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Cesar Gordon
IFCS-UFRJ
Eu gostaria de começar esta aula com uma anedota. Em 1880, o poeta, escritor e
antropólogo amador escocês Andrew Lang (1844-1912) publicou um livro de poemas
intitulado XXII Ballades in Blue China. Nesse livro, havia um poema – que para
minha apreciação é uma pequena jóia da época, menos pelas suas qualidades literárias
do que pelo testemunho que ele nos presta. Intitulava-se “Double Ballade of Primitive
Man” (A dupla balada dupla do homem primitivo) 2. Nele, Lang expressava de forma
poética o grande interesse que existia nos meios cultos europeus, e sobretudo ingleses,
pelo o tema do “homem primitivo”, isto é, os selvagens e exóticos habitantes dos
confins do Império. Ao mesmo tempo, e daí sua especial significação, o poema
sintetizava algumas das mais recentes descobertas da então nova e promissora ciência,
a antropologia. Conta-se que as últimas três estrofes do texto foram, na verdade,
compostas, não por Lang, mas anonimamente por um famoso antropólogo: Sir
Edward B. Tylor (Kardiner e Preble 1961). E esse último concluía o poema de Lang
com o seguinte verso polêmico:
Eu resolvi iniciar a aula com essa anedota, a fim de chamar a atenção para o
contexto intelectual francamente anti-clerical e anti-religioso que caracteriza o
surgimento da antropologia como disciplina na última metade do século XIX. E o fiz
também a fim de lembrar a situação, possivelmente paradoxal, de uma disciplina que
se interessa em estudar a religião e a magia dos chamados povos primitivos como
1
Este texto foi inicialmente apresentado em 30 de setembro de 2010, no IFCS, em forma de aula ao
concurso de provas e títulos para professor adjunto do Departamento de Antropologia Cultural.
2
Ver em anexo, ao final do texto.
2
Não resta dúvida que essas idéias são, em boa medida, herdeiras do
Iluminismo (ver p.ex. Harris 1968). Uma formulação de filosofia positiva da história
aparece praticamente pronta na pena de um autor como Anne Robert Jacques Turgot
(1727-1781). Em um dos artigos da famosa Enciclopaedia, Turgot, que era um liberal
fisiocrata, sugeriu que o avanço da inteligência humana teria passado por três etapas
distintas: religiosa, filosófica (ou metafísica) e científica (Copleston 1994[1964]: 57);
e que, no plano econômico, a humanidade evoluíra da caça, ao pastoreio e daí para a
agricultura (Harris 1968:28).
Então, quando Auguste Comte, cerca de cinquenta anos mais tarde, formula a
Lei dos 3 Estados, ele não estava senão dando uma versão mais bem acabada a uma
idéia que já estava na cabeça dos philosophes iluministas, e que se tornaria
absolutamente hegemônica no último quarto do século XIX. De algum modo,
transformada e alterada aqui e acolá, em diferentes embalagens teóricas e filosóficas,
essa idéia mestra da evolução intelectual (e material) por etapas, rumo à racionalidade
cada vez mais bem acabada, aparece em Hegel, aparece em Marx, e evidentemente
em toda a antropologia vitoriana, que chamamos também de evolucionista.3
3
Seria interessante investigar com mais detalhe o contexto social em que de desenvolve especialmente
a visão anti-religiosa entre intelectuais de dois países-berço da antropologia, como a França e a
Inglaterra. Na França, isso está associado em alguma medida a uma classe de intelectuais de origem
judaica, porém afastados das tradições (“les déracinés”, como diria o escritor Maurice Barrès).
Republicanos, de espírito mais universalista e influenciados pela filosofia kantiana, eles tentavam se
ajustar ao difícil ambiente francês, que se mostrou enfim violentamente dividido em torno do Caso
Dreyfus, e para tanto consideravam importante superar o tradicionalismo religioso. Na Inglaterra, são,
na maioria, jovens de famílias abastadas, eventualmente formados na religião protestante, mas
convertidos ao darwinismo e ao spencenrianismo, convencidos das idéias positivistas em virtude do
notável avanço técnico e científico da revolução industrial e da supremacia britânica.
3
Faço essas observações com o intuito de dizer que se, então, para os
antropólogos do final do século XIX, o modelo, ou o estágio final do pensamento é a
ciência positiva, o resultado é que as outras formas de expressão mental, vamos assim
dizer, especialmente a magia e a religião das sociedades não industriais, foram
avaliadas e mensuradas sempre em relação à ciência positiva e materialista.
Mas, suprema ironia da história, a ciência mostrou-se uma filha ingrata, tanto
da magia, quanto da religião, e resolveu voltar-lhes as costas e renegar-lhes ao
obscurantismo tão logo ganhou autonomia e força. Ora, precisamente no último
quarto do século XIX, a obra de um Charles Darwin e dos antropólogos
evolucionistas tornou-se mais uma peça importante, diria mesmo fundamental do
ponto de vista das disputas intelectuais, na longa empreitada de desconstrução do
4
Pois bem, depois desse já longo prólogo que nos auxilia a compreender a
constituição do problema, vejamos, então, como a antropologia lidou com esses três
termos: magia, ciência e religião. É claro que será preciso fazer um recorte um tanto
brusco, aqui. Sempre seria possível, por exemplo, analisar os três termos de forma
separada: estudos antropológicos da magia, da religião e da ciência, que existem em
profusão. Porém, para manter o fio e a consistência do tema da aula, creio ser
interessante, ao menos, retraçar a forma como a antropologia abordou a relação entre
esses três termos. Para isso, e a fim de termos uma dimensão inicial ou introdutória do
problema, é suficiente focalizarmos os trabalhos de um conjunto mais restrito de
autores, que são, sem dúvida, autores-chave, e para quem as relação entre os três
termos aparece de alguma maneira articulada. 5 São eles: Tylor, Frazer, Malinowski,
Lévy-Bruhl, Durkheim e Lévi-Strauss. Nessa reconstrução, Evans-Pritchard (1965,
1981), Tambiah (1990) e outros nos servirão de auxílio, como pequenos virgílios
antropológicos a nos guiar pela “selva escura” da história da disciplina.
4
Cumpre notar que nem todos aderiram a esse novo modelo de pensamento. Mas isso é outra história.
Um balanço denso e interessante dos embates entre ateístas, cientistas e religiosos no campo intelectual
e filosófico ocidental pode ser lido em Gordon (2011).
5
Nem seria necessário dizer que o que vai a seguir trata-se de uma apresentação sumária e bastante
esquemática, apenas para fins didáticos. Ao leitor que deseja uma visão mais minuciosa e consistente
do tema, sugiro retomar a bibliografia referida ao final deste trabalho, além das próprias obras dos
autores mencionados.
5
Alguns anos depois, Frazer segue as pegadas de Tylor, porém lhe dá uma
formulação mais inequívoca. Em seu monumental The Golden Bow (1890), Frazer
propõe pela primeira uma teoria da magia. Ele começa sugerindo as duas leis básicas
6
Para Max Müller, as religiões teriam surgido de uma espécie de “confusão linguística”, em que
símbolos e metáforas, inicialmente utilizados pelo homem para expressar idéias abstratas como
“infinito” e “imortalidade”, acabaram sendo personificados e tratados de maneira literal. Assim, o
estudo das religiões, segundo Müller, deveria começar necessariamente pelas investigações filológicas
e etimológicas.
6
Ocorre que, segundo Frazer, uma vez que a magia apóia-se sobre
encadeamentos lógicos errôneos, ela não logra seus objetivos (controlar a natureza),
de sorte que o pensamento humano é confrontado com sua impotência. A
consequência desse malogro é precisamente o surgimento da religião. Uma vez que os
homens reconhecem não serem capazes de controlar as forças da natureza, o corolário
lógico da mente primitiva teria sido a suposição de que tais forças encontram-se nas
mãos de seres não-humanos, poderosos e supervenientes. Assim, portanto, na visão de
Frazer, a magia antecede historicamente a religião, da mesma forma com que esta
antecede o pensamento científico positivo.
Não é possível entrar nesse assunto aqui, mas, como sabemos, as hipóteses de
Tylor e sobretudo as de Frazer sofreram ataques demolidores vindos de dentro e de
fora da antropologia. Evans-Pritchard (1965) apontou sues erros etnográficos e seu
caráter altamente especulativo e não falseável (em termos popperianos). Do campo da
filosofia, veio uma crítica não menos intensa de Wittgenstein (1889-1951), que
procurou desmontar tanto o intelectualismo da interpretação de Frazer, quanto sua
dicotomia evolutiva entre mentalidade primitiva e mentalidade moderna
(Wittgeinstein 1979).
7
Malinowski (1884-1932)
Lévy-Bruhl (1857-1939)
Lévi-Strauss (1908-2009)
Conclusão
Para encerrar esta aula, eu gostaria de dizer que aqui, evidentemente, não
esgotamos o tema das relações entre magia, ciência, religião no pensamento
antropológico. O recorte, mais limitado, no entanto, permite delinear o histórico do
problema, retraçar o “status quaestioni”, para daí prosseguirmos em uma discussão
que não parece de forma alguma esgotada, na medida em que, conforme observam,
por exemplo, Tambiah e Goldman, tocam em pontos fundamentais da reflexão
antropológica, como o problema da racionalidade, do relativismo e da tradução e
comunicação entre diferentes sociedades e modos de ordenar e vivenciar a realidade.
11
Talvez seja o tempo oportuno de tentar fazer com que a antropologia ajude, se
isso for possível, a reconciliá-la.
Referências Bibliográficas
KARDINER, Abram e PREBLE, Edward. 1961. They Studied Man. New York: The
World Publishing Company.
KUPER, Adam. 1988. The Inventions of Primitive Society. London & New York:
Routledge.
MALINOWSKI, Bronislaw. 1948. Magic, Science and Religion and other Essays.
New York: The Free Press.
STOCKING, George W. 1987. Victorian Anthropology. New York: The Free Press.
TAMBIAH, Stanley J. 1990. Magic, Science, Religion, and the Scope of Rationality.
Cambridge: Cambridge University Press.
Livro
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Artigo em Coletânea
Artigo em Periódico
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Tese Acadêmica
TO J. A. FARRER.
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