Você está na página 1de 7

Filme sobre primeira mulher palhaço

do país vira espetáculo com três


gerações no palco
Projeto de pesquisa de neta sobre avó que foi ‘primeira
palhaço’ do Brasil se desdobra em debates sobre
racismo, feminismo e nova geração da palhaçaria.
Por Vivian Reis, G1 SP — São Paulo
08/11/2018 06h01 Atualizado há 2 horas

00:00/04:04
Filme sobre pioneira nos picadeiros vira espetáculo com três gerações no palco

Um dia o vestido de noiva de Mariana virou só um vestido. Na hora, doeu, mas


com o tempo ela percebeu que podia ser divertida essa história de fazer uma
coisa virar outra - aquela dor virar experiência, aquele fim virar começo, aquele
episódio virar piada, o vestido de noiva virar figurino de palhaço.
E assim, um dia, a atriz e cineasta Mariana Gabriel se tornou a palhaça Birota,
a quarta geração de circo da sua família. Fez um filme sobre a avó Maria Elisa
Alves dos Reis, negra, que foi palhaço, assim no masculino mesmo, quando só
os homens brancos tinham esse direito. Agora, ressuscita o picadeiro do Circo
Guarani com sua avó no telão, ela e a mãe no palco.
Desde seu lançamento, há dois anos, o documentário "Minha Avó Era
Palhaço", percorre um circuito muito particular. Mariana Gabriel conta que, das
107 exibições, 90 aconteceram em festivais de circo, e não em festivais de
cinema, e sempre há um debate na sequência da exibição sobre preconceito
racial, protagonismo negro e comicidade feminina.(Confira as próximas exibições
agendadas ao fim desta reportagem.)
“Nesses espaços começaram a me questionar sobre a Birota e, entre a
exibição do filme e o debate, passei a apresentar um número dançando com
minha avó no telão com ‘Cielito Lindo’, uma canção que eu cantava com ela.
Minha mãe, que guia as discussões, também começou a cantar, então essas
exibições estão virando um espetáculo contínuo. Sentimos que o circo da
família está de volta”, conta a atriz e cineasta.
Mariana sempre soube que pertencia a uma família de circo. “O primeiro livro
que escrevi, ainda criança, se chamava ‘Minha Avó era Palhaço’. Eu sabia
algumas coisas - do elefante, de um macaco chamado Pescador que tirava
piolho das crianças, mas pensava, ‘ok, não vivi o circo’”, relembra.
Durante as filmagens de um documentário sobre artistas de circo já idosos que
moravam no conjunto habitacional Cingapura, no bairro do Limão, a cineasta
perguntava, apenas por curiosidade, se eles tinham ouvido falar do Circo
Guarani. Após uma série de confirmações, ela foi presenteada com um livro
que fazia menção a sua avó.
“Não tem o nome dela, nem do palhaço Xamego, que ela representava, mas
fala de uma mulher que atuou no Guarani depois que o palhaço oficial do circo
teve um grave problema de saúde. Meu tio-avô! Conta que ela assumiu o papel
escondida do público, já que não havia mulheres palhaços àquela época, mas
que um dia uma menina levantou a lona do circo e viu o palhaço amamentando
uma criança. Hoje consigo falar disso sem chorar”, continua.
Os relatos dos artistas e a descoberta do livro foram "um auê" na família,
segundo a cineasta. Com pai e mãe jornalistas, ela disse ter aprendido cedo a
importância do registro e decidiu dar início uma pesquisa sobre a história de
sua avó para rodar um filme em sua homenagem.
Atriz e cineasta Mariana Gabriel fez um filme sobre a avó Maria Eliza Alves dos Reis,
que foi negra e palhaço quando só os homens brancos tinham esse direito — Foto:
Celso Tavares/G1

Mariana Gabriel inscreveu o projeto em um edital da Fundação Nacional de


Artes (Funarte) e foi contemplada com uma verba para pesquisa em 2014.
“Com essa verba, que era só para a entrega de uma pesquisa escrita, a gente
incluiu dinheiro do próprio bolso e fez um blog do palhaço Xamego e o
documentário. Fomos guerrilheiros”, contou.
O filme de 52 minutos ficou pronto em 2016. “Minha avó viveu 98 anos, a
época áurea e a decadência do circo. Acho que, com o filme, traçamos a
história do circo no Brasil junto com a história dela”, diz.
A cineasta descobriu que o Circo Guarani, de sua família, foi um dos cinco
maiores circos do país em 1932, época em que esse espetáculo era uma das
poucas ofertas de entretenimento. Descobriu também que a companhia fretava
um trem para viajar com o picadeiro e encontrou alguns registros de João
Alves, seu bisavô e dono do circo, que segundo ela, são apenas partes de uma
história ainda a ser remontada.
“Todo circo é o grande circo, mas quão grande era o Guarani? Não sei. A
história do meu bisavô é muito curiosa – um homem negro que, 15 anos após a
abolição, é um grande empresário, um grande dono de circo no início do século
20. Como? É uma história muito doida”, diz, acrescentando que uma nova
pesquisa, focada no circo, está começando a ser feita.

Com pai e mãe jornalistas, Mariana disse ter aprendido cedo a importância do registro e
decidiu dar início uma pesquisa sobre a história de sua avó — Foto: Celso Tavares/G1
Nascimento da Birota
A primeira mulher palhaço do Brasil já havia passado o bastão para Mariana na
primavera de 1989. Numa tarde ensolarada de outubro, vestida de Maria Elisa
Alves dos Reis, o palhaço Xamego ajudou a neta a se fantasiar para a festa de
Halloween com um chapéu de bico, nariz torto de massinha, postura corcunda,
voz horripilante e a dica final: quando se é, se é por inteiro.
Mariana Gabriel, então com cinco anos de idade, completou sua primeira lição
de “verdade cênica” e "coerência na vida" ao cruzar o portão da escola de
mãos dadas com a avó e se ver como a única bruxa de verdade em meio a
bruxas-princesas, bruxas-fadas e bruxas-rainhas.
“Mesmo eu nunca tendo visto minha avó vestida de palhaço, acho que o tempo
todo ela era o Xamego. Isso porque o palhaço não é um personagem; ele usa a
menor máscara do mundo, no nariz! Veste a máscara que mais revela e fica
escondido, muitas vezes, naquilo que a gente não gosta em si mesmo”,
explica.
Começava a nascer ali, devagar, a palhaça Birota. Depois da faculdade, a atriz
e cineasta fez um pouco de tudo – direção de fotografia, assistente de câmera,
roteiro, direção, dois longas e programas de TV.
“Desenvolvo a Birota desde 2009, o que demandou um grande mergulho para
buscar a expressão dilatada de mim mesma. Não se tratava de entender o que
iria fazer no palco, mas o que eu já faço, como faço e trabalhar em como
poderia ser maior. Foi um aprendizado de como lidar com meu ridículo, um
processo de dentro pra fora”, afirma.
Mariana Gabriel explica que há muitas linhas de palhaçaria e que a Birota tem
muita influência do Xamego. “Minha avó era muito chapliniana porque o cinema
dialogava com a arte circense naquela época, e tinha o sapato, o chapéu coco,
a bengala. Um trabalho baseado no gestual, mais do que na fala. Eu também
gosto do riso que nasce da sutileza, do pequenininho, da cumplicidade com o
público”, descreve.
Confira abaixo as próximas exibições agendadas do documentário "Minha Avó
Era Palhaço":
 13/11 - no Sesc Belenzinho, em São Paulo, SP

 27/11 - no Sesc Santana, em São Paulo, SP

 29/11 - na Sala Walter da Silveira, em Salvador, BA

 06/12 - Festival de Circo Anjos do Picadeiro, no Rio de Janeiro, RJ


Desde 2009, Maria Gabriel estuda palhaçaria e desenvolve sua palhaça, a Birota —
Foto: Celso Tavares/G1

Você também pode gostar