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Negro

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AO LADO, VISTA

DE SALVADOR,

EM DESENHO DE

MARIA INÊS CÔRTES DE OLIVEIRA EDMUND PATTERN,

1833; ABAIXO,

RUGENDAS

Viver e RETRATA JOGO

DE CAPOEIRAS

morrer no meio
dos seus
Nações e comunidades africanas
na Bahia do século XIX

MARIA INÊS
CÔRTES DE
OLIVEIRA é
professora de
História da
Universidade Federal
da Bahia.

A reunião dos escravos e dos libertos de origem africana em


torno de grupos construídos com base nos “laços de nação” foi sem
dúvida um dos traços característicos da organização de suas comu-
nidades em toda a América. Não obstante, essas “nações” africa-
nas, tal como ficaram sendo conhecidas no Novo Mundo, não
guardavam, nem no nome nem em sua composição social, uma
correlação com as formas de auto-adscrição correntes na África.
Com relação à Bahia, o que pudemos constatar foi que alguns “no-
1 Este é o argumento central
mes de nação”, atribuídos aos africanos no circuito do tráfico negrei- da tese de doutorado
Retrouver Une Identité:
Jeux Sociaux des Africains
ro, terminaram por ser assumidos por aqueles como verdadeiros de Bahia (vers 1750 - vers
1890 ), Université de
Sorbonne (Paris IV), 1992,
etnônimos no processo de organização de suas comunidades (1). da qual este artigo é parte.

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Durante todo o período em que perdurou aconteceu, parece-nos, foi terem sido apro-
o tráfico de cativos para a Bahia, um processo veitados os mesmos termos auto-
constantemente renovado de reorientação dos identificativos como designativos de “nações”
critérios de identidade parece ter presidido os africanas em território americano. Um dos
contatos entre os africanos e os demais gru- raros exemplos de manutenção do nome de
pos que lhes eram culturalmente estranhos. origem foi o dos haussás.
Uma etapa importante de tal processo foi a Talvez o fato mesmo de os novos nomes
adequação entre as formas de auto-adscrição de “nação” não equivalerem aos etnônimos
dos diferentes grupos africanos e os critérios africanos tivesse contribuído para que os pri-
de classificação que lhes foram compulsori- meiros fossem aceitos como ponto de partida
amente emprestados pelo sistema escravista. do novo processo de identificação: em pri-
Isso significou, para alguns grupos (como os meiro lugar, por não entrarem em conflito
nagôs, os jejes, os minas, os angolas, para com os critérios adscritivos da África, permi-
citarmos os mais importantes), a aceitação tiam que estes fossem conservados e, em se-
dos novos nomes e dos conteúdos sociais a gundo, ao se referirem a realidades geográfi-
que estes se referiam. Em seguida, os próprios cas e culturais suficientemente amplas para
grupos foram adquirindo sentido em si mes- comportarem em seu bojo alianças grupais,
mos, criando suas próprias regras e definin- possibilitavam aos africanos criarem, por
do, no embate da convivência social, os limi- sobre as perdas, novos meios de organização
tes indicativos de afiliação ou exclusão, que coletiva.
orientavam o comportamento de seus mem- Este processo de reconstrução das identi-
bros e serviam para classificar socialmente dades africanas operou-se no seio de siste-
os demais. mas multirraciais e multiétnicos que,
No caso de nações muito numerosas que estruturados sob bases hierárquicas e
permaneceram relativamente concentradas escravistas, pautavam seus critérios de clas-
numa mesma região, as formas de identifica- sificação na cor da pele e na origem. Sob esse
ção usadas na África continuavam sendo gra- aspecto, as novas “nações” africanas respon-
maticais, isto é, por serem decodificadas por diam às necessidades do grupo dominante -
um número significativo de pessoas, foram supostamente branco - em ordenar os africa-
mantidas como categorias mais específicas nos segundo categorias que expressassem a
do grupo. Este foi o processo que constata- um só tempo aqueles dois critérios, pois em
mos haver ocorrido na Bahia entre os nagôs cada nome de nação atribuído aos africanos
que, malgrado a aceitação do novo apelido estão implícitas as idéias de “negro” e de
conferido ao conjunto dos grupos aparenta- “estrangeiro”. Mas as novas “nações” atendi-
dos entre si, continuavam internamente a dis- am igualmente aos imperativos de reajusta-
tinguir os ijexás, os ijebus, os de Oyo, os de mento dos mecanismos de identidade dos
Keto, etc. O que ocorreu com apelações do africanos que, entre outros, se valeram tam-
tipo mina-jeje foi ainda mais significativo, bém dos critérios da cor da pele e da origem
pois importou em indicar, no interior de uma para organizarem seus sistemas de diferenci-
categoria nova (mina), uma outra igualmente ação social e cultural, contrapondo-se aos
estabelecida como forma de identificação de demais grupos com os quais coexistiam no
um grupo africano específico da nomencla- novo sistema: os brancos, as populações au-
tura do tráfico (jeje). Outras formas de tóctones, os mestiços, os demais africanos e
adscrição utilizadas na África, por serem de seus descendentes (no Brasil, os crioulos).
uso por demais restrito, tornaram-se pouco As “nações” africanas recriadas na Amé-
operativas no novo contexto, algumas delas rica fundamentavam-se, pois, em adscrições
tendendo ao desaparecimento, englobadas em categoriais, no sentido em que estas foram
formas mais amplas ou significativas. Cre- definidas por Barth como elementos-chave
mos que, ao menos na Bahia, foi o que ocor- da constituição dos grupos étnicos. Integrado
reu com a maioria dos grupos provenientes ao conjunto mais amplo do sistema escravista,
da África ao sul do Equador, pertencentes ao o ordenamento social com base nestas
grupo bantofone, que ali foram englobados adscrições étnicas demarcava limites raciais,
em categorias mais amplas tais como angola, sociais e culturais. Todavia, como essas
congo, cabinda ou benguela (2). O que menos adscrições eram concebidas segundo

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referenciais que tinham por base relações de cidos em tal região ou país, sem se questionar
oposição e de contraste entre os diversos gru- a lógica que presidiu tal processo. Todavia,
pos étnicos, devemos considerar que as mes- diversos elementos estão a indicar que, ao
mas exprimiam também relações de força (3). menos na Bahia, a maioria dos nomes étnicos
O uso dessas categorias adscritivas como que se referiam a grupos numérica e cultural-
base da organização social das comunidades mente representativos acabou por se trans-
afro-americanas já foi identificado em diver- formar em formas auto-adscritivas
sos momentos de sua história, bem como o introjectadas, individual e socialmente, em
fato de que os próprios africanos se valiam do torno das quais foram elaboradas as alianças
critério das “nações” para distinguirem os grupais, organizaram-se as estratégias matri-
componentes dos cabildos, das santerias e moniais e a vida religiosa, redefinindo assim
dos vodus (em território hispânico); dos mis- as relações que os diversos grupos africanos
térios (no Haiti); das irmandades, dos can- mantinham entre si e com os demais grupos
domblés, das juntas de alforria e dos cantos que integravam aquele sistema interétnico.
de trabalho (no caso específico da Bahia), No presente artigo, abordaremos alguns
segundo a afiliação étnica dos seus membros. aspectos da reorganização da comunidade
Algumas dessas associações, como os africana na Bahia em torno dos “laços de
cabildos e as irmandades, moldavam-se em nação”, tais como a recomposição dos víncu-
instituições preexistentes no mundo ibérico; los familiares, a escolha dos parceiros sexu-
outras, como as santerias, os candomblés e as ais, as relações de compadrio, a compra de
juntas de alforria, prendiam-se a expressões escravos de origem africana pelos africanos
de caráter religioso ou a formas de organiza- libertos, além das relações estabelecidas por
ção comunitária baseadas em elementos de estes últimos com seus agregados e vizinhos.
origem africana. Não obstante, em ambos os
modelos, foi usual que os membros de tais OS LAÇOS DE FAMÍLIA
organizações fundamentassem sua PRESERVADOS
especificidade enquanto grupo no ideal de
uma origem africana comum que lhes em- Um dos efeitos perversos do tráfico inter-
prestava sentido e lhes facilitava a coesão (4). continental de escravos foi o rompimento dos
É possível que originalmente a separação vínculos familiares e sociais de origem, pri-
dos africanos por “nações” tivesse obedecido vando o africano da condição de pessoa soci-
a interesses segregacionistas do poder civil e/ al e isolando-o no novo ambiente. Para os
ou da Igreja com o objetivo de manter vivas escravos africanos da Bahia, a construção de
as divisões entre a população escrava, evitan- novas relações sociais com base na comuni- 2 No Rio de Janeiro o proces-
so teria sido o inverso: o
do que grupos culturalmente estranhos ou dade dos “parentes de nação” permitiu que os levantamento realizado por
Karasch sobre as listas de
potencialmente hostis uns aos outros viessem mesmos se preservassem deste processo de “africanos livres” dá conta
da utilização de 116
a se reunir, especialmente nas regiões carac- reificação. No meio dos seus, cada africano etnônimos para os africa-
terizadas pela forte concentração de africa- continuava a ser uma pessoa detentora de um nos provenientes dessa
região, enquanto para os
nos. Daí, por exemplo, haverem incentivado nome que continuava fazendo sentido para o da África Ocidental não fo-
ram encontradas senão as
a constituição, em Cuba, dos cabildos dos grupo, pertencente a uma família africana, apelações mina, calabar e
cabo verde. M. C. Karasch,
araras, dos lucumis, dos congos e dos man- possuidor de uma história que incluía sua Slave Life in Rio de Janei-
ro, University of Wisconsin,
dingas (5); ou das irmandades igualmente captura e sua condução até a Bahia, onde podia PhD, 1972, pp. 72-97.
separadas segundo a pretensa origem de seus ser identificado pelos demais como alguém
3 F. Barth, Los Grupos Étni-
membros, como vimos ocorrer na Bahia. que veio de tal cidade e era filho, irmão, com- cos y sus Fronteras, Méxi-
co, Fondo de Cultura
Pode-se argumentar, por esse motivo, que o panheiro ou pai de outros membros da comu- Económica, 1976, p. 15.
repertório das classificações étnicas na Amé- nidade. 4 Na Bahia este “parentesco
Se para a maior parte dos africanos tor- étnico” era explicitado pelo
rica não passe de “atribuições” impostas aos uso do termo “parente”,
grupos africanos “do exterior”, que termina- nou-se necessário reconstruir integralmente que podia ser aplicado de
modo mais específico ou
riam por colar-se aos mesmos como rótulos. as relações sociais na nova terra, para alguns mais amplo.

Segundo esta perspectiva é que tem sido dentre eles existiu a possibilidade de manter 5 A respeito dos cabildos e
de outras instituições ame-
enfocada a atribuição dos nomes étnicos aos relações com membros de suas famílias que ricanas organizadas com
grupos africanos na América, considerando- também vieram da África, preservando vín- base nas “nações”, ver: R.
Bastide, Les Ameriques
se os nomes de “nação” como sendo a forma culos pessoais e afetivos anteriores ao cati- Noires , Paris, Petite
Bibliothéque Payot, 1967,
pela qual os grupos X, Y ou Z ficaram conhe- veiro. É difícil sabermos exatamente em que pp. 95-132.

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proporção isto ocorreu, mas entre os 399 tes- tando para tanto que seu destino tivesse sido
tadores libertos que analisamos, 11% aproxi- seguir para o interior. Mas os que ficavam em
madamente fizeram referência à presença de Salvador ou em suas redondezas teriam sem-
parentes consangüíneos em Salvador ou em pre possibilidade de algum dia saber notícias
cidades do Recôncavo, o que denota casos de ou reencontrar seus parentes.
captura e de transferência conjunta de mem- Os africanos que em seus testamentos
bros de uma mesma família ou de seu reen- fazem menção às suas mães provavelmente
contro posterior no meio da população afri- teriam chegado à Bahia em sua companhia.
cana (6). Alguns tiveram a chance de permanecer reu-
O fato do tráfico baiano haver-se concen- nidos a elas, outros, mesmo separados, não as
trado em alguns portos do litoral africano, perderam de vista. Joaquim Francisco de
6 Arquivo Público do Estado que em certos períodos abasteciam-se de ca- Freitas, liberto natural da Costa do Leste,
da Bahia, Secção Judiciá-
ria, Série Testamentos tivos provenientes de uma mesma cidade ou residente em Itaparica, casado com Cristina
(LRT), 59 Livros (1805-91).
Desta série foram cole- região, aumentou as probabilidades de exis- Maria da Conceição, por exemplo, em seu
tados 399 testamentos de
africanos libertos cobrindo
tirem laços de parentesco entre os africanos testamento, datado de 8 de junho de 1812,
o período de 1790 a 1890 e que viviam em Salvador. A situação mais deixava a terça parte de sua herança à sua mãe
que ofereceram dados so-
bre 532 africanos, entre tes- comum parece ter sido a de mães que chega- que ainda vivia em Santo Amaro da Purifica-
tadores e cônjuges.
vam com filhos menores, como o exemplo de ção (9).
7 APEBa, Secção Judiciária,
Livro de Notas e Escrituras
Amália, mãe de Zeferina, que “a trouxera nas Maria Saraiva da Piedade, africana liber-
(LNE) n° 346, fl. 5, (15/3/
1859). Não foi possível pre-
costas pequena amamentando”, o que pode ta, moradora da Ladeira da Preguiça, decla-
cisar se os africanos usa- também ser comprovado pela referência feita rou-se filha natural da africana Maria da
vam o critério de parentes-
co brasileiro, ou de suas por africanos à existência de irmãos crioulos. Conceição, solteira, também ainda viva em
culturas de origem ou, até
mesmo, formas adaptadas Mas encontramos também menções a irmãos Salvador (10).
de uma estrutura a outra.
e tios africanos, além de sobrinhos e primos. Josefa Maria da Conceição, jeje liberta, que
8 “Eles permanecem muito a Se bem que sobre estes dois últimos não exis- vivia na Quitanda Velha, faleceu antes que se
par do que se passa na Áfri-
ca. Os companheiros da tissem indicações precisas acerca de suas completasse um ano da morte do seu filho, o
mesma nação que são car-
regadores na cidade baixa origens africanas, o fato de serem crioulos também africano Benedito Felix de Santa Ana,
estão em contato com os
marinheiros negros escra- nos daria a certeza de que seus pais africanos que lhe havia deixado o escravo Manoel Isidoro
vos a bordo dos navios que também tivessem sido capturados e transferi- para sustentá-la até sua morte. Em seu testa-
fazem o tráfico na Costa da
África. Eles sabem quais dos para a Bahia (7). mento Josefa alforriava este escravo, institu-
são as últimas chegadas
clandestinas de escravos A localização dos membros de uma mes- indo-o seu herdeiro universal (11).
desembarcados nos arre-
dores da cidade e se entre ma família, no caso de não terem chegado Menos explícito era o vínculo de sangue
eles há gente de suas re-
giões e como vão as coisas
juntos ou de terem sido separados no momen- existente entre a angola liberta, Maria
por lá.” P. Verger, Notícias
da Bahia - 1850, Salvador,
to da venda, não devia ser muito difícil numa Francisca da Conceição, e “mãe Cipriana”. A
Corrupio, F. C. Ba, 1981, p. cidade como Salvador, especialmente entre testadora, solteira, sem filhos e proprietária
229. Atente-se também
para a expressão “correio as “nações” mais numerosas. Havia uma ten- de seis escravas e outros bens, deixava a esta
de nagô”, ainda em voga
em Salvador, para se refe- dência natural entre os escravos ladinos e os “mãe” apenas quatro saias, quatro camisas e
rir às notícias que correm
“de boca a ouvido”.
libertos de aproximarem-se dos recém- che- um pano da Costa. Provavelmente a testadora
gados de sua terra e os contatos iam-se mul- pretendia, com a expressão “mãe Cipriana”,
9 APEBa, LRT, n° 5, fls. 89v-
92v (8/6/1812). tiplicando mesmo entre indivíduos que vivi- referir-se a um parentesco afetivo, uma for-
10 APEBa, LRT, n° 43, fls. 60- am em freguesias distantes umas das outras. ma de tratamento freqüente na Bahia para as
63 (29/8/1863).
Uma rede de informações estava permanen- “mães de criação” ou de “consideração”, ou
11 APEBa, LRT, n° 20, fls. 211-
214 (5/10/1830), e LRT, n°
temente em funcionamento nos “cantos” e até mesmo um “parentesco espiritual”, es-
19, fls. 153v-157 (16/11/ nos mercados de Salvador, fazendo circular pecialmente se atentarmos para o fato de que
1829).
as notícias por toda a cidade e também pelas as referidas peças além de seu valor real po-
12 APEBa, LRT, n° 25, fls.
182v-185v (23/12/1837). redondezas entre “cangas”, “tabuleiros” e diam conter um valor simbólico caso se tra-
Nas comunidades dos ter- “cadeirinhas-de-arruar”, um processo que re-
reiros, o tratamento de
tasse de um legado entre membros de uma
“mãe” e “filha” referia-se ao começava a cada vez que um navio atracava comunidade de terreiro (12).
vínculo simbólico que se
estabelecia entre a “mãe- trazendo novo carregamento de escravos (8). Outros testadores fazem alusão a irmãos
de-santo” e sua iniciada.
Seria, pois, normal que se Tudo indica que esta mesma rede era ativada e irmãs, tias, sobrinhos e sobrinhas. Para os
legasse a “parentes simbó-
licos” objetos de uso ritual
para buscar informações sobre o paradeiro de irmãos, em alguns casos, existem referências
ou pessoal, especialmente
em se tratando de peças de
“escravos novos”, que tinham sido separados explícitas de que se tratava de africanos, mas,
valor, como no caso suge- dos seus, vendidos a proprietários diferentes. aparentemente, a maioria era crioula, eviden-
re a presença de um “pano
da Costa”. Para muitos, a separação seria definitiva, bas- ciando que um dos genitores, mais

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freqüentemente a mãe, também tenha sido botões de ouro, ao afilhado crioulo, filho de
escravizado. Luiza Francisca Gonçalves, por Mariana, as casacas, capote e roupa de cor e
exemplo, liberta natural da Costa da África e ao cria Bernardo, o chapéu de copa e de sol e
viúva de Antônio Gonçalo, tinha tido seis toda sua roupa branca. Já a angola liberta
filhos mas todos haviam falecido antes de se Tereza Maria de Jesus, viúva de um portu-
casarem. Por esse motivo seus únicos herdei- guês e casada em segundas núpcias com Jo-
ros eram seus sobrinhos, filhos de suas três aquim da Fonseca, que também tinha uma
irmãs: Atipé, que vivia na Costa da África, irmã, Josefa Alvares das Mercês, residindo
Francisca e Constança. Os filhos de Atipé, no Convento da Lapa, deixava-lhe como le-
Amaro e Margarida, viviam na Bahia, bem gado 50$000rs. e mais 10$000rs., caso seu
como Santinha, filha de Francisca, e Manoel, afilhado Manoel Alvares das Virgens, ausen-
filho de Constança. A referência à primeira te, não se apresentasse no prazo de três anos
irmã pelo seu nome africano pode sugerir que (15).
a mesma não possuísse um nome cristão e Outros irmãos associaram-se para melhor
que portanto nunca tivesse sido escrava. Nes- enfrentar a vida, como o testador Luiz Fran-
se caso, seus dois filhos seriam africanos e cisco Martins Guimarães, africano liberto,
teriam sido capturados e transferidos para a residente em Brotas com a esposa e três filhos
Bahia onde encontrava-se parte dos membros menores, numa casa em terreno arrendado por
de sua família. Mas é igualmente possível que seu irmão Benedito Luiz de Andrade, propri-
Atipé também tivesse vivido em Salvador, etário da outra metade do imóvel (16).
alforriado-se e decidido (ou sido obrigada) Mesmo os laços de parentesco que não
retornar à África, deixando na Bahia seus dois podiam ser legalmente invocados pelos paren-
filhos, que então podiam ser crioulos. Por tes africanos eram declarados pelos testadores
outro lado, nenhuma indicação permite de- visando beneficiar os membros de sua família
duzir que as outras duas irmãs da testadora, com os poucos bens existentes. Maria Luiza,
Francisca e Constança, fossem africanas, o de nação mina, tia da testadora Luiza de Fran-
que poderia significar, em se tratando de cri- ça, mina liberta, residente no Taboão, recebeu
oulas, que a mãe das quatro também tenha de herança da sobrinha uma escrava, com a
sido escrava (13). condição de, após sua morte, deixar a dita es-
A importância destes vínculos familiares, crava para servir ao primeiro testamenteiro,
especialmente no que eles significavam de José Manoel Fernandes que, tudo indica, era o
13 APEBa, LRT, n° 46, fl. 188
proteção e segurança para indivíduos que não companheiro da testadora (17). (4/11/1863).
tinham com quem contar no fim da existên- Os filhos dos irmãos e irmãs, alguns 14 APEBa, LRT, n° 61, fls.
cia, era de tal ordem que alguns não hesita- provavelmente crioulos de segunda gera- 55v-58 (9/5/1886). O pra-
zo a que se refere o testa-
ram em exigir dos parentes mais chegados ção, não deixavam de gozar da confiança dor era o que estabelecia
a lei sobre contratos de alu-
que dispensassem cuidados aos seus em troca dos tios africanos. O africano liberto Lou- guel de serviços, da qual
se valiam alguns libertos
de empréstimos concedidos. Pedro Brites, renço Antunes Guimarães, morador no para, em troca do adianta-
mento para a alforria, alu-
africano liberto, morador do Beco do Cabula, comprara terras em nome de seu gar seus serviços a quem
Mucambinho, declarou que “os 400$000rs. sobrinho José Epifânio Teixeira, crioulo, tinha feito o empréstimo,
pelo prazo máximo de sete
que foram dados a minha irmã, Maria da filho de sua irmã Maria Joaquina da Con- anos.

Conceição, para sua alforria foi com a condi- ceição, casada com Vitor Teixeira, pois, 15 APEBa, LRT, n° 3, fls. 2-4
(23/11/1810); APEBa,
ção de acompanhar a minha mulher pelo tem- por ser africano, não podia comprá-las em LRT, n° 10, fls. 263v-267v
po unicamente permitido pela lei, até sete seu próprio nome (18). (12/7/1820).

anos” (14). Justiniano Maineto, africano liberto e pro- 16 APEBa, LRT, n° 38, fls. 95-
98v (9/5/1855).
Outros, por terem tido mais sorte na vida, prietário de uma “casa de negócio” sortida de
17 APEBa, LRT, n° 31, fls. 5-
deixavam aos irmãos objetos de estimação madeiras, deixou 1:000$000rs. a seu sobri- 8 (6/4/1840).
ou simples legados em dinheiro que os ajuda- nho Hermenegildo, residente na Corte, e pe- 18 APEBa, LRT, n° 46, fl. 175
riam a fazer frente a algumas necessidades. diu-lhe para ser tutor de seu filho, Ricardo (25/3/1868). A Lei n° 9, de
13 de maio de 1835, em
Elesbão do Outeiro, da Costa da Mina, liber- Manoel, “velando pela sua educação e seu seu artigo 176, proibia aos
africanos libertos adquiri-
to, morador no Unhão, viúvo de Helena futuro” (19). rem bens de raiz. Alguns
africanos passaram então
Correa, pôde durante sua vida despender al- O testador José Gomes Ribeiro nomeou seu a fazê-lo em nome de ter-
gum dinheiro para cuidar de sua aparência sobrinho Salustiano, filho de seu irmão Silves- ceiros, especialmente cri-
as e parentes.
pessoal. Ao morrer, legava ao seu irmão tre Paiva, e mais oito afilhados, filhos de dife-
19 APEBa, LRT, n° 62, fls.
Tristão da Cunha o relógio com sua chave e rentes amigos, para receberem sua parte na 152-153 (30/4/1887).

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herança, em caso de morte de sua mulher (20). cana liberta Vitória Pedroso, com a qual tinha
Parentes mais afastados eram também cinco filhos, fez seu testamento na intenção
lembrados na hora do testamento. Joana Maria de que não pairassem dúvidas sobre seus
Ferreira, liberta natural da Costa da África, herdeiros, visto que os quatro primeiros fi-
perdera os poucos bens que possuía por épo- lhos tinham nascido antes do casamento. A
ca da morte do marido, Francisco da Cunha preocupação com a legitimidade da filiação
Meneses, visto que os mesmos tinham sido não dizia respeito apenas a seus filhos, pois o
levados à leilão. Ainda com dívidas a saldar testador fez questão de igualmente declarar-
com sua testamenteira, Joana deixou apenas se filho legítimo de Pluôrôco (“que aqui quer
dois pequenos legados de 10$000rs., um à dizer Bonfim”) e Adbom Mojó (“que aqui quer
sua ex-senhora e outro à sua prima Concei- dizer Francisca”) (23).
ção, aparentemente a única parenta que pos- Morador às Mercês, no Beco do Jogo, nº
suía (21). 177, Militão Muniz, liberto natural da Costa
A lembrança dos parentes que ficaram na da África, viveu durante muitos anos com
África não se apagou para muitos mesmo Maria Florinda da Conceição, também li-
depois de vários anos de cativeiro e de sepa- berta natural da Costa da África. Só decidiu
ração. Alguns libertos expressaram este vín- casar-se no leito de morte e não parece que
culo com o passado declinando o nome afri- o motivo de sua decisão tenha sido o de re-
cano de seus pais e sua condição de filhos gular sua sucessão, pois não tinham filhos e
legítimos, no momento em que registraram o o testador já declarara que “a casa que pos-
último ato de suas vontades. Afirmação da suía tinha sido paga com dinheiro proveni-
memória, homenagem talvez, mas sobretudo ente a maior parte de sua mulher, pelo que
mais uma oportunidade para expressarem-se era ela a verdadeira dona”. Aparentemente o
como “pessoas”. Limpar-se da indignidade casamento deveu-se à insistência da “noi-
que continuava a lhes conferir o estatuto de va”, mas serviu também para que Militão
ex-escravos implicava simbolicamente em assegurasse o pagamento de umas pequenas
afirmar perante todos sua condição anterior dívidas que tinha com seus parceiros, pois
ao cativeiro: a de haverem nascido legitima- em tom quase de intimação determinava em
mente e pertencido a uma família constituída seu testamento que sobre as referidas dívi-
segundo os costumes de sua terra. Significa- das “ela Maria Florinda da Conceição que
tivamente três dos quatro casos de indicação trabalhe e pague”. Militão também fez ques-
dos nomes dos pais que ficaram na África tão de registrar ser “filho legítimo, de
manifestaram-se ao final do período Agiboro e Moluque” (24).
20 APEBa, LRT, n° 59, fls. 39-
escravista: um, em 1886, quando a abolição Maria da Assumpção, nação jeje, ex-escra-
40 (26/10/1882). já se anunciava como certa e outros dois, em va da Madre Joana Canuta, do Convento de
21 APEBa, LRT, n° 25, fls. 51- 1889 e 1890, ambos posteriores à Lei Áurea. Santa Clara do Desterro e que por morte de sua
53v (9/7/1837).
Cassiano Godinho, 70 anos, africano li- senhora fora deixada por obrigação ao Senhor
22 APEBa, LRT, n° 63, fls. 198-
200 (17/10/1890).
berto natural de Ogotum, na Costa da África, dos Milagres, comprou sua liberdade à Madre
23 APEBa, LRT, n° 63, fls.
pai de sete filhos, cinco dos quais havidos de Procuradora por 150$000rs. Tendo vindo ainda
183v-185v (21/2/1889). sua esposa antes e durante o casamento, pequena de sua terra, Maria da Assumpção
Agradeço a João José Reis
por haver-me passado a deserdava em seu testamento seus dois filhos declarava que “teve pequeno conhecimento de
informação que lhe foi pres-
tada pelo etnólogo naturais Tibúrcio e Damião, “por haverem seus pais, Boco Julú e Goió, mas sabia que ambos
Waldeloir Rego, segundo a já eram mortos” (25).
qual Pluôrôco seria
lhe tratado com maior desrespeito”. Preocu-
Oluorôco (filho do orixá pado com sua esposa, pedia a dois dos filhos Outros testadores, todavia, não podiam se-
Oco, entidade ligada à agri-
cultura). do casal que “não deixassem a mãe padecer e quer se lembrar do nome de seus pais, tão pe-
24 APEBa, LRT, n° 61, fls. 71v- que [olhassem] sobre ela”. Este “patriarca”, quenos eram quando foram arrancados de sua
73v (21/6/1886).
que terminava sua vida cercado por uma fa- companhia para serem vendidos como escra-
25 APEBa, LRT, n° 30, fls. 89v-
92 (7/7/1853).
mília relativamente numerosa para um ex- vos. Este foi o caso de Maria Justina Mateus da
escravo, afirmava ser filho de Loucumo e Silva Friandes, que declarou ter vindo ainda
26 Dezessete testadores(as)
disseram ter chegado ao Fatimbô, os quais, tendo em vista sua idade, pequena de sua terra, “por isso ignora o nome de
Brasil ainda crianças, dos
quais cinco explicitaram ter provavelmente já tinham falecido (22). seus pais, porém sabe que já são falecidos”; e de
vindo sozinhos, sem os Felicidade Maria da Conceição, liberta da Cos-
pais. APEBa, LRT, n° 56,
O liberto natural da Costa da África David
fls. 30v-32 (20/6/1876); Eustáquio, residente à rua Direita de Santo ta da África, que veio “com oito anos mais ou
APEBa, LRT, n° 49, fls. 41/
45 (19/7/1873). Antônio, nº 22, casado há 12 anos com a afri- menos e ignora o nome de seus pais” (26).

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LAÇOS DE FAMÍLIA dores “ao ganho”. Alguns chegavam a alugar
CONSTRUÍDOS: A ESCOLHA ou ajudavam no pagamento do aluguel do
DOS PARCEIROS quarto de amigos, para poderem dispor de um
local para guardar alguns objetos e encon-
A maioria dos africanos, no entanto, foi trar-se com suas companheiras, mas isso exi-
forçada a refazer todas as suas relações na gia que dispusessem de uma soma que não
Bahia e estas teriam como ponto de partida a era normal sobrar à maior parte dos que ainda
comunidade dos seus “parentes de nação”, eram cativos. Encontros fortuitos e relações
onde seriam criados alguns vínculos de pouca duração foram aparentemente o
substitutivos do apoio e proteção anteriormen- padrão mais comum da vida afetiva e sexual
te assegurados pela família. dos escravos e destes resultava a maior parte
Estes novos vínculos começavam para dos filhos nascidos durante o cativeiro.
alguns ainda nas primeiras horas de cativei- Uniões estáveis tornavam-se mais comuns
ro, entre os malungos, que compartilhavam entre os africanos já libertos, mesmo com
as agruras da travessia do Atlântico e que mulheres ainda escravas, e, para evitar que
mantinham-se ligados para o resto da vida seus filhos pertencessem ao proprietário da
por esta dura experiência. Eram seus mãe, era freqüente que o companheiro, já li-
malungos, no dizer de Mateus Dadá, escravo berto, comprasse a alforria da mulher quando
nagô de José Pereira do Nascimento, os liber- pretendia viver em sua companhia. Sebastião
tos de sua nação, Gaspar e Belchior, com ele Alves da Rocha, angola liberto, declarou ha-
envolvidos no levante malê. Estes dois últi- ver comprado a alforria de sua esposa Maria
mos tiveram a chance de permanecer juntos Pedro “para com ela se casar”. Antes do seu
quando chegaram à Bahia, pois haviam sido casamento teve o que qualificou de “amizade
comprados pelo mesmo proprietário, Manoel ilícita com a preta Juvência, a qual forrou e
da Silva Cunha, e, depois de libertos, conti- depois de liberta a mesma teve dele um filho,
nuariam a residir na mesma casa à rua da batizado na Freguesia de Santa Ana, que até
Oração, alugada por Belchior, onde os malês hoje vive em sua companhia e ao qual man-
reuniam-se em torno do alufá Luís Sanin (27). dou ensinar o ofício de padeiro” (29).
O domínio de um mesmo proprietário Tomé de França, nagô liberto, pagou a
podia facilitar também o desenvolvimento de alforria de quatro companheiras sucessivas e
relações amorosas entre os escravos. Jerônimo dos respectivos filhos que teve com cada uma
dos Santos e sua esposa Francisca Jorge dos delas: Esperança Pinto, mãe de Maria Pieda-
Santos, ambos nagôs libertos, moradores na de, já com 19 anos; Ignes Maria do Bonfim,
rua dos Marchantes, tinham sido escravos do mãe de Ventura de França, 11 anos; Maria do
mesmo proprietário, Primo Jorge dos Santos. Pilar, mãe de Juliana de França, 7 anos; e
Também sob o teto do mesmo proprietário, o Catarina, que era sua companheira no mo-
sr. Francisco de Sales, conheceram-se Joaquim mento em que fez o testamento, mãe de José
de Sales e Domingas de Sales, casados, ambos de França, então com oito meses (30).
africanos libertos e naturais da Costa da Áfri- Quando o barbeiro Antônio Mendes dos
ca. Olímpio Xavier de Barros, africano liberto Santos, mina liberto, comprou a liberdade de
casado com Benvinda da Silva Bahia, mante- Lisária Juvência de Moura, de nação nagô,
ve relações, enquanto ainda escravo e solteiro, para com ela se casar, não podia sequer ima-
com uma escrava de seu senhor. Desta união ginar os aborrecimentos que lhe reservava
nascera uma filha, que fora vendida pelo ex- aquela união. “Minha mulher quando se ca-
27 “A Devassa do Levante de
proprietário e da qual o testador desconhecia o sou comigo”, queixou-se o testador, “não veio Escravos Ocorrido em Sal-
vador em 1835”, in Anais
paradeiro. Pedia à esposa que esperasse dois com coisa alguma de seu e como tem preva- do APEBa, vol. 38, Salva-
anos pois, caso a filha ainda existisse, a mesma dor, 1968, p. 36.
ricado como é público e praticado ações de-
deveria receber o que lhe tocasse dos poucos pravadas até o ponto de eu considerar perder 28 APEBa, LRT, n° 31, fls.
180v-183 (25/9/1845);
bens que possuía (28). minha existência [...] tomei diferentes medi- APEBa, LRT, n° 29, fls.
82v-85v (12/5/1842);
Todavia, as relações estáveis entre casais das a tal respeito para proteger meus filhos”. APEBa, LRT, n° 56, fls. 18-
19v (12/2/1879).
de escravos tornavam-se bem mais difíceis As precauções de Antônio consistiam em
quando os parceiros pertenciam a proprietá- nomear três tutores para que cuidassem da 29 APEBa, LRT, n° 30, fls.
142v-145v (12/11/1841).
rios diferentes, mesmo para aqueles que go- educação dos três menores, retirando da es-
30 APEBa, LRT, n° 51, fls.
zavam de relativa autonomia como trabalha- posa qualquer direito sobre os menores e sua 185v-189v (29/12/1869).

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NEGROS herança, alguns bens que adquirira com suas ainda criança, mas “só se casou quando era já
VENDEDORES, EM
agências, prosseguia o testador, “viajando da quinquagenária” e seus dois filhos tidos em
FOTO DE JOSÉ
Costa da África à Européia, embarcado sobre solteira já tinham falecido. Mesmo para as
CHRISTIANO DE
as ondas do mar, crendo o momento de ser solteiras era de suma importância conseguir
FREITAS HENRIQUES
esmagado pelas ondas”. Por não haver con- ter seus filhos após suas alforrias, registrá-los
JR., NA OUTRA
tribuído para formar seu patrimônio, Lisária como ingênuos e poder educá-los à sua ma-
PÁGINA
não teria direito a reclamar e caso o tentasse, neira. Esse dado era explicitado por algumas
“deveria pagar os 400$000rs. que ele pagou testadoras, não sem uma ponta de orgulho,
pela sua liberdade, mais os juros de 2% ao para deixar patenteada a inexistência da con-
mês” (31). dição escrava sobre seus descendentes. Ana
Um levantamento do número de Rita da Silva de Araújo, natural da Costa da
casados(as) e viúvos(as) em quatro séries que Mina, solteira, declarou que seus três filhos,
continham o estado civil de libertos permitiu todos maiores de idade, tinham sido gerados
constatar ter sido mais freqüente o número de depois que se alforriou e era seu desejo que
africanos libertos que se casava do que o de todos continuassem morando juntos na casa
africanas libertas, apesar da alta taxa de mas- que lhes deixava como herança (32).
culinidade entre os africanos em razão da A constituição de um núcleo familiar, quer
importação três vezes maior de escravos do pelo casamento quer pela união informal, era
que escravas. Na série mais antiga, a do Mapa mais fácil para mulheres que conseguiam li-
dos Africanos da Freguesia da Penha (1775), bertar-se ainda jovens, por sua própria conta
havia um certo equilíbrio entre os casados e ou com a ajuda de seus companheiros, e que
viúvos de ambos os sexos, pois, entre os 44 podiam gerar filhos livres. Para as que conti-
libertos e 41 libertas que então viviam naque- nuavam escravas até os quarenta ou cinqüen-
la paróquia, os que haviam se unido pelo ca- ta anos, as possibilidades de encontrarem um
samento representavam 63,6% dos homens e companheiro estável eram bem mais difíceis.
58,6% das mulheres. Esta proporção decres- Casamentos ou uniões tardias, especialmen-
ce um pouco na série dos Testamentos de Li- te para as libertas que tinham conseguido
bertos (1790-1890), atingindo 55,3% para os constituir um patrimônio, tornavam-se às
homens e 56% para as mulheres. Mas foi nas vezes uma cômoda maneira de melhorar a
duas séries correspondentes exclusivamente vida do marido em detrimento dos bens da
ao século XIX que a queda dos percentuais mulher, como o fora para Ana Maria da Silva
revelou-se mais significativa, em especial para Rosa, do Gentio da Guiné, viúva de Domin-
as mulheres. No Mapa dos “Fogos” da Fre- gos de Almeida e que já tinha uma certa idade
guesia de São Pedro Velho, datado de 1835, quando casou-se com Matias de Souza. Este,
as casadas e viúvas correspondiam então a segundo declaração da testadora, “nada trou-
26,8% do universo das mulheres da série, xe para o consórcio, de sorte que utilizando-
enquanto a proporção dos homens conhecia se dos bens que possuía, prodigalizando com
um decréscimo um pouco menos acentuado, suas concubinas”, levou-a a requerer divór-
situando-se em 44,6%; e nos Títulos de Resi- cio judicial (33).
dência a Africanos Libertos, concedidos en- Além destas pequenas histórias de vida
tre 1842 e 1844, as casadas e viúvas que ilustram as relações familiares e sociais
correspondiam tão-somente a 13,4% das mu- dos libertos, o tratamento quantitativo da sé-
lheres, enquanto o percentual entre os homens rie dos testamentos informa-nos sobre a pre-
voltava a subir para 48,6%. Nestas duas últi- ferência dos africanos em efetivarem suas
mas listas as mulheres solteiras representavam uniões no interior da comunidade africana,
71,5% e 82,1% respectivamente. entre indivíduos de sua “nação” ou, quando
Sem dúvida a escravidão teria sido o fator muito, com aqueles que portavam nomes de
decisivo para o baixo índice de casamentos origem que não excluíam esta possibilidade.
31 APEBa, LRT, n° 30, fls. 32v- entre as africanas libertas, visto que na maior Constatamos pela primeira vez esta tendên-
36v (22/12/1842).
parte dos casos a alforria só se lhes tornava cia que chamamos de “endogâmica”, em es-
32 APEBa, LRT, n° 5, fls. 206v-
210 (27/9/1815); APEBa,
possível em idade relativamente avançada, tudo anterior que realizamos sobre os testa-
LRT, n° 12, fls. 185-188 (20/
8/1825).
após terem tido seus filhos em cativeiro. Este mentos dos libertos, quando então analisa-
foi o caso de Maria de Araújo Ribeiro, liberta mos também os testamentos de crioulos. Esta
33 APEBa, LRT, n° 9, fls. 59-
62v (1/7/1817). natural da Costa da Mina, que chegou à Bahia tendência confirmou-se entre casais de afri-

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canos residentes em alguns engenhos do do Leste e Costa da Guiné (16,9%); portavam
Recôncavo e em outras duas séries documen- explicitamente o mesmo nome de “nação”:
tais que mencionavam o estado civil dos li- Nagô, Jeje, Angola, Agomi (6,6%); ou eram
bertos acompanhados de indicações sobre a constituídos por um cônjuge que usava um
origem dos cônjuges: o Mapa dos “Fogos” nome de procedência no qual podia estar in-
da Freguesia de São Pedro (1835), local onde cluída a “nação” do outro: Costa da Mina
residiam diversos “ganhadores” africanos, e unido a Jeje, Costa da Mina e Nagô, Angola
os Títulos de Residência a Africanos Libertos e Congo (6,1%). Isto se repete em aproxima-
(1842-44) (34). damente 30% dos testadores, demonstrando
Entre os 406 africanos libertos presentes que a escolha dos parceiros africanos recaía
em 399 testamentos, existiam 206 homens, sobre indivíduos de mesma “nação” ou oriun-
dos quais 83 eram casados, 88 solteiros, 31 dos de regiões vizinhas e nada indica que essa
viúvos e 4 não declararam o estado civil; e tendência não se repetisse entre os demais
200 mulheres, sendo 49 casadas, 81 solteiras, casais designados pelos termos genéricos.
63 viúvas e 7 sem situação declarada. Para No Mapa dos “Fogos” da Freguesia de
todos os testadores casados(as) e 95% dos São Pedro, datado de 1835, foram encontra-
viúvos(as) a série fornece o nome dos cônju- dos 167 libertos (51 homens e 116 mulheres),
ges, mas sua origem só se encontrava preci- a grande maioria constituída por solteiros: 28
sada em 58,8% dos testamentos dos homens homens (54,9%) e 85 mulheres (73,3%).
e em 45,5% dos das mulheres, num total de Apenas 19 homens e 17 mulheres eram casa-
118 testamentos. A estes somam-se 30 refe- dos, sendo que existiam 16 casais de africa-
rências feitas pelos solteiros, e por alguns dos nos (sem especificação de “nação”), um afri-
que não declararam o estado civil, à origem cano casado com uma crioula, uma africana
dos parceiros, o que perfaz o total de 148 casada com um inglês e duas esposas de afri-
uniões sobre as quais possuímos referências canos que constavam como “ausentes”, sem
completas sobre a composição étnica dos qualquer outra referência. O restante eram
casais (35). viúvos, 4 homens, entre os quais constava
O que constatamos no cruzamento desses que uma das falecidas esposas era também
dados foi, em primeiro lugar, o quase com- africana, e 13 mulheres, sem nenhuma indi-
pleto predomínio de uniões entre africanos e cação à origem dos falecidos maridos (37).
africanas, pois apenas 2,7% dos homens e Nos Títulos de Residência a Africanos
3,4% das mulheres haviam escolhido Libertos, dos 16 libertos(as) casados(as), nove
crioulas(os) como parceiros. Um destes ca- davam referência acerca da origem do cônju-
sos, o de José Barbosa, liberto da Costa da ge e em todos esses casos tratava-se de uniões
34 M. I. Côrtes de Oliveira, O África, casado em segundas núpcias com a entre africanos, sendo 2 nagôs casados com
Liberto: o seu Mundo e os
Outros, Salvador, 1790/ crioula liberta Ana Maria do Nascimento, nagô; 1 jeje com jeje; 1 nagô com calabar; 1
1890, São Paulo, Corrupio,
1988, pp. 55-8. Mapa dos deixava entrever as razões desse casamento nagô com tapa; 1 nagô com angola; 1 jeje
“Fogos” da Freguesia de
São Pedro, APEBa, Presi- “misto”. Esse testador declarou ter vindo ain- com angola; 1 nagô com africana; 1 africano
dência da Província, Série da pequeno da África e sua primeira esposa, com jeje (38).
Polícia 2, 5685 (1835), e
Títulos de Residência a Afri- Atanásia da Costa Granjê, também era criou-
canos Libertos , APEBa,
Presidência da Província, la liberta. O fato de ter-se socializado na Bahia, AS RELAÇÕES DE COMPADRIO
Série Polícia 2, 5664 (1842-
44). provavelmente com outras crianças crioulas,
35 Sete testamentos são de
deve ter contribuído para sua maior integração A utilização de formas de parentesco ritu-
“mão-comum”, contendo no ambiente dos escravos “brasileiros” (36). al foi uma das soluções encontradas pelos
dados referentes ao mari-
do e à esposa; estes foram Se colocamos de lado as denominações africanos ao longo de seu processo de
desmembrados, o que
acarretou a inclusão de extremamente genéricas, como Africano(a) ressocialização para substituir os vínculos
mais sete testadores.
e C. da África, que, malgrado representarem familiares desfeitos com o cativeiro. Parale-
36 APEBa, LRT, n° 32, fls. 73v-
77v (8/4/1835).
56,1% dos casos, não nos permitem ir além lamente às irmandades religiosas e às famíli-
da constatação de existir uma tendência evi- as-de-santo organizadas nas comunidades dos
37 APEBa, P. P., Série Polícia
2, M-5685, Mappa do Nu- dente para a escolha de parceiros terreiros, os africanos valeram-se também do
mero dos Fogos e de Habi-
tantes da Freguesia de São africanos(as), percebemos que, em outros compadrio como mais uma instituição desti-
Pedro.
casais, ambos os parceiros eram designados nada a fortalecer os laços que os ligavam aos
38 APEBa, P. P. Série Polícia pelo nome de regiões relativamente limita- membros de sua comunidade e tecer uma rede
2, M-5664, Títulos de Resi-
dência a Africanos Libertos. das do tráfico, tais como Costa da Mina, Costa de proteção e apoio para os seus filhos.

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A instituição do compadrio criada pela falta de precisão das informações referentes
Igreja baseia-se efetivamente na vinculação aos atores das relações de compadrio encon-
espiritual entre padrinhos e afilhados, mas tra-se compensada pelas indicações sobre a
esta ligação consolida igualmente uma alian- qualidade do vínculo estabelecido entre os
ça entre os pais reais e os pais espirituais, mesmos. Padrinhos, madrinhas, compadres,
que passam a tratar-se mutuamente por com- comadres e afilhados aparecem nos testamen-
padres ou comadres. Os efeitos sociais da tos ora como testamenteiros, ora como her-
39 K. M. de Queirós Mattoso,
instituição ultrapassam seu significado reli- deiros ou legatários dos libertos, deixando Au Nouveau Monde: Une
Province d’un Nouvel
gioso, estabelecendo entre os pais da criança entrever os laços de afeição, os cuidados Empire: Bahia au XIXe
Siècle, Paris, Université de
e seus padrinhos, ou entre estes e seus afilha- mutuamente dispensados, mas também os Paris Sorbonne, Thèse
dos, direitos e obrigações que incluíam o interesses que podiam se esconder sob estes pour le Doctorat d’Etat,
1986, Livre III, p. 264.
amparo mútuo e a prestação de serviços recí- vínculos. Estes dados estão ausentes dos re- Gudeman e Schwartz aten-
tam para o fato de que o
procos. Os padrinhos deveriam portanto ser gistros de batismo e é sob este aspecto que os compadrio “é produzido na
Igreja entre indivíduos que
pessoas das relações dos pais que pudessem testamentos tornam-se uma importante fonte o carregam para fora da
assumir a criação da criança caso estes faltas- suplementar para a compreensão da institui- instituição formal. O
compadrio é projetado para
sem, mas também ajudá-la, no momento pro- ção do compadrio entre os africanos. Por esse dentro do ambiente social”.
S. Gudeman e S. B.
pício, encaminhando-a na vida, utilizando-se motivo consideramos importante comparar as Schwartz, “Purgando o Pe-
cado Original: Compadrio
para tanto de suas relações ou posição de informações fornecidas pelas duas fontes (40). e Batismo de Escravos na
Bahia no Século XVIII”, in
prestígio na comunidade. Por este motivo a Entre os 406 testadores, 22,8% dos ho- J. J. Reis(org.), Escravidão
escolha dos padrinhos e madrinhas era sem- mens e 26% das mulheres referiram-se a seus & Invenção da Liberdade.
Estudos sobre o Negro no
pre efetuada entre pessoas que tivessem ao padrinhos, madrinhas, compadres, comadres Brasil , São Paulo,
Brasiliense, 1988, p. 37.
menos a mesma posição social dos pais ou e afilhados de ambos os sexos. As menções
40 Para o século XVII existe o
superior. O estudo do compadrio permite aos padrinhos e madrinhas foram as menos trabalho inédito de D.
Smith, “Cor, Ilegitimidade e
compreender parte das relações sociais que numerosas, aparecendo apenas entre 8 ho- Compadrio na Bahia
se desenvolviam no interior de cada segmen- mens e 5 mulheres, num universo de 206 tes- Seiscentista: os Livros de
Batizado da Conceição da
to social, denotando os esforços de seus mem- tadores e 200 testadoras. O único padrinho Praia” (Comunicação ao 3°
Congresso de História da
bros para melhorar sua situação e a de seus sobre o qual possuímos uma referência no Bahia, 1973); para o sécu-
lo XVI, S. B. Schwartz,
descendentes ou para simplesmente manter tocante a sua condição social foi o reverendo Segredos Internos: Enge-
as posições ocupadas. Para os africanos co- Antônio Gomes Correa, citado no testamento nhos e Escravos na Socie-
dade Colonial, 1550-1835
lhidos pelo cativeiro o compadrio teria uma de Ana de Souza. Duas outras testadoras in- (São Paulo, Companhia
das Letras, 1988, capítulo
função complementar: a de recompor simbo- dicaram que suas madrinhas eram Santa Cla- 3, pp. 64-7); na mesma
obra o autor apresenta,
licamente seus “laços de família” (39). ra e Nossa Senhora do Pilar (41). para o século XVIII e início
do século XIX, a síntese
Existem poucos trabalhos sobre as rela- Uma das hipóteses a se considerar para o dos resultados do artigo
ções de compadrio envolvendo escravos e baixo número de referências aos padrinhos e escrito com S. Gudeman,
supracitado em sua tradu-
libertos na Bahia e todos baseiam-se nos re- madrinhas seria a idade relativamente avan- ção para o português, que
havia sido publicado em
gistros de batismos, fonte ideal para o trata- çada em que os libertos faziam seus testa- 1984: S. Gudeman e S. B.
Schwartz, “Baptismal
mento quantitativo dos dados, por conterem mentos, quando provavelmente seus padri- Godparents in Slavery:
Cleansing Original Sin in
a idade e o estatuto jurídico do batizando, a nhos já não mais existissem. Entretanto, é Eighteenth-Century
condição legal, o estado civil, a cor e a origem importante atentarmos para o fato de que a Bahia”, in Raymond Smith
(ed.), Kinship Ideology and
dos pais e dos padrinhos, permitindo estabe- maioria dos libertos teria recebido o batismo Practice in Latin America ,
Chapel Hill, University of
lecer alguns parâmetros para a análise dos em grupo, na idade adulta, ainda nos primei- Illinois Press, 1984, pp. 35-
58.
critérios que presidiam a seleção desses últi- ros tempos de seu cativeiro, recebendo por
mos. As notas de que dispomos sobre as rela- padrinhos pessoas desconhecidas, escolhidas 41 APEBa, LRT, n° 20, fls. 44-
46v (17/1/1831). A prática
ções de compadrio na comunidade africana provavelmente pelos senhores, pelos seus de substituir os padrinhos
por santos de devoção ou
não oferecem o mesmo tipo de informações, prepostos ou pelos próprios párocos. Seria pela Virgem foi uma fórmu-
la encontrada para contor-
tendo em vista provirem de menções infor- compreensível que em tais condições as rela- nar a falta de um ou de
ambos os batizantes e foi
mais dos testadores a compadres, comadres, ções entre os escravos e seus padrinhos não constatada por Gudeman e
padrinhos, madrinhas e afilhados. Não temos tenham se transformado em vínculos mais pro- Schwartz também para a
região do Recôncavo no
como saber, por exemplo, na maioria dos fundos senão para uns poucos africanos (42). século XVIII. S. Gudeman
e S. B. Schwartz, op. cit., p.
casos, se o testador era ou não liberto no Contudo, uma relação completamente 55.
momento em que foi escolhido para ser pa- distinta parece ter predominado entre os li- 42 K. M. de Queirós Mattoso,
drinho de alguém, se o afilhado era escravo bertos, seus compadres e afilhados mencio- Etre Esclave au Brésil,
XVIe-XIXe Siècle , Paris,
ou livre quando foi batizado, se ele ou seus nados nos testamentos. A escolha dos Hachette, 1979, p. 150; S.
Gudeman e S. B. Schwartz,
pais eram crioulos ou africanos. Todavia, a testamenteiros, que correspondia a uma fun- op. cit., p. 41.

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ção de extrema confiança para o testador, amigos ou de seus ex-senhores. Benedito Felix
recaiu 26 vezes sobre compadres e 8 sobre os de Santa Ana, natural da Costa da Mina, de
próprios afilhados e esses eram escolhidos “nação” jeje, era padrinho de Damiano, filho
independentemente de existirem ou não ou- de Maria do Bonfim, escrava de seu amigo e
tros parentes mais chegados capazes de pre- testamenteiro Manoel José da Silva, africano
encher os requisitos necessários à função. liberto. Com a morte de seu padrinho, o pe-
Os testadores mais abonados ou mais in- queno Damiano recebeu como herança o es-
fluentes na comunidade africana possuíam cravo Francisco, jeje, ainda moleque. José
diversos afilhados e afilhadas. Este era o caso Henrique de Carvalho, também natural da
de Marcelina da Silva (Marcelina Obatossi), Costa da Mina, ex-escravo do tenente-coro-
famosa ialorixá da Casa Branca do Engenho nel Manoel Henrique de Carvalho, era padri-
Velho, cujo número de afilhados reais e “de nho de Mariquinha e Francisco, escravos de
consideração” devia ser tão grande que ao seu ex-senhor. Os laços de amizade que uni-
invés de nominá-los a testadora optou por am os forros aos escravos da casa de seu
estabelecer um legado de 20$000rs. “aos afi- “patrono” podiam evidentemente estar na
lhados que provassem sê-lo com suas certi- origem desta escolha, especialmente quando
dões de batismo”. A mesma disposição cons- se tratava do batismo dos filhos de ex-compa-
ta do testamento de Joaquina Rosa do Sacra- nheiros de cativeiro. Mas no caso de os liber-
mento, proprietária de uma roça na Lucaia, tos serem padrinhos de escravos batizados na
uma casa na rua dos Perdões, outra casa idade adulta, era possível que os próprios
assobradada na rua do Mucambinho, apóli- proprietários se encarregassem de escolher
ces da Dívida Pública no valor de entre seus escravos mais antigos ou mesmo
1:600$000rs. e mais oito escravos (43). seus libertos aqueles que estariam encarrega-
43 APEBa, LRT, n° 60, fls.
145v-147v (5/4/1881);
Apenas em dois casos, libertos proprietá- dos da tarefa de instruir os “escravos novos”,
APEBa, LRT, n° 50, fls. 16v-
20 (13/9/1874).
rios de escravos indicaram ser ao mesmo tem- tanto nos “assuntos da fé” quanto em relação
po padrinhos de suas “crias”, confirmando o aos comportamentos socialmente desejáveis
44 S. Gudeman e S. B.
Schwartz, op. cit., p. 43. Na padrão constatado na documentação analisa- aos escravos (46).
mesma oportunidade os au-
tores citam uma passagem da por Gudeman e Schwartz de que os senho- As testadoras do sexo feminino foram as
de H. Koster, em que o ad-
ministrador inglês de um en-
res não aceitavam servir de padrinhos a seus que mais assumiram o papel de madrinhas de
genho em Pernambuco de- próprios escravos, pela incompatibilidade escravos (20 no total). Ana Maria dos Praze-
clarava: “Eu nunca ouvi fa-
lar que o senhor no Brasil existente entre este tipo de vínculo e sua au- res, liberta natural da Costa da Mina, era
fosse do mesmo modo o pa-
drinho; nem eu acredito que toridade de proprietário (44). Num total de madrinha de Gertrudes, Quitéria, Manoel,
isso tenha jamais aconteci-
do, pois é tal a conexão 264 batismos de escravos analisados pelos Ignes e Vitória, todos escravos de um único
entre as duas pessoas que autores para a região do Recôncavo no século proprietário, José Pedro de Torres. Angélica
isto é suposto de produzir
que o senhor nunca pensa- XVIII, em apenas quatro casos foram encon- da Costa, jeje liberta, fora escolhida para ser
ria em ordenar que o escra-
vo fosse castigado”. tradas relações indiretas em que membros das madrinha de Pedro e Maria da Fé, ambos
45 APEBa, LRT, n° 17, fls. famílias dos proprietários apareciam como escravos do tenente José Gonçalves de Lima.
145v-149v (14/8/1828);
APEBa, LRT, n° 26, fls.
padrinhos dos escravos. Tais exceções, que Joaquina Maria de Meneses era madrinha de
177v-182v (18/9/1821). eram de se esperar fossem mais numerosas Antônia, escrava de um seu vizinho, o capi-
46 APEBa, LRT, n° 19, fls. entre os libertos proprietários de escravos, tão Antônio. Mariana dos Anjos Meneses,
244v-250 (11/12/1828).
Benedito Felix de Santa demonstraram-se igualmente insignificantes. liberta natural da Costa da África, era madri-
Ana, jeje, era filho da jeje
liberta Josefa Maria da Con- Rita Joana Maria de Jesus, benguela liberta, nha de Ana, nagô, escrava da senhora
ceição e tinha sido por sua solteira e sem filhos, nomeou como herdeira Gertrudes, e “madrinha de crisma” de uma
vez escravo do crioulo liber-
to Joaquim Felix de Santa a afilhada e “cria” Maria Rita, filha de sua escrava do desembargador Joaquim Anselmo.
Ana. Este ciclo de relações
que envolvia os libertos, escrava Joaquina Rita, deixando forras mãe e Como a testadora não declina o nome desta
seus escravos da mesma
nação e os escravos de filha. Em seu testamento, datado de 1821, o afilhada mas apenas refere-se ao seu senhor,
outros libertos era uma ca-
racterística marcante da
mestre pedreiro José Alves Lima, jeje liberto tal fato poderia indicar que sua escolha para
comunidade africana, como
veremos mais adiante.
e viúvo de Antonia Maria da Conceição, dei- exercer o papel de madrinha fosse provenien-
APEBa, LRT, n° 7, fls. 6v- xava forro seu afilhado, o escravo Manoel do te mais de sua relação com o desembargador,
11 (22/7/1815).
Rosário (45). provavelmente de caráter clientelista, do que
47 APEBa, LRT, n° 13, fls. 18-
25 (16/4/1810); APEBa, Era relativamente comum, porém, que os propriamente com a afilhada (47).
LRT, n° 11, fls. 236v-241
(28/10/1818); APEBa, LRT,
testadores fossem padrinhos de escravos per- Amigos dos testadores eram também es-
n° 11, fls. 181-185 (23/4/ tencentes a terceiros, indicando em alguns colhidos para serem padrinhos de seus escra-
1823); APEBa, LRT, n° 34,
fls. 117v-119 (31/1/1844). casos que os mesmos eram propriedade de vos. João Batista de Farias, crioulo, batizara

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as duas “crias” da africana Venância OS LIBERTOS E A ESCOLHA DE
Constança, João, de 12 anos e Paulina, de 11 ESCRAVOS DA MESMA NAÇÃO
anos, e a testadora declarava que nas mãos
deste padrinho encontravam-se as cartas de Os “laços de nação”, por mais paradoxal
alforria de seus pequenos escravos. O padri- que possa parecer, faziam-se presentes tam-
nho João Batista de Faria era filho da africana bém entre senhores e escravos no interior da
liberta Maria Cecília, era alfabetizado e, ape- comunidade africana. Nos testamentos dos
sar de crioulo, relacionava-se com diversos libertos localizamos 44 casos em que a “na-
membros da comunidade africana, pois apa- ção” do escravo era a mesma da do seu pro-
rece também como testamenteiro do africano prietário. Como nosso objetivo era observar
liberto Augusto da Silva Couto e da africana apenas os casos em que o próprio proprietário
Sabina da Cruz (48). designava a origem do seu escravo pelo mes-
O fato de os libertos comparecerem como mo nome com que indicara a sua,
padrinhos e madrinhas de escravos, mesmo desconsideramos todas as outras possibilida-
que os tivessem batizado antes de se des em que, segundo nossos próprios critéri-
alforriarem, enquadra-se no padrão proposto os, poderia haver um “parentesco” entre
por S. Gudeman e S. B. Schwartz, de que os ambos, como por exemplo entre um proprie-
escravos serviam de padrinhos para escravos, tário da Costa da Mina e seus escravos jeje ou
mas não para os nascidos livres, e que os li- nagô, ou entre um nagô e um haussá.
vres serviam de padrinhos tanto para os es- A freqüência com que os libertos africa-
cravos quanto para os livres. A única exceção nos adquiriam escravos de sua própria nação
que encontramos ao padrão foi o da africana era bem maior do que a que deixa entrever os
liberta Sabina da Cruz, que em seu testamen- testamentos. Em diversas outras séries perce-
to legou duas voltas de cordão de ouro a sua bemos a ocorrência de casos idênticos. Se
afilhada, filha de Manoel Gonçalves da Cruz, escolhemos para analisar este assunto atra-
seu ex-proprietário. Não conseguimos loca- vés dos testadores foi porque consideramos
lizar nenhum outro dado sobre o ex-senhor de que os mesmos, ao indicarem que seus escra-
Sabina da Cruz, mas a escolha de uma ex- vos eram de sua “nação”, em princípio, ao
escrava africana para madrinha da filha, se- menos, estavam revelando uma parcela da
gundo os valores da época, indica que não se identidade que os unia.
tratava de alguém com pretensões de ser re- Evidentemente é-nos impossível recupe-
conhecido como branco (49). rar os sentimentos e os pensamentos mais
No entanto, para mais da metade dos 111 profundos que os africanos provavam diante
afilhados(as) indicados nos testamentos não da escravidão. Mas o certo é que as relações
foi possível determinar se se tratava de li- entre senhores e escravos africanos de uma
vres, libertos ou escravos, nem se eram afri- mesma “nação” deviam se processar diferen-
canos ou crioulos. Mas a maioria dos que temente daquelas entre senhores brancos e
não constavam como sendo escravos tinha seus escravos africanos, se bem que na práti-
seu nome acompanhado do de seus pais, de- ca um proprietário, independentemente de sua
notando tratar-se de crioulos de primeira ge- cor ou nacionalidade, tivesse sempre a pre-
ração, filhos de amigos, camaradas de traba- tensão de ser o senhor absoluto do destino e
lho ou vizinhos, como, por exemplo, na se- da vontade de seu escravo. Obediência e sub-
qüência dos afilhados nomeados por José missão por parte do escravo eram exigências
Gomes Ribeiro, para herdarem seus bens de todos os senhores, entretanto existiam
após a morte de sua mulher: Manoel Pedro certos elementos de identificação, entre um
da Rocha, filho de Benedito do Sacramento; proprietário africano (ele mesmo um ex-es-
Vicente, filho de Basílio da Silva Horta; cravo) e aquele de sua “nação” que se tornara
Maria, filha de Fito Gomes Ribeiro; Piora, sua propriedade, que provavelmente atenu-
48 APEBa, LRT, n° 48, fls. 37-
filha de Matildes; Claudiana, filha de Rita; assem a distância entre ambos. 39v (11/11/1872); APEBa,
LRT, n° 42, fls. 83-85v (6/
Felicidade, filha de Vicência; Rosa, filha de O que pensaria da escravidão, por exem- 2/1862) e LRT, n° 47, fls.
28-30v (13/8/1868).
Antonio Gomes Ribeiro. Crioulos que con- plo, uma pessoa como Benedita Maria da
viviam na intimidade dos “parentes” de seus Conceição, mina liberta, mãe de quatro fi- 49S. Gudeman e S. B.
Schwartz, op. cit., p. 46.
pais e, portanto, integrados na comunidade lhos, três dos quais continuavam escravos,
50 APEBa, LRT, n° 59, fls. 39-
africana (50). ela mesma proprietária de escravas igualmen- 40 (26/10/1882).

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te minas, das quais não cita os nomes, mas cessitassem ainda dos serviços de seus escra-
que deveriam após a sua morte continuar em vos, freqüentemente concediam-lhes alforria
poder do marido para lhe servir? E João em seus testamentos, como o fez Demiciana
Fernandes Galiza, nagô liberto, com um filho Maria da Encarnação, de nação nagô, que
ainda escravo, para o qual deixava seu escra- gozava de uma posição econômica invejável
vo Antônio, nagô, com a obrigação de traba- para uma liberta, possuindo entre outros bens,
lhar para com seu produto comprar a liberda- doze escravos entre os quais oito eram nagôs
de do filho, e ainda legava à sua amásia Feli- como ela, três haussás e um moçambique.
cidade Guilhermina, também nagô, os escra- Deixou-os todos livres e em posse de um
vos José e Esperança, da mesma nação, para sobrado no Maciel para morarem juntos ou
“ganharem” para o seu sustento (51)? dividirem-no em partes iguais. A mesma ati-
É impossível encontrar uma resposta a tude teve Tereza de Jesus do Vale Silva, da
estas questões ou a outras que possamos for- Costa da Mina, liberta, com suas escravas
mular atualmente sobre o assunto. As indica- Antônia, Rita, Ana, Maria, Benedita, todas
ções existentes nos testamentos deixam lugar da Costa da Mina, e mais Joana, mulatinha,
a toda gama de comportamentos e sentimen- alforriadas e de posse da casa deixada pela
tos humanos cujas intenções são impossíveis proprietária, para que após a morte da última
de serem reduzidas a qualquer padrão. Com- escrava fosse entregue à Irmandade do Rosá-
portamentos que mesclam o cuidado e a pro- rio da Baixa dos Sapateiros. A proprietária
teção devida aos entes mais chegados, com tinha um irmão, Maximiliano de Freitas
atitudes de afeto ou mesmo de dependência Henriques, da Costa da Mina, liberto, que
face aos próprios escravos, mas por vezes aparentemente devia gozar de boa situação
também de introjecção absoluta da figura do financeira, visto que sua parte no testamento
senhor branco, capaz de subjugar e punir, restringia-se a um legado de 50$000rs. que
mesmo após a morte, pessoas cujas atitudes lhe foi deixado em remuneração de seus ser-
eram ditadas por situações idênticas às que viços como testamenteiro (54).
eles próprios tinham vivenciado durante al- Os motivos que levavam um africano li-
guns bons anos de suas vidas. Quitéria Nunes berto a adquirir escravos entre os de sua pró-
de Jesus, por exemplo, mina liberta, libertou pria “nação” estavam ligados a escolhas pes-
em seu testamento Delfina, jeje, “por tê-la soais, mas também às limitações existentes
servido com amor”, mas Bernardina, mina no mercado quanto à variedade de suas re-
como ela, deveria ficar cativa “por não tê-la giões de procedência, não restando ao com-
servido como [era] do seu dever e faltar-lhe a prador muitas opções neste sentido, especial-
obediência”. Também a nagô liberta Maria mente na praça de Salvador. Ao nível das es-
Agostinha de Brito Machado libertava Espe- colhas pessoais, um escravo da mesma nação
rança, nação Guruman, e Francisco, nagô, mas representava para o africano algumas vanta-
coarctava Maria, jeje, em 50$000r., “em ra- gens. Em primeiro lugar, não havendo a bar-
zão das más respostas que lhe dava” (52). reira lingüística, era possível aos libertos
Em contrapartida, Josefa Teixeira dos adquirir um “escravo novo”, cujo preço era
Santos, mina liberta, solteira, sem filhos, bem mais acessível do que o de um ladino, e
desenvolvera uma relação de profundo afeto começar imediatamente a usufruir do produ-
com sua escrava Bonifácia, também mina, à to de seu trabalho, especialmente no caso das
qual confessava libertar “gratuitamente pelo “ganhadeiras”, que adquiriam escravas para
51 APEBa, LRT, n° 5, fls. 79v- amor que lhe tenho”. Já o nagô liberto trabalharem a seu lado.
83v (30/8/1811); APEBa,
LRT, n° 11, fls. 152-156 (21/ Emiliano Grave considerou que a melhor Antes de o tráfico tornar-se ilegal, alguns
8/1855).
maneira de agradecer à Maria da Glória, tam- africanos conseguiam adquirir escravos ain-
52 APEBa, LRT, n° 29, fls. 143-
146 (7/5/1840); APEBa,
bém nagô, “os imensos favores recebidos da da mais em conta do que o preço que alcan-
LRT, n° 25, fls. 90v-93 (12/
8/1836).
dita senhora”, seria condicionar a alforria de çavam no mercado em Salvador, “encomen-
sua escrava Gertrudes, nagô, e de seus dois dando-os” aos libertos que faziam o comér-
53 APEBa, LRT, n° 12, fls. 66v-
70v (15/11/1822); APEBa, filhos crioulos, Mônica e Pedro, a que conti- cio com produtos da Costa e que traziam pe-
LRT, n° 36, fls. 170-173 (10/
11/1853). nuassem residindo com sua benfeitora, pres- quenas carregações de escravos que eram
54 APEBa, LRT, n° 40, fls.
tando-lhes os serviços necessários (53). vendidos a pessoas conhecidas. Este “peque-
142v-145v (14/3/1860); Os africanos que não possuíam parentes no tráfico” assegurava o lucro das viagens
APEBa, LRT, n° 20, fls. 83v-
87v (9/9/1830). chegados, companheiras ou amigos que ne- destinadas a adquirir panos, sabão e limo da

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Costa, obi (noz de cola), azeite, pimenta e teto. Viviam os libertos não só em quartos DESENHO DE

outros produtos demandados pelos africanos alugados, porões e sótãos dos grandes casa- HENRY MELVILLE:

nos mercados da Bahia. Era desse comércio rões do centro, mas também em pequenas RETRATA A VISTA

que, como outros libertos, vivia Francisco da casas que seguiam o alinhamento das ruas, ANTIGA DA LADEIRA

Rocha, haussá, que no seu testamento, entre perfilavam-se ao longo das ladeiras ou espa- DE SÃO BENTO, DO

as “contas a acertar”, declarou ter um crédito lhavam-se pelas encostas que acompanhavam FORTE DE SÃO

com Manoel José de Almeida de seis escra- a sinuosidade do terreno. MARCELO E DO

PORTO DA BAHIA
vos que lhe enviou da Costa da África, só Salvador sempre se caracterizou pela
recebendo pagamento de quatro; também o inexistência de áreas residenciais privativas
contramestre da escuna “Esperança”, Luiz de determinados segmentos sociais (56), uma
Marques, devia-lhe 85$000rs. de um mole- segregação que se tornava evidentemente
que, o preço de uma escrava, de três barris de inviável numa sociedade onde os escravos
azeite e de um saco de pimenta. Declarava não se prestavam apenas aos serviços inter- 55 APEBa, LRT, n° 19, fls.
ainda que os escravos e escravas que trouxe nos das residências de seus senhores, mas 276v-280v (9/3/1830).

de sua última viagem tinham sido “todos carregavam pessoas e mercadorias, pescavam, 56 K. M. de Queirós Mattoso,
Bahia: a Cidade de Salva-
entregues a seus proprietários” (55). mercadejavam, cultivavam os gêneros que dor e seu Mercado no Sé-
culo XIX , São Paulo,
abasteciam os mercados, eram artesãos, ma- Hucitec; Salvador, Secre-
VIZINHOS E AGREGADOS rinheiros e estivadores. Além do mais, o sis- taria Municipal de Educa-
ção e Cultura, 1978, p. 180.
tema de ocupação do solo baseado na enfiteuse
57 Alguns enfiteutas, como
As condições de moradia em Salvador permitia aos libertos e à população pobre li- José Pereira, genro e her-
deiro do comerciante e tra-
foram também um fator favorável à articula- vre o acesso à posse de pequenos lotes em ficante de escravos Joa-
quim Alves Cruz Rios, e a
ção da comunidade africana, propiciando ao terrenos foreiros a conventos, igrejas ou pro- viscondessa do Rio Verme-
mesmo tempo a reunião de escravos e liber- prietários particulares, onde construíam suas lho, aparecem em diversos
testamentos de libertos
tos da mesma nação num mesmo espaço moradias (57). como proprietários dos ter-
reiros foreiros em que os
residencial e o desenvolvimento de relações Joana Nunes, por exemplo, liberta natural mesmos tinham construído
suas casas. O primeiro era
de vizinhança com os que habitavam nas pro- da Costa da África, viúva do africano liberto proprietário de terras na
freguesia do Pilar, no sítio
ximidades. Os escravos evidentemente espa- André da Silva, residia numa casa à rua do conhecido como do Bom
lhavam-se por todas as freguesias da cidade, Bom Gosto, na freguesia do Pilar, que Gosto, e a segunda, na
Lucaia e em vários outros
morando ou não nas residências senhoriais, e edificara em terreno foreiro ao sr. José Perei- sítios na proximidade da
estrada que ia para o Rio
pelas vizinhanças, quando não sob o mesmo ra, possuindo “de frente braça e meia e de Vermelho.

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fundo 67 palmos, de pedra e cal, com porta e vam fora do domicílio senhorial.
uma janela, sala, três quartos e cozinha, com Este padrão habitacional passaria a carac-
seu quintal e sua fonte meeira”, dividindo por terizar a ocupação urbana das freguesias mais
um lado com Rita de Amorim e pelo outro centrais de Salvador, no século XIX. Um
com o africano José Paiado. Como ela, diver- exemplo extraído de uma lista do censo de
sos outros libertos tornavam-se proprietários 1855, relativa ao 15º Quarteirão do 1º Distri-
das casas onde moravam, tendo predominan- to da Freguesia de Santo Antônio, nos dá uma
temente como vizinhos outros africanos (58). idéia de um destes agrupamentos constituí-
Até o início do século XIX, as famílias dos exclusivamente por africanos, que ocu-
abastadas, com seu numeroso séquito de agre- pava parte de um imóvel dividido entre 12
gados e de escravos, ocupavam os grandes famílias. Num único “fogo” desta habitação
sobrados das freguesias centrais, especial- pluridomiciliar, o que era chefiado por Rita
mente na Sé e no Pilar, nos quais reservavam Rosa de Aleluia, africana liberta, 50 anos,
para si os pavimentos considerados nobres e negociante, solteira, residiam além da “dona
para seus escravos os compartimentos situa- da casa”, cinco escravas de sua propriedade:
dos no fundo do andar térreo. Estes sobrados, Felicidade, Esperança, Justina, Delfina e
datados dos séculos XVII e XVIII, eram pré- Felicidade IIª, todas africanas; sua mãe,
dios com três, quatro e até mesmo cinco pa- Esméria, também africana, solteira, e sua
vimentos, construídos sobre o alinhamento escrava Maria, africana; três agregados, to-
das ruas, com paredes laterais sobre os limi- dos africanos: Francisca, ainda escrava, mas
tes do terreno, formando conjuntos que vivia fora do domicílio de seu senhor, 27
geminados. O mesmo tipo de construção abri- anos, solteira; Belchior, liberto, 60 anos, sol-
gava, no bairro comercial da Cidade Baixa, teiro e dono de uma roça; e Maria dos Passos,
as residências dos comerciantes, especialmen- 70 anos, que, por seu turno, era proprietária
te portugueses, localizadas na parte superior de seis escravos: Aleixo, Jacob, Gilbraz,
de seus estabelecimentos comerciais (59). Maria, Carlos e Pedro, todos africanos. Em
Com a expansão urbana ocorrida no sécu- resumo, num mesmo “fogo”, viviam 17 afri-
lo XIX, as famílias ricas começaram a se trans- canos, entre libertos, escravos e agregados,
ferir das freguesias centrais, já saturadas e num prédio que comportava ainda mais 11
consideradas pouco salubres, para sítios mais “fogos” (61).
afastados, onde construíram amplas residên- As moradias coletivas correspondiam, em
cias cercadas de jardins e quintais. As áreas alguns quarteirões das freguesias da Sé e do
preferidas foram sobretudo a freguesia da Pilar, em meados do século XIX, a 40% dos
Vitória, em direção à povoação da Barra, e a imóveis da área. No Mapa dos “Fogos” da
freguesia da Penha, na península de Itapagipe, Freguesia de São Pedro, datado de 1835, exis-
com suas casas de veraneio, lugares mais tiam 41 africanos libertos e 75 africanas libertas
aprazíveis, entretanto igualmente ocupados respondendo como “chefes de fogos”, ao lado
por uma vizinhança de libertos africanos de- dos 62 africanos escravos que se distribuíam
dicados às atividades do ganho, à pesca e ao entre 36 proprietários(as) africanos, coabitavam
58 APEBa, LRT, n° 30, fls. 36v-
39v (23/10/1842). cultivo de gêneros alimentícios, e com os quais ainda 31 libertos africanos que viviam na con-
59 A. de L. Ribeiro da Costa, os escravos dos novos ocupantes estabelecia dição de agregados em 24 “fogos” de outros
“Ekabó! Trabalho Escravo
e Condições de Moradia e
livremente relações. libertos, 16 de africanas e 8 de africanos. Além
Reordenamento Urbano Os antigos sobrados do centro da cida- destes agregados, quase sempre “ganhadores”
em Salvador no Século
XIX”, dissertação de de foram pouco a pouco transformando-se e “ganhadeiras”, os africanos recebiam também
mestrado, UFBa, 1989, p.
172. em habitações plurifamiliares, cada uma em suas casas agregados de outras “qualida-
60 Idem, ibidem, p. 178. delas possuindo freqüentemente seus agre- des”: quatro crioulas e um crioulo, dois cabras,
61 APEBa, Série Recensea-
gados, além de escravos (60). Cada unida- um pardo e uma parda, e até mesmo uma mu-
mento, M-1605, Arrolamen- de familiar constituía um “fogo”, pelo qual lher branca, Ana Maria, de 50 anos, viúva (62).
to de Pessoas da Fregue-
sia de Santo Antonio Além respondia o “dono(a) da casa”. No mesmo O fato de africanos de uma mesma nação
do Carmo.
prédio, no andar térreo, nos porões e lojas morarem juntos num mesmo imóvel, onde
62 A. de L. Ribeiro da Costa,
op. cit., p. 181. APEBa, Pre-
ou nas “vilas de aluguel” construídas no entravam e saíam seus “parentes”, amigos e
sidência da Província, Sé- quintal, viviam libertos, às vezes também conhecidos, escravos e libertos, era tão banal
rie Polícia, M-5685, Mappa
do Numero dos Fogos e de com suas famílias e agregados, entre estes em Salvador que quase nunca despertava a
Habitantes da Freguesia de
São Pedro. alguns escravos “ao ganho” que habita- atenção dos vizinhos. Quando, após o levante

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de 1835, correram as notícias de que a insur- à casa de Domingos que, ao perceber a situa-
reição dos malês havia sido arquitetada em ção na qual se envolvera, foi bater à casa de
reuniões realizadas nas próprias residências outra vizinha, a cabra Maria da Encarnação,
dos africanos, inclusive nas casas de alguns para solicitar-lhe que recebesse sua amásia
proprietários, a população livre passou a ob- Joaquina, pois temia por sua segurança (64).
servar o que ocorria à sua volta, tomada pelo Os interrogatórios revelam também a fre-
temor que passava a lhe inspirar o grande qüência com que os “laços de nação” faziam-
número de residências que abrigavam escra- se presentes nas escolhas dos companheiros
vos e africanos libertos por toda a cidade. com os quais os libertos partilhavam suas
Os documentos da devassa do levante dos moradias, conforme os exemplos que se se-
malês representam fonte privilegiada para a guem, colhidos entre alguns depoimentos de
reconstituição do tipo de relações que os afri- africanos presos por prevenção:
canos estabeleciam entre si nos seus locais de
moradia, entre eles e as pessoas que subloca- “Respondeu chamar-se João Borges, li-
vam quartos e lojas, entre os vizinhos que ha- berto, nação Ussá, morador à rua da Ora-
bitavam o próprio imóvel ou em suas cercani- ção com seus Parentes Domingos Borges
as, permitindo também entrever a concentra- e Narciso Pinheiro [...] e que seu oficio
ção da comunidade africana em certas zonas era carregar cadeira.”
da cidade. A casa de nº 2 da Ladeira da Praça “Respondeu chamar-se Luis Ribeiro, li-
indo para o Guadalupe, por exemplo, ajusta- berto de Nação Mina, morador a rua do
va-se perfeitamente ao padrão da maioria das Tijolo com seo Parente Pedro de Lima,
residências do centro da cidade, obedecendo a que he da mesma Nação, e que depois que
uma estratificação social entre os três pavi- veio do Sul, onde teve baixa de soldado
mentos do imóvel, cercada por uma vizinhan- Liberto, vive de negociar em Santa Bár-
ça na qual libertos e escravos misturavam-se a bara”.
pessoas que pertenciam aos estratos médios da “Respondeu chamar-se João Duarte da Sil-
sociedade, até que, na madrugada de 25 de va, liberto, Nação Gêge, que seo officio he
janeiro de 1835, da loja situada em seu subsolo ser cozinheiro de embarcações, morador em
saíram mais de 50 africanos armados, dando São Miguel, onde foi prezo em sua casa, em
início aos combates que por mais de três horas que mora tambem Dom José, Nação Gêge,
consecutivas implantaram o pânico no centro embaxador [sic] de Agoumés [...]”.
de Salvador, naquele domingo em que se rea- “Respondeu chamar-se Manoel Gomes
lizaria a festa de Nª Sª da Guia (63). Ferrão, liberto de Nação Gêge, que vive
Moravam naquele prédio, no andar supe- de carregar cadeira no canto de São Do-
rior, a família do oficial da Fazenda Alexan- mingos, morador ao beco do Ferrão em
dre José Fernandes, branco, 56 anos, casado; companhia de Narcisa Barbosa, e Thereza
no térreo, o pardo Domingos Marinho de Sá, de Jesus, pretas da mesma Nação” (65).
solteiro, sua amásia Joaquina Rosa de Santa
Ana e o escravo Ignácio, nagô, pertencente a Em outras freguesias não tão centrais
João Pereira de Queirós, irmão de Domingos; como São Pedro Velho, Santana e Santo
e na loja situada no andar inferior, sublocada Antônio Além do Carmo, os casarões divi-
por Domingos Marinho, viviam Manoel diam os espaços das ruas com pequenas casas
Calafate e Aprígio, carregador de cadeiras, e térreas, padrão característico das residências 63 J. J. Reis, Rebelião Escra-
foi dali que partiram os insurgentes. pobres, quase sempre com uma porta e uma va no Brasil. A História do
Levante dos Malês (1835),
Na casa ao lado, que dava para a rua das janela, edificadas sobre chão batido. Nessas São Paulo, Brasiliense,
1986, p. 219.
Verônicas, por onde escaparam alguns dos casas habitavam os brancos pobres, a popula-
64 Idem, ibidem, p. 220-1.
revoltosos, viviam Joaquim de Matos, Ignácio ção de cor livre e liberta e alguns escravos. “Peças Processuais do Le-
de Limeira, ambos nagôs e Úrsula, benin, Esta mesma população espalhava-se pela vante dos Malês”, in Anais
do Arquivo do Estado da
“ganhadeira de peixe”, enquanto do lado que periferia das freguesias, onde o espaço urba- Bahia, vol. 40, Salvador,
1971, pp. 35-47.
dava para a Ladeira morava a preta Lauriana, no confundia-se com o rural, no qual além de
65 “Devassa do Levante...”, in
liberta, que continuava residindo na casa de suas pequenas habitações era possível culti- Anais do APEBa, “Interro-
gatórios feitos aos negros
seu ex-senhor, Raimundo Vitorino. O mulato var pequenas roças. prezos por prevenção e
João José Teixeira, de 27 anos, que foi teste- Apenas alguns poucos africanos libertos contra os quaes não existe
crime ou indicios no Pro-
munha dos acontecimentos, residia defronte eram proprietários de sobrados ou de “casas cesso”, pp. 135-41.

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assobradadas”, onde residiam com seus di- a segurança de diversas pessoas de suas rela-
versos escravos, como Manoel Pereira Lopes, ções (68). A denunciante afirmara que em sua
natural da Costa da África, que, além do so- casa, vizinha à prisão do Aljube, Francisco
brado onde morava com a mulher e 28 escra- Lisboa arquitetava, juntamente com outros
vos, possuía mais duas casas de pedra e cal e pretos seus parentes, libertos e escravos, uma
outra de taipa; ou Luís Xavier de Jesus, que nova sublevação e, em sua petição, solicitava
declarou possuir oito propriedades na fregue- que ele fosse mandado para sua terra, confor-
sia de Santa Ana, cinco na Ladeira do Alvo, me a Lei de 1835, e que a ela fossem concedi-
sendo uma delas o sobrado onde residia, com das garantias, pelo guarda da prisão vizinha,
dois andares, loja e sótão, e as demais térreas contra qualquer insulto que viesse a sofrer.
e as outras três, casas térreas com porta e duas Aproveitando-se desta denúncia, a polícia efe-
janelas, uma na rua do Jogo do Lourenço e tuou uma batida em diversas casas da rua dos
duas na rua da Poeira (66). Gatos e terminou prendendo, além de Francis-
A estreita convivência entre os africanos co Lisboa e diversos africanos que freqüenta-
nos “fogos”, nas habitações pluridomiciliares vam sua casa, também outros vizinhos por
e pelas ruas de algumas freguesias onde se “suspeitos de feitiçaria”.
concentravam escravos e libertos de uma O acusado defendeu-se alegando que a ex-
mesma “nação”, ensejava solidariedades mas amásia estava com ciúmes, pois, após terem
também, evidentemente, toda a sorte de ten- vivido juntos 14 anos, ele não mais a procura-
sões e de conflitos. Um exemplo demonstra- va, e que por este motivo decidira vingar-se.
tivo de solidariedade seria o caso de Gertrudes Segundo a testemunha Francisco Gonçalves
Ferreira Dias, africana liberta, viúva, residente de Oliveira, português, 38 anos, casado e que
na rua do Bom Gosto, freguesia do Pilar, numa tinha sido vizinho do casal, vários pretos que
“moradinha de casa térrea, com três braças freqüentavam sua venda diziam que Maria da
e meia de frente”, em terra foreira ao sr. José Conceição tinha ficado irritada com o amásio
Pereira. Sem filhos ou escravos que pudes- “por haver elle forrado uma preta, deixando de
sem cuidar de sua doença e assumir seus fu- fasel-o a um filho della [...], sendo certo que
nerais, a testadora foi amparada por seus vi- elle testemunha no tempo em que morou na
zinhos, os mesmos que foram indicados por Rua dos Gatos, sempre vio o accusado muito
ela para sua testamentaria: Malaquias Xavier cortez e submisso [...]”.
dos Anjos e sua esposa Rosa Maria da Boa Fator primordial da organização da comu-
Morte, ambos libertos de nação jeje, residen- nidade africana foi a possibilidade de diversos
tes ao Bom Gosto, e Bento, crioulo, casado grupos comunicarem-se através de uma lín-
com Maria Francisca do Porto, também jeje, gua comum. No século XIX, este papel esteve
já com 85 anos de idade, residentes no mes- reservado ao nagô, que se transformou numa
mo local. Foi também a uma vizinha, Maria espécie de língua franca entre escravos e liber-
das Mercês, que recorreu ao testador tos, mesmo entre alguns que pertenciam a
Romualdo de Cerqueira, liberto natural da outros grupos que não se identificavam como
Costa da África, viúvo, morador à rua do nagôs, mas que se integravam indiretamente à
Passo, para que se encarregasse da execução “nação” majoritária dos africanos na Bahia.
66 APEBa, LRT, n° 4, fls. 108-
111 (9/3/1839); APEBa, de seu testamento (67). O parentesco lingüístico e a convivência
LRT, n° 38, fls. 21-24 (2/3/
1835). Este testador fale-
No concernente às tensões dominantes num mesmo território entre os nagôs e os
ceu na Costa da África e
pela data em que realizou
entre parceiros e vizinhos tão próximos, há grupos aja-fon (jeje), nos territórios do Reino
seu testamento é possível casos de roubos, disputas de todos os tipos, do Daomé e em áreas vizinhas, ou os contatos
que tenha sido deportado.
cenas de ciúmes entre amásios, delações aos estabelecidos igualmente desde a África en-
67 APEBa, LRT, n° 30, fls. 94v-
97 (7/6/1843); LRT, n° 38, senhores ou às autoridades, que perpassam a tre os haussás, os tapas, os bornuns e os
fls. 18v-21 (16/6/1851) e
Títulos de Residência a Afri-
documentação policial da época, tendo como iorubás, por exemplo, facilitaram fosse a lín-
canos Libertos, M-5664 principais personagens escravos e libertos. gua dos nagôs um instrumento de
(1842-44); APEBa, LRT, n°
6, fls. 141v-144v (16/8/ A denúncia levada a cabo pela africana li- intercomunicação entre estes diversos gru-
1873).
berta Maria da Conceição contra Francisco da pos. Angélica, africana que estava “coartada
68 APEBa, Insurreições, M-
2850, Suspeita de Conspi- Costa Lisboa, seu ex-amásio, o qual acusava a pagar pela sua liberdade”, respondendo a
ração - 1844, fls. 44-59 e de estar preparando uma nova insurreição malê, interrogatório após o levante de 1835, decla-
72-76.
em 1844, é um exemplo que bem ilustra como rou “que suposto fale a lingoa de Nagô, he de
69 “Devassa do Levante...”, op.
cit., p. 20. os ciúmes de uma companheira podiam afetar nação Gege” (69). Alexandre, de nação jeje,

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barbeiro de profissão, escravo de Domingos ferência aos escravos indígenas que falavam a
José Gonçalves Penna, foi denunciado pelo língua tupi. Todavia, era praticamente impos-
corneta do 2º Batalhão de Guardas Nacio- sível que ainda existissem indígenas escravi-
nais, o pardo Sebastião da Rocha, que denun- zados em Salvador no século XIX, especial-
ciou haver escutado uma conversa, em nagô, mente na condição de cativos de outros africa-
entre o acusado e Ignes, escrava de Francisco nos, tais como Tereza, Língua Geral, escrava
Martins Guimarães, onde o mesmo afirmava da testadora Antonia Pereira, liberta da Costa
que nos próximos cinco dias haveria de ter da Mina. A designação, atribuída à escrava
um novo levante de africanos (70). Como se pela própria testadora, ela mesma africana,
pode perceber, a capacidade de compreensão parece indicar que Tereza provinha de alguma
da língua nagô ultrapassava até mesmo os região, provavelmente situada próxima à Cos-
limites da comunidade africana, visto que um ta da Mina, na qual predominasse a utilização
pardo declarava-se capaz de entender uma de alguma língua interinteligível pelos demais
conversa entre africanos naquele idioma. grupos da região (73).
Este mesmo corneta, que pelo visto era É evidente que a capacidade de falar uma
um profundo conhecedor das diversas línguas mesma língua teve um importante papel na
africanas faladas em Salvador, denunciara reconstrução das identidades de “nação” e na
também o moleque Ciriaco, nagô, escravo de realização das alianças interétnicas na Bahia.
João Bento de Souza, o qual ouvira falar que Nem todos os grupos que podiam se comuni-
os soldados eram uns tolos, perdendo seu car fundiram-se ou aliaram-se, todavia os que
tempo vigiando os africanos, mas que quan- o fizeram tiveram na língua um dos fatores
do estes decidissem se levantar ninguém ha- mais importantes do processo de identifica-
veria de saber. O proprietário do escravo ção, que possibilitava a ultrapassagem dos
correu em sua defesa perguntando à testemu- limites de adscrição étnica e permitia que as
nha se ele realmente sabia a língua nagô, “nações” africanas na Bahia se reconstruís-
visto que seu escravo era fulani, ao que o sem sobre novas bases.
soldado retrucou afirmando que “sabia, fala- Enfim, nas relações sociais desenvolvi-
va e entendia a língua de nagô e que a lingua das no interior da comunidade africana, sem-
fulani era a mesma de nagô” (71). pre esteve presente a preocupação com o for-
O alufá Luis Sanin, que durante os inter- talecimento dos “laços de nação” ou de sua
rogatórios identificou-se como de nação Tapa, reconstrução a partir de elementos comuns à
escravo de Pedro Ricardo Silva, segundo identidade dos grupos. Para tanto os africa-
depoimento de seus discípulos também fala- nos buscavam preservar os vínculos familia-
va as línguas de haussá e nagô. O réu Joa- res, quando existentes, ou construir novos,
quim, haussá, saveirista, escravo de Antonio reais ou simbólicos, selecionando cônjuges
Falcão, ferido durante o levante com um tiro ou parceiros(as) africanos(as), preferencial-
na perna, e a liberta Tereza, de nação tapa, mente da mesma origem étnica, estabelecen-
também falavam a “língua de Nagô”. Uma do vínculos de compadrio cujo objetivo era
grande parcela dos interrogados no inquérito assegurar a proteção e a educação de seus
do levante procurara se escusar de qualquer filhos na comunidade de seus “parentes”, e
envolvimento com os revoltosos, afirmando reunindo-se aos membros de sua “nação” para 70 APEBa, Insurreições, M-
2848, A Justiça de Alexan-
exatamente não entenderem o nagô, não po- partilhar o local de moradia. dre, Gege, Escravo de Do-
Esse comportamento, característico das mingos José Gonçalves
dendo portanto terem nenhum conhecimento Penna, fl. 3.
do que se tramava entre os mesmos (72). diversas “nações” africanas na Bahia, não
71 APEBa, Insurreições, M-
A intensidade com que o nagô era usado impediu o desenvolvimento de outros tipos 2847, Prisão em Flagrante
e Interrogatório de Ciriaco,
pelos africanos na Bahia era tal que acredita- de relações como com os crioulos, por exem- Nagô, Escravo de João
Bento de Souza, fls. 3-5v.
mos que a denominação “Língua Geral”, que plo, que participavam da comunidade de seus
aparece em alguns registros substituindo a pais, mas também com pardos e mesmo com 72 “Devassa do Levante...”,
op. cit., pp. 33, 70 e 100;
“nação” ou a região de procedência de escra- brancos. No entanto, os africanos procura- APEBa, Insurreições, M-
2849, fls. 50-50v, “Interro-
vos, pudesse se referir aos nagôs, ou então a vam de preferência viver entre os seus a inte- gatório feito aos presos
africanos feridos e recolhi-
grupos que na África falavam alguma língua grarem-se na sociedade baiana, que por seu dos no Hospital da Carida-
turno nunca lhes facilitara esta tarefa, prote- de”, e “Devassa do Levan-
franca, como os minas, de Anecho ou os te...”, op. cit., p. 70.
haussás. O termo “Língua Geral” fora utiliza- gida pelos preconceitos que alimentavam a
73 APEBa, LRT, n° 3, fls. 94v-
do na Bahia quinhentista e seiscentista em re- hostilidade em relação àqueles “estrangeiros”. 97v (10/2/1811).

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