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MAGIA, CIÊNCIA E RELIGIÃO NO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO 1

Cesar Gordon
IFCS-UFRJ

Prólogo: a balada do homem primitivo

Eu gostaria de começar esta aula com uma anedota. Em 1880, o poeta, escritor e
antropólogo amador escocês Andrew Lang (1844-1912) publicou um livro de poemas
intitulado XXII Ballades in Blue China. Nesse livro, havia um poema – que para
minha apreciação é uma pequena jóia da época, menos pelas suas qualidades literárias
do que pelo testemunho que ele nos presta. Intitulava-se “Double Ballade of Primitive
Man” (A dupla balada dupla do homem primitivo) 2. Nele, Lang expressava de forma
poética o grande interesse que existia nos meios cultos europeus, e sobretudo ingleses,
pelo o tema do “homem primitivo”, isto é, os selvagens e exóticos habitantes dos
confins do Império. Ao mesmo tempo, e daí sua especial significação, o poema
sintetizava algumas das mais recentes descobertas da então nova e promissora ciência,
a antropologia. Conta-se que as últimas três estrofes do texto foram, na verdade,
compostas, não por Lang, mas anonimamente por um famoso antropólogo: Sir
Edward B. Tylor (Kardiner e Preble 1961). E esse último concluía o poema de Lang
com o seguinte verso polêmico:

“Theologians all to expose – Tis is the MISSION of Primitive Man”


(“Desmascarar todos os teólogos, eis a missão do homem primitivo”).

Eu resolvi iniciar a aula com essa anedota, a fim de chamar a atenção para o
contexto intelectual francamente anti-clerical e anti-religioso que caracteriza o
surgimento da antropologia como disciplina na última metade do século XIX. E o fiz
também a fim de lembrar a situação, possivelmente paradoxal, de uma disciplina que
se interessa em estudar a religião e a magia dos chamados povos primitivos como

1
Este texto foi inicialmente apresentado em 30 de setembro de 2010, no IFCS, em forma de aula ao
concurso de provas e títulos para professor adjunto do Departamento de Antropologia Cultural.
2
Ver em anexo, ao final do texto.
2

instrumento de afirmação de uma visão científica e positivista do homem e do


conhecimento, em última instância, contrária à religião e à magia.

O contexto social e intelectual em que esse processo ocorre é bem conhecido


de todos: o século XIX, em plena ascensão técnica e industrial das potências
européias, ancorado sobre uma filosofia da história progressista e evolucionista. Uma
boa parte dos cientistas e intelectuais da época partilhava do otimismo em relação ao
futuro. Alguns partilhavam de uma visão teleológica do desenvolvimento da história.
E muitos achavam possível delinear claramente as etapas pelas quais teria passado de
forma incremental a racionalidade humana (ver p.ex. Stocking 1987).

Não resta dúvida que essas idéias são, em boa medida, herdeiras do
Iluminismo (ver p.ex. Harris 1968). Uma formulação de filosofia positiva da história
aparece praticamente pronta na pena de um autor como Anne Robert Jacques Turgot
(1727-1781). Em um dos artigos da famosa Enciclopaedia, Turgot, que era um liberal
fisiocrata, sugeriu que o avanço da inteligência humana teria passado por três etapas
distintas: religiosa, filosófica (ou metafísica) e científica (Copleston 1994[1964]: 57);
e que, no plano econômico, a humanidade evoluíra da caça, ao pastoreio e daí para a
agricultura (Harris 1968:28).

Então, quando Auguste Comte, cerca de cinquenta anos mais tarde, formula a
Lei dos 3 Estados, ele não estava senão dando uma versão mais bem acabada a uma
idéia que já estava na cabeça dos philosophes iluministas, e que se tornaria
absolutamente hegemônica no último quarto do século XIX. De algum modo,
transformada e alterada aqui e acolá, em diferentes embalagens teóricas e filosóficas,
essa idéia mestra da evolução intelectual (e material) por etapas, rumo à racionalidade
cada vez mais bem acabada, aparece em Hegel, aparece em Marx, e evidentemente
em toda a antropologia vitoriana, que chamamos também de evolucionista.3

3
Seria interessante investigar com mais detalhe o contexto social em que de desenvolve especialmente
a visão anti-religiosa entre intelectuais de dois países-berço da antropologia, como a França e a
Inglaterra. Na França, isso está associado em alguma medida a uma classe de intelectuais de origem
judaica, porém afastados das tradições (“les déracinés”, como diria o escritor Maurice Barrès).
Republicanos, de espírito mais universalista e influenciados pela filosofia kantiana, eles tentavam se
ajustar ao difícil ambiente francês, que se mostrou enfim violentamente dividido em torno do Caso
Dreyfus, e para tanto consideravam importante superar o tradicionalismo religioso. Na Inglaterra, são,
na maioria, jovens de famílias abastadas, eventualmente formados na religião protestante, mas
convertidos ao darwinismo e ao spencenrianismo, convencidos das idéias positivistas em virtude do
notável avanço técnico e científico da revolução industrial e da supremacia britânica.
3

Faço essas observações com o intuito de dizer que se, então, para os
antropólogos do final do século XIX, o modelo, ou o estágio final do pensamento é a
ciência positiva, o resultado é que as outras formas de expressão mental, vamos assim
dizer, especialmente a magia e a religião das sociedades não industriais, foram
avaliadas e mensuradas sempre em relação à ciência positiva e materialista.

Aliás, a delimitação mesma desses três termos – magia, religião e ciência –


enquanto conceitos autônomos, enquanto entidades distintas, pode ser vista como uma
construção cultural específica e cuja história é particularmente interessante, como
muito bem demonstrou o antropólogo anglo-cingalês Stanley Tambiah num livro
indispensável, cujo título é precisamente Magic, science, religion, and the scope of
rationality (Tambiah 1990). Tambiah mostra como esses três termos forjaram-se ao
longo de uma complexa história, que atravessa a antiguidade grega, passa pela
teologia judaica, e culmina com o advento da época moderna, quando a crise
espiritual do mundo medieval cristão resulta no surgimento do protestantismo e do
racionalismo renascentista.

O que Tambiah nos permite concluir de forma fascinante – mas retomando


uma argumentação semelhante, ainda que menos concisa, de Georges Gusdorf em sua
grande investigação sobre as ciências humanas e o pensamento ocidental (Gusdorf
1974; 1966-1988), – é que a ciência moderna é filha, de um lado, da magia (por meio
das experimentações desses homens incríveis, mistura de médicos, mágicos,
alquimistas e astrônomos como Giordano Bruno, Paracelso, Tycho Brahe, entre tantos
outros); e de outro, da religião, na medida em que o racionalismo subjacente ao
calvinismo, e a rejeição a algumas das doutrinas católicas (por exemplo, sobre as
hierarquias espirituais celestes), acabou contribuindo de alguma forma para consolidar
uma visão naturalista e mecanicista do universo, base do pensamento científico
moderno.

Mas, suprema ironia da história, a ciência mostrou-se uma filha ingrata, tanto
da magia, quanto da religião, e resolveu voltar-lhes as costas e renegar-lhes ao
obscurantismo tão logo ganhou autonomia e força. Ora, precisamente no último
quarto do século XIX, a obra de um Charles Darwin e dos antropólogos
evolucionistas tornou-se mais uma peça importante, diria mesmo fundamental do
ponto de vista das disputas intelectuais, na longa empreitada de desconstrução do
4

pensamento mágico-religioso, principalmente após a publicação de The Descent of


Man (1871), que reforçou de um ponto de vista estritamente naturalista, a idéia de
evolução intelectual humana, que caminhava do complexo ao simples, da infância à
maturidade (Kuper 1988).4

Pois bem, depois desse já longo prólogo que nos auxilia a compreender a
constituição do problema, vejamos, então, como a antropologia lidou com esses três
termos: magia, ciência e religião. É claro que será preciso fazer um recorte um tanto
brusco, aqui. Sempre seria possível, por exemplo, analisar os três termos de forma
separada: estudos antropológicos da magia, da religião e da ciência, que existem em
profusão. Porém, para manter o fio e a consistência do tema da aula, creio ser
interessante, ao menos, retraçar a forma como a antropologia abordou a relação entre
esses três termos. Para isso, e a fim de termos uma dimensão inicial ou introdutória do
problema, é suficiente focalizarmos os trabalhos de um conjunto mais restrito de
autores, que são, sem dúvida, autores-chave, e para quem as relação entre os três
termos aparece de alguma maneira articulada. 5 São eles: Tylor, Frazer, Malinowski,
Lévy-Bruhl, Durkheim e Lévi-Strauss. Nessa reconstrução, Evans-Pritchard (1965,
1981), Tambiah (1990) e outros nos servirão de auxílio, como pequenos virgílios
antropológicos a nos guiar pela “selva escura” da história da disciplina.

Edward Tylor (1832-1917) e James Frazer (1854-1941)

Tylor e Frazer são exemplos do tipo de abordagem que Evans-Pritchard (1965)


classificou de teorias psicológicas intelectualistas da religião (Eliade 1966: 1519).
Edward Tylor, nascido em família quaker, fôra convertido ao evolucionismo de
Darwin por intermédio de seu amigo Henry Christie, homem de negócios rico,
arqueólogo amador, e entusiasta de primeira hora do darwinismo. Os interesses
antropológicos de Tylor acompanhavam-se de sua vontade de “desmascarar todos os
teólogos”, atrelando-os a um mundo de superstição e crenças obscuras, próximas a

4
Cumpre notar que nem todos aderiram a esse novo modelo de pensamento. Mas isso é outra história.
Um balanço denso e interessante dos embates entre ateístas, cientistas e religiosos no campo intelectual
e filosófico ocidental pode ser lido em Gordon (2011).
5
Nem seria necessário dizer que o que vai a seguir trata-se de uma apresentação sumária e bastante
esquemática, apenas para fins didáticos. Ao leitor que deseja uma visão mais minuciosa e consistente
do tema, sugiro retomar a bibliografia referida ao final deste trabalho, além das próprias obras dos
autores mencionados.
5

dos selvagens e homens primitivos, e que deveriam ser finalmente extirpadas do


pensamento moderno, para que florescesse plenamente uma visão positiva, muito
mais de acordo com o estágio atual da civilização técnico-científica européia.
Inspirando-se nos trabalhos de Max Müller (1823-1900), grande filólogo e orientalista
alemão, Tylor parte da hipótese segundo a qual o desenvolvimento da linguagem
reflete ou expressa o avanço do intelecto. 6 Com isso chega também, assim como
Müller, ao tema da mitologia, campo fértil para tal exploração. A síntese de suas
hipóteses vieram a público em 1871, com a publicação de Primitive Culture.

Ali, Tylor formula o conceito de animismo, como forma originária de toda e


qualquer religião. O animismo, segundo Tylor, era um traço do pensamento primitivo
baseado em uma série de confusões intelectuais e linguísticas entre o “eu” e o “outro”,
que teria se originado a partir de uma tentativa de explicar a experiência do sonho. O
sonho levou o homem a projetar a figura do “duplo”: uma parte imaterial, mas ativa,
que supostamente estaria presente também em todas das coisas: animais, plantas,
objetos. Tylor, então, pretende mostrar como essa forma básica de pensamento, que
atribui agência humana aos objetos naturais, transformou-se gradativamente em
modelos mais sofisticados, como a crença nas divindades (politeísmo) e finalmente
nas grande religiões monoteístas. Por trás do engenhoso, embora altamente
especulativo, modelo, a provocação era clara aos religiosos cristãos vitorianos, uma
vez que tratava a religião revelada em continuidade lógica e cronológica de ideias
exóticas provindas dos povos selvagens dos rincões do mundo incivilizado.

Tylor nunca chegou a distinguir de maneira sistemática a religião da magia,


mas alguns de seus argumentos parecem colocar essa ultima (a magia) como uma
proto-ciência, mas sobretudo uma falsa ciência, em oposição à religião. A magia seria
uma tentativa abstrusa e infantil do homem primitivo de controlar as forças naturais,
mas que se apoiava sobre uma incompreensão das relações de causa e efeito.

Alguns anos depois, Frazer segue as pegadas de Tylor, porém lhe dá uma
formulação mais inequívoca. Em seu monumental The Golden Bow (1890), Frazer
propõe pela primeira uma teoria da magia. Ele começa sugerindo as duas leis básicas

6
Para Max Müller, as religiões teriam surgido de uma espécie de “confusão linguística”, em que
símbolos e metáforas, inicialmente utilizados pelo homem para expressar idéias abstratas como
“infinito” e “imortalidade”, acabaram sendo personificados e tratados de maneira literal. Assim, o
estudo das religiões, segundo Müller, deveria começar necessariamente pelas investigações filológicas
e etimológicas.
6

que sustentam o pensamento mágico: a lei de semelhança ou de similitude, e a lei do


contágio. Depois, Frazer distingue suas duas dimensões: “magia prática” e “magia
teórica”.

A ênfase de Frazer repousa no argumento de que a magia teórica é um tipo


inacabado de ciência; enquanto que a magia prática é um tipo inacabado de arte. Para
ele, da mesma forma que a ciência, a magia pressupõe uma visão mecânica e
naturalista da natureza: ou seja, uma visão segundo a qual a natureza funcionaria de
acordo com determinadas leis de movimento dos corpos, sem qualquer interveniência
de seres sobrenaturais ou divinos. A idéia do sobrenatural, esta sim, seria apanágio da
religião. Assim, em seus princípios básicos, magia e ciência fazem par, deixando a
religião do outro lado. Portanto, a articulação entre magia, religião e ciência que em
Tylor aparece de maneira fraca, encontra uma formulação forte na pena de Frazer.

Ocorre que, segundo Frazer, uma vez que a magia apóia-se sobre
encadeamentos lógicos errôneos, ela não logra seus objetivos (controlar a natureza),
de sorte que o pensamento humano é confrontado com sua impotência. A
consequência desse malogro é precisamente o surgimento da religião. Uma vez que os
homens reconhecem não serem capazes de controlar as forças da natureza, o corolário
lógico da mente primitiva teria sido a suposição de que tais forças encontram-se nas
mãos de seres não-humanos, poderosos e supervenientes. Assim, portanto, na visão de
Frazer, a magia antecede historicamente a religião, da mesma forma com que esta
antecede o pensamento científico positivo.

Não é possível entrar nesse assunto aqui, mas, como sabemos, as hipóteses de
Tylor e sobretudo as de Frazer sofreram ataques demolidores vindos de dentro e de
fora da antropologia. Evans-Pritchard (1965) apontou sues erros etnográficos e seu
caráter altamente especulativo e não falseável (em termos popperianos). Do campo da
filosofia, veio uma crítica não menos intensa de Wittgenstein (1889-1951), que
procurou desmontar tanto o intelectualismo da interpretação de Frazer, quanto sua
dicotomia evolutiva entre mentalidade primitiva e mentalidade moderna
(Wittgeinstein 1979).
7

Malinowski (1884-1932)

Cabe mencionar o trabalho de Malinowski, que nos permite, no âmbito da exposição,


fazer a passagem da versão inglesa da discussão para a versão francesa. Isto porque
Malinowski tomou emprestado a Durkheim a divisão básica entre sagrado e profano
para formular sua interpretação sobre a magia e a religião, tal como vemos em seu
livro Magic, science and religion and other essays (1948).

Evans-Pritchard classificou o modelo malinowskiano como um tipo de teoria


psicológica, mas emocionalista (ao invés de intelectualista). De fato, magia e religão
são compreendidos por Malinowski não em relação a modos de pensar, mas em
relação a formas de ação, isto é em termos pragmáticos. No entanto, Malinowski
inverte a posição dos termos tais como aparecem na formulação de Frazer, associando
magia e religião, em oposição à ciência, na medida em que ambas seriam tipos de
atividade sagrada, enquanto que a ciência seria exemplo de atividade profana.

Diferentemente de Dukrheim (e de Mauss), porém, Malinowski não enfatiza a


dimensão sociológica e convencional da magia, tampouco vê a religião como projeção
ou emanação da sociedade. Por outro lado, Malinowski opõe magia e religião num
outro plano: o plano de relação entre meios e fins.

A magia não teria, para ele, um fim em si mesmo, e só poderia ser


compreendida em seu valor estritamente utilitário, sendo um tipo de “performance”
votada a canalizar as emoções e os esforços humanos para suprir as necessidades
básicas da existência. Já as práticas religiosas, por sua vez, não teriam utilidade
prática. Elas teriam um fim em si mesmas, a saber, a de celebrar valores mais altos,
tais como a Providência e a Imortalidade.

Lévy-Bruhl (1857-1939)

No continente, do lado Francês, temos em Lucien Lévy-Brhul um exemplo do


que Evans-Pritchard chamou de teorias sociológicas da religião. Como bem
demonstrou nosso colega Marcio Goldman, especialista na obra do filósofo e
sociológo francês (Razão e Diferença, 1994), a principal diferença epistemológica ou
teórica da abordagem deste último em relação a Tylor e Franzer é que enquanto estes
8

antropólogos britânicos postulavam uma semelhança fundamental entre o pensamento


primitivo e o pensamento do homem moderno civilizado (a célebre unidade psíquica
do homem), Lévy-Bruhl enxergava uma diferença entre “nos” e “eles”.

Em seu livro mais conhecido (La Mentalité Primitive, 1922), Lévy-Bruhl


expôs de maneira sistemática seu contraditório aos ingleses. Em primeiro lugar, Lévy-
Bruhl mostra suas reservas quanto as interpretações da mente primitiva em termos de
uma psicologia individual e intelectualista. Dentro da tradição sociológica
durkheimiana, ele insistia na importância de compreender os padrões de pensamento
como representações coletivas. Ao mesmo tempo ele rejeita o modelo evolutivo
teleológico do qual falamos há pouco.

Lévy-Bruhl passa então a definir a natureza da mentalidade primitiva, que para


ele seria uma modalidade inteiramente distinta, à qual denominou “pré-lógica” ou
mística.

Com esse termo, Lévy-Bruhl delimitava as formas de pensamento mágico-


religioso. Magia e religião não se diferenciavam entre si, mas se diferenciavam em
bloco do pensamento científico. Mas é importante observar, que isso não significava,
para ele, que os povos não modernos eram incapazes de pensar de forma coerente, e
sim que suas crenças (seu sistema de representações coletivas) eram de certa forma
incompatíveis com uma visão crítica e científica do universo.

Ele não fala de uma diferença biológica ou psicológica entre “nós” e os


“primitivos”, mas de uma diferença social (ou socio-cultural, como falaríamos
depois). Ele fala de axiomas, de valores e sentimentos.

Em outras palavras, “pré-lógico” não quer dizer anti-lógico ou ilógico, mas


sim que esse tipo de pensamento não faz esforço deliberado para evitar as
contradições. Isto é, não segue o que poderíamos considerar como os princípios
aristotélicos da lógica, (identidade, não contradição e terceiro-incluído), que estão na
base remota do funcionamento da ciência ocidental.

Ao contrário, o princípio lógico que rege a mentalidade primitiva seria o que


Lévy-Bruhl chamou de “lei da participação mística”. Isso pressupõe uma associação
entre pessoas e coisas (entre sujeito e objeto, entre natureza e cultura), e projeta uma
visão da pessoa menos individual e mais difusa. Uma rede de participantes.
9

As representações coletivas fundem-se com a percepção.

Um ponto importante, como observa Tambiah, é que o modelo de Lévy-Bruhl


não exclui a possibilidade de que essas formas coletivas de pensar o mundo (essas
múltiplas ordens de realidade) apareçam ou estejam sempre presentes como
possibilidade ou virtualidade da mente humana. Cabendo à história o papel de
cristalizar coletivamente ou tornar mais influente uma ou outra, nesta ou naquela
sociedade.

Apesar de Lévy-Bruhl aparentemente ter modificado suas concepções no final


da vida, a acreditar em Evans-Prtichard, sua formulação mais relativista tem uma série
de implicações interessantes, e serve de inspiração para resolver certos problemas
etnográficos com os quais os antropólogos se deparam hoje.

Podemos ver alguns ecos dessa concepção, por exemplo, na etnologia


indígena, nas formulações recentes de que não há separação ontológica entre a
humanidade e a natureza, uma vez que todo participam de uma mesma condição “de
pessoa”. Podemos ver alguns ecos, ainda, nas formulações sobre a pessoa na
Melanésia, nos trabalhos de M. Strathern.

O modelo de Lévy-Bruhl é util num contexto, em que, como sustenta Latour,


assistimos à proliferação de redes de híbridos entre natureza e cultura, por exemplo.

Lévi-Strauss (1908-2009)

Lévi-Strauss entra de alguma forma de maneira transversal neste tema. E de


alguma forma se posiciona ortogonalmente em relação à Lévy-Bruhl. De um ponto de
vista estrito, Lévi-Strauss não tratou de religião, apesar de ter ocupado durante alguns
anos a cadeira de “Religões dos povos não civilizados”, depois alterada para
“Religiões dos Povos Sem Escrita” (na Quinta Seção, Ciências Religiosas) da
EHESS. Mas na verdade, ele tratou. Assim como também tratou de magia, embora de
que maneira muito esboçada, em dois artigos interessantíssimos publicados em
“Antropologia Estrutural” (O feiticeiro e sua magia, A eficácia simbólica).

Como Lévy-Bruhl, Lévi-Strauss esforçou-se para mostrar que não havia


diferenças fundamentais entre o pensamento dos não-modernos, agora denominado
10

“pensamento selvagem” (e não mais “primitivo”, após o declícnio do credo


evolucionista) e o pensamento científico. Mas, diferentemente de Lévy-Bruhl, Lévi-
Strauss imaginava que o princípio subjacente não era uma lógica mística de
participação, mas uma determinada forma universal de operar e classificar a
realidade, por meio da criação de estruturas significantes.

Partindo do modelo linguistico saussureano, Lévi-Strauss considerava que o


pensamento humano funciona reduzindo a continuidade do real (que não tem
significado em si), a descontinuidades significantes. O pensamento, tanto científico,
quanto mítico, fazem o mesmo tipo de operação, com a diferença que o primeiro
(selvagem) opera com materiais concretos (qualidades sensíveis); enquanto que o
segundo (ciência), opera com materiais abstratos (conceitos).

A própria magia funcionava desse modo estruturante, para Lévi-Strauss. E é


interessante como Lévi-Strauss usa este exemplo, para mostrar que os povos não-
modernos faziam ciência, e tinham uma psicanálise “avant la lettre”.

No entanto, por outro lado, o modelo de Lévi-Strauss deixava de fora um


conjunto de fenômenos, sobretudo no que diz respeito às prática religiosas e rituais,
que para Lévi-Strauss não operavam de maneira a construir separações estruturantes,
mas apagar as descontinuidades, e reintroduzir continuidades. E neste ponto o
estruturalismo encontrava seus limites. Aqui começava a dimensão propriamente
religiosa, da qual Lévy-Bruhl não fugiu, mas que Lévi-Strauss preferiu não adentrar.

Conclusão

Para encerrar esta aula, eu gostaria de dizer que aqui, evidentemente, não
esgotamos o tema das relações entre magia, ciência, religião no pensamento
antropológico. O recorte, mais limitado, no entanto, permite delinear o histórico do
problema, retraçar o “status quaestioni”, para daí prosseguirmos em uma discussão
que não parece de forma alguma esgotada, na medida em que, conforme observam,
por exemplo, Tambiah e Goldman, tocam em pontos fundamentais da reflexão
antropológica, como o problema da racionalidade, do relativismo e da tradução e
comunicação entre diferentes sociedades e modos de ordenar e vivenciar a realidade.
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Se me permitem uma vez mais a prosopopéia, poderíamos dizer que, em nosso


mundo contemporâneo, essa família composta por “magia, ciência e religião”,
encontra-se novamente em luta. Luta violenta, que, eventualmente, é descrita como
um “choque de civilizações” (Samuel Huntington). Hoje vemos guerras entre ciência
e religião (como nos confrontos entre darwinistas e criacionistas); guerras entre
religião e magia (como no combate de certas segmentos cristãos neo-pentencostais
contra as práticas mágicas de origem africana); guerras entre religiões (como no
confronto entre islâmicos contra cristãos e hindus, em diversas partes do mundo).

Talvez seja o tempo oportuno de tentar fazer com que a antropologia ajude, se
isso for possível, a reconciliá-la.

Seria verdadeiramente uma tarefa justa e digna.

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Double Ballade of Primitive Man

TO J. A. FARRER.
15

He lived in a cave by the seas,


He lived upon oysters and foes, He is found, and his habits disclose
But his list of forbidden degrees, (Let theology say what she can)
An extensive morality shows; That he lived in the long, long agos,
Geological evidence goes 'Twas the manner of Primitive Man!
To prove he had never a pan,
But he shaved with a shell when he chose, - From a status like that of the Crees,
'Twas the manner of Primitive Man. Our society's fabric arose, -
Develop'd, evolved, if you please,
He worshipp'd the rain and the breeze, But deluded chronologists chose,
He worshipp'd the river that flows, In a fancied accordance with Moses,
And the Dawn, and the Moon, and the trees, 4000 B. C. for the span
And bogies, and serpents, and crows; When he rushed on the world and its woes, -
He buried his dead with their toes 'Twas the manner of Primitive Man!
Tucked-up, an original plan,
Till their knees came right under their nose, - But the mild anthropologist,--HE'S
'Twas the manner of Primitive Man. Not RECENT inclined to suppose
Flints Palaeolithic like these,
His communal wives, at his ease, Quaternary bones such as those!
He would curb with occasional blows; In Rhinoceros, Mammoth and Co.'s,
Or his State had a queen, like the bees First epoch, the Human began,
(As another philosopher trows): Theologians all to expose, -
When he spoke, it was never in prose, 'Tis the MISSION of Primitive Man.
But he sang in a strain that would scan,
For (to doubt it, perchance, were morose) ENVOY.
'Twas the manner of Primitive Man!
MAX, proudly your Aryans pose,
On the coasts that incessantly freeze, But their rigs they undoubtedly ran,
With his stones, and his bones, and his bows; For, as every Darwinian knows,
On luxuriant tropical leas, 'Twas the manner of Primitive Man!
Where the summer eternally glows,
Ballades in Blue China (1880, 1888)
Andrew Lang

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