação apresentada
por Debussy em relação a esta técnica se encontra no modo como o hipercromatismo é usado:
em Wagner, a presença de notas cromáticas ocorria principalmente em passagens de trechos e
sempre procurava maneiras de resolver a tensão sonora ocasionada com isto, configurando a
busca por uma sensação de repouso própria da música tonal; Debussy, por sua vez, se utiliza
do cromatismo para evidenciar a tensão e a fuga de uma perspectiva tonal nestes trechos,
distanciando-se de uma solução que busca o repouso.
O trecho que vai do compasso nº. 4 ao nº. 13 também deriva de um modelo ortodoxo
de composição, e se baseia na progressão harmônica passando de uma tensão menor para uma
tensão maior, típica da escrita musical tonal. Assim, a intersecção de frases melódicas dotadas
de um hipercromatismo sobre uma base harmônica tonal faz com que a sensação de
reconhecimento de uma tonalidade maior ou menor não seja alcançada pelo ouvinte, gerando
uma atmosfera etérea sobre a música que está sendo executada104.
Como evidenciado por Griffiths, a orquestração utilizada por Debussy nesta peça se
constitui em mais um elemento que define uma ruptura em relação à estética romântica na
música105. A tradição musical barroca estabelecia para a grande maioria das obras a forma
instrumental denominada “concerto grosso”, quando um solista ou um pequeno grupo de
instrumentos, em geral formado por violinos e violoncelo, dialogava com o restante da
orquestra por meio de temas musicais de pergunta e resposta que davam corpo à composição.
Esta formação legou uma grande importância aos instrumentos de corda, que passaram a
ganhar destaque e figurar os trechos mais importantes das obras orquestrais.
A presença dos instrumentos de sopro da família das madeiras, no contexto romântico
ainda relegada a participações pouco importantes em relação ao predomínio das cordas,
ganhou destaque na estética de Debussy: o trecho compreendido entre os compassos de nº. 30
e 54 apresenta um desenvolvimento das idéias contidas na frase inicial por meio de uma re-
103
Idem.
104
Idem.
105
GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 9.
45
exposição do tema principal para flauta, e da introdução de um segundo tema na peça, agora
desenvolvido para o oboé106.
Este tema apresentado é de importância central na obra, e tendo sido escrito para
instrumentos de sopro, intenta evocar uma atmosfera misteriosa e onírica que em tudo se
relaciona à obra de Mallarmé e à indistinção que se dá entre sonho e realidade para o fauno do
poema.
Diversos motivos menores se desdobram simultaneamente e apresentam-se
perpassando estes temas, ora sobrepondo-se, ora completando um ao outro. Esta técnica
denomina-se compressão motívica e se faz característica nas composições de Debussy. No
Prélude, a compressão se dá notadamente sobre o motivo principal, apresentado pela flauta já
nos primeiros compassos da obra, e pode ser verificada em todas as quatro seções da obra.
106
BROWN, M. Op. cit., p. 134.
46
O clímax do Prélude acontece entre os compassos de nº. 94 e 99, quando todos estes
motivos flutuantes retornam gradativamente ao tema inicial para a flauta. Este é o trecho da
obra que apresenta a textura sonora mais densa, caracterizada por uma polifonia bastante
complexa107. A polifonia é uma das características principais da estética barroca e foi alvo de
inúmeros tratados e obras desde o século XVII, como o famoso O Cravo Bem Temperado de
Johann Sebastian Bach, que apresenta lições sobre contraponto por meio de diferentes vozes
musicais que se apóiam e se desenvolvem ao mesmo tempo, completando-se. Debussy, por
outro lado, utiliza a polifonia de maneira a apresentar diversas vozes com linhas melódicas
distintas e importantes simultaneamente, caracterizando um traço que seria explorado pela
música moderna a partir do século XX.
De certa maneira, as relações existentes entre alguns motivos musicais encontrados em
seções distintas da obra contradizem a afirmação de Debussy de que a música deveria se ver
107
Ibid., p. 136.
47
livre de regras e tradições intrincadas108. A própria forma sonata utilizada por Debussy na
escrita desta peça evidencia que os paradigmas tradicionais da música tonal não foram
completamente abandonados pelo compositor; porém, inegavelmente o Prélude se constitui
em um modelo de composição pouco usual para seu tempo, principalmente se levarmos em
conta os padrões da teoria musical e do tonalismo próprios do século XIX, ainda de inclinação
fortemente romântica109.
Obras posteriores de Claude Debussy e que se tornaram igualmente notáveis
apresentam elementos estéticos que foram inaugurados no Prélude à l’Après-midi d’un
Faune. Algumas destas peças, como La Mer (1903) e Images (1904), revelam graus maiores
de complexidade, retratando um amadurecimento do compositor. Assim, Matthew Brown nos
afirma que a trajetória de distanciamento de Claude Debussy em relação aos cânones da
composição tradicional que vigoravam há séculos se deu de forma lenta e gradual110.
Arnold Schoenberg, um dos maiores nomes da música do século XX, ao escrever
sobre a estética de Debussy em sua obra Harmonia, mencionou que “se a tonalidade deve
flutuar, terá, em algum ponto, de estar firme”111. Esta solidez foi encontrada por Debussy
através de um novo olhar em relação à tradição musical de seus antepassados: algumas das
técnicas presentes no Prélude, como a utilização do hipercromatismo, por exemplo,
encontraram precedentes na prática e na escrita da música tonal própria do século XIX e da
estética wagneriana. A inovação proposta por Debussy em relação à tradição, portanto, residiu
muito mais na maneira de se explorar técnicas usuais de maneiras inusitadas, não
necessariamente criando novos princípios de forma e harmonia, mas reformulando-os de
acordo com a sua época112.
Assim, é possível afirmar que o que trouxe a dramaticidade e proporcionou tensão e
dinamismo à obra de Debussy foi esta trama habilmente construída entre um ponto de vista
cromático que assumiu ares atonais e, por isto mesmo, modernos, e uma estrutura tradicional
ainda pautada no tonalismo. Esta contraposição de características gerou uma linguagem e uma
prática musical que deu origem a perspectivas diferenciadas para a música do século XIX e,
principalmente, forneceu embasamentos muito importantes para a construção da música
moderna do século XX.
108
DEBUSSY, C. Op. cit., p. 214.
109
BROWN, M. Op. cit., p. 141.
110
Ibid., 143.
111
SCHOENBERG, Arnold. Harmonia. São Paulo: Editora da UNESP, 2001. p. 528
112
BROWN, M. Op. cit., p. 143.
48
Após termos dedicado atenção aos aspectos que classificaram a obra de Claude
Debussy como o princípio de uma vanguarda iniciada no final do século XIX, quando os
elementos que formariam a música moderna estavam sendo elaborados, esta segunda etapa da
análise busca delimitar na produção dos anos finais da vida do compositor características que
evidenciam um retorno estético às tradições dos séculos XVII e XVIII, anteriores ao contexto
em que o romantismo e, consequentemente, a influência alemã ganhou força sobre a produção
musical francesa.
Assim, se faz necessário identificar a importância que a conjuntura de um conflito em
proporções mundiais trouxe sobre a concepção artística do período, e sobre a forma em que
Claude Debussy posicionou-se no contexto histórico e social do começo do século XX.
Debussy considerava a influência romântica alemã um dos principais motivos pelos
quais a música de seu tempo se mostrava pouco criativa. Em seu ponto de vista, a produção
contemporânea se baseava ainda em formas de arte e escolas do passado que enrijeciam
demais a liberdade criativa e que deveriam ser superadas. Mesmo os grandes nomes do
passado buscavam não se ater tanto às regras da composição quando isto nublava seu senso
criativo, como nos afirma:
“O velho Bach, que engloba toda a música, não ligava, podem acreditar, para as
fórmulas harmônicas. Preferia a elas o jogo livre das sonoridades, cujas curvas,
paralelas ou opostas, preparavam o desabrochar inesperado que orna com
imperecível beleza o menor de seus inúmeros cadernos.”113
“É bem evidente que temos sido mais do que acolhedores com os músicos alemães.
Daqui a cinqüenta anos, saberemos o que deve restar de nossos fanatismos atuais.
Gostamos de tudo o que vem de fora. Como crianças, batemos palmas diante de
uma obra que vem de longe: da Escandinávia, da Germânia ou dos países latinos,
113
DEBUSSY, C. Op. cit., p. 62.
49
sem nos darmos conta do valor real e da solidez dessa obra, sem nos perguntarmos
se vamos sentir um entusiasmo sincero por emoções de almas estranhas às nossas.
(...) Ainda considero muito bom quando não imitamos, gaguejando, o que essa
gente diz na sua língua. (...) Os alemães não têm que nos compreender, assim como
nós não devemos nos esforçar para penetrar nas emoções deles.”114
114
Ibid., p. 265.
115
Jean Phillipe Rameau é o autor da obra Tratado de Harmonia Reduzida aos seus Princípios Naturais,
publicada no ano de 1722 e que fundamenta e introduz na teoria musical a idéia da tonalidade como a expressão
musical perfeita.
116
BENEDETTI, D. V. L. Op. cit., p. 13.
50
(um pouco distante) e écho (eco), e que se relaciona aos instrumentos utilizados pela orquestra
em sua execução117:
117
Ibid., p. 57.
118
Idem.
51
O ano seguinte ao início da Guerra foi marcado por uma intensa série de ataques
alemães ao território francês. Neste ano foi publicada a composição En Blanc et Noir, uma
das últimas obras de Claude Debussy. Escrita para dois pianos e formada por três
movimentos, esta composição também pode ser objeto de reflexão sobre as crescentes
inclinações nacionalistas que fizeram parte dos últimos momentos da vida do compositor. Nas
palavras de Danieli Benedetti, estas peças “pertencem, à sua maneira, à fase em que o
compositor, reivindicando o título de ‘musicien français’, retorna às fontes do espírito
clássico”119.
A dedicatória desta obra ao tenente Jacques Charlot, amigo de Debussy e morto em
combate em março de 1915, nos revela um Claude Debussy patriótico e desejoso de fazer
parte das batalhas do conflito mundial, não fosse a doença que o acometia e a assumida falta
de espírito militar120 – mas também, esta obra expressa um compositor ressentido e
desgastado pela tortura ocasionada com a guerra, como pode ser visto nas indicações de
interpretação do segundo movimento da obra: Lent-Sombre (lento e sombrio)121.
119
Ibid., p. 64.
120
Ibid., p. 54.
121
Ibid., p. 68.
52
A peça contém na abertura de seu segundo movimento uma citação da poesia Balada
contra os inimigos da França, de François Villon, e apresenta um contraste impossível de
passar despercebido entre passagens pianísticas que simulam a estrutura tonal e harmônica de
um coral luterano, simbolizando o inimigo alemão, e trechos onde surge claramente a melodia
da Marselhesa, o hino nacional francês. Em cartas a Jacques Durand, Debussy comenta sobre
a introdução do trecho de um coral luterano e da presença da Marselhesa nesta obra:
“Você verá o que pode acontecer ao hino de Lutero por ter imprudentemente
penetrado num Caprice à francesa. Quase no fim, um modesto carrilhão faz soar
uma pré-Marselhesa. Mesmo desculpando-se deste anacronismo, isto é admissível
numa época em que os pavimentos das ruas e as árvores das florestas estão
vibrantes deste canto onipresente.”122
122
DEBUSSY, C. Apud BENEDETTI, D. V. L. Op. cit., p. 69.
53
Esta obra, sobretudo, evoca uma sensação de tensão e esgotamento proporcionada para
todos aqueles que enfrentavam, direta ou indiretamente, as conseqüências trazidas pela guerra
diante de todas as perdas, destruição e tristeza ocasionadas com ela – dentre os quais também
se encontrava o próprio compositor123.
Em vias de conclusão, esta perspectiva estruturada em duas formas distintas de análise
apresentada neste capítulo possibilita ir além da compreensão e classificação das principais
características musicais do compositor. A partir disto, a utilização de algumas das
composições de Claude Debussy em cruzamento com seus escritos literários e entrevistas
proporciona o direcionamento do olhar para uma interpretação que não se prende apenas na
caracterização de Debussy como um compositor essencialmente moderno, autor de mudanças
estéticas que trouxeram à música do século XIX e do começo do século XX aspectos
inovadores, mas identificando e associando também à sua obra e sua visão de mundo
características importantes que se relacionam diretamente com o contexto histórico e social da
Primeira Guerra Mundial.
123
BENEDETTI, D. V. L. Op. cit., p. 72.
54
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
124
DEBUSSY, C. Op. cit., p. 64.
55
permite ao pesquisador identificar idéias e pontos de vista que se encontram gravados em uma
linguagem não-verbal, mas que nem por isto se mostram menos importantes do que aquilo
que se manteve registrado em palavras. Nisto se destaca a importância de um olhar atento
para a utilização dos mais diferentes meios para a escrita e o estudo da história, como nos
aponta o caminho metodológico oferecido por diferentes suportes teóricos.
Desta forma, a conjunção no uso de fontes de diferentes origens e o diálogo
envolvendo diversas áreas do conhecimento possibilitaram identificar e associar também à
obra de Claude Debussy características importantes que se relacionam diretamente com o
contexto histórico e social no qual o compositor esteve inserido, e que se mostrou marcado
pela presença de um conflito tão impactante como a Primeira Guerra Mundial.
Por fim, em vias de conclusão, ao elaborar esta pesquisa a proposta de análise de
elementos culturais produzidos no recorte espaço-temporal estudado procurou também
demonstrar uma forma de utilização das fontes historiográficas não como simples ilustrações
do passado ou confirmações dos fatos que a História nos conta; em contraste a isto, foi
defendida a idéia de que o uso da produção artística de um determinado período pode e deve
ser encarado pelo pesquisador como mais uma possibilidade de refletir sobre a maneira pela
qual o contexto histórico e social do ambiente a que o artista pertenceu o influenciou
diretamente. Em conseqüência disto, se faz igualmente importante termos em mente que o
artista, ao produzir uma obra de arte, veicula através dela um discurso que intenta também
gerar mudanças no meio ao qual esta obra foi direcionada, em uma constante troca de
referências que configura uma dentre as variadas visões de mundo que uma época possui a
respeito de si mesma. Tratar estas partituras musicais como documentos, portanto, nos
possibilita pensar nestas composições como “(...) estratégias de intervenção no mundo, como
tentativa de incitação e choque, como discurso participante das polêmicas de um certo
tempo.” 125.
125
FARIA, Daniel. Quando os poetas se despediram da felicidade: Baudelaire e Dostoievski criticam as
utopias. HISTÓRIA: QUESTÕES E DEBATES, Curitiba, n. n. 44, p. 71, 2005. Editora UFPR.
56
FONTES
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MUSIC THEORY SPECTRUM, vol. 15, n. 2, 1993. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/745811>. 04/02/2010.
BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
CHENNEVIÉRE, Daniel. Debussy e sua obra. Tradução de Heitor Ferreira Lima. São Paulo:
Edições Cultura, 1943.
HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Um contributo para a revisão da estética dos sons.
Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1994.
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_____________. O século XX. 1914 aos nossos dias. São Paulo: Cultrix, 1986.
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O
fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
STALIN, Josef. The Nation. In: Marxism and the Natural Question, de The Essential Stalin:
Major Theorical Writings 1905 – 1952. Londres: Croom Helm, 1973.
ANEXO
126
CHENNEVIÉRE, Daniel. Debussy e sua obra. Tradução de Heitor Ferreira Lima. São Paulo: Edições
Cultura, 1943. p. 10.
127
GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 13.
61
128
DEBUSSY, C. Op. cit., p. 254.
129
NESTROVSKI, Arthur Rosenblat. Debussy e Poe. Porto Alegre: L&PM Editores, 1986. p. 9.
130
Ibid., p. 10.
62
131
Ibid., p. 92.
132
GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 12.