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06/11/2018 Operários e camponeses

Operários e camponeses
por Prabhat Patnaik [*]

O programa dos Bolcheviques nos primeiros anos do século XX fundamentava-se na


visão de que, em países chegados tardiamente ao capitalismo, a burguesia, ao invés de
dar golpes contra a propriedade feudal como o fez a clássica revolução burguesa na
história, a Revolução Francesa, faz compromissos com os interesses fundiários. Isso
acontece porque teme que, na nova situação, qualquer ataque à propriedade fundiária
possa se transformar num ataque à propriedade burguesa. Portanto, a tarefa de libertar o
campesinato do jugo feudal não cai sobre a burguesia, como fora o caso anteriormente,
mas sobre a classe trabalhadora, a qual constitui uma aliança com os camponeses a fim
de levar a cabo a revolução democrática. Uma vez feito isto, no entanto, a classe
trabalhadora não pára aí, mas prossegue rumo ao socialismo, embora neste processo sua
aliança de classe com o campesinato sofra uma mutação.

Esta visão profunda, expressa em As duas tácticas da social democracia na revolução


democrática, de Lenine, está subjacente à agenda bolchevique de lutar por uma ditadura
revolucionária democrática de trabalhadores e camponeses, a qual foi uma precursora do
nosso conceito actual de uma ditadura democrática do povo. Ao invés de uma aliança da
classe trabalhadora com a burguesia liberal, representada na Rússia czarista por partidos
como os Cadetes, que uma secção do Partido Social Democrata composto por Martynov e
outros advogavam, a ideia de Lenine era que os sociais-democratas deveriam ao invés
trabalhar para a formação de uma aliança operário-camponesa. Uma tal aliança, longe de
restringir o âmbito da revolução democrática, iria ao contrário ampliar a sua abrangência.
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A aliança operário-camponesa, um conceito central do marxismo-leninismo quando


aplicado no contexto do terceiro mundo, tem portanto sido encarada como necessária
devido à pusilanimidade política da burguesia decorrente da sua situação histórica, sua
incapacidade – num mundo onde o socialismo chegara à agenda histórica e a propriedade
burguesa já estava sob ameaça – para executar até ao fim a tarefa que fora iniciada.

Embora esta concepção permaneça válida, e na verdade a tendência da burguesia a se


comprometer com o latifúndio na nova situação tenha sido repetidamente confirmada pela
experiência real no terceiro mundo, inclusive no nosso próprio país, um factor adicional
entra em cena sob o neoliberalismo. Isto se relaciona com o facto de que as fortunas
económicas dos trabalhadores e dos camponeses agora ficam directamente ligadas; isto
é, há um movimento síncrono para baixo nas fortunas económicas dos trabalhadores e
dos camponeses. A aliança operário-camponesa torna-se não apenas um instrumento
para atingir a tarefa política da classe trabalhadora no contexto da revolução democrática;
torna-se também um instrumento essencial para melhorar as condições económicas dos
trabalhadores como um todo na era do neoliberalismo.

A razão para esta ligação das fortunas económicas dos trabalhadores e dos camponeses
é a que se segue. O neoliberalismo desencadeia um processo vigoroso de acumulação
primitiva de capital no campo, onde a oligarquia corporativo-financeira e as corporações
multinacionais se chocam com o sector tradicional de pequena produção, especialmente a
agricultura camponesa, causando grande sofrimento aos camponeses. Este sofrimento,
cuja manifestação no nosso país assumiu a forma de suicídios camponeses em massa,
de mais de 300 mil pessoas nas últimas duas décadas, também obriga os camponeses a
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deixarem suas terras e a migrarem para vilas e cidades em busca de emprego. A


aquisição de terras camponesas "por uns tostões" pela grande burguesia, para toda
espécie de projectos imobiliários, muitas vezes camuflados como projectos de
"infraestrutura", provoca o mesmo efeito de expulsar os camponeses das suas terras.

Dados do Recenseamento da Índia revelam isto claramente. Entre os Censos de 1981 e


1991, o número de cultivadores (trabalhadores principais) passou de 92 milhões para 110
milhões. Mas o número caiu para 103 milhões no Censo de 2001 e para 95,8 milhões no
Censo de 2011. Por outras palavras, o declínio coincide precisamente com o período do
neoliberalismo; e entre 1991 e 2011, o ano do último Censo, o declínio no número de
cultivadores chega a quase 15 milhões, o que é um número estarrecedor!

Nas cidades, entretanto, o número de postos de trabalho criados, mesmo quando a taxa
de crescimento do PIB parece muito alta, é extremamente insignificante, insuficiente até
mesmo para absorver a taxa natural de crescimento da própria força de trabalho urbana,
muito menos dos migrantes das aldeias. Entre 2004-5 e 2009-10, dois anos em que a
Pesquisa Nacional por Amostra realizou amplas pesquisas por amostragem e que
abrangem um período de alto crescimento do PIB, a taxa anual de crescimento do
emprego como "status habitual" (ou seja, daqueles que consideram como “Status habitual”
estar empregado), era de apenas 0,8%. Isso era bem abaixo da taxa natural de
crescimento da própria força de trabalho urbana, que não poderia estar demasiado abaixo
da taxa de crescimento populacional de 1,5%.

Portanto os camponeses migrantes apenas incham o exército do trabalho de reserva nas


cidades, embora este facto se manifeste não num crescimento relativo do desemprego
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aberto, mas sim numa proliferação de empregos em tempo parcial, emprego casual,
emprego intermitente e desemprego disfarçado (muitas vezes camuflado como "pequeno
empreendedor"). Por outras palavras, o racionamento do emprego assume a forma não
de mais pessoas estarem realmente desempregadas, mas de cada pessoa, em média,
estar desempregada por um período de tempo mais longo.

Mas não importando a forma que assume, a ascensão relativa do exército de trabalho de
reserva tem o efeito de rebaixar as condições médias de vida dos trabalhadores urbanos
como um todo. Isto acontece porque não se verificam aumentos na taxa salarial, devido
ao crescimento do exército de reserva, ao passo que o reduzido número de horas de
trabalho em média implica um rendimento médio mais baixo para todos os trabalhadores
urbanos.

O aumento relativo na dimensão do exército de reserva também tem o efeito de


enfraquecer as organizações de trabalhadores. Isto aconteceria mesmo se este aumento
relativo tomasse a forma de desemprego aberto maior, mas acontece ainda mais
acentuadamente quando assume a forma de precarização crescente, um aumento na
proporção de trabalhadores temporários. Mesmo o segmento da classe trabalhadora que
no passado foi organizado e sindicalizado não pode fugir ao seu impacto, porque a
terciarização (outsourcing) do trabalho e a precarização da força de trabalho também
começam a caracterizar os sectores onde anteriormente existiram sindicatos fortes.

O efeito geral do sofrimento do campesinato sob o neoliberalismo, portanto, é também o


de minar o poder da greve e as condições de vida dos trabalhadores urbanos. Sem
dúvida, há modos adicionais, independentemente do sofrimento da migração do campo,
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pela qual o neoliberalismo também provoca tal enfraquecimento das condições e da força
organizacional dos trabalhadores (como por exemplo a privatização de unidades do sector
público). Mas a aflição do campesinato e, portanto, dos trabalhadores agrícolas, agrava
esta tendência.

Devido a isto, a aliança operária-camponesa emerge como a arma primária na luta para
ultrapassar o capitalismo neoliberal. E uma vez que o neoliberalismo sustenta a actual
conjuntura que desova o crescimento da tendência comunal-autoritária, com o generoso
apoio da oligarquia corporativo-financeira, a aliança operário-camponesa também se torna
a arma primária para ultrapassar esta conjuntura e então para a derrota final das forças
comunais-autoritárias.

Mas apesar de o neoliberalismo fortalecer o potencial objectivo para a formação de uma


aliança de operários, camponeses e trabalhadores agrícolas, a tarefa de realmente
constituir uma tal aliança tem de ser empreendida. Uma tal aliança, por outras palavras,
tem de ser transformada de uma aliança em si numa aliança para si, para parafrasear a
famosa formulação de Marx sobre o proletariado. Ela tem de ser convertida de uma
possibilidade objectiva num organismo que realmente comece a intervir activamente.

Este complexo processo de transformar esta aliança em si numa aliança para si começou.
O comício Mazdoor-Kisan a ser efectuado em Delhi dia 5 de Setembro, o qual se segue à
marcha kisan verificada em Maharashtra alguns meses antes, é um marco importante
neste processo de transformação. Até agora havia comícios separados de operários, de
camponeses e de trabalhadores agrícolas. O comício de 5 de Setembro será o primeiro
comício conjunto destas três classes e, embora suas exigências imediatas sejam por
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alívio
económico,
seu potencial
histórico para
combater o
neoliberalismo
e o comunal-
autoritarismo
que ele desova
é imenso. Sua
significância
torna-se ainda
maior quando
o comunal-
autoritarismo
está a mostrar os dentes, com prisões à escala nacional de activistas de direitos civis sob
toda espécie de acusações arbitrárias e forjadas – e com o anúncio insolente de que mais
prisões estão em vias de acontecer.

02/Setembro/2018

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2018/0902_pd/workers-and-


peasants . Tradução de JF.
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Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .


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